Introdução
O artigo1 trata da educação de mulheres no final da década de 1940 e início de 1950, período em que vigorava na sociedade brasileira o ideal de família moderna, no qual o núcleo - constituído por pai, mãe e filhos - deveria zelar pela proteção, aconchego e higiene dos seus membros (SCOTT, 2012). Destarte, à mulher era exigida uma postura doce e paciente, importante para desenvolver as atividades de mãe dedicada e zelosa com a educação e formação moral dos filhos, esposa amorosa e submissa ao marido, o provedor e chefe do lar (LOURO, 2017).
A pesquisa possui como objeto de estudo a biografia de Hilda Agnes Hübner Flores, doravante Hilda Flores, por esta possibilitar articular o conhecimento sobre a formação feminina dos descendentes boêmios2 no Brasil e a história da educação no Rio Grande do Sul (RS), no segundo quartel do século XX. Hilda Flores, nascida no dia 16 de junho de 1933, foi escolarizada em Linha Duvidosa3, comunidade do interior de Venâncio Aires/RS e na capital do referido estado, Porto Alegre, distante do primeiro município aproximadamente 128,5 quilômetros. Sua história de formação escolar permite constituir uma narrativa que lança lume à precária educação formal em regiões interioranas, às tensões e perseguições vivenciadas pelos imigrantes boêmios e às barreiras educacionais, sociais e econômicas que relegavam a mulher à vida privada e ao casamento.
Hilda Flores é filha de Anna Antonia e Francisco Hübner - agricultores com poucas posses, descendentes de alemães, boêmios, que tiveram 12 filhos. Ela foi a caçula da prole, pré-alfabetizada em casa pela mãe, com educação primária realizada em escola teuto-brasileira católica4 na comunidade de Linha Duvidosa. Ante a falta de instituições educacionais para atender ao público feminino, para dar continuidade em seus estudos, Hilda Flores teve que estudar em internatos de freiras e mudar-se diversas vezes de cidade.
A sua educação foi influenciada tanto pela condição de imigrante boêmia como pelo catolicismo e pelo contexto do fim da República Velha, da ditadura e da Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945); período no qual a divisão das atividades, em decorrência do sexo e do patriarcalismo, direcionava a educação feminina, inclusive, com amparo legal, como regia o Decreto-Lei nº 3.200, de 10 de abril de 1941:
Devem ser os homens educados de modo que se tornem plenamente aptos para a responsabilidade de chefes de família. Às mulheres será dada uma educação que as torne afeiçoadas ao casamento, desejosas de maternidade, competentes para a criação dos filhos e capazes na administração da casa.
Ante uma formação feminina direcionada para os afazeres do lar, uma problemática norteou o estudo: qual formação educacional foi vivenciada por Hilda Flores que lhe possibilitou ultrapassar os limites impostos pelo machismo, que a destinavam à vida doméstica, concluir o mestrado em História e tornar-se uma mulher de referência no campo da história de mulheres e imigrantes boêmios? Para responder à questão central da pesquisa, realizou-se um estudo científico com o objetivo de reconstituir historicamente a biografia de Hilda Flores, com ênfase na análise do seu percurso formativo nas escolas riograndenses (1939-1955).
A relevância desta pesquisa consiste não apenas em tornar factível a preservação da história e memória da formação escolar de Hilda Flores na interface indissociável com o contexto educacional, o que já seria importante para a valorização das mulheres como sujeitos sócio-históricos protagonistas, mas possibilita também a ampliação da compreensão sobre a educação de mulheres interioranas descendentes de imigrantes boêmios do Sul do Brasil. Esse fato ganha especial destaque quando se considera que não há estudos publicados sobre essa temática específica nas principais bases de dados brasileiras.
Essa ausência de pesquisas sobre educação feminina de descendentes de imigrantes boêmios foi constatada em consulta realizada, em 21 de janeiro de 2021, no Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (PPC), na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) e na Scientific Electronic Library Online (SciELO). Utilizando os descritores “educação feminina” e “boêmios”, com o booliano “and”, no campo assunto e busca por artigo, respectivamente, nenhum produto foi localizado no PPC e na SciELO. Na BDTD, ao realizar a mesma busca, localizou-se apenas um trabalho, denominado O reino da glória e a moral católica: memórias sobre a educação feminina e a prostituição na cidade de Crato-CE (FLORÊNCIO, 2016), mas ele tratava da educação feminina das prostitutas e moças abastadas economicamente residentes no estado do Ceará, região Nordeste do Brasil, na interface com a boemia masculina; não se referindo aos imigrantes boêmios.
Importa destacar que houve um considerável contingente de boêmios que imigraram para o Brasil em decorrência da Segunda Guerra Mundial. Os boêmios, de cultura alemã, inclusive, foram expulsos da República Tcheca5, ficando sem pátria, em péssimas condições de vida, na busca por outros locais para fixarem moradia. Esse movimento imigratório foi incentivado em decorrência das promessas de terra fértil e vida farta no Brasil e deu origem a inúmeras colônias na cidade de Venâncio Aires/RS, tais como: Linha Sampaio, Linha Cecília, Linha Santa Emília, Linha Duvidosa, entre outras. Esses imigrantes contribuíram cultural, histórica e economicamente em diversas cidades sulistas, a saber: Agudo, Lajeado, Teutônia, Cachoeira do Sul, Caxias do Sul, Nova Petrópolis, Venâncio Aires, etc. Estas duas últimas receberam o maior número de imigrantes boêmios (FLORES, 2015a).
