INTRODUÇÃO
Este artigo integra um conjunto de pesquisas cuja finalidade foi investigar a história da alfabetização no Espírito Santo, considerando que a alfabetização infantil, de jovens, adolescentes e adultos ainda continua a ser um desafio para os estudiosos, gestores, governos e sociedade no século XXI. Assim, ele teve como objetivo central analisar duas ações empreendidas pela Secretaria de Estado da Educação e Cultura para promover a melhoria dos índices de aprovação das escolas públicas do Espírito Santo, nas décadas de 1960 e 70, ou seja, critérios para a formação de turmas homogêneas e avaliação da aprendizagem principalmente na 1ª série, em que os índices de repetência eram mais preocupantes.
A reprovação pode ser vista como uma das mais dramáticas formas de exclusão escolar e social. Ela funciona como um estigma que marca o corpo, a vida escolar e comunitária dos sujeitos de forma muito negativa, pois estes passam a ser vistos pelas suas famílias e pela comunidade como incapazes de aprender o que a escola ensina e, consequentemente, como inaptos para a vida na sociedade moderna. Nas escolas, a existência de turmas dos repetentes, dos reprovados contribuiu para deixar marcas bem profundas e duradouras, por meio da exposição contínua das crianças que frequentavam essas turmas. Não bastavam as notas baixas, era necessário expor os reprovados publicamente, para os colegas, para os professores, para os pais, para a comunidade.
Diante da crescente demanda por educação escolar, ao longo da história da educação nacional, a reprovação acabou tornando-se muito incômoda, pois colaborava para a retenção das crianças por mais tempo nas escolas, impedindo que vagas fossem liberadas para atendimento àqueles que as demandavam. À medida que a procura crescia, respostas precisaram ser dadas pelos órgãos diretores de ensino no sentido de garantir vagas para os demandantes. Em 1960, de 147.061 alunos matriculados nas escolas públicas do Espírito Santo, 71.493 foram aprovados e 45.804 reprovados (Estado do Espírito Santo, 1961).
Perante essa situação, duas medidas foram adotadas nesse estado para solucionar o problema da reprovação escolar, que produz, entre outros, em princípio, distorção idade-série, dificuldades no fluxo escolar e exclusão das crianças dos processos educativos escolares. Como mencionado, as medidas consistiram na adoção de critérios para formação de turmas homogêneas e de avaliação da aprendizagem, as quais foram colocadas em prática nos anos de 1960 e 70 pela Secretaria de Estado da Educação e Cultura do Espírito Santo.
Atualmente, há estudos que se dedicaram a investigar a alfabetização nas décadas de 1960 e 70, abrangendo, desse modo, o período ditatorial militar, que impôs limites severos aos processos de democratização nacionais. Entre esses estudos, podemos citar Mortatti (2000), Cardoso (2011) e Dornfeld (2013). A investigação de Mortatti (2000) abrangeu um período mais amplo (1876 a 1994) e, dessa forma, compreendeu análises da história da alfabetização no estado de São Paulo no período da ditadura militar (1964 a 1985). Esse trabalho inaugurou os estudos no campo da história da alfabetização no Brasil e foi marco fundamental para que outros pesquisadores passassem a se interessar e realizar estudos sobre a história da alfabetização. O segundo discutiu a cartilha Ada e Edu, adotada no estado do Mato Grosso, no período de 1977 a 1985. O terceiro deteve-se a analisar os guias curriculares adotados no estado de São Paulo para organizar o ensino nas classes de alfabetização, principalmente na década de 1970.
De maneira geral, como demonstram os três estudos mencionados, grande parte das investigações no campo da história da alfabetização se dedicou a analisar, em diferentes momentos da história, cartilhas e métodos para o ensino da leitura. O estudo de Dornfeld (2013) analisa prescrições advindas da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo relativas ao currículo. Este texto, como mencionado, também teve essa finalidade, isto é, analisar ações oriundas do órgão gestor estadual da educação, porém limitou-se aos critérios de formação de turmas e avaliação, ações pouco exploradas na literatura acerca da história da alfabetização. A avaliação ainda continua central nas políticas de alfabetização nacionais e internacionais até os dias atuais.
As análises elaboradas neste artigo resultam de uma pesquisa documental que tomou como fonte documentos/textos produzidos nos anos de 1960 e 70 para orientar ações que incidiram nas escolas públicas capixabas. Conforme Bakhtin (2003), o texto (escrito ou oral) utiliza o sistema da língua para produzir significados. Como unidade de significação, é um produto de criação ideológica e, assim, só pode ser compreendido/estudado em relação com a sociedade, ou seja, com o contexto histórico, cultural, social, político, econômico, religioso etc. em que foi produzido. O texto constitui-se no diálogo entre interlocutores e com outros textos. As fontes analisadas podem ser classificadas, de acordo com Mortatti (2000, p. 30), como primárias ou diretas, pois “se trata de documentos produzidos pelos sujeitos do momento que estiver sendo focalizado (sujeitos da época)” (Mortatti, 2000, p. 30). Os textos/documentos explorados neste artigo respondem à necessidade de sanar o que era considerado um dos mais graves problemas da educação nacional e do Espírito Santo: a repetência, sobretudo na 1ª série.
