Introdução
Com a expansão das licenciaturas em Educação do Campo habilitando na área de Ciências da Natureza - induzida pelos editais PROCAMPO (2009 e 2012), que apontavam essa área como prioritária - houve uma maior intersecção entre as áreas de Ensino de Ciências da Natureza e de Educação do Campo, evidenciada pela presença de discussões em eventos. Além disso, é preciso destacar que a emergência e a expansão das Licenciaturas em Educação do Campo na área de Ciências da Natureza significou a possibilidade de um novo contexto de atuação para mestres e doutores da área Ensino de Ciências, que até então tinham como principal locus de atuação profissional as licenciaturas disciplinares. Também na área de Ensino de Ciências da Natureza começava, a partir das discussões pedagogias universitárias, considerando a especificidade de formar professores de Ciências da Natureza, estudos sobre a constituição da docência no ensino superior (HOFFMANN, 2016; ODA, 2012).
Um dos desafios apontados é o estabelecimento da complexa relação entre as dimensões pedagógicas e epistemológicas, algo que toma outros contornos quando considera-se o curso de Licenciatura em Educação do Campo, por sua origem e suas demandas próprias, como um contexto de atuação e constituição da Docência do Ensino Superior (DES) (BRICK, 2017). Nesse sentido, o presente trabalho, escrito por três docentes do ensino superior oriundos da área de Ensino de Ciências (Ensino de Química, de Física e de Biologia), em constituição nos cursos de Licenciatura em Educação do Campo de três instituições federais do Sul do Brasil (UFRGS, UFPR, UFSC), visa situar uma reflexão crítica sobre desafios e potencialidades vivenciados ao longo de mais de meia década de atuação e constituição como DES nesses contextos.
O trabalho é estruturado em três partes, são elas: a primeira busca trazer uma breve contextualização e uma caracterização dos cursos de Licenciatura em Educação do Campo na Região Sul do Brasil; outra parte que aborda a constituição da DES no contexto das licenciaturas da área de Ciências da Natureza e um desafio preliminar à constituição da DES nas Licenciaturas em Educação do Campo com habilitação na área de Ciências da Natureza, se reconhecer como agente - em formação - de um permanente processo de transformação; por último, desenvolvemos, de forma exploratória, alguns desafios comuns para as três experiências de enfrentamento prático de construção da área de Ciências da Natureza na Educação do Campo.
Nosso objetivo com este artigo é fazer uma discussão da intersecção da área de Ciências da Naturezas com a Educação “do” e “no” Campo (CALDART, 2010), mostrando os desafios da entrada de professores de física, química e biologia neste território e nas discussões que permeiam modelos de produção, diálogo de saberes e questão agrária no campo brasileiro, dentre outras temáticas relevantes.
Contextualização dos cursos de Licenciatura em Educação do Campo (LEDOC) na Região Sul do Brasil
Historicamente, há de compreendermos que a trajetória das licenciaturas em Educação do Campo no Brasil foi uma construção que teve sua largada nas lutas camponesas pela terra e no acesso aos direitos sociais básicos, dentre eles a Educação. O processo de luta pela educação surge da necessidade em se manter abertas e organizadas escolas nas áreas rurais. A Educação do Campo nasce nos debates dentro do movimento social pela necessidade da luta e consolidação do direito à educação, como colocado por Marshall (1967) quando escreve sobre as esferas e as gerações de direitos sociais:
O direito à educação é um direito social de cidadania genuíno porque o objetivo da educação durante a infância é moldar o adulto em perspectiva. [...]. Pois, os direitos civis se destinam a ser utilizados por pessoas inteligentes e de bom senso que aprenderam a ler e escrever. A educação é um pré-requisito necessário da liberdade civil (MARSHALL, 1967, p. 73).
Temos de compreender que dentro da esfera dos direitos sociais a educação é um direito básico que é porta de acesso a outros (sociais e políticos). Desta forma, a luta por Educação do e no Campo é uma luta pela garantia do direito a uma educação construída pelos camponeses e que busca trazer sua cultura, seus saberes e suas formas de pensar e de agir no campo (CALDART, 2004). Neste sentido, busca-se, a partir da Educação do Campo, a construção de um projeto camponês com envolvimento comunitário em contraposição à lógica capitalista, neocolonial, de desenvolvimento do agronegócio, do mineronegócio, do hidronegócio, dentre outros. Ou seja, a Educação do Campo luta por construção de uma nova concepção educacional de base emancipadora e com olhar crítico da realidade, aliada à produção agroecológica e com perspectiva de empoderamento comunitário na construção e na unificação das pautas de luta e de resistência da coletividade diversa que vive e produz sua existência enquanto sujeitos de direitos nos campos, nas águas e nas florestas deste País. Assim, nesta trilha histórica, a Educação do Campo nasce para disputar o espaço de hegemonia com a Educação Rural. Desta forma, Educação do Campo é a contra-hegemonia ao processo histórico do ruralismo pedagógico que vem com a ideia de um campo destituído de diversidade e de pessoas, o campo da especulação latifundiária e dos variados negócios que vivem da exploração e da destruição da terra.
Outra questão que é importante para a compreensão é de que o Brasil é um país eminentemente agrário. Os dados do Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que somente 616 municípios dos 5.565 possuem população igual ou superior a 50.000, somente 11%. Ou seja, 126.750.881 (66%) pessoas vivem em centros urbanos propriamente ditos, o restante da população, 64.004.918 (34%), vivem em contextos agrários dos mais diversos possíveis (IBGE, 20201).
Quando olhamos para o panorama educacional, percebemos um movimento de diminuição dos espaços escolares. Em 2007, havia 198.397 escolas localizadas nos mais variados contextos, urbanos e rurais; em 2019, foram computadas 180.610. Ou seja, em 12 anos, 17.787 unidades educacionais foram fechadas. Enquanto que nas áreas urbanas foram criadas 15.254 novas escolas, no campo, foram fechadas 33.041 unidades educacionais, mostrando que os entes federados têm historicamente constituído um processo contraeducacional no que refere-se à educação do e no campo. A Figura 1 dá uma visão desta série histórica.
Porém, quando olhamos para os dados de escolas em áreas de assentamento, em quilombos e em terras indígenas, percebe-se a expressão da luta por educação destas populações, pois o número de escolas indígenas e quilombolas cresce, aproximadamente, 107% e 37%, respectivamente. Enquanto que há uma queda com o indicativo do fechamento de 479 escolas em áreas de assentamento. A Figura 2 dá um panorama destas séries históricas.
Esses dados refletem as lutas dos movimentos sociais organizados pela educação e o processo de resistência e de disputas organizados na esfera política pelo movimento organizado denominado de Movimento Nacional Por Uma Educação do Campo (MUNARIN, 2011a, 2011b).
Tal movimento nasce a partir da luta dos movimentos sociais na esfera política com o estabelecimento do Programa Nacional de Reforma Agrária (PRONERA), que possibilitou os instrumentos para construção das primeiras parcerias em cursos e em formações em área de reforma agrária. Contraditoriamente, o PRONERA teve de ser efetivado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), tendo o Ministério da Educação (MEC) recusado a construir o programa em um primeiro momento. É a partir do PRONERA que o movimento se organiza para disputar na esfera política a construção de documentos normativos, de pareceres e de outros dispositivos que transformaram a concepção educacional emancipadora da Educação do Campo em uma modalidade educacional reconhecida pelo Estado brasileiro.
A partir dos projetos do PRONERA é que a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) plasma um projeto de formação de professores para a Educação do Campo. Esta proposta de curso fomenta a constituição de um Grupo de Trabalho (GT) constituído pela SECADI, que organiza a política do Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo (PROCAMPO), organizado a partir de uma experiência piloto com a Universidade de Brasília (UnB), a UFMG, a Universidade Federal de Sergipe (UFS) e a Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Após o estabelecimento das experiências pilotos, constituiu-se um edital, em 2009, com a participação de Instituições de Educação Superior (IES) de todo o Brasil e, em 2012, foi construído por dentro do Programa Nacional de Educação do Campo (PRONACAMPO) um novo edital com alguns limites operacionais, mas que possibilitou a criação de novos cursos em universidades federais e em alguns institutos federais com a disponibilização de recursos financeiros, e de corpo docente e técnico para o desenvolvimento das propostas. A partir desta trajetória de construção da política, constitui-se o espaço da licenciatura em Educação do Campo. Atualmente, há 59 cursos ativos em todo o País com a seguinte distribuição por estado, conforme pode ser evidenciado na Tabela 1.
REGIÃO (Qt. de cursos) | Estado | Quantidade de cursos |
---|---|---|
Norte (14) | Rondônia | 1 |
Roraima | 3 | |
Pará | 7 | |
Amapá | 1 | |
Tocantins | 2 | |
Nordeste (17) | Maranhão | 3 |
Piauí | 4 | |
Ceará | 1 | |
Rio Grande do Norte | 3 | |
Paraíba | 4 | |
Bahia | 2 | |
Sudeste (10) | Minas Gerais | 5 |
Espírito Santo | 2 | |
Rio de Janeiro | 3 | |
Sul (13) | Paraná | 4 |
Santa Catarina | 1 | |
Rio Grande do Sul | 8 | |
Centro-Oeste (5) | Mato Grosso do Sul | 2 |
Goiás | 2 | |
Distrito Federal | 1 | |
TOTAL | 59 |
Fonte: E-MEC (2020)3.
O que há de compreender na construção do processo do PROCAMPO é que houve alguns avanços e, também, se verificam algumas perdas no sentido original dos cursos como pensados e externados na minuta original em 2006. No decorrer dos editais, houve a descontinuação de experiências que não puderam mais acessar o programa por não serem pertencentes à esfera federal. Neste sentido, como afirma Melzer (2020), podemos ver o movimento contraditório da política e o conflito de interesse que se estabelece no estado.
Para além destas questões, o que se percebe dos editais PROCAMPO é a vinculação da constituição dos projetos de cursos com a área de Ciências da Natureza como prioritária. Essa prioridade se estabelece a partir do déficit de professores formados nas áreas das Ciências da Natureza no Brasil.
Historicamente, no Brasil, há um déficit elevado do número de professores formados que já na década de 2000 não supria as demandas das escolas públicas e este se constituía como um dos grandes desafios à universalização do acesso à educação no País (GATTI e BARRETO, 2009). Ainda mais alarmante se encontrava a situação do déficit de professores da área de Ciências da Natureza. Segundo estimativas (RUIZ; RAMOS; HINGEL, 2007), em 2007, calculava-se um déficit de cerca de 55 mil professores apenas de Física; de 1990 a 2005 se formaram menos de 14 mil licenciados nesta disciplina no País. Desse déficit, resulta que, dos professores de Física atuantes, segundo censo escolar de 2007, apenas 25,2% apresentam formação específica (INEP, 2009). Conforme argumentam Ruiz, Ramos e Hingel (2007), a grande complexidade desse problema se mostra vinculada a fatores múltiplos e imbricados, tais como: a desvalorização do trabalho docente e a falta de oferta de cursos de formação que pudessem sanar essas demandas.
Desta forma, os editais PROCAMPO absorveram esta necessidade formativa, priorizando a formação dentro das Ciências da Natureza como estratégia para a garantia de professores nas escolas do campo e, ao mesmo tempo, para o estabelecimento de novos cursos de formação que tem como meta reduzir o déficit nessa área.
Quando analisamos mais de perto a Região Sul no PROCAMPO, percebemos uma evolução no quantitativo de curso de 2009 a 2018, que vai de 1 a 11, conforme o gráfico da Figura 3.
A partir destes dados, podemos compreender que na Região Sul há um substancial crescimento dos cursos de licenciatura em educação em virtude do edital do PROCAMPO do ano de 2012. Esse crescimento, conforme a Figura 3, se deu de forma acentuada no estado do Rio Grande do Sul, seguido pelo Paraná e com Santa Catarina mantendo apenas uma Licenciatura Interdisciplinar em Educação do Campo na capital Florianópolis.
Atualmente, temos em atividade um total de oito cursos, dois em processo de extinção e quatro cursos extintos, de acordo com os dados do Censo da Educação Superior de 2018 (INEP, 20204). A Tabela 1 apresenta um panorama desta organização das LEDOCs na Região Sul.
UF | SIGLA | FUNCIONAMENTO | EDITAIS PROCAMPO | TIPO DE INSTITUIÇÃO |
---|---|---|---|---|
PR | UFFS | SIM | 2012 | UNIVERSIDADE FEDERAL |
SC | UFSC | SIM | 2009 E 2012 | UNIVERSIDADE FEDERAL |
PR | UFPR | SIM | 2012 | UNIVERSIDADE FEDERAL |
RS | IFFAR | EM EXTINÇÃO | 2012 | INSTITUTO FEDERAL |
RS | IFFAR | EM EXTINÇÃO | 2012 | INSTITUTO FEDERAL |
RS | UFFS | SIM | 2012 | UNIVERSIDADE FEDERAL |
RS | FURG | SIM | 2012 | UNIVERSIDADE FEDERAL |
PR | UTFPR | NÃO | 2009 E 2012 | UNIVERSIDADE FEDERAL |
RS | UNIPAMPA | SIM | 2012 | UNIVERSIDADE FEDERAL |
SC | IFSC | NÃO | 2012 | INSTITUTO FEDERAL |
RS | UFRGS | SIM | 2012 | UNIVERSIDADE FEDERAL |
RS | UFRGS | SIM | 2012 | UNIVERSIDADE FEDERAL |
PR | UNICENTRO | NÃO | 2009 | UNIVERSIDADE ESTADUAL |
PR | UNIOESTE | NÃO | 2009 | UNIVERSIDADE ESTADUAL |
Fonte: Melzer (2020).
Outro ponto importante para análise é a composição dos cursos. Analisando os projetos dos cursos e os dados do Censo da Educação Superior (INEP), percebe-se que dez cursos têm como objetivo a formação de professores em Ciências da Natureza. Destes, sete continuam em atividade e os outros três estão em processo de extinção ou já foram descontinuados em suas respectivas instituições.
Quando olhamos para a composição docente desses sete cursos, evidenciamos a consolidação de um coletivo de professores que ensinam Ciências da Natureza e Matemática na compreensão da Educação do Campo. Ao todo, são 59 professores divididos nas áreas de Química, de Física, de Biologia, de Ciências e de Matemática. Destes, ao todo são 12 professores de Química, 13 de Física, 17 de Biologia, sete de Ciências e dez de Matemática.
Porém, quando olhamos para os cursos, percebemos realidades diferenciadas em cada instituição. Nas LEDOCs da UFPR e da FURG, são os cursos da área de Ciências da Natureza que contam com o menor contingente de profissionais formados na área, seis docentes na UFPR e cinco na FURG. Já os outros cursos contam com uma relação de sete a 11 professores da área em suas composições de corpo docente. Olhando em uma perspectiva geral, este movimento da educação do campo na Região Sul contribuiu para construção de quadros de professores formadores em Ciências da Natureza para Educação do Campo, mesmo com os desafios de falta de docentes em alguns cursos como na FURG e na UFPR.
Assim, podemos compreender que a trajetória das LEDOCs no Sul do Brasil contribuiu para a consolidação de um coletivo de professores que estudam, pesquisam e formam professores de Ciências para Educação do Campo.
Da constituição da Docência no Ensino Superior à Docência no Ensino Superior nas Licenciaturas em Educação do Campo: área de Ciências da Natureza
As discussões a respeito da constituição da docência do DES, ainda que incipiente no âmbito da pesquisa sobre a atuação de docentes em cursos relacionados às Ciências da Natureza, vem, cada vez mais, ganhando espaço na pesquisa acadêmica, em especial a que discute a formação dos profissionais para atuação no Ensino de Ciências da Educação Básica. Há alguns anos, Delizoicov (2004, 2008) já acenava a necessidade de se investigar, por exemplo, os resultados das pesquisas em ensino, que já vêm sendo realizadas desde a década de 70, na prática dos DES que atuam na formação de professores de Física. O autor apresenta como pressuposto que o professor formador desempenha papel exemplar para a atuação docente, tanto ao adotar práticas consistentes com os resultados de pesquisa como ao manter práticas tradicionais de ensino.
Nos últimos anos, algumas iniciativas de investigações sobre a formação e a práticas do DES da área de Ciências da Natureza começaram a tomar destaque, a exemplo os estudos de Silva & Schnetzler (2005), de Gonçalves (2009), de Feistel (2012), de Oda (2012), de Hunsche (2015), de Hoffmann (2016) e de Rocha (2018). De modo geral, os diferentes pesquisadores e as pesquisadoras concordam sobre a necessidade de um espaço de formação permanente dos DES, no sentido de reflexão e de transformação constante de suas práticas, a partir, principalmente, dos desafios objetivos vivenciados na realidade das universidades e dos cursos de formação de professores e de professoras. Cunha (2014) destaca que muitas vezes o cotidiano da docência no ensino superior coloca os docentes em impasses teórico-práticos, para os quais a maioria não teve preparo acadêmico para assumir. Reforça-se a cultura do trabalho universitário como algo solitário, individual e individualizado, que, às vezes, representa o espaço em que esse docente irá produzir uma identidade profissional.
Como consequência deste processo, entre outros fatores, Rocha (2018) aponta dois possíveis problemas. O primeiro seria a fragmentação curricular e o isolamento disciplinar, em que os professores acabam reduzindo a formação discente para sua disciplina, acreditando ser responsáveis apenas pela transmissão de seus conhecimentos homogeneizados sem um claro vínculo com a formação profissional do egresso pretendido pelo curso. O segundo seria a desresponsabilização formativa, ou seja, a divisão do trabalho dos formadores no curso que, sem reconhecer o processo formativo deste e nem seus egressos, enquanto uma totalidade a qual condicionam, se subdividem em professores responsáveis pelo conhecimento puro - que acreditam que cada disciplina seria um bloco simbólico individualizado a somar-se na formação - e outros responsáveis por conhecimentos de ordem prática e/ou profissional da licenciatura - que normalmente acabam ficando com todo o peso funcional da formação profissional (ROCHA, 2018).
Em se tratando das Licenciaturas em Educação do Campo, a adesão dos DES nestes cursos se deu, principalmente, a partir do Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo (PROCAMPO), que tinha como principal objetivo “[...] apoiar a implementação de cursos regulares de licenciatura em Educação do Campo nas Instituições de Ensino Superior (IES) de todo País, voltadas especificamente para formação de educadores para a docência nos anos finais do ensino fundamental e ensino médio nas escolas rurais” (MEC, 2020). Tal programa propiciou a criação de cursos de Licenciatura em Educação do Campo a partir do Edital nº 9/SECAD/MEC/2009, que contemplou 31 instituições, possibilitando a criação de uma estrutura material para dar suporte a atividades em regime de alternância e contratação de professores (BRICK et al., 2014). Todos os cursos abertos através desse edital deveriam se organizar na perspectiva da formação docente multidisciplinar, com componentes curriculares que proporcionam formação aos egressos em quatro áreas do conhecimento: Linguagens (expressão oral e escrita em Língua Portuguesa, Artes e Literatura); Ciências da Natureza e Matemática; Ciências Humanas e Sociais; e Ciências Agrárias.
Neste sentido, componentes tradicionalmente disciplinares demandaram outras organizações curriculares, por meio de uma abordagem ampliada de conhecimentos científicos que dialogam entre si a partir de recortes da realidade complementares. Além da atuação na docência em determinadas áreas de conhecimento, as demais dimensões do perfil de habilitação dos egressos das Licenciaturas em Educação do Campo - a gestão de processos educativos escolares e a gestão de processos educativos comunitários - exigem, segundo Brick et al. (2014), um processo formativo complexo e difícil de se pôr em prática, visto que parte considerável dos docentes que atuam na educação superior são oriundos de processos formativos extremamente fragmentados, com pouco ou quase nenhum diálogo entre as disciplinas de uma mesma área em sua própria formação. Sobre este ponto, Brick et al. (2014) afirmam que:
Há que se promover e organizar diferentes processos formativos para os próprios docentes que atuam nas Licenciaturas em Educação do Campo, tanto no que diz respeito à apropriação teórica das questões que envolvem os processos em disputa no campo brasileiro, em torno das diferentes visões de modelo de desenvolvimento e de agricultura, quanto em relação ao desafio de exercitar o trabalho interdisciplinar. E, neste ponto, reside um dos grandes desafios a serem materializados que se refere à própria concepção de interdisciplinaridade a ser concretizada na ação didática. (BRICK et al., 2014, p.15).
A proposta de formação por área de conhecimento como parte da matriz formativa das Licenciaturas em Educação do Campo teve como intenção, entre outros aspectos, a promoção de novos processos para formação docente. No entanto, destaca-se a necessidade da formação dos próprios formadores que atuaram nestes cursos e que, no cotidiano objetivo das universidades e das comunidades, fariam os princípios almejados serem colocados em prática. Estes profissionais, em sua maioria, são provenientes de uma trajetória formativa extremamente disciplinar e fragmentada, portanto representando grande desafio epistemológico à incorporação de uma outra concepção de ciência, também deparamo-nos com mais um agravante nesta área de conhecimento: a rara ou a mínima experiência e participação anterior em atividades formativas executadas com o protagonismo dos sujeitos camponeses em luta (BRICK et al., 2014). Sobre este ponto nos inspira o seguinte trecho da terceira tese de Marx sobre Feuerbach:
A doutrina materialista de que os seres humanos são produtos das circunstâncias e da educação, [de que] seres humanos transformados são, portanto, produtos de outras circunstâncias e de uma educação mudada, esquece que as circunstâncias são transformadas precisamente pelos seres humanos e que o educador tem ele próprio de ser educado. Ela acaba, por isso, necessariamente, por separar a sociedade em duas partes, uma das quais fica elevada acima da sociedade (por exemplo, em Robert Owen). A coincidência do mudar das circunstâncias e da atividade humana só pode ser tomada e racionalmente entendida como práxis revolucionante. (MARX; ENGELS, 2007).
O trecho acima nos inspira a nos reconhecermos, no âmbito praxiológico, como parte dos sujeitos de construção das Licenciaturas em Educação do Campo em que atuamos, da mesma forma nos permite reconhecer que esse contexto de atuação com vocação contra-hegemônica também nos forma permanentemente. Também nos inspira a reconhecer que não estamos sozinhos como DES nesse processo de formação. Temos observado ao longo de nossa experiência que essa circunstância, a necessidade de se reconhecer em processo de formação a partir dos desafios práticos vivenciados, não é exclusiva da atuação de professores oriundos da área de Ensino de Ciências, mas, sim, de todas as áreas, já que não nos parece ser de domínio exclusivo de uma área a realização do processo de formação inicial de educadores na área de Ciências da Natureza demandado pela Educação do Campo: que coloque em prática processos de denúncia (esclarecedoras da dimensão natural) das contradições do projeto de campo hegemônico e contribuição desde a área de Ciências da Natureza com a criação de condições para o anúncio coletivo da factibilidade de um outro projeto de campo e de sociedade.
Da mesma forma, nos parece que o anúncio de princípios, de pressupostos e de horizontes da Educação do Campo poderiam ser potencializados se, como estratégia de capilarização entre e com DES oriundo das áreas de Ciências da Natureza ou do Ensino de Ciências da Natureza, houvesse um maior enfrentamento coletivo e aberto para a aprendizagem de pôr em prática o que é anunciado. Esse mergulho práxico em “dizer” Educação do Campo “fazendo” teria a potência de unir mais todos os envolvidos diretamente hoje com a Educação do Campo, em especial os DES de distintas áreas (e com consequentes distintos acúmulos e lacunas para esse enfrentamento) em relação ao aprimoramento de denúncias esclarecidas e esclarecedoras sobre o modelo de campo e de sociedade vigente. Isso poderia se configurar em abertura também para anúncios cada vez mais coletivos e abrangentes, envolvendo não apenas representados, mas também como anunciantes todos os povos do campo hoje oprimidos, da possibilidade de um outro mundo, “um mundo onde caibam muitos mundos”. A seguir, destacamos alguns dos desafios-potencialidades comuns às três experiências vivenciadas desde os DES nas Licenciaturas em Educação do Campo: área de Ciência da Natureza.
Desafios e potencialidades que emergem do enfrentamento prático de construção da área de Ciências da Natureza na Educação do Campo
Dentre os desafios comuns vivenciados nos três cursos mencionados, no processo de trabalho no âmbito das Licenciaturas em Educação do Campo, destacamos aqueles que representam ao mesmo tempo potencialidades. São os seguintes pontos que abordaremos: 1) Superar a percepção do “meio natural” como mero recurso, dicotomizando a relação humanidade-natureza e um ensino de ciência pretensamente neutro; 2) Romper com o padrão de trabalho docente solitário, individual e individualizado e a indisposição ao diálogo permitindo enfrentar os desafios de realizar diálogos efetivos; e 3) Identificar a potência criativa, formativa e produtiva na relação com os territórios.
1) Superar a percepção do “meio natural” como mero recurso, dicotomizando a relação humanidade-natureza e um ensino de ciência pretensamente neutro.
Essa superação também inclui a compreensão profunda do porquê tais "recursos" são de interesse imperialista, inclusive a partir da dimensão natural da realidade. Nesse sentido, significa superar também um ensino de ciência pretensamente neutro, parcial e asséptico de uma olhar e uma valorização para a própria riqueza natural, e, com isso, necessariamente com a riqueza das diversidades socioculturais locais que constituem e são constituídas dessas riquezas naturais, muitas vezes invisibilizadas pela monocultura de valores, reflexo de um processo de homogeneização cultural que põe em risco a próprio sobrevivência de nossa e de diversas outras espécies de seres vivos.
A Educação do Campo demanda um ensino de ciência da natureza engajado com as lutas sociais contra a ordem vigente, principalmente as que dão origem para a própria Educação do Campo. Não significa, com isso, apenas um ensino de ciências engajado com a transformação macrossocial, mas, também, engajado com as transformações macrossociais e locais, com a ruptura dos silenciamentos das diversas formas de agir num mundo igualmente diverso. O silenciamento das culturas e dos saberes é assim o silenciamento da diversidade natural que as produz dialeticamente, em nome de uma monocultura de saberes alienados da própria riqueza natural-cultural que o campo produz.
2) Romper com o padrão de trabalho docente solitário, individual e individualizado e a indisposição ao diálogo e enfrentar os desafios de realizar diálogos efetivos
Nesse aspecto, tanto a possibilidade de vivenciar a orientação de estágios docentes a partir de projetos comunitários quanto a possibilidade de compartilhar disciplinas, módulos5, com companheiros professores de outras especificidade das ciências da natureza, podem ser destacados como avanços em relação ao modus operandi da DES. Entretanto, esse avanço também traz novos desafios, destacamos, principalmente, a disponibilidade ao diálogo com o não identitário - o que contribui não apenas para interlocuções entre Física, Química e Biologia, mas, sobretudo, de conhecimentos dessas disciplinas com conhecimentos populares e tradicionais - gerar as condições de trabalho que permitam que as aventuras sejam acompanhadas de um mínimo de segurança e de planejamento prévio, evitando, também, o risco de cairmos em espontaneísmos que podem perder o vetor axiológico que orienta a interdisciplinaridade na Educação do Campo.
As experiências pedagógicas nos três cursos (UFPR, UFSC e UFRGS), cada uma ao seu modo, tem proporcionado um espaço fertil para a colaboração docente diante dos desafios téoricos-práticos que a promoção da Educação do Campo em cada contexto demanda. Para efeito de ilustração das potencialidades do enfrentamento desses desafios destacamos a experiência de docência compartilhada nos modulos multidisciplinares do curso do Setor Litoral UFPR, o qual tem se mostrado como um caminho efetivo para uma abordagem das Ciências da Natureza enquanto base de conhecimento complexo (BARRERA-BASSOLS et al., 2006; TOLEDO e BARRERA-BASSOLS, 2009) que esta interligado a partir da agroecologia e a questão da relação das Ciências com meios de produção no processo de luta contra a hegemonia do Agronegócio e na discussão de meios de produção mais humanos e que pautem a soberania alimentar e a importância da alimentação saudável a partir da compreensão de agroecossistema.
Neste sentido, a docência compartilhada é um caminho a se desenvolver e discutir na área de intersecção das Ciências da Natureza com a Educação do Campo, tornando possível a formação multidisciplinar de educadores por área de conhecimento.
Reconhecer que a constituição e o desenvolvimento do Ensino de Ciências da Natureza na Educação do Campo se dará pelo diálogo entre áreas do conhecimento, a começar pelas áreas de Ensino de Ciências da Natureza e a área de Educação do Campo, mas não se restringindo a estas, significando reconhecer a complexidade do desafio. Também significa reconhecer com radicalidade o sentido de falarmos em Educação “do” Campo, remetendo ao protagonismo dos sujeitos do campo nesse processo. Nesse sentido, o diálogo se torna uma exigência pré-ética, de reconhecer os sujeitos do campo como sujeitos que produzem conhecimento a partir de suas vivências, a partir de sua relação com o meio (natureza). Sem esse reconhecimento prévio, munidos de arrogância epistemológica, o diálogo se reduz a um enunciado vazio e sem efeito potente de transformação prática do mundo. Tanto na relação entre os sujeitos do campo quanto entre especialistas de áreas específicas, e ainda o parecer válida a ideia transmitida com a segunda tese sobre Feuerbach de Marx (2007), de que a questão da verdade seria meramente escolástica em relação à potência que o diálogo entre distintos conhecimentos poderia conferir ao processo de transformação da realidade injusta.
3) Identificar a potência criativa, formativa e produtiva na relação com os territórios
A relação formativa recíproca entre território e universidade (práxis transformadoras de conexões passivas e ativas) - Educação do Campo “inova” e pauta a necessidade de uma outra Universidade. Com essa pauta, e da abertura de uma nova concepção de Universidade, surgem novos desafios ao Ensino de Ciências. Nesse aspecto, há experiências como a realizada no campus litoral da UFPR que desenvolveu aulas de tempo-universidade nos territórios de vida e produção de existência dos estudantes, problematizando a realidade social e as ciências da natureza dentro de cada comunidade. Este processo, assim como outros, produziram uma visão do todo com os estudantes e um processo de reconhecimento das diferenças em cada uma das turmas. Ou seja, dentro da relação com território foi possível tecer uma relação interna no curso da formação em ciências da natureza com a necessidade formativa da realidade e materialidade camponesa. Nesses contextos supera-se a lógica de “extensão” de conhecimento desde a Universidade, mas reconhece-se os territórios como produtores de conhecimento e demandantes de uma outra “forma-Universidade”, pintada de povo e que sirva aos interesses do povo.
Considerações Finais
Participar da constituição e do desenvolvimento do Ensino de Ciências da Natureza na Educação do Campo nos parece que traz, inevitavelmente, dores e sabores. Buscamos com este trabalho trazer alguns pontos que julgamos vitais para fazer a discussão desta intersecção que se constrói a partir de uma política educacional do PROCAMPO com a possibilidade de instalação de cursos de Licenciatura em Educação do Campo com a especificidade da formação por área de conhecimento das Ciências da Natureza que abarca as disciplinas escolares científicas da Química, Física e Biologia.
Em nosso percurso metodológico, buscamos traçar um panorama das LEDOCS nas diferentes regiões do Brasil, analisando especificidades presentes na Região Sul a partir de um levantamento dos cursos ativos e da interação em coletivos de professores que atuam diretamente na formação de educadores camponeses em Ciências da Natureza. Buscamos também discutir a questão da Docência no Ensino Superior (DES) e suas implicações na realidade especifica da Educação do Campo. Estas análises impulsionam nossas reflexões à luz de nossas experiências práticas no dia-a-dia das LEDOCS localizadas em Matinhos na Universidade Federal do Paraná (UFPR), Florianópolis na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e em Porto Alegre na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sintetizando em cinco pontos que destacam as potencialidade e os dilemas desta nova questão que surge no âmago da área de Ciências da Natureza, pautada pelo movimento da Educação do Campo.
Colocamos que estas potencialidades e desafios estão muito relacionados com nossa própria constituição como docentes do Ensino Superior, mas, principalmente, como permanentes aprendizes do que significa o engajamento com processos de transformação que são muito maiores do que as dores e os sabores individualizados e individualizantes da docência no ensino superior hegemónica. Um dos principais pontos de inflexão que podemos destacar é o reconhecimento da possibilidade da luta coletiva, da possibilidade de se somar a lutas que passam a ser também nossas desde as especificidades (as armas) com as quais temos e podemos ajudar a desenvolver.