Introdução
Neste trabalho nos deteremos sobre textos de professoras primárias, contidos no Boletim do Professor (1946), um tipo de imprensa pedagógica direcionada aos professores do estado do Paraná, que circulou como meio de orientação profissional aos docentes da rede pública de ensino da zona rural deste estado no ano de 1946.
Em janeiro desse ano, contando com financiamento dos Centros de Professores da região da 4ª delegacia de ensino e de instituições educacionais paranaenses, o propósito desse Boletim foi difundir práticas pedagógicas e o pensamento educacional em circulação. Escrito por professores e professoras, é destinado a seus pares. É importante fonte de pesquisa sobre o que se pretendia fazer chegar ao professorado paranaense em termos pedagógicos. Nesse sentido, pode ser caracterizado como expressão de movimento de grupo de professores e professoras que visavam ao aperfeiçoamento das práticas pedagógicas, por meio de orientação sobre saberes a serem ensinados, e como ensiná-los. Uma espécie de centro difusor de informações sobre modos de, nas palavras de Catani (1996), construir e divulgar discurso legítimo, utilizando-se de um conjunto de prescrições e orientações consideradas ideais para realizar o trabalho docente. Essa autora contribui para entender que esse não é um dispositivo neutro e que se faz necessário entender as condições sob as quais ele é gerado.
Na primeira edição do Boletim (BOLETIM DO PROFESSOR, 1946),1 o professor Guido Arzua escreve uma coluna acerca dos propósitos a serem alcançados a partir da publicação dessa Revista. Nesse material constam dezessete artigos, sendo treze deles escritos por professoras do ensino primário.
Assim, o objetivo neste estudo é analisar cinco textos e correspondentes discursos de professoras, portanto, mulheres, que, além de conter críticas à escola primária de então, também trazem proposições de formatos educativos ideais. O destaque é dado às finalidades que deveriam estar presentes na ação cotidiana, com realce para a característica não meramente instrutivas da pedagogia, mas sobretudo educativa. Em texto denominado “O ideal Pedagógico”, a professora Rosinha de Giácomo, do grupo escolar Ribeirão Claro, refere ser importante que o problema pedagógico considere três aspectos: “o ideal pedagógico, a realidade pedagógica e o método pedagógico” (GIÁCOMO, 1946, p. 27). Para ela, a pedagogia destinada à formação de futuros homens deveria ter seus princípios claramente definidos. Além do ideário pedagógico, são trazidas críticas à crescente desvalorização da profissão em decorrência dos baixos salários e das dificuldades enfrentadas pelos docentes. Segundo Giácomo (1946), o professor deveria assumir papel e função mais abrangentes em sala de aula, como uma espécie de disseminador de novos hábitos e costumes. A revista pretendia, desse modo, dar visibilidade aos distintos problemas do Campo Educacional por meio de seus diferentes artigos. Embora o estado investisse na construção de escolas primárias, no entanto, estas não eram suficientes para atender toda a população em idade escolar. Para os professores e professoras participantes da edição do Boletim, este visava, também, à união dos docentes em prol da conquista de seus benefícios por meio da propagação de suas ideias e respectivas denúncias das dificuldades enfrentadas no exercício da profissão.
1 O lugar de produção do Boletim
Sob a compreensão de que “toda pesquisa histórica se articula com um lugar de produção socioeconômico, político e cultural” (CERTEAU, 2002, p. 66), a fonte deste estudo, o Boletim do Professor (1946), decorre, e se insere, num momento importante, e ao mesmo tempo conturbado, da vida política, social, bem como de transformações econômicas, não somente na ordem mundial, mas também nacional. Período demarcado pela Revolução de 1930, que culminou na ascensão de Getúlio Vargas ao poder e a intervenção federal nos estados entre 1932 e 1945, incluindo o período do Estado Novo (1937-1945). Na era Vargas é promulgada a Constituição de 1934, que no art. 150 define ser de competência da União a fixação de um Plano Nacional de Educação que contemplasse o ensino em todos os graus e ramos, sua coordenação e fiscalização, por exemplo, bem como a obrigatoriedade do ensino primário.
No período de 1930 a 1945 são desenvolvidas diferentes iniciativas,2 e depois do período de exceção, com a deposição de Vargas, é dada continuidade à promulgação das Leis Orgânicas, sendo elas as do ensino primário e do normal.3 Corresponderiam também às exigências do novo ordenamento nacional, no qual a escola primária e a formação de professores teriam papel fundamental.
Já no início do ano de 1932 é publicado o Manifesto dos Pioneiros da Educação, que sob bases liberais reivindicava a democratização da escola, do ensino, do acesso à educação, entre outros. Documento de ideias renovadoras às quais se articulariam, anos depois, às contidas no Boletim em estudo.
Com efeito, o estudo da Revista Boletim do Professor (1946) acha-se orientado pela compreensão de que se trata de uma importante fonte para entender alguns aspectos sobre a educação escolar paranaense entre os fins dos anos de 1930 e a década de 1940, no que pese o pensamento pedagógico em circulação nesse período. Desse modo, o lugar de sua produção é o interior rural do estado do Paraná nos meados do século XX. Nesse período esse estado começa a despontar como um importante produtor agrícola, que tem na cultura do café sua principal fonte econômica. Momento de aprofundamento de relações capitalistas no campo e de consequentes demandas por escolarização.
Na gestão de Manoel Ribas, interventor federal de 1932 a 1945, sucedido por Moysés Lupion (1947-1951 e 1956-1961), esse estado alavancou importante expansão da escola primária, sendo que a maioria da população se encontrava no campo. De acordo com Denilson Oliveira (2001), por volta de 1940, 75% da população paranaense ainda residia na zona rural do estado.4 Ribas impulsionou tal expansão com a construção de escolas de trabalhadores rurais. Entre 1936 e 1942 foram construídas onze unidades desse tipo de escola.5 Grupos escolares também foram construídos, totalizando 21 unidades dessa modalidade escolar na zona rural entre os anos de 1937 e 1942 (SCHELBAUER; CORRÊA, 2019). É desses espaços que provém o Boletim do Professor (1946).
2 Orientações teórico/metodológicas e o lugar do objeto de estudo
Entender o conteúdo dessa fonte requer uma interpretação em que se considerem os aspectos referentes ao período, mas também interrogá-la sobre sua finalidade, em relação ao momento no qual é produzida, por quem, para quem. Do ponto de vista de uma operação historiográfica que não se pretende esgotada no exercício da aproximação que fazemos aqui, considerando ser apenas um número do Boletim que está sendo analisado, cujos idealizadores desejavam ver outros números em circulação.
Como indicado, o Boletim do Professor (1946) é entendido como parte da imprensa pedagógica advindo do meio do professorado paranaense e a ele destinado. Neste aspecto reside sua singularidade. Diferente, portanto, da Revista de Ensino de Minas Gerais (RODRIGUES; BICCAS, 2015), ou mesmo o Boletim Catequético, produzido por lideranças Católicas com vistas a disseminar o ideal católico no campo educacional (ORLANDO, 2013).
Convém mencionar que estudos importantes têm sido realizados de diferentes perspectivas sobre a imprensa pedagógica. Entre eles, destacamos, além dos trabalhos de Orlando (2013), outros como o de Ivashita (2020), Henriques e Pimenta (2019), Schelbauer, Ivashita e Faria (2018), Oliveira e Moreira (2018), Zanlorenzi (2018), Rodrigues e Bicca (2015), Pecegueiro e Castro (2014), Rodrigues e Silva (2014), Carvalho, Araújo e Gonçalves Neto (2002), Nóvoa (2002), Bastos (2002), Catani (1996) e Souza e Catani (1994). Tais estudos têm a imprensa pedagógica como fonte de pesquisa, ou mesmo discorrem sobre sua importância para estudos nos domínios da História da Educação, quer no campo das ideias em circulação, disputas, embates, quer no campo educacional, sua relação com cultura escolar, produção e circulação, entre outros.
Ivashita (2020) dedicou estudo específico sobre a mulher na imprensa pedagógica paranaense por meio de Boletins da Secretaria de Estado da Educação do Paraná, analisando para tanto os números publicados entre os anos de 1951 e 1953, destinados à formação e aperfeiçoamento de professores. Destaca homenagens feitas a professoras nas quais constam representações tais como: “infinitamente bondosas, compassivas, afáveis, modestas e leais, demonstrando atitude verdadeiramente maternal, desvelado carinho, amor para todas as coisas.” (IVASHITA, 2020, p. 335). Esse estudo contribui para pensar sobre como a professora foi representada nesse tipo de imprensa pedagógica. Neste texto, como indicado anteriormente, intentamos analisar discursos de professoras contidos em artigos publicados no Boletim do Professor (1946). Vale dizer que os discursos são proferidos por meio da linguagem, neste caso, da linguagem pedagógica. Da compreensão de Foucault (1995), podemos dizer que demarcadas por signos e pelo poder que comportam. Para esse autor, a linguagem em geral não se constitui em um sistema arbitrário, desprovido de intencionalidades. Chama atenção para a importância de decifrá-la. Entende ainda que a linguagem é feita da massa de signos que a comportam, discursos no interior dos quais o verbo ser é nuclear, por ser representado e representativo da linguagem. Aí reside seu poder, pois o sentido desse verbo é afirmar. Ele pode estar explícito ou implícito na linguagem e, consequentemente, no discurso.
Assim, é dessa ótica que procederemos a análise de dados obtidos de discursos de professoras cuja escrita acha-se presente nesse Boletim. Importa destacar no Quadro 1 a seguir o conjunto de artigos publicados e que constam no sumario da edição nº 1 desse informativo pedagógico.
Autores(as) | Grupo Escolar | Título do Texto | Nº da Página |
---|---|---|---|
Guido Arzua | Nosso Boletim | 05 | |
Artur de Sá Ribeiro | Delegado de Ensino | Exames Escolares como meio e não como fins | 07 |
Profª Ruth Guasque Antunes | Grupo Escolar de Joaquim Távora | Acróstico | 09 |
Profª Ruth Richter | Do Grupo Escolar Wenceslau Braz | Fins do desenho na Escola Primária | 10 |
Profª Itália Vendramini | Do Grupo Escolar Wenceslau Braz | Museus escoares e sua função educacional | 12 |
Profª Glauce de L. Rodrigues Daros | Grupo Escolar Santo Antônio da platina | A disciplina formação da personalidade | 14 |
Profª Edite da Luz Proença | Grupo Escolar “Professor Francisco Guimarães Siqueira Campos | Educação Física | 15 |
Profª Maria Aparecida Ferreira | Grupo Escolar de Santo Antônio da Platina | Provendo para o futuro | 20 |
Profª Maria Auxiliadora Marinho | Grupo Escolar de Camabará | Como evoluiu a educação judaica | 22 |
Profª Alia da Silva Chueiri | Ovídio Decroly, sua vida e seu método | 25 | |
Profª Rosina de Giácomo | Grupo Escolar de Ribeirão Claro | O ideial pedagógico | 27 |
Profª Zenilda Clemeir Ribeiro | Grupo Escolar de Carlópolis | Congraçamento dos professores no norte do estado | 29 |
Profª Nair K. de Arruda | Grupo Escolar de Carlópolis | Aves implumes | 31 |
Profª Francisca Morais Tosta | Grupo Escolar de Tomasina | O primeiro professor do Brasil | 33 |
Profª Lindaura Priólo | Grupo Escolar de Joaquim Távora | E ensino de geografia na escoa primaria | 35 |
Prof. Almir A. Arrusa | Diretor do Grupo Escolar de Carlópolis | A educação no norte do Paraná | 37 |
Sem autoria | Transcrio da Gazeta do Povo de Curitiba | Centro de Professores “Dr. Sebastião Paraná - Feliz iniciativa dos educadores de Jacarezinho | 39 |
Artur de Sá Ribeiro | A propósito do Centro de Professores do norte do Estado | 41 | |
Sem autoria | Da administração | 43 | |
Notas administrativas | 44 | ||
Circular nº 53 | 46 | ||
Circular nº 3 | 47 |
Fonte: Boletim do Professor (1946, p. 49).
Dentre o elenco de dezessete artigos, treze são de autoria feminina. Entre estes, cinco são analisados. O que representa um significativo espaço conquistado por professoras que tornaram público suas “crenças” sobre o trabalho pedagógico nas escolas rurais do Paraná. O critério para seleção dos conteúdos, que são abordados na seção quatro deste artigo, foi a similaridade entre eles, apontando para a presença de um mesmo ideal pedagógico.
3 A Revista Boletim do Professor: “o mensageiro garrulo de todas as esperanças”
O primeiro número do Boletim do Professor foi editado em janeiro de 1946, pelo então denominado Órgão dos “Centros de Professores” da Região.6 O Centro de Professores responsável por sua edição é composto por professores do município de Jacarezinho que reorganizaram o Centro de Professores Dr. Sebastião Paraná, fundado em 5 de maio de 1939.7 Importa referir que Centros de professores já existiam no estado. Em Relatório de Governo enviado pelo interventor Manoel Ribas ao presidente da República, Getúlio Vargas, correspondente ao período de 1932 a 1939, há indicação sobre a existência “de 67 centros de professores, com sede nos diversos grupos disseminados pelo território paranaense, com bibliotecas em organização, contendo 8.000 exemplares de livros. (PARANÁ, 1939, p. 180). No Relatório do ano de 1940, não há menção aos Centros de professores. Em matéria transcrita do Jornal A Gazeta do Povo, no Boletim do Professor (1946) consta indicação de que o centro do qual o boletim provém foi fundado em 5 de maio de 1939 e reorganizado em 26 de maio de 1945.
Assim, tais Centros de Professores foram criados ainda no período do Estado Novo, no interior de diversos grupos escolares. Desse modo, embora pareçam resultar de livre iniciativa dos professores e professoras, havia controle da 4ª Delegacia de Ensino. Revigorados nos fins do ano de 1945, considerando duas circulares enviadas pelo delegado de ensino, o Sr. Artur de Sá Ribeiro, ao presidente do Centro de Professores do Paraná, a primeira de nº 53, de 19 de setembro de 1945, e a outra de nº 03, de 28 de outubro de 1945, aquele delegado expõe na primeira circular:
Em adiantamento à Circular desta D. E. datada de 25-08-19458 e considerando as respostas afirmativas desse Centro aos quesitos nº 20 e 22 da citada circular, este serviço espera receber, dentro do prazo de quinze dia (15), a contar de hoje, três artigos (datilografados), contribuição dessa entidade para o ‘Boletim do Professor’, a ser publicado pelo professorado da região (4ª D.E.). (RIBEIRO, A., 1946a, p. 44).
Na segunda circular, de 25 de outubro de 1945, o Sr. Artur de Sá Ribeiro informa que a tiragem de 300 exemplares do primeiro número desse Boletim “custará Cr$ 1.920,00 (mil novecentos e vinte cruzeiros), para cada C.P da região” (RIBEIRO, A., 1946b, p. 46). Na folha subsequente à capa, consta a finalidade do Boletim: “Órgão de difusão pedagógica dos Centros de Professores sediados na região da 4ª delegacia do Ensino da D. G. E” (BOLETIM DO PROFESSOR, 1946, p. 5). Na comissão de Publicação constam os seguintes nomes: Professores Guido Arzua, Marcília Bruno e Guiomar F. Nogueira (do C. P. Sebastião Paraná, de Jacarezinho).9 No sumario há indicação de 47 páginas, porém, como não tivemos acesso ao total do volume, podemos presumir que não ultrapassavam 50 páginas. Disso decorre o entendimento de que aquela Delegacia demandava para os professores e professoras dos grupos escolares rurais exigência de artigos serem publicados no dito Boletim.
Em uma espécie de editorial do primeiro número, o professor Guido Arzua, sob o título NOSSO BOLETIM, inicia o mesmo do seguinte modo:
Parece que os professores só têm de comum a missão de instruir e educar. No mais divergem. E por divergirem, jamais estão unidos. Talvez seja o professorado a classe mais indiferente a refrataria ao velho brocardo ‘A união faz a força’, força a um tempo de progresso profissional e de amparo aos seus direitos pessoais.
Foge à razão que, sendo o professor o elemento primacial da formação da nacionalidade, esteja ele numa posição de indisfarçável inferioridade. (ARZUA, 1946, p. 5).
No editorial, esse professor conclama o professorado paranaense à união. Prosseguindo naqueles argumentos, ele diz: “não é nosso propósito aqui, arrolar as causas desse tenebroso desacerto. Elas são muitas, são variadas. No entanto, uma há que avulta entre todas: a desunião.” (ARZUA, 1946, p. 5).
No decorrer do editorial, Arzua (1946) traz a finalidade do Boletim, qual seja, a difusão pedagógica a ser feita da perspectiva do desenvolvimento de vínculo familiar, elo efetivo da profissão que se demarca pelo trabalho, suas dificuldades, sua leitura, das certezas e incertezas, alegrias, aborrecimentos, e que os problemas da prática fossem solucionados pela união de todos por meio de ideias, casos vividos, observados e experimentados. “O Boletim é o nosso mensageiro gárrulo de todas as esperanças” (ARZUA, 1946, p. 6), finaliza.10 Em outra matéria extraída do jornal Gazeta do Povo, a finalidade indicada é a de “elevar o nível intelectual e pedagógico dos seus associados, desenvolvendo nesse sentido, a unificação dos professores em torno de um extenso programa de ação” (BOLETIM DO PROFESSOR, 1946, p. 30).
Entretanto, são da professora Zenilda Clemir Ribeiro, do grupo escolar de Carlópolis, alguns trechos que exaltam a iniciativa em texto intitulado “Congraçamento dos Professores do Norte do Estado”:
Quando uma ideia se forma em um cérebro e ao ser exposta e discutida consegue o apelo geral de todos, toma as magnas proporções de um ideal em cuja realização trabalham, sobremaneira prazerosos, aqueles que, dotados de espirito de coletividade e harmonia, amam o bem estar e a unidade do gênero humano (RIBEIRO, Z., 1946, p. 29).
Destaca a importância da união referindo que “solidários seremos mais fortes para as lutas contra a ignorância, daí maiores probabilidades de seguras vitórias” (RIBEIRO, Z., 1946, p. 29). Enunciações dirigidas a professores e professoras que não se dão isoladamente, mas que mantêm relações com outros enunciados (FISCHER, 2001), como veremos adiante com o ideal pedagógico renovador, cujos enunciados também discursivos se fazem no âmbito pedagógico.
Além disso, a Revista Boletim do Professor (1946) se propunha a divulgar as situações de trabalho do professorado no estado, podendo ser considerada um meio de denúncia sobre o cenário do magistério. Na coluna intitulada “A Educação no norte do Estado do Paraná”, o Professor Almir Aires Arruda (1946)11 discorre sobre o progresso educacional e sua importância para o desenvolvimento do estado. Arruda (1946) foca seu ponto de vista em duas principais teses: a formação de professores para as diferentes realidades sociais, no caso, a zona rural e suas respectivas dificuldades, e a criação dos Centros de Professores, instituições autônomas que trabalhariam em prol da melhor adaptação dos docentes, visto que o financiamento do governo não era suficiente.
De acordo com a perspectiva assinalada por Arruda (1946) no Boletim do Professor (1946), pode-se perceber que o governo do período esperava da escola e do trabalho do professor um resultado utópico, visto que eles não obtinham recursos para a realização de trabalho que correspondesse às expectativas do Estado, o qual visava atender a Recomendação n° 8 da UNESCO (BRASIL, 1965), de 1936, na qual constava que os professores buscassem meios para controlar as situações desfavoráveis de trabalho e que adaptassem seus métodos de ensino de acordo com o meio local e com as respectivas necessidades do aluno.
4 Discursos femininos: do ideal de “professor” ao ideal pedagógico
Sob o título de “Acróstico”, a professora Ruth G. Antunes (1946), do Grupo Escolar Joaquim Távora, caracteriza o professor em dois versos.
Meigo delicado e paciente
Ele encaminha seres pequeninos
Serve à Pátria, sã e honradamente,
Talha com firmeza mil destinos....
Rapsódia divina e confortante
É a nobre missão do professor.
(ANTUNES, 1946, p. 9).
Lembremos que o número desse Boletim é editado no ano de 1946, um ano após o fim do Estado Novo, tempo no qual foram tomadas intensas medidas de nacionalização e do espírito patriótico no ensino (HORTA, 2010, 2012). Nesse sentido, a compreensão do professor “a serviço da pátria” articula-se com o que até então vinha sendo exigido do Estado para o professorado nacional. Civismo e patriotismo compunham ainda efeitos do ideal nacionalista, propalados no período ditatorial. Dados que se farão presentes na mentalidade dos mestres. Contudo, a figura do professor também parece oscilar entre o dever cívico patriótico “e a missão sublime de semear o pão da instrução, aqueles capazes de tirar o véu negro da ignorância e do analfabetismo, símbolos da perfeição e da bondade” (ARRUDA, 1946, p. 31). A visão idílica sobre a educação escolar trazida por essa professora pode estar situada no âmbito das características românticas, idealistas da Escola Nova, apontadas por Miguel (1997), com base nos estudos de Palácios (1984).
Como assinalou Ivashita (2020) em seu estudo sobre representações de professores, a visão romântica também é trazida no texto da professora Arruda (1946), ao dizer que o homem que não sabe ler não passa de um farrapo humano. Ela sente-se comovida ao constatar, olhando para os rostinhos de seus alunos, que é responsável por dar-lhes sabedoria e prover o futuro de cada um deles. Desse modo percebe o quão sublime é a missão de professor (ARRUDA, 1946)
Importa referir também que, embora a poesia tenha sido escrita por uma professora, o sujeito sobre quem ela se expressa é masculino. No antepenúltimo verso da estrofe a seguir, parece ter sido a autora traída por sua natureza feminina.
Primário, cuja luta constante
Resume uma luta de afã e amor
Invejável à sua devoção
Maravilhosos é o seu patriotismo
Anônimo, cumpre a sua missão
Rude, porém, cheia de civismo.
Ilumina o caminho do sucesso
O verdadeiro sacerdote do progresso.
(ANTUNES, 1946, p. 9).
O feminino que se manifesta no masculino perpassa o discurso de Antunes (1946, p. 9) ao dizer que “que sempre que pouso os olhos, por alguns minutos apenas, sobre a cabeça de meus queridos alunos, lembro-me o quão sublime e ao mesmo tempo árdua é a missão do professor”. Novamente a visão idílica, romântica sobre a professora primária e seu trabalho.
Além disso, o ideal pedagógico está presente em praticamente todos os textos contidos no Boletim do Professor (1946), o qual é retratado por meio da pedagogia ativa. Nesta, a finalidade da formação deve estar bem definida, para que a ação não se transforme em agitação. Em texto denominado “O ideal Pedagógico”, a professora Rosina de Giácomo (1946, p. 27), do grupo escolar Ribeirão Claro, refere ser importante que o problema pedagógico considere três aspectos: “o ideal pedagógico, a realidade pedagógica e o método pedagógico”. Para ela, a pedagogia destinada à formação de futuros homens deveria ter seus princípios claramente definidos. A ação não deveria se transformar em simples agitação.
As orientações escolanovistas postas em muitos dos textos trazidos pelas professoras que escrevem nesse número do Boletim do Professor (1946) estavam em circulação desde a Primeira Conferência Nacional de Educação, realizada em Curitiba em 1927, onde teses foram defendidas sob as bases desse ideal.
No ano em que os artigos do Boletim do Professor (1946) são publicados, eles traduzem também ideias contrárias àquelas que defendia Gustavo Capanema, sobre a educação formar para a pátria ou formar o cidadão consciente, ao invés de formar para a vida (HORTA, 2012). Contudo, parece haver também nas entrelinhas do discurso da professora Rosina de Giácomo (1946), posição contraria à defesa cega da Escola Nova, como ela deixava antever na estrofe referida anteriormente. Diz a professora,
O ideal pedagógico educa para fins determinados e o trabalho e a atividade valem apenas como meios para o atingir. Segundo THISTÃO DE ATAYDE, a atividade mal compreendida é que está levando o homem de hoje e a sociedade moderna a um mobilismo sem fim que estenua, leva à confusão e a anarquia individualista que nos prepara docilmente para as grandes simplificações coletivistas de amanhã. (GIÁCOMO, 1946, p. 28).
Essa professora tece críticas à compreensão da Escola Nova como ativismo desordenado, a atividade pela atividade. O ativismo levaria ao individualismo. Ela o faz apoiada em Tristão de Atayde, ou Alceu de Amoroso Lima, considerado pensador neotomista que, certamente por isso, se posicionaria com ressalva em relação à liberdade e ação apregoadas pelo pensamento da Escola Nova, que poderiam levar ao anarquismo na escola.12
O ideal da Escola Nova também está presente por meio de experiências, ações práticas que as professoras realizam nas escolas primarias. Em “Os museus Escolares e sua Função Educacional”, a professora Itália Vendramini (1946), do grupo escolar de Wenceslau Braz, entendendo que sem interesse não haveria aprendizagem, propõe a organização de museus escolares, destacando que a orientação e direção deveriam ficar a cargo dos próprios alunos. Os museus teriam, segundo ela, um caráter prático, em que o aluno aprende por si mesmo por meio da observação e manipulação dos objetos, processo do qual o professor pouco participa, sendo de dois tipos, o da escola e o da classe. O primeiro, de maior vulto, obedecerá a um plano educativo em que cada objeto terá identificação, ficando sob a responsabilidade de uma professora, bem como os materiais trazidos por professores e alunos. Este não deve ser visitado todos os dias, a fim de manter a curiosidade dos alunos. O segundo, com objetos que os alunos trouxerem (VENDRAMINI, 1946).
Atividades no campo da vida social são descritas em um Plano de Atividade de alunos de 1º e 2º anos de uma escola de Jacarezinho, constando de visitas, dramatizações, excursões, trabalhos em projetos e cuidados gerais, para o primeiro ano. Para o segundo ano, visitas e dramatizações, excursões e passeios, trabalho em projeto e cuidados gerais (VENDRAMINI, 1946). Nessas atividades são desenvolvidas noções, saberes elementares, em termos de cuidados com os amimais e vegetais, a vida em grupo, por exemplo. Importa referir que o discurso e a linguagem têm a ver com a prática (FOUCAULT, 1995), com uma realidade vivida e a ser vivida do ponto das prescrições contidas no discurso.
Sobre o fato de as ideias escolanovistas estarem em circulação no estado, vale dizer também que em sessão legislativa do dia sete de março de 1930, o Deputado Emelino Leão submete, em nome da Comissão de Instrução Pública, um projeto visando à reforma do ensino público. Ao enaltecer a necessidade de banir a ignorância dos meios sociais, e ao apresentar o plano visando à reforma do ensino paranaense, destacava a não pretensão de revolucionar a causa do ensino público: “Não queremos a substituição integral e abrupta dos métodos pedagógicos pelos novos processos da chamada Educação Construtiva; mas não devemos estacionar no meio da brilhante jornada.” (PARANÁ, 1929, p. 6). Prosseguindo em seus argumentos, enaltece o que chama de Métodos do Dr. Decroly e os sucessos que estes têm alcançado na Bélgica, que considerava uma evolução em relação a Pestalozzi, Froebel e Rousseau. Destaca, entre outros:
Decroly preconiza, a) que escola deve ser estabelecida em um meio em que a criança possa assistir diariamente aos fenômenos naturais, a manifestação da vida dos serem em geral, e dos homens em particular nos seus esforços para adaptar-se as condições da vida que lhe são impostas, b). que a escola deve ter uma população restrita, mas composta, se possível de elementos de todas as idades, dos quatro aos quinze anos e crianças de ambos os sexos, c). que os locais devem mobiliados e aparelhados com pequenas oficinas ou laboratórios, d). que o pessoal deve ser ativo, inteligente, possuir imaginação criadora, ser preparado nas observações sobre animais, plantas e crianças, as últimas as quais deve amar, ser desejoso de instruir-se, fácil de instruir-se e de manter a ordem e a disciplina [...]. (PARANÁ, 1929, p. 7).
Além desse trecho, trazido do texto da fala daquele deputado, exemplo também é encontrado na Mensagem enviada à Assembleia Legislativa pelo governador Manoel Ribas em 1º de setembro de 1937. Ao se referir à reorganização do ensino primário no estado do Paraná, Ribas faz alusão à reforma dos métodos e processos de ensino, à difusão das doutrinas pedagógicas no seio de magistério, bem como à racionalização administrativa. Para ele, problemas inadiáveis foram atacados, entre eles:
[...] a experimentação de programas mínimos, elaborados segundo as lições da psicologia diferencial e experimental, dos níveis de aproveitamento e de escolaridade e da melhor adaptação dos conhecimentos às tendências e instintos das crianças; a aplicação de métodos atuais de ensino ciados pelos mais altos expoentes da ciência educacional da atualidade, como Decroly, Montessori, Dervey, Ferriére, Kirchensteiner, Kiltpatrick e os brasileiros Isaias Alves, Lourenço Filho e Fernando de Azevedo, cujos métodos, divulgados em larga escala, sofreram a necessária adaptação ao meio ambiente, e às possiblidades culturais do magistério; a liberdade didática que se concedeu ao professorado o que lhe permitiu a reforma da técnica do ensino enquadrando-a nas exigências dos métodos de mais comprovada eficiência, tais como: métodos de projetos, centros de interesses, jogos educativos, ‘Systhema Platoon’, em experiência no Grupo Escolar Pedro II da Capital do Estado [...]. (PARANÁ, 1937, p. 30).
Assim, as proposições pedagógicas que são divulgadas pelos professores e professoras que escrevem no Boletim do Professor (1946), em especial as mulheres, os textos analisados estavam há mais de 15 anos em circulação nos meios educacionais do estado. Nessa perspectiva, a professora Ruth Richter (146), do grupo escolar Wenceslau Braz, no texto “Fins do Ensino de Desenho na Escola Primaria”, aponta “dois fatores que contribuem poderosamente para a reforma do ensino de desenho na escola primaria, o movimento a favor da educação artística da criança e o princípio do trabalho ativo e criador” (RICHTER, 1946, p. 10 -11). Ela destaca vantagens do desenho:
O desenho deixou de ser matéria com lugar fixo no horário, de acordo com o princípio da escola nova, converteu-se em um instrumento indispensável a todas as demais disciplinas. Sem o desenho, perde um auxilio preciosos o ensino da história, o da geografia, o da linguagem, o da física, o da química, etc.
[...]
O desenho disciplina a aptidão para a observação, fazendo visualizar a analisar a forma, a cor, o tamanho, as proporções, as distancias relativas, as qualidades, etc.
[...]
O ponto de partida para o ensino de desenho na escola primaria deve ser o interesse natural dos alunos e sua capacidade para exprimir-se de forma gráfica.
[...]
Mais que outro ensino, o do desenho de respeitar a personalidade e os interesses do aluno.
Desse modo, cabe interrogar: de onde viriam as influências teóricas explicitadas pelas professoras em seus artigos? Certamente de um processo formador em curso, e, naquelas alturas, consolidado. Miguel (1997) refere que, em 1942, o Paraná contava com três escolas secundárias de formação de professores primários: a de Curitiba, a de Ponta Grossa e a de Paranaguá. Atribui à Escola de Professores de Curitiba a formação de professorado fundamentada nos princípios da Escola Nova, tendo sido responsável, portanto, pela consolidação no sistema de ensino público paranaense.
A leis orgânicas do ensino primário, instituídas pelo Decreto-lei nº 8.529, de 2 de janeiro de 1946, no capítulo IV, trata da orientação geral do ensino primário fundamental, no art. 10, onde consta que esse tipo de ensino deveria
a) Desenvolver-se de modo sistemático e graduado, segundo os interesses naturais da infância;
b) ter como fundamento didático as atividades dos próprios discípulos;
c) apoiar-se nas realidades do ambiente em que se exerça, para que sirva à sua melhor compreensão e mais proveitosa utilização;
d) desenvolver o espírito de cooperação e o sentimento de solidariedade social;
e) revelar as tendências e aptidões dos alunos, cooperando para o seu melhor aproveitamento no sentido do bem estar individual e coletivo;
f) inspirar-se, em todos os momentos, no sentimento da unidade nacional e da fraternidade humana. (BRASIL, 1946a, p. 3, grifo nosso).
Tais princípios educativos já se faziam presentes nos meios escolares desse estado. Princípios como interesses, liberdade de expressão, personalidade da criança, imaginação, solidariedade atravessam todos os textos das professoras que escrevem no primeiro número do Boletim do Professor (1946), em especial os ora selecionados para análise. São princípios que instam a retomada de Foucault (1995) sobre a linguagem, o seu poder e caráter enigmático, bem como intencionalidades nela contidas. Certamente o poder do discurso que entoa uma linguagem específica, a da educação nova em suas expressões, para fazer valer voz uníssona em torno de apenas uma forma de pensar: a da Escola Nova. Neste sentido, o verbo ser é o imperativo subjacente nas entrelinhas dos cursos dessas mulheres que desejam ver a escola falando uma só voz.
Miguel (1997) refere que Erasmo Pilotto foi o responsável pela veiculação tanto de ideias da escola nova, como de experiências que permitiram com que esse ideário se consolidasse no sistema educacional paranaense. Particularmente os textos de discursos (FOUCAULT, 1995), de cunho pedagógico, possibilitam falar de modos de apropriação (CHARTIER, 1990), do pensamento educacional da Escola Nova. Tais apropriações decorrem de experiências vividas pelas professoras que publicam seus textos nessa revista. Assim, pode-se falar de ideário e sua efetivação na ação docente. Exemplos são as indicações de organização do museu escolar, do trabalho com a disciplina de desenho, educação e física. Estas duas últimas decorrentes também de experiências que não puderam ser trazidas aqui em razão dos limites deste trabalho.
Considerações finais
A Revista Boletim do Professor (1946) é um impresso pedagógico cujo diferencial é ter sido organizado por professores e professoras atuantes em diferentes escolas públicas da então zona rural do estado do Paraná. Tudo indica ter sido meio de organização de professores, de denúncias, mas sobretudo de veiculação de ideias pedagógicas, cuja bandeira é substancialmente defendida por meio de discursos femininos. Discursos tomados aqui como elementos da prática. Desse modo, não são apenas prescrições, pois têm o poder do testemunho de terem sido praticados e guardam o imperativo sobre como o trabalho docente deve ser realizado.
Destaque deve ser dado para o fato de que tais discursos, embora sejam escritos por professoras, em grande parte o lugar de fala se dá sob a perspectiva masculina.
Importante também atentar para a ideia de que o discurso ocorre em torno de uma espécie de pensamento único caracterizado pelas ideias advindas da concepção educativa da Escola Nova. Neste sentido, esse discurso tonar-se um imperativo, tem poder de convencer no conjunto de uma linguagem que toma para si a defesa dessa concepção. Nestes termos busco aproximação com Foucault (1995). O que faz levantar a hipótese de que talvez fosse o desejo de unir a mola mestra de tais iniciativas com vistas a convencer os contrários à defesa da educação nova.
Centros de professores no Paraná, como vimos, existiram em distintas escolas desse estado, tendo sido criados ainda na década de 1930 e reativados no ano de 1945, como é o caso do Centro de Professores de Jacarezinho. A publicação do Boletim do Professor (1946) foi uma iniciativa que se deu apenas em meados dos anos de 1940, depois do fim do Estado Novo, certamente quando os professores poderiam expressar-se livremente, principalmente em relação aos preceitos da Escola Nova, em relação aos quais Gustavo Capanema não era simpatizante e esteve à frente da Educação durante a Era Vargas.
Mesmo tendo sido uma iniciativa de professores a retomada dos Centros de Professores e o consequente engajamento na veiculação de ideias e questões de interesse comum em relação à educação primária, ainda assim precisavam do estado como possibilidade de garantir o financiamento da impressão de outros números do Boletim.
Por fim, é importante dizer que, mesmo considerando que o magistério, em particular o ensino primário, já era composto, naquela época, em grande parte por mulheres, o espaço do Boletim do Professor (1946) como centro de expressão feminina se torna relevante num período de reduzida manifestação de professores e professoras.