O artigo se organiza em quatro seções, a saber: “Introdução”, na qual se apresentam a temática geral do estudo - educação de mulheres -, sua delimitação - escolarização das descendentes de boêmios que imigraram para o Brasil durante o segundo quartel do século XX -, o problema de pesquisa, o objetivo proposto, a relevância do estudo e sua estrutura organizacional; o “Percurso teórico-metodológico”, em que se explicita o amparo teórico na História Cultural e metodológico na História Oral para a realização do estudo do tipo biográfico; os “Resultados e discussões”, em que se apresenta a biografia de Hilda Flores, considerando suas experiências educativas na inter-relação com o contexto histórico da sua escolarização; e as “Considerações finais”, nas quais se sintetizam os principais resultados e discussões, com o mote de responder ao objetivo proposto, apontando as limitações do estudo e as sugestões para outras pesquisas com viés temático semelhante.
Percurso teórico-metodológico
A pesquisa, do tipo biográfica (AVELAR, 2012; DOSSE, 2016; LEVI, 2016), foi desenvolvida amparada teoricamente nos pressupostos da História Cultural (BURKE, 2011; CERTEAU, 2018) e metodologicamente na História Oral (ALBERTI, 2015; FERREIRA; AMADO, 2016; VILAS-BOAS, 2014) para lançar lume à história de mulheres educadoras (FIALHO; FREIRE, 2018; FIALHO; LIMA; QUEIROZ, 2019).
Dosse (2016) leciona que a escrita biográfica, a partir do final do século XX, ganha contornos metodológicos mais rigorosos, que permitem o empreendimento de pesquisas científicas qualificadas, com vistas a ampliar a compreensão histórica. Isso porque o objetivo já não é mais desenvolver hagiografias ou biografias de reis e figuras públicas para servirem de exemplo ou para exaltar heróis, ao contrário, o objetivo agora é constituir uma narrativa desde a vida de um sujeito, que proporciona a ampliação da epistemologia da história, ao permitir a constante revisão de questões clássicas do conhecimento histórico a partir de análises diversas que ultrapassam as vivências individuais e se imbricam indissociavelmente no coletivo, sem desprezar a subjetividade (MENDES; FIALHO; MACHADO, 2019).
Neste empreendimento biográfico de Hilda Flores, concorda-se com Levi (2016) quando ele destaca que a biografia é uma ação de interpretação, ou seja, uma maneira de transformação da escrita científica, em que um acontecimento vivenciado por um sujeito pode adquirir vários outros significados e, inclusive, lançar luz a questões até então obscurecidas. Dessa maneira, não se trata de narrar a vida pela vida de Hilda Flores, mas de analisá-la na interface com o contexto sócio-histórico e educacional, para ensejar outras perspectivas interpretativas dos acontecimentos educacionais passados.
Avelar (2012), inclusive, leciona que a pesquisa de cunho biográfico é capaz de revelar linhas tênues entre os sujeitos biografados e as culturas das sociedades, inserindo o biografado no seu meio sociocultural. Nesse sentido, por intermédio das memórias de Hilda Flores sobre o contexto experienciado e sua formação educativa, torna-se possível revisitar o passado com as lentes do presente e elaborar outras narrativas históricas, sob a perspectiva dos retrocessos, permanências e progressos que tensionaram a educação feminina no Brasil.
Para desenvolver a pesquisa biográfica de Hilda Flores, encontrou-se amparo teórico na História Cultural, uma vez que, como afirma Burke (2011), essa corrente, disseminada especialmente pela Escola de Annales, ampliou a compreensão de fontes históricas, possibilitando considerar como fonte todo vestígio do homem no tempo, e não apenas os documentos oficiais. Ao ampliar discussões da História Social, atinentes ao movimento da História vista de baixo (THOMPSON, 2002), além de valorizar as histórias de vida de pessoas comuns, também possibilitou maximizar a valorização das relações culturais, desveladas por fontes imagéticas, documentos e objetos pessoais e demais aportes que permitem contar a história de um sujeito histórico ou de sua coletividade.
Para reconstituir a biografia de Hilda Flores, utilizou-se a História Oral como metodologia, por este procedimento ser considerado o percurso mais adequado, já que a biografada ainda está viva e lúcida, sendo capaz de colaborar com uma narrativa mais viva e pulsante da sua história de vida (ALBERTI, 2017). Dessa maneira, foram as memórias de Hilda Flores, permeadas por lembranças e esquecimentos, propositais ou não intencionais, o substrato principal para a elaboração biográfica. Afinal, segundo Bosi (2018), as “memórias de velhos” constituem-se como fontes inigualáveis, em riqueza de detalhes e subjetividades não captadas somente por documentos escritos, para a reconstituição de narrativas históricas.
A História Oral consiste na realização de entrevistas, que se transformam em fontes, rastros, para conhecer a história passada (FERREIRA; AMADO, 2016). Logo, utilizou-se a entrevista6, livre e individual, ou seja, aquela em que o entrevistador se concentra em ser bom ouvinte e o entrevistado fica livre para contar, à sua maneira, a história de sua vida (VILAS-BOAS, 2014). Destaca-se, todavia, que no ato da entrevista foi ressaltado que a ênfase biográfica deveria recair sobre a formação educacional em tempos de escolarização.
As entrevistas foram realizadas na residência da professora Hilda Flores, em Porto Alegre/RS, por sua opção, nos dias 26 de novembro de 2016 e 17 de dezembro de 2017, e tiveram duração, respectivamente, de 2h20min e 1h50min. Elas foram gravadas em equipamento digital, transcritas literalmente, textualizadas e validadas utilizando a técnica de estrutura geradora de discurso (FLICK, 2009). Essa técnica permitiu que Hilda Flores lesse as textualizações e realizasse pequenos ajustes, supressões ou acréscimos para que a expressão das suas ideias ficasse o mais fiel possível à sua fala.
Os documentos pessoais, a exemplo das fotografias, foram disponibilizados pela própria entrevistada e os documentos institucionais - histórico escolar e regimento do Colégio Santo Antônio de Estrela - foram adquiridos em visita às escolas que foram mencionadas na narrativa da biografada.
A metodologia de História Oral foi importante para o desenvolvimento do estudo, pois permitiu não apenas a localização das demais fontes imagéticas e documentais, mas a apreensão das oralidades e a constituição de uma narrativa hermenêutica de Hilda Flores. Em outros termos, a elaboração de uma biografia que não apenas apresenta a história de vida de um sujeito, mas que cuida para contextualizar a perambulação e fazer emergir um olhar analítico atinente a fatos narrados desde a reflexão acerca de acontecimentos que perpassaram a de vida da biografada (FIALHO; SANTOS; SALES, 2019).
Resultados e discussão
Aranha (2019) explica que cada geração assimila e herda a cultura dos antepassados e constitui novos projetos, logo todos estão inseridos em um tempo que não se fadiga no ato que acontece, mas que adquire significado perante o passado e o futuro almejado. Consoante essa compreensão, entende-se que “[...] o passado não está morto, porque nele se fundam as raízes do presente” (ARANHA, 2019, p. 19), logo se cuidou para não cometer anacronismo histórico. Nesse sentido, as memórias de vida de Hilda Flores, durante o seu percurso formativo, foram interpretadas considerando seu tempo histórico e as reverberações para o presente.
Para entender sobre a escolarização da biografada, importou compreender quem eram os imigrantes boêmios alemães, visto que as raízes educacionais e socioculturais desse povo influenciaram a educação de Hilda Flores. Esses imigrantes começaram a chegar ao Brasil na década de 1870, em decorrência das guerras existentes nos locais onde moravam - na região central da Alemanha, território até então pertencente ao Sacro Império Romano-Germânico, do Império Austríaco e do Império Austro-Húngaro, hoje pertencente à República Tcheca. Após a guerra, foram expulsos; com a situação de fome, desemprego e falta de moradia, a imigração para o Brasil era divulgada como algo promissor, por prometer terra fértil, ajuda com sementes na plantação, educação para as crianças e uma vida confortável (FLORES, 2015a).
Hilda Flores é neta de Ignaz Hübner e Josepha Neumann, boêmios que imigraram no ano 1873 para o Brasil. Seus pais, nascidos no Sul do Brasil, Francisco Hübner e Anna Antonia Hübner, contraíram matrimônio em 11 de fevereiro de 1893, na cidade de Venâncio Aires/RS, na igreja católica de São Sebastião Mártir. O pai de Hilda era descendente de boêmios que vieram para a Linha Sampainho, localidade pertencente a Lajeado/RS, enquanto a sua mãe era de Linha Duvidosa, interior de Venâncio Aires/RS. Logo, sua família, que ficou residindo na última comunidade, era constituída de imigrantes boêmios (FLORES, 2015a).
Segundo Flores (2015a), aos boêmios que chegavam ao Sul do Brasil foram destinadas apenas as propriedades rurais no interior das localidades de Agudo, Nova Petrópolis e Venâncio Aires, onde se dividiam lotes de 25 hectares de terra, “mato” para que realizassem a sua colonização mediante a atividade agrícola. Com efeito, a vida não foi tão fácil e agradável como se imaginava. Fröhlich (2005, p. 37) explicita os relatos de antigos moradores, nos quais fica descrito o seguinte cenário de dificuldade encontrado no Brasil:
[...] enfrentar obstáculos maiores: apenas um estreito pique em meio à mata empurrava os pioneiros, em fila indiana, rumo à nova ‘Heimat’7. Não é difícil imaginar a cena: ponteando, os homens com seus facões e foices, facilitando a passagem. Algumas espingardas, preparadas para imprevistos. [...] E as mulheres e crianças? Vinham por último; algumas no lombo de mulas, segurando crianças de colo. Em cima de cargueiros8 seguia a mudança: provisões para sobrevivência no mato, chás e alguns medicamentos, roupas do corpo e para acomodação à noite, apetrechos de cozinha e os indispensáveis equipamentos agrícolas para a derrubada do mato, limpeza e preparo da terra virgem.
Os imigrantes alemães do século XIX, mais precisamente os boêmios, foram iludidos com promessas jamais cumpridas (BRANDENBURG; FIALHO; SANTANA, 2015; FLORES, 1981), como foi o caso dos bisavôs de Hilda Flores. Rambo (1994, p. 13) explica que:
Frente às palavras de Getúlio Vargas endossadas pelo Conselho de Imigração e Colonização, parece não haver dúvida de que o imigrante teuto de fato estava abandonado à sua sorte em relação a muitos aspectos de seu assentamento. Um dos mais importantes dizia respeito à escola e à instrução de seus filhos.
Essa conjuntura fez com que os imigrantes se organizassem em pequenos núcleos para que pudessem se ajudar mutuamente, fundando suas igrejas, sociedades, cemitérios e escolas. Importa destacar, segundo Scott (2012, p. 17), que esse modelo de família conjugal moderna não possuía importância indistinta para todos os brasileiros, já que o Brasil é caracterizado por “[...] uma sociedade profundamente diversa e desigual, hierarquizada a partir de elementos socioeconômicos e étnicos [...]”, o que acarreta diferenças substanciais entre famílias de áreas urbanas e rurais, ricas e pobres, compostas por negros, brancos, imigrantes etc. Logo, interessa salientar de que mulher este estudo trata: imigrante boêmia, interiorana, residente no Sul do Brasil.
Nesse caso, os núcleos elegiam o mais letrado para tornar-se o professor, que, mesmo leigo, ministrava aulas na sua própria residência (FLORES, 2004). Kreutz (2018) denomina os espaços educacionais da época de escolas “étnicas dos imigrantes”, geralmente de cunho comunitário, nas zonas rurais, onde se ensinava a formação educacional das crianças mediante a afirmação dos valores culturais, sociais, educacionais e religiosos dos boêmios. Sobre as disciplinas escolares ministradas, Rambo (1994) leciona que priorizavam a Religião - católica ou luterana -, porque acreditavam que a felicidade humana dependia dos princípios e da formação religiosa; em seguida havia Línguas, que era dividida em dois grupos - língua alemã e língua portuguesa -, ministradas por meio de leitura, memorização, composição, ortografia, caligrafia e noções de gramática. Também havia Aritmética e Cálculo, Realidade e Geografia, Estudo da Natureza, História Natural e História e Canto.
Essa realidade educativa vivenciada pelos pais de Hilda Flores não foi alterada; passado mais de meio século, no final da década de 1930, a pequena comunidade rural de Linha Duvidosa, onde cresceu Hilda Flores, apenas possuía escola primária. Diante disso, o pai dela delegou sua educação à mãe, quem, por sua vez, somente possuía o 4º ano primário, no entanto era muito culta, pois lia bastante; ademais, também era considerada a melhor pessoa para responsabilizar-se pela educação dos filhos, pelas atividades domésticas e pela higiene do lar. Afinal, as mulheres desse tempo eram, inclusive, consideradas responsáveis pelo desenvolvimento e pela civilização, sendo percebidas como importantes educadoras das novas gerações (PEDRO, 2017).
No início da década de 1940, Hilda Flores manifestou o desejo de começar a estudar, aos 6 anos e meio, em instituição específica para esse fim, todavia seus pais julgavam, de acordo com as regras educacionais do período, que era ainda cedo para ela ir à escola, porque não tinha completado os 7 anos, idade em que se iniciavam os estudos na Escola de São Miguel. Saviani (2013) infere que, na concepção de educação do período, as crianças deveriam estar presentes no núcleo familiar, contexto em que aprendiam com maior facilidade antes dos 7 anos, pois não havia uma concepção de educação infantil regular institucionalizada.
Com a insistência de Hilda Flores e o aceite da escola, seus pais resolveram antecipar sua entrada na Escola de São Miguel. Entretanto, importa mencionar que a participação do Estado no fomento à educação escolar era precária em todo o Brasil, especialmente para os imigrantes isolados, que se organizavam em pequenos núcleos, sem qualquer apoio do poder público, tendo que custear a escolarização com seus parcos recursos. O índice de analfabetos atingia cerca de 80% da população brasileira nas décadas de 1920 e 1930 (FAUSTO, 2017), realidade que não obteve melhora considerável em decorrência do Estado Novo, haja vista que começava no Brasil o regime ditatorial.
Ainda que a década de 1930 tivesse sido marcada, no campo da educação brasileira, pelo surgimento do movimento da Escola Nova e pela criação da Associação Brasileira de Educação, o lançamento do Manifesto dos Pioneiros da Educação (LOPES, 2019; SANTOS; GIASSON, 2016) não repercutiu em mudanças educacionais em Linha Duvidosa. Inclusive, o panorama nacional apontava que apenas 9% e 21% do total da população brasileira com idade escolar entre 5 e 19 anos frequentavam às escolas nas décadas de 1920 a 1940 (FAUSTO, 2015).