Tomamos como referencial teórico para as análises textos escritos de Mikhail Bakhtin, principalmente aqueles que ajudam a pensar a formação das crianças e as possibilidades de ações, como as adotadas no Espírito Santo, contribuir para enformar positivamente as crianças para vida social e comunitária.
CRITÉRIOS DE FORMAÇÃO DE TURMAS
A formação de turmas homogêneas, com base em critérios previamente estabelecidos, visava elevar o número de aprovações, criando, supostamente, condições para que a aprendizagem ocorresse de modo satisfatório. Para realizar a classificação das crianças da 1ª série, conforme as turmas que deveriam frequentar, no Espírito Santo, de acordo com orientação da Secretaria de Estado da Educação e Cultura, era utilizado o Testes ABC, de Lourenço Filho. Essa orientação, já adotada em anos anteriores, em 1961, foi encaminhada aos diretores das escolas, por intermédio da Circular nº 2, de 23 de janeiro de 1961 (Estado do Espírito Santo, 1961), do Departamento de Orientações e Pesquisas Pedagógicas:
1ª série - Alunos iniciantes - A seleção deverá ser feita pela aplicação dos Testes ABC, de Lourenço Filho, em classes de nível superior, médio, inferior e imaturos.
2ª, 3ª, 4ª, e 5ª séries - Os alunos serão classificados pela média final, em turmas fortes, médias e fracas.
Sempre que possível, os repetentes constituirão classes especiais, em todas as séries, principalmente os de 1ª série, que deverão merecer particular atenção de V. S. (Estado do Espírito Santo, 1961)
O Testes ABC foi criado por Manoel Bergström Lourenço Filho, em 1928. Como salientado pelo próprio autor, no livro intitulado Testes ABC: para a verificação da maturidade necessária à aprendizagem da leitura e da escrita, reeditado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em 2008, os testes visam “a verificar nas crianças que procuram a escola primária o nível de maturidade requerido para a aprendizagem da leitura e da escrita” (Lourenço Filho, 2008, p. 15) e, também, permitem classificar as crianças em três grupos:
Os que, nas condições comuns do ensino possam rapidamente aprender, ou seja, num só semestre letivo; os que normalmente venham a aprender no decurso de todo o ano; e, enfim, as crianças menos amadurecidas, que só lograrão a aquisição da leitura e da escrita, nesse prazo, quando lhes dediquemos atenção especial, em exercícios preparatórios, adequadas condições de motivação ou, mesmo, certo trabalho corretivo. (Lourenço Filho, 2008, p. 15)
Desse modo, os testes proporcionavam não somente o diagnóstico dos níveis de maturidade, mas possibilitavam ainda prever o trabalho escolar, com base no prognóstico das capacidades de aprendizagem das crianças. Segundo esse autor, o teste classificava as crianças em normal, infranormal ou supernormal. Essa classificação propiciava a organização das turmas de modo homogêneo. Para Lourenço Filho (2008), o processo de seleção era a novidade apresentada no seu material, se comparado com o postulado da escola nova quanto à organização racional das classes.
Apesar de o autor mencionar a formação de três grupos homogêneos decorrentes da aplicação dos testes, a Secretaria de Estado da Educação e Cultura orientava a formação de quatro turmas, definidas de acordo com os níveis superior, médio, inferior e imaturo. Desse modo, podemos inferir que as crianças imaturas eram diagnosticadas como incapazes de aprender em um ano escolar, mesmo quando dedicada a elas atenção especial. Nesse caso, passariam a integrar as classes especiais ou de crianças repetentes. Do segundo ano em diante, as crianças eram reagrupadas conforme a nota final, ou seja, as que obtivessem as melhores notas ficariam em turmas fortes, com notas médias nas turmas médias e com notas baixas em turmas fracas.
Sob o prisma da teoria do dom, que busca explicar as causas do fracasso escolar nas características individuais do aluno, os Testes ABC propunham formas organizativas das turmas, indicando que havia mais probabilidade de as crianças aprenderem a ler se fossem separadas em classes homogêneas. “Os mestres conhecedores de sua arte sabem das vantagens de tratar um grupo homogêneo, ao invés de tratar com um grupo de crianças de aptidões diferentes” (Lourenço Filho, 2008, p. 83). Para esse autor, o fracasso ou mesmo a dificuldade de aprendizagem resulta de diferenças individuais, que, por sua vez, decorrem do nível de maturidade de cada aluno, defendendo a ideia de que a aprendizagem deve ser individualizada.
A tentativa de homogeneização das turmas baseava-se, como pode ser notado, em caracterizações/definições das crianças estabelecidas previamente, principalmente psicológicas. Tais definições, vistas como verdades sobre os sujeitos, os impediam de ir além, atravessar os desígnios impostos. Ou seja, impunham limites para as suas possibilidades de crescimento. O valor estético do nosso corpo, belezas e feiuras, as nossas capacidades e incapacidades chegam até nós, enformando o nosso ser, pelos outros. Como assinala Bakhtin (2003, p. 46): “Os diversos atos de atenção, de amor e reconhecimento do meu valor a mim dispensados por outras pessoas e disseminadas em minha vida como que esculpiram o valor plástico do meu corpo exterior”. Em oposição, expressões como turmas dos infranormais, dