Introdução
O Brasil apresenta uma grande diversidade cultural, fortemente presente no cotidiano das pessoas, com fortes traços da cultura africana e indígena. Como os estudantes trazem essa diversidade cultural para a sala de aula, é importante que essas especificidades sejam consideradas na prática educacional, no sentido de valorizar e resgatar esses saberes advindos da sua comunidade e que são frutos de suas vivências (XAVIER; FLÔR, 2015). Segundo Silva e Zanon (2000), a escola deve ser um local que permita a mediação entre a teoria e a prática, o ideal e o real, o científico e o cotidiano. Essa articulação não se refere a reduzir o conhecimento científico, mas apresentar oportunidades de se estudar e conhecer outras formas de conhecimento, explorar diferentes visões de mundo e discutir as relações existentes ou não entre esses saberes, como salienta Paulo Freire (1987, p. 68): “não há saber mais ou menos, há saberes diferentes.”
O conhecimento tradicional, o saber popular ou o etnoconhecimento manifestados por meio de atividades, como uso de ervas para chás medicinais, alimentação, artesanatos, agricultura e outros, estão presentes nos costumes de determinadas comunidades. Esses são conhecimentos obtidos de forma empírica, segundo Xavier e Flôr (2015), a partir do “fazer”, que normalmente é transmitido de forma oral e de geração em geração. Por muitos anos as disciplinas escolares não reconheceram a diversidade cultural dos seus alunos, negando qualquer tipo de interação de práticas discursivas de diferentes grupos sociais no processo de ensino, e conforme Baptista (2010), o ensino de ciências mantém o discurso científico como única fonte de conhecimento válido.
A Lei nº 11.645/08 torna obrigatória a inserção da temática “história e cultura afro-brasileira e indígena”1 em todo o currículo escolar brasileiro (BRASIL, 2008), porém, quando contemplado, é mais observado nas disciplinas de História e Artes. Segundo Pereira e outros (2019), os professores sentem dificuldades para encontrar encaminhamentos metodológicos para a aplicação dessa temática de forma efetiva, especificamente em disciplinas científicas, inclusive para o Ensino Médio.
Por fim, partimos da seguinte questão norteadora: como a interculturalidade e a Lei nº 11.645/08 têm sido abordadas no ensino de ciências de escolas brasileiras? A fim de responder a esta pergunta, o presente artigo de natureza teórica traz uma revisão sistemática da literatura de alguns trabalhos relevantes dos últimos cinco anos (2017 a 2021) na área de ensino de ciências no Brasil. O objetivo é abordar a importância da inserção da interculturalidade no ensino de ciências, em que promova a articulação entre contextos subjetivos, culturais e sociais na escola contemporânea, assim como o desenvolvimento em sala de aula de conteúdos científicos com abordagem de temas que tratam o conhecimento tradicional dos povos, como o indígena e o afro-brasileiro.
O universalismo, o multiculturalismo e o pluralismo epistemológico
Os questionamentos sobre considerar ciência o conhecimento da natureza produzido pelas culturas não-ocidentais e a sua inserção no currículo escolar são amplamente discutidos em publicações da área educacional científica. A partir disso, três posicionamentos epistemológicos foram estabelecidos: o universalismo, o multiculturalismo e o pluralismo epistemológico, cada um indicando uma perspectiva de abordagem do que se entende por ciência e suas implicações no ensino. O universalismo defende que a ciência tem um caráter universal, não podendo ser ensinada em termos multiculturais, conferindo à ciência um poder epistêmico superior aos demais sistemas de conhecimento, e segundo Southerland (2000), uma ciência livre de influências culturais. Autores universalistas como Matthews (1994) e Siegel (1997) defendem que a ciência está fundamentada em um mundo material, amplamente estruturado, com poder explicativo e preditivo sobre a natureza.
Já os multiculturalistas apoiam-se na inclusão do conhecimento ecológico tradicional no ensino de ciências, com a justificativa de que haverá possibilidades de diálogo com os saberes provindos de diferentes culturas. Atwater e Riley (1993) definem o movimento multiculturalista como uma construção, um processo de reforma educacional com o objetivo de fornecer oportunidades justas para a população estudantil culturalmente diversa aprender ciências de qualidade em escolas e universidades. Assim, para autores da posição multiculturalista (HODSON, 1993; OGAWA, 1995; SNIVELY; CORSIGLIA, 2001), o posicionamento universalista se mostra em uma condição de superioridade, pois exclui os conhecimentos produzidos para além dos critérios epistêmicos ocidentais e ainda apresenta incoerências em relação a perspectivas filosóficas, morais e políticas (EL-HANI; MORTIMER, 2007). Ogawa (1995) define ciência como uma “percepção racional de realidade”, em que essa percepção significa a ação de construir a realidade, caracterizando a ciência como uma natureza dinâmica, e, assim, outros sistemas de pensamentos sobre a natureza deveriam ser considerados ciência, visto que comportam também uma percepção racional da realidade.
O pluralismo epistemológico ocupa uma posição intermediária entre os dois movimentos citados e é defendido por William Cobern e Cathleen Loving. Esses autores apresentam uma perspectiva de reservar o conceito da ciência ao conjunto de saberes produzidos pela cultura ocidental moderna e demarcar os saberes em diferentes domínios da prática humana, não conferindo superioridade à ciência, buscando a valorização de todas as diferentes formas de saberes, sem submeter a critérios da cultura ocidental (ROSA; ALMEIDA; SANTANA, 2020). Cobern e Loving (2001) discutem uma definição de ciência a partir de uma perspectiva multicultural em contraste com a definição empregada pela perspectiva universalista de ciência, o que chamam de “padrão da ciência”. Esse termo se refere à cultura “ocidental moderna”, construída a partir da apropriação de saberes que ela menospreza, como saberes indígenas, africanos, quilombolas etc., reivindicando a qualificação de ciência, caracterizando um conjunto de conhecimentos produzidos pela Europa ocidental, considerado um posicionamento epistemológico universal.
É preciso entender que da mesma forma que os demais conhecimentos, a ciência ocidental faz parte de um constructo cultural específico, com determinações específicas que podem ou não serem úteis em outros espaços. Assim, universalistas não são favoráveis à inclusão de outras formas de conhecimento, já os multiculturalistas são a favor da diversidade cultural, justificando que só assim haverá possibilidades de diálogo com os conhecimentos produzidos por diferentes culturas, considerando que os universalistas excluem estes conhecimentos que são produzidos fora da esfera epistêmica ocidental, indicando posição de superioridade (ROSA; ALMEIDA; SANTANA, 2020).
Cobern e Loving (2001) argumentam que as explicações da ciência sempre serão universais, mesmo com a incorporação de outros conhecimentos, como o conhecimento indígena no contexto científico, em que se permite ampliar o que é ensinado como ciência, mas sem que haja o domínio da ciência sobre o conhecimento indígena, na tentativa de incorporação como ciência. Portanto, o conhecimento indígena é mais bem apresentado como um tipo diferente de conhecimento, que desempenha um papel interessante no ensino de ciências e mantém sua independência, podendo manter críticas às práticas da ciência e ao “padrão da ciência”.
Rosa, Almeida e Santana (2020) argumentam pela utilização do termo ciência levando em consideração critérios de demarcação para outras formas de conhecimento; por exemplo, todo conhecimento seria tratado como ciência, e assim temos a ciência ocidental moderna ou acadêmica, ciência dos povos indígenas, ciência dos povos africanos, entre outras. Portanto, os “outros” saberes não são rotulados de “ciência”, mas lhes é reconhecido um estatuto próprio, já que se teve uma diversificação do conceito de ciência. Esses autores acreditam que diferentes conhecimentos devem ser valorizados por seus próprios méritos, propondo a ideia de pluralismo científico, sendo essas ciências correspondentes às diversas culturas.
A partir desse contexto envolvendo os três posicionamentos epistemológicos descritos, este artigo alinha-se com o posicionamento do pluralismo epistemológico, em que se considere um ensino de ciências que contemple a demarcação entre os diferentes modos de conhecimento, da diversidade de formas de conhecimento construída pela humanidade, contribuindo para uma compreensão mais crítica e informada por parte dos estudantes.
Metodologia
Utilizou-se para a elaboração deste artigo a metodologia chamada Methodi Ordinatio (PAGANI; KOVALESKI; RESENDE, 2015, 2017) para seleção das publicações sobre a abordagem da interculturalidade e o uso da Lei nº 11.645/08 no ensino de ciências especificamente, assim como outras pesquisas relacionadas a esta temática. O método trata da revisão sistemática de literatura com objetivo de auxiliar no processo de escolha de publicações sobre determinado tema, selecionando e classificando trabalhos científicos de acordo com sua relevância, criando um portifólio bibliográfico (CAMPOS et al., 2018). O Methodi Ordinatio consiste em nove etapas de execução (GAUDÊNCIO et al., 2020), como veremos a seguir.
Etapa 1
Intenção de pesquisa: encontrar trabalhos relacionados ao uso da Lei nº 11.645/08 e da interculturalidade no ensino de ciências. Para isso, partiu-se da seguinte questão norteadora: como a interculturalidade e a Lei nº 11.645/08 têm sido trabalhadas no ensino de ciências de escolas brasileiras?
Assim, definiu-se três palavras-chave: “11645”, “science teaching” e “interculturality”.
Etapa 2
Pesquisa em bases de dados: definição das bases de dados que serão utilizadas para realizar a pesquisa. Quanto à escolha das bases de dados, optou-se por Scielo, Scopus e Web Knowledge.
Etapa 3
Definição e combinação das palavras-chave e bases de dados: nesta etapa, o pesquisador faz a pesquisa nas bases de dados com as palavras-chave escolhidas na etapa anterior, definindo os limites do período (em anos) dos artigos, como artigos mais recentes. Tendo em vista a importância da temática nos estudos mais atuais, especificamente no ensino de ciências, considerou-se o período de publicação entre 2017 e 2021. Em seguida são realizados testes de combinações possíveis, utilizando os operadores booleanos AND - OR, conforme os Quadros 1 e 2 a seguir.
KEYWORDS AND COMBINATIONS | A | B | C |
---|---|---|---|
SCIELO | WEB KNOWLEDGE | SCOPUS | |
“11645” AND “Science teaching” AND “interculturality” |
0 encontrado para T-A-K Open access Tempo estipulado: 2017-2021 País: Brasil Artigos |
0 encontrado Open access Education educationl research Education scientific disciplines Multidisciplinary sciences Tempo estipulado: 2017-2021 País: Brasil Artigos |
0 encontrado para T-A-K Open access Tempo estipulado: 2017-2021 País: Brasil Artigos |
Total | 0 | 0 | 0 |
“11645” AND “Science teaching” | Resultados: 0 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Resultados: 0 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Resultados: 0 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Total | 0 | 0 | 0 |
“11645” AND “interculturality” | Resultados: 0 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Resultados: 0 País: Brasil Anos: 2010-2021 Artigos |
Resultados: 0 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Total | 0 | 0 | 0 |
“Science teaching” AND “interculturality” | Resultados: 0 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Resultados: 1 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Resultados: 13 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Total | 0 | 1 | 13 |
TOTAL 14 |
Fonte: Elaborado pela autora do artigo com base em dados da pesquisa.
KEYWORDS AND COMBINATIONS | SCIELO | WEB KNOWLEDGE | SCOPUS |
---|---|---|---|
“11645” OR “Science teaching” OR “interculturality” |
430 encontrados para T-A-K Tempo estipulado: 2017-2021 País: Brasil |
589 encontrados. Por título Tempo estipulado: 2017- 2021 País: Brasil |
726 encontrados para T-A-K Tempo estipulado: 2017-2021 País: Brasil |
Total | 430 | 589 | 726 |
“11645” OR “Science teaching” | Resultados: 351 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Resultados: 589 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Resultados: 466 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Total | 351 | 589 | 466 |
“11645” OR “interculturality” | Resultados: 63 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Resultados: 69 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Resultados: 79 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Total | 63 | 69 | 79 |
“Science teaching” OR “interculturality” | Resultados: 412 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Resultados: 501 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Resultados: 506 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Total | 412 | 501 | 506 |
TOTAL 4.781 |
Fonte: Elaborado pela autora do artigo com base em dados da pesquisa.
Etapa 4
Busca final nas bases de dados com auxílio de ferramentas de gerenciamento de referências: os resultados coletados nas bases de dados são exportados para um gerenciador de referências; neste caso, utilizou-se o Mende ley e em seguida o JabRef. Assim, foi possível excluir os trabalhos em duplicata e os trabalhos que de algum modo não estão de acordo com a pesquisa desejada, conforme o Quadro 3 a seguir.
KEYWORDS AND COMBINATIONS | A | B | C |
---|---|---|---|
SCIELO | WEB KNOWLEDGE | SCOPUS | |
“11645” OR “Science teaching” | Resultados: 3 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Resultados: 4 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Resultados: 14 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Total | 3 | 4 | 14 |
“11645” OR “interculturality” | Resultados: 40 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Resultados: 11 País: Brasil Anos: 2010-2021 Artigos |
Resultados: 13 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Total | 40 | 11 | 13 |
“Science teaching” OR “interculturality” | Resultados: 28 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Resultados: 16 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Resultados: 8 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Total | 28 | 16 | 8 |
“Science teaching” AND “interculturality” | Resultados: 0 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Resultados: 1 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Resultados: 13 País: Brasil Anos: 2017-2021 Artigos |
Total | 0 | 1 | 13 |
TOTAL 151 |
Fonte: Elaborado pela autora do artigo com base em dados da pesquisa.
Etapa 5
Procedimentos de filtragem: esta etapa corresponde à leitura prévia do título, keywords ou abstract e fazer a exclusão dos artigos que, a priori, não estejam relacionados ao tema pesquisado. Após a filtragem, somente artigos que se apresentem pertinentes continuarão no processo. Deste modo, 48 artigos foram selecionados.
Etapa 6
Identificação do fator de impacto, ano de publicação e número de citações: nesta etapa é criada uma planilha contendo o título do artigo, o nome da revista, ano de publicação, fator de impacto da revista e o número de citações.
Etapa 7
Ranking dos artigos usando a equação InOrdinatio: a equação InOrdinatio é assim aplicada: InOrdinatio = (FI/1000) + α * [10 - (ano da pesquisa / publicação)] + (ΣCi) onde o FI é o fator de impacto, α é um fator de ponderação que varia de 1 a 10, a ser atribuído pelo pesquisador, ano da pesquisa é o ano em que a pesquisa foi desenvolvida, ano da publicação é o ano em que o artigo foi publicado e ΣCi é o número de citações do artigo.
O InOrdinatio leva em consideração o ano, o fator de impacto da revista e o número de citações do artigo. Fazendo essa correspondência, o InOrdinatio dará uma ordenação de publicações de acordo com sua relevância científica, auxiliando na leitura sistemática de artigos que realmente possuem importância para a investigação. Assim, foi possível ordenar os 48 artigos encontrados com a temática pelo número InOrdinatio, em ordem numérica crescente, ou seja, quanto maior for o número InOrdinatio, mais relevante e importante é o artigo.
Etapa 8
Encontrar os artigos completos: após classificação dos artigos usando a equação InOrdinatio, deve-se encontrar as versões completas dos artigos.
Etapa 9
Leitura final e análise dos artigos: seleciona-se o número de artigos a serem lidos e escolhidos para a pesquisa. Deste modo, foram escolhidos 15 artigos entre os 48 selecionados, como se pode observar no Quadro 4 a seguir.
AUTORES | TÍTULO | REVISTA | ANO | INORDINATIO |
---|---|---|---|---|
Baptista, G. C. S.; Molina-Andrade, A. | Science Teachers’ Conceptions About the Importance of Teaching and How to Teach Western Science to Students from Traditional Communities |
Human Arenas | 2021 | 91,000 |
Martins, K. V.; Baptista, G.; Almeida, R. | Ethnoecology in classrooms: a proposal for teacher training in the context of tradition- al communities |
Praxis & Saber | 2021 | 90,000 |
Neves, F. H. G.; Queiroz, P. P. de. | O Ensino de Ciências e a Saúde: por uma Docência Intercultural e Crítico-Reflexiva na Escola Básica |
Ciência & Educação | 2020 | 86,000 |
Rédua, L. de S.; Kato, D. S. | Oficinas Pedagógicas na Formação Inicial de Professores de Ciências e Biologia: Espaço para Formação Intercultural | Ciência & Educação | 2020 | 83,000 |
Aikanã, L.; Nunes, R. O.; Oliveira, I. D. C. | Ensino de ciências na aldeia: Uma experiência com alunos da etnia aikanã sobre as plantas frutíferas da aldeia |
Education Policy Analysis Archives |
2020 | 80,000 |
Valadares, J. M.; Silveira Júnior, C. da. | Interculturalidade e ensino de ciências: O cotidiano de uma sala de aula | Education Policy Analysis Archives |
2020 | 80,000 |
Monteiro, E. P.; Zuliani, S. R. Q. A. | A Abordagem Intercultural nas Escolas Indígenas Tikuna do Amazonas: o Ensino de Química |
Ciência & Educação | 2020 | 80,000 |
Mizetti, M. de C. F.; Krolow, I. R. C.; Teixeira, M. de R. F. |
Access of indigenous peoples to formal education: science education: a challenge, a reality |
Pro-Posições | 2020 | 80,000 |
Benitea, A. M. C.; Faustino, G. A. A.; Silva, J. P.; Benite, C. R. M. |
Dai-me agô (licença) para falar de saberes tradicionais de matriz africana no ensino de química |
Química Nova | 2019 | 77,000 |
Silva, J. A.; Ramos, M. A. | Conhecimentos tradicionais e o ensino de ciências na Educação Escolar Quilombola: Um estudo etnobiológico. |
Investigações em Ensino de Ciências |
2019 | 72,000 |
Nascimento, A. C.; Vieira, C. M. N.; Landa, B. de S. |
Experiências Interculturais na Universidade: a presença dos indígenas e as contribuições à Lei N° 11.645/08 | Cadernos CEDES | 2019 | 71,000 |
Benite, A. C.; Bastos, M.; Vargas, R. N.; Fernandes, F. S.; Faustino, G. A. A. |
Cultura africana e afro-brasileira e o ensino de química: estudos sobre desigualdades de raça e gênero e a produção científica | Educação em Revista | 2018 | 67,000 |
Valadares, J. M.; Pernambuco, M. M. C. A. |
Criatividade e silêncio: encontros e desencontros entre os saberes tradicionais e o conhecimento científico em um curso de licenciatura indígena na Universidade Federal de Minas Gerais |
Ciência & Educação | 2018 | 65,000 |
Nunes, A. D. C.; Silva, A. L. F.; Rocha, L. F. D. V. |
Law 10.639 / 03 as a political-pedagogical instrument in the perspective of Intercul- turality |
Dialogia | 2018 | 60,000 |
Vargas, L. T; Candela, A. | Contributions of Ethnography for understanding the training process of In-service Physics teachers | Ciência & Educação | 2018 | 60,000 |
Fonte: Elaborado pela autora do artigo com base em dados da pesquisa.
Portanto, o texto a seguir irá abordar o uso da Lei nº 11.645/08 e da interculturalidade no ensino de ciências, sendo o texto sustentado pelos estudos encontrados pelo Methodi Ordinatio, assim como nas demais produções acadêmicas que são referências na literatura para o assunto em estudo.
Para a análise dos artigos foi estabelecido o critério de inclusão: artigos publicados em Revistas indexadas nas três bases de dados diretamente relacionados com a interculturalidade e com a Lei nº 11.645/08, que apresentam resultados de práticas docentes ou novas metodologias. No que diz respeito à organização e filtração dos artigos e posterior leitura, utilizou-se o gerenciador de referências Mendeley, que auxilia na revisão de literatura.
A educação intercultural no ensino de ciências
A sociedade contemporânea brasileira é evidenciada por uma multiplicidade de culturas, sendo assim, existe uma necessidade de se promover uma educação que ultrapasse o etnocentrismo sociocultural. A escola está enraizada em uma cultura ocidental homogênea e, com frequência, ignora ou cala as diferenças culturais e acaba por reforçar as desigualdades sociais.
Os currículos escolares transparecem o caráter monocultural de uma educação fundamentada a partir da educação universalista, que pressupõe que se compartilha igualmente de uma mesma cultura. O monoculturalismo identificado entende que todos os povos compartilham de uma cultura universal, podendo se ter o risco de exclusão ou subjugação das minorias culturais. Já o multiculturalismo reconhece que cada grupo social desenvolve historicamente a sua identidade e cultura (FLEURI, 2001).
De acordo com Fleuri (2001), a relação intercultural trata da situação em que pessoas de diferentes culturas interagem entre si. Na área da educação, existe uma diferenciação entre a perspectiva multicultural e a perspectiva intercultural. Ambas se referem aos processos históricos em que diferentes culturas interagem, porém, na prática educativa, diferem-se no modo de como concebem a relação entre as diferentes culturas. Isto deve-se à “intencionalidade” que motiva as relações entre as pessoas com culturas diferenciadas. Na prática escolar, o docente assume uma perspectiva multicultural quando reconhece a diversidade cultural como um fato, assim como as diferenças étnicas, culturais e religiosas entre as pessoas que habitam o mesmo contexto. Já o docente que constrói uma proposta educativa intencional para a promoção da relação entre pessoas de diferentes culturas, passa a adotar uma perspectiva intercultural, que, segundo Nanni (1998), ocorre quando o educador constrói um projeto educativo intencional:
Uma perspectiva multicultural limita-se a considerar a coabitação das diferenças culturais como um processo histórico natural, espontâneo, do qual se pode tomar consciência para se adaptar a ele. Pode-se, ao invés, falar de interculturalidade quando consideramos não apenas o processo histórico de coexistência entre as diferentes culturas, mas também a proposta de mudança e de projetualidade. (NANNI, 1998, p. 30).
Assim, a educação intercultural “propõe o desenvolvimento de estratégias que promovam a construção de identidades particulares e o reconhecimento das diferenças, ao mesmo tempo em que sustentem a inter-relação crítica e solidária entre diferentes grupos” (FLEURI, 2001, p. 1). Silva e Rebolo (2017) ressaltam a importância da dimensão cultural no currículo escolar, pois pode potencializar os processos de ensino-aprendizagem dos conhecimentos, tornando-os mais significativos e produtivos para os estudantes. Em se tratando do ensino de ciências em específico e sobre os aspectos que circundam assuntos científicos e tecnológicos, a sala de aula está repleta de informações e atualizações em tempo real sobre as diversas descobertas e acontecimentos mundiais. Contudo, as salas de aula não são uniformes sob o ponto de vista cultural, ou seja, são espaços multiculturais que contêm outras formas de se “pensar ciência” que podem ser representadas para além da que é apresentada pelo professor. Deste modo, Baptista (2010) ressalta a necessidade de docentes de áreas científicas estarem atentos às diversas concepções prévias dos alunos, para que se possa contribuir significativamente com as necessidades dos indivíduos e da comunidade a que pertencem.
Pesquisas que abordam o ensino de ciências em escolas indígenas (AIKANÃ; NUNES; OLIVEIRA, 2020; MIZETI, 2017; MONTEIRO; ZULIANI, 2020) mostram que os povos indígenas buscam diferentes formas de resgatar sua cultura, enfrentando grandes dificuldades, entre elas a educação e o ensino de ciências mais especificamente. Conforme pesquisa de Aikanã, Nunes e Oliveira (2020), trabalhar com o conhecimento prévio do estudante indígena sobre etnoconhecimentos ou etnopráticas de sua prórpria etnia torna-se uma grande ferramenta de ensino para a construção do conhecimento científico.
Assim, alguns autores (BRANDÃO, 2003; CHASSOT, 2006; PERRELLI, 2008) defendem a inclusão dos saberes tradicionais na base curricular, já que fazem parte da vivência dos alunos e precisam ser reconhecidos e explorados pela instituição escolar, favorecendo a elaboração de currículos pluriculturais, não somente na sala de aula indígena, mas em todas as escolas do Brasil. Perrelli (2008) discute sobre a importância de se elaborar metodologias de ensino renovadas, que respeitem as diferenças de cada cultura, já que no ensino de ciências as práticas pedagógicas possibilitam aos professores diferentes formas de abordagem, permitindo inúmeras atividades que tornam possível trabalhar com temas tradicionais contextualizados ao conhecimento científico. Diante deste contexto, a seguir serão mostrados exemplos de pesquisas que trabalharam ou desenvolveram ações pedagógicas e metodologias educacionais que abordaram a interculturalidade e o uso da Lei nº 11.645/08 no ensino de ciências.
Aplicações didáticas da Lei nº 11.645/08 no ensino de ciências
Muitos estudos (BENITE et al., 2018; BENITE et al., 2019; NUNES; SILVA; ROCHA, 2018; SILVA; RAMOS, 2019) abordam a Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003, que versa sobre o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana, e ressaltam a importância da cultura negra na formação da sociedade brasileira. Em 2008, a Lei nº 10.639/03 foi alterada pela Lei nº 11.645/08, a qual estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, adicionando a obrigatoriedade da temática “história e cultura afro-brasileira e indígena” na grade curricular do ensino fundamental e médio brasileira. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional define e regulariza a organização da educação apoiada nos princípios presentes na Constituição, ou seja, as leis não são facultativas e são obrigatórias em qualquer escola, pública ou privada. A implementação da Lei nº 11.645/08 contribui para a representatividade e valorização dos povos afro-brasileiros e indígenas em nossa sociedade, favorecendo a construção de uma escola mais inclusiva e diversificada, além de permitir o espaço democrático.
Partindo do posicionamento do pluralismo epistemológico, o ensino de ciências que contemple a contextualização de temas etnocientíficos ou tradicionais permite o desenvolvimento da compreensão intercultural do aluno, além da valorização das próprias culturas, crenças e línguas, e entender como são moldadas as identidades pessoais, grupais e nacionais. Portanto, Francisco Júnior e Yamashita (2018) salientam a importância de se criarem e implantarem práticas educacionais que considerem outros grupos sociais juntamente com a promoção da compreensão de teorias e conceitos científicos. Para isso, segundo esses autores, é necessária uma reinvenção de práticas pedagógicas para contemplar esse plano educacional. Deste modo, alguns exemplos de trabalhos envolvendo essas práticas pedagógicas serão apresentados.
O trabalho de Vanuchi e Braibante (2021) mostra como promover a inclusão da temática indígena em sala de aula, no ensino de química orgânica, com a contextualização da extração e utilização de corantes naturais usados por indígenas brasileiros com o conhecimento científico, como os corantes do jenipapo, urucum, açafrão e pau-brasil, por meio de oficina pedagógica. A pesquisa de Silva e Ramos (2019) mostra a elaboração de uma metodologia educacional para alunos do ensino fundamental aplicada por meio de pesquisa-ação em que se investigou as relações entre os conhecimentos tradicionais quilombolas e os saberes científicos da escola, assim como as contribuições desse diálogo intercultural para o ensino de ciências. O estudo revela a relevância de se trabalhar a contextualização de conhecimentos no ensino de ciências como proposta para o trabalho docente no âmbito da cultura quilombola.
Já Brito, Bootz e Massoni (2018) desenvolveram uma sequência didática para se trabalhar nas aulas de ciências ou física o tema astronomia, com discussão acerca de fatos históricos, culturais e científicos a partir de constelações em variadas culturas, como a indígena e a africana, favorecendo um ensino de ciências mais crítico, antirracista e diverso, contemplando diferentes alteridades.
O trabalho de Gonzaga, Santander e Regiane (2019) é o relato de experiência da execução de uma oficina para alunos do ensino médio sobre química e a cana-de-açúcar em um contexto histórico favorável que permite a aplicação da Lei nº 11.645/08 com abordagem de conceitos de química orgânica sobre a obtenção do açúcar e do álcool, em uma abordagem interdisciplinar. Assim, o trabalho destaca que o ensino de bioquímica com abordagem cultural, social e racial é relevante no cumprimento da Lei nº 11.645/08.
Fazer a contextualização ou a abordagem de conteúdos sobre a história afro-brasileira e indígena no ensino de ciências exige mudanças na estrutura educacional existente na Academia, que ainda privilegia a cultura ocidental europeia em detrimento das demais (MOREIRA et al., 2011). Os docentes que recorrem a informações, fazem leituras e discussões com seus colegas sobre as suas práticas educacionais diante das questões sociais e raciais têm maior facilidade de promover um processo de ensino-aprendizagem de conceitos envolvendo a interculturalidade. Assim, reforça-se a importância do engajamento para que mais pesquisadores da área da ciência desenvolvam práticas pedagógicas efetivas para a difusão dos conhecimentos referentes à cultura afro -brasileira e indígena na sala de aula, assim como promover a educação intercultural.
A formação inicial de professores: o primeiro passo para a educação intercultural
Para que se possa haver a inserção da perspectiva intercultural no ensino de ciências é preciso refletir sobre a formação inicial de professores. De acordo com Silva e Baptista (2018), esta perspectiva é relativamente nova no processo de formação de professores, sendo muitas vezes inexistente. Essas autoras salientam que é preciso haver uma reflexão sobre a relação do docente com o conhecimento científico, assim como seu papel mediador no ensino de ciências e, principalmente, sobre a sua formação continuada, pois as concepções do docente são, na sua maioria, resultado da sua formação, e isto acarretará grande influência sobre a sua prática no processo de ensino-aprendizagem.
Os resultados de uma pesquisa realizada por Martins, Baptista e Almeida (2021) apontam que o processo de preparação para um ensino com o diálogo intercultural para professores em formação inicial, que sejam sensíveis à diversidade cultural, pode ser um processo lento e complexo, necessitando de mais experiências no ensino superior de práticas que incluam a abordagem da perspectiva intercultural. Esse trabalho ajuda a refletir sobre a falta de abordagem intercultural nas universidades, para a formação dos novos professores, que estimulem os acadêmicos com experiências mais extensas sobre as relações existentes entre a universidade e a escola.
Nesse sentido, algumas pesquisas (CANEN, 2008; NEVES; QUEIROZ, 2020; RÉDUA; KATO, 2020) buscam apresentar estratégias pedagógicas elaboradas para se trabalhar com a perspectiva intercultural na formação inicial de professores, assim como pesquisas voltadas para a formação inicial de professores indígenas, acadêmicos indígenas, professores do campo ou acadêmicos de comunidades tradicionais (AIKANÃ; NUNES; OLIVEIRA, 2020; BAPTISTA; MOLINA-ANDRADE, 2021; NASCIMENTO; VIEIRA; LANDA, 2019; VALADARES; PERNAMBUCO, 2018; VALADARES; SILVEIRA JÚNIOR, 2020).
Rédua e Kato (2020), por exemplo, elaboraram oficinas pedagógicas como espaços de formação intercultural que serviram como estratégia de ensino na formação de futuros professores de ciências e biologia. A pesquisa de Monteiro e Zuliani (2020) trata sobre a abordagem intercultural no ensino de química em escolas indígenas Tikuna do Amazonas. Os resultados apontam os desafios pedagógicos que os docentes encontram para tornar o ensino de química intercultural, além de indicar que o ensino de química nas escolas Tikuna reproduz passividade em um ensino livresco. De modo geral, o estudo mostra que, para o ensino de química particularmente, não têm sido desenvolvidas práticas pedagógicas voltadas aos saberes culturais, sendo constatado como a única condição de educação diferenciada nas aulas o uso da língua nativa.
Diante desses exemplos, reforça-se a importância da formação inicial de professores de ciências para que se tenha um processo de ensino-aprendizagem que trabalhe com os alunos temas da natureza da ciência a partir de atividades envolvendo a educação intercultural. Portanto, para a perspectiva intercultural de educação, faz-se necessário o repensar e ressignificar a concepção de educador, pois compete a ele a função de propor situações que identifiquem as diferenças entre os sujeitos e seus contextos, fazendo com que haja a circulação de informações. Trabalhando deste modo, o educador acaba por apresentar possibilidades para a inserção de discussões do que seria a cultura (SILVA; REBOLO, 2017). Para tanto, é preciso que haja uma mudança nos cursos de formação de professores, tanto na graduação quanto na formação continuada, para que se formem profissionais sensíveis ao diálogo intercultural.
Considerações Finais
Como visto, o currículo escolar não pode ser algo distante do cotidiano dos alunos, deve contemplar os conhecimentos prévios dos estudantes, assim como as diferentes formas de saber. Todavia, não se pode valorizar somente aquilo que o indivíduo conhece na sua realidade, sem o fazer considerar o conhecimento a partir do método científico, pois, desta forma, não haveria o enriquecimento de saberes. Diante desse contexto, o artigo buscou fazer uma reflexão acerca da importância da perspectiva intercultural no ensino de ciências, destacando os estudos brasileiros relacionados com a questão, assim como a aplicação da Lei nº 11.645/08 no ensino de ciências. Assim, com o apoio da revisão sistemática de literatura apresentada para o tema, pôde-se conhecer as novas metodologias e ações de ensino que promoveram a inserção da contextualização e articulação de temas culturais e sociais no ensino de conteúdos científicos.
Desse modo, os resultados apresentam publicações com trabalhos que defendem a inclusão dos saberes tradicionais na base curricular, ou seja, pesquisas que trabalharam ou desenvolveram ações pedagógicas e metodologias educacionais com diferentes contextualizações para a abordagem intercultural, assim como o uso da Lei nº 11.645/08 no ensino de ciências. As propostas de metodologias apresentadas envolveram aspectos culturais no processo de ensino-aprendizagem de conceitos científicos, trazendo a ciência/química/física à realidade e ao cotidiano do aluno, além de valorizar o legado indígena e afro-brasileiro à ciência e tecnologia. Deste modo, o objetivo maior em apresentar esses estudos foi incentivar para que haja mais pesquisas que trabalhem novas metodologias educacionais que busquem a sustentação de um diálogo intercultural, principalmente no ensino de ciências, área educacional em que professores enfrentam grandes dificuldades para encontrar direcionamentos que contemplem a temática. Entretanto, entende-se que, de fato, para que isso ocorra, é preciso desenvolver estratégias para se trabalhar no ensino superior com a formação inicial de professores de ciências, assim como a formação continuada, pois, segundo Nóvoa (1995), a melhoria da prática pedagógica e da ação docente ocorre durante a formação continuada de professores. Nesta etapa é que ocorre a profissionalização do professor por meio de atividades desenvolvidas na escola, ou fora dela, como em cursos e oficinas.