A Escola de São Miguel, única da redondeza, era particular e possuía o objetivo de preservar a cultura dos imigrantes e lhes oferecer as primeiras letras. E, justamente por valorizar a cultura dos boêmios alemães, foi bastante perseguida no período ditatorial. Hilda Flores (2016) relata, por exemplo, acerca do professor Specht, que teve grande importância na sua educação e que sofreu bastante com a repressão:
Fui aluna do professor Pedro Specht no primário. Ele trouxe os ensinamentos da Alemanha, ele era rígido, muito culto e todos o respeitavam. Nós fazíamos temas todos os dias. Ele olhava e nós apagávamos com cuspe ou uma esponja que crescia. Aqui ele foi aluno do seu pai, Joseph Specht, que veio também da Alemanha. Aprendeu com seu pai a ser professor. Aos seus 18 anos, foi já professor na Escola de São Miguel. Eles sofreram muito durante a Segunda Guerra Mundial. Mais tarde fui saber que até açoitados e humilhados o professor e seu irmão foram pela polícia. Não podiam ensinar nem falar em alemão. Naquela época, eu era criança, não entendia o que estava acontecendo, só sei que apareciam abatidos certos dias, como se tivessem levado uma surra. Eu temia aquele período; ninguém perguntava. Mais tarde consegui compreender.
Os grupos de imigrantes isolados não recebiam auxílio nem supervisão das políticas públicas para garantia de direitos, logo criaram suas escolas consoante os aspectos culturais, sociais, comunitários, religiosos e educacionais da Alemanha. Segundo Santos (2019, p. 329), “os imigrantes alemães foram responsáveis pela construção de uma identidade cultural: a germanidade. Contudo, esse não foi um episódio historicamente hege-mônico, pois se inicialmente encontrou algumas condições propícias a sua forma-ção, depois foi combatido”.
Com efeito, tal cultura começou a ser vista como um problema político para o Estado brasileiro, que visava à afirmação nacionalista; situação de perseguição agravada quando, em 1939, iniciou-se a Segunda Guerra Mundial, pois as escolas étnicas alemãs, que eram em torno de 2.500, construídas por imigrantes, foram sendo fechadas por uma sucessão de decretos governamentais entre 1938 e 1941 (KREUTZ, 2018). Nesse cenário, Hilda Flores ingressava na Escola de São Miguel, como demonstra a fotografia dos alunos da turma de 1941, localizada no arquivo pessoal de Hilda Flores.
Destaca-se na foto a imagem de Getúlio Vargas, ao centro da fotografia, enfatizando o nacionalismo. No quadro verde, escrito com giz, havia a seguinte informação: “Escola São Miguel, 12.3.1941, Santa Emília M., Venâncio Aires”. Kossoy (2018) salienta a importância de uma fotografia como documento e de sua análise crítica. Nesse sentido, importa inferir que o objetivo da fotografia era indicar que a escola não era dos imigrantes, Deutsche Schule (escola alemã), mas uma escola brasileira nacionalista, com o objetivo de fugir das perseguições. Observam-se também a nítida separação das meninas e meninos, muito comum no período, e a seriedade no semblante dos alunos e do professor, aspectos impostos pela rigidez sociocultural alemã (MAUAD, 2008). Inclusive, o fato de todos os alunos estarem uniformizados, de acordo com Silva (2015), significava respeito à educação e às regras escolares.
Havia uma forte fiscalização do Estado ditatorial nessas colônias. Como exemplo, Hilda Flores (2017) relata um episódio vivenciado: “[...] O professor era pego pela polícia, apanhava, fazia ele caminhar com cartaz, botavam as calças lá em cima. Depois ele nos contava que isso acontecia por ele falar em alemão”. Era comum que os imigrantes recebessem humilhações para que reagissem de forma agressiva, provocando uma briga, o que justificaria o motivo para serem presos. Sabendo disso, tentavam não desagradar o governo, contudo a repressão prosseguia. Por exemplo, chegaram a confiscar, em uma vistoria de rotina na escola, um globo terrestre e um ábaco (“rechnungmaschine”), pois neles havia escrita em alemão.
Mesmo com toda perseguição, Hilda estudou no início do curso primário a língua Muttersprache - língua alemã - e nas classes mais avançadas começou o estudo do português, como narra: “[...] Lembro-me do medo que me assaltava, pois nem água sabia pedir em português [...]” (FRÖHLICH, 2005, p. 136). Justamente para não deixar rastro do ensino da língua e cultura alemã, os registros da Escola de São Miguel, referentes ao período em que Hilda Flores estudou, foram destruídos.
No cenário nacional, em 1942, foi aprovada a Lei Orgânica do Ensino Primário, com o ministro Gustavo Capanema. Nesse decreto, criou-se um Fundo Nacional do Ensino Primário, que tinha como principal objetivo melhorar as condições de ensino elementar no país, mas esse investimento só chegou aos estados em agosto de 1945 (SAVIANI, 2018) e não contemplou a escolarização primária de Hilda Flores, concluída em 1944. Almeida (2018) acrescenta que as escolas rurais eram distantes das grandes cidades; em decorrência disso, a comunidade escolar era muitas vezes esquecida no século XX e afastada de melhorias educacionais.
Em 1945, Hilda Flores vivenciou outra realidade de ensino, a preparação para a vida religiosa no internato de freiras do Colégio Santo Antônio, no município de Estrela/RS, distante 38 quilômetros de Venâncio Aires/RS, no ano que findava a Segunda Guerra Mundial. Como em Linha Duvidosa havia apenas uma escola primária, a maioria das crianças não prosseguia nos estudos, no entanto apareceu um senhor em busca de “vocacionados” para padres e freiras no final de 1944, justamente após Hilda Flores concluir seu ensino primário. Aos 11 anos de idade, ela viu despertar a chance de sair do interior e ir para uma cidade mais desenvolvida, como explica: “[...] Eu achei que era a maneira de sair de lá do interior. E como eu queria ser professora, então para ser professora e freira; minha mãe sonhou com isso, né. Minha mãe não teve nenhum filho padre, que era a grande glória de então” (FLORES, 2016).
O labor dos filhos era importante para a manutenção das famílias de imigrantes alemães no Sul do Brasil, uma vez que, além de os homens ajudarem no trabalho pesado no campo, as mulheres colaboravam no cuidado da casa e na responsabilidade da educação dos filhos e irmãos mais novos. Todavia, possuir um filho padre ou uma filha freira era motivo de muito orgulho, já que as famílias valorizavam os princípios católicos e a vida religiosa era motivo de orgulho para as famílias (BRAUM, 2010). Hilda Flores vislumbrou na vida religiosa a oportunidade de realizar seu sonho e o da sua mãe: que Hilda Flores se tornasse freira e concluísse os estudos. Afinal, mesmo com o fim da ditadura e a Carta de 1946, que defendia a liberdade e a educação de todos os brasileiros, com o ensino em todos os níveis, e a esfera pública como responsável pelo seu provimento (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2011), a situação educacional de Linha Duvidosa não alcançou maior progresso.
O Colégio Santo Antônio de Estrela, escola em que Hilda foi estudar, era um internato no qual as alunas do interior chegavam no início do ano, em março, e voltavam em dezembro para sua casa, quando encerrava o ano letivo, a fim de gozar as férias ao lado da família. A disciplina era muito valorizada na instituição e a rígida rotina não comportava qualquer momento sem a severa fiscalização das freiras, que acompanhavam as alunas nas orações matinais e noturnas, nas aulas e nos horários destinados ao estudo, como expõe o “Documento redigido ao Centenário do Colégio: Memorial do Colégio Santo Antônio de Estrela - RS”, escrito comemorativo aos 100 anos do referido Colégio:
No internato o Regulamento era observado com rigor. O dia iniciava ao sinal da companhia da Irmã responsável. A seguir, as alunas, em fileira, dirigiam-se à Igreja Matriz para assistir à santa Missa. Após o café, iniciavam as aulas, e, depois do almoço, as horas de estudo. Neste estudo, além das matérias de aula, as alunas realizavam atividades de bordado, lições de piano, aulas de pintura e datilografia, entremeadas de momentos para lanche e recreio. À noitinha, após o jantar, havia um horário de recreação animada, mas supervisionada pelas Irmãs. O recolhimento para o dormitório era feito através do sinal da campainha que era o toque do silêncio total. (MÜSSNICH; RECKZIEGUEL, 1998, p. 1).
Hilda Flores (2015b) explica que havia um isolamento social das internas na tentativa de preservar as noviças, que, além de castas, deveriam se tornar moças prendadas e educadas. No internato do Colégio Santo Antônio de Estrela, a cultura alemã não era valorizada, as notícias de cunho político eram filtradas e o português era a língua oficial. Hilda Flores foi educada no modelo educacional que mesclava o convento e o congreganista; ou seja, a instituição, além de receber meninas que almejavam a clausura devocional, também formava moças para o casamento e a maternidade, como era comum em meados do século XX (LAGE, 2016).
Em 1947, Hilda Flores mudou de colégio e foi estudar em um internato denominado Colégio Sagrado Coração de Jesus, mais próximo da casa da sua mãe, em Santa Cruz do Sul, cidade vizinha a Venâncio Aires/RS, pois lá havia surgido uma vaga para fazer o exame de admissão para estudar para a vida religiosa. Como explica: “Eu continuava querendo ser freira. E eu fui a última filha, então eu ia ter que ser freira, não tinha ninguém da família religioso” (FLORES, 2016). Entretanto, uma decepção acometeu Hilda Flores para que ela não quisesse mais ser freira: havia sido proibida de ir ao casamento de uma irmã. Em decorrência disso, decidiu abandonar o internato em Santa Cruz do Sul/RS e foi ao casamento da irmã sem a autorização de sua tutora, a irmã Clara. Sobre o desfecho, Hilda Flores (2016) narra:
Tive que voltar para o internato no domingo. Contei para minha mãe, e ela mandou eu voltar. [...] Eu não queria mais ser freira, mas queria estudar. Minha mãe não tinha condições de bancar meus estudos. Lá chegando, eu tive uma conversa muito séria com a superiora [...]. Então a madre me disse: ‘Você vai lecionar’. E, para não abandonar, pagaria meu estudo lecionando.
Após a conversa com a madre, o desafio de Hilda Flores se tornou outro, conciliar a rotina de estudante no internato com o trabalho de professora: “Eu fazia o ginásio de manhã e pela tarde era professora das 4ª e 5ª séries com 52 aluninhas” (FLORES, 2016). Mesmo com a dupla jornada, ela mantinha um excelente rendimento, aponta média geral de 9,5, conforme se pode observar no “Registro escolar de Hilda Flores” do ano de 1947, fonte localizada no Acervo do Cede Provincial, no arquivado no Memorial Provincial em São Leopoldo/RS.
Hilda Flores formou-se no primeiro ciclo do ginásio em 1951. A educação nesse período, no Brasil, de acordo com Romanelli (2017), era regida pelo Decreto-Lei nº 4.244/1942, que dividia o ensino secundário em dois ciclos, sendo o primeiro dividido em quatro séries ginasiais e o segundo em outras três séries. Subdividindo-se em curso clássico e curso científico, este com finalidade voltada à preparação para o vestibular, sendo os currículos muito parecidos.
Para cursar o segundo ciclo ginasial, hoje correspondente ao ensino médio, Hilda Flores foi morar em Porto Alegre, ocasião em que ingressou no curso de Serviço Social na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), no ano de 1952, concluindo-o em 1955. Ainda que correspondesse ao segundo ciclo ginasial no seu ingresso, quando estava no meio do curso, ele foi transformado em curso superior. Importa destacar que, para custear seus estudos na PUCRS, Hilda Flores fazia estágios remunerados, já que sua mãe não podia mantê-la em outra cidade e assumir gastos com a educação dos filhos.
A fotografia que segue, cedida pela biografa do seu arquivo pessoal, mostra Hilda Flores na colação de grau em Serviço Social, no ano de 1955.
As décadas de 1940 e 1950 foram marcadas por mudanças geopolíticas, sociais, culturais e econômicas, haja vista que, com o processo de industrialização, era comum que pessoas e famílias inteiras se mudassem para cidades mais desenvolvidas em busca de emprego, estudo e melhores condições de vida (SCHWARCZ, 2017). Hilda, não diferente, passou por muitas instituições educacionais e teve que mudar-se de cidade por diversas vezes para conseguir prosseguir nos estudos, logo, ela não identificou nenhuma outra mulher de seu tempo que percorresse caminho similar, seja porque suas contemporâneas permaneciam no interior ou porque casavam-se e abandonavam os estudos.
Gomes (2017) estima que a população do campo que se deslocou para as cidades somava cerca de 10 milhões de habitantes na década de 1940 e 50 milhões na década de 1950. Hilda Flores empreendeu esse movimento. Todavia, o diferencial é que a maioria das moças que conseguia concluir o ensino superior - pouquíssimas na década de 1950 - era proveniente de famílias abastadas, que podiam custear as despesas com os estudos e deslocamentos dos filhos ou residentes nas grandes capitais, ao contrário da família de Hilda Flores, que vivia da agricultura de subsistência no interior, sendo, nas suas condições econômicas, quase impossível prover recursos para que os filhos pudessem dar continuidade aos estudos. Ademais, com a necessidade da ajuda dos filhos para o cultivo da roça e com a cultura do casamento, as mulheres menos favorecidas economicamente do interior de Linha Duvidosa majoritariamente estudavam no máximo até o final do ensino primário e dedicavam-se a cuidar dos afazeres do lar, da educação dos filhos e do matrimônio.
Hilda Flores foi uma das primeiras mulheres interioranas, descendente de imigrantes boêmios, que conseguiram galgar um diploma universitário na primeira metade da década de 1950. Sua trajetória, ainda que singular e bastante diferente da de outras moças do seu tempo e espaço, expressa a dificuldade de essas mulheres conseguirem destino distinto daquele restrito ao matrimônio, à maternidade e à parca escolarização. A propósito, somente a partir de 1955, em meio à crise política brasileira gerada pelo suicídio de Vargas, o governador do Rio Grande do Sul, Ildo Meneghetti, mesmo sem apoio federal, conseguiu investir mais enfaticamente na educação das comunidades interioranas, ao fundar no estado 20 colégios e ginásios, abrir 269 unidades escolares e nomear 4.004 professores, sendo 520 destes alocados nas zonas rurais (FERREIRA FILHO, 1974).
A trajetória de Hilda Flores, ainda que tenha demonstrado o rompimento dos paradigmas culturais que relegavam a mulher descendente de boêmios do interior do Sul do Brasil à vida privada, permite visualizar o quão difícil era mudar a situação de semianalfabetismo feminino na década de 1940 e primeira metade de 1950. Nessa esteira, sua biografia possibilita ampliar a compreensão acerca da perseguição, exclusão e demais dificuldades enfrentadas pelas mulheres descendentes de boêmios do Sul do país.
Ainda que o recorte da pesquisa seja o período de escolarização de Hilda Flores, importa destacar brevemente que essa mulher, formada inicialmente em Serviço Social, também cursou Filosofia (1955-1959) e a primeira turma do mestrado em História da Cultura na PUCRS (1972-1977). Em seguida, por convite do reitor, tornou-se professora universitária, dedicando-se a estudar os imigrantes no interior de Venâncio Aires/RS. Seu trabalho dedicado lhe rendeu a presidência da Academia Literária Feminina no Rio Grande do Sul (1986-1987; 2003-2006), o título de sócia fundadora da Associação Jornalistas e Escritoras do Brasil/RS (1980), a presidência do Ciclo Literário de Pesquisas (Cipel) por 13 gestões intercaladas a partir do ano de 1983, a vice-presidência e a presidência do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (desde 2019 até o momento) e a posse na cadeira nº 20, Patrono João Simões Lopes, na Academia Rio-Grandense de Letras (2015).
Considerações finais
A imigração de boêmios para o Brasil, acentuada a partir da década de 1870, ajudou a consolidar o processo de colonização da região Sul do Brasil e resultou na constituição de inúmeras colônias, que organizavam seu modo de vida segundo a cultura de origem. Esse povo, partícipe da miscigenação brasileira, ludibriado pelas promessas de que ia ganhar terras férteis, sementes, educação para os filhos e boas condições de vida no Brasil, enfrentou grandes dificuldades em terras brasileiras. Assentados em 25 hectares de terra, esses imigrantes não contaram com a ajuda de políticas públicas responsáveis por parte do governo federal ou estadual. Em decorrência disso, tiveram que erguer suas casas e, ao longo dos anos, foram paulatinamente construindo igreja, escola, centro social, dentre outros estabelecimentos.
A situação de desamparo pelas autoridades administrativas prosseguiu por mais de meio século, de modo que, nas décadas de 1940 e 1950, recorte temporal deste estudo, as colônias ainda não contavam com serviço de saúde, energia elétrica, abastecimento de água, escolarização pública etc. Diante disso, a prática da agricultura de subsistência e a divisão sexual dos trabalhos direcionavam os homens ao trabalho no campo e as mulheres às atividades domésticas, em um contexto em que a instrução não era priorizada, a qual, quando ofertada, não passava do primário. Além das dificuldades mencionadas, esse povo ainda sofreu posteriormente com as agruras do regime ditatorial no Brasil, que passou a persegui-los e a reprimi-los por não terem adotado o português como língua oficial, exigindo que passassem a viver de acordo com a cultura brasileira.
Nesse cenário, destaca-se uma mulher, Hilda Flores, que, mesmo colona das comunidades boêmias, conseguiu concluir sua escolarização nas décadas de 1940-1950, tornando-se professora universitária de relevo, que galgou reconhecimento social por suas pesquisas acerca de imigrantes e mulheres. Questionou-se qual formação educacional foi vivenciada por Hilda Flores que lhe possibilitou ultrapassar os limites impostos pelo machismo, que a destinavam à vida doméstica, concluir mestrado em História e tornar-se uma mulher de referência no campo da história de mulheres e imigrantes boêmios. Esse problema de pesquisa foi respondido por meio do desenvolvimento de uma pesquisa científica com o objetivo de reconstituir historicamente a biografia de Hilda Flores, com ênfase na análise do seu percurso formativo nas escolas riograndenses (1939-1955).
Hilda Flores nasceu em Linha Duvidosa, localidade interiorana de Venâncio Aires/RS, e teve sua terna infância amparada pelo seio familiar e a convivência com seus 11 irmãos mais velhos. Como sua mãe havia cursado até a 4ª série primária e sabia ler e escrever bem, cuidou de lhe ensinar as primeiras letras em alemão, bem como de lhe oferecer uma formação moral consoante a cultura alemã católica, na qual a mulher, à imagem de Maria, deveria ser pura e casta e dedicar-se ao casamento ou à vida religiosa. Aos 6 anos e meio, ingressou em uma escola comunitária, em que concluiu o ensino primário e aprendeu, além do alemão e das noções elementares de matemática, o português.
A maioria das moças de época, como não havia escola com o nível ginasial na região, parava os estudos, de influência germânica, ao fim do curso primário e passava a auxiliar a mãe nos afazeres domésticos até que surgisse um pretendente ao casamento. No entanto, Hilda Flores sonhava em ser freira e, ao receber um convite para se preparar ao noviciado, aproveitou a oportunidade para estudar num internato em outra cidade, inclusive mudando de instituição educativa para se dedicar a esse fim. Contudo, desapontada com a proibição de assistir ao casamento de uma irmã, desistiu da vida religiosa e passou a trabalhar como professora na mesma instituição em que estudava para custear o restante do primeiro ciclo ginasial. Decidida a prosseguir nos estudos, foi fazer o segundo ciclo ginasial na PUCRS, dedicando-se ao curso de Serviço Social, que ganhou status de curso superior.
A reconstituição da história de vida de Hilda Flores, com foco na sua educação, permitiu visualizar uma trajetória marcada pela superação de paradigmas socioculturais que relegavam a mulher imigrante de boêmios de Linha Duvidosa ao semianalfabetismo e à vida privada, no campo, dedicando-se ao matrimônio e aos cuidados com os filhos e com o lar. Como esses imigrantes mal falavam a língua portuguesa e conviviam entre eles, era comum que os casamentos ocorressem entre essas famílias, mantendo-os isolados e esquecidos na história do Brasil. Com efeito, constatou-se que o destino de Hilda Flores não foi o mesmo que o da maioria das mulheres interioranas descendentes de boêmios do Sul do Brasil.
A elaboração de uma narrativa biográfica lançou luz não apenas a uma mulher descendente de boêmios, mas a sujeitos que fizeram parte da miscigenação do povo brasileiro, ainda que tenham sido silenciados e esquecidos por décadas. A história e memória da formação escolar de Hilda Flores permitiram evidenciar um contexto educacional exclusório e desigual para os moradores de Linha Duvidosa, pela completa ausência do Estado, além de destacar as especificidades da formação feminina para a ampliação da compreensão acerca da educação de mulheres interioranas descendentes de imigrantes boêmios do Sul do Brasil. Contudo, por se tratar de uma biografia, situada em um tempo e espaço delimitados, o estudo possui a limitação de não poder ser generalizado para todo o Brasil, logo se sugerem novas pesquisas que tratem da educação de mulheres imigrantes alemãs e de outras etnias que compuseram a formação cultural do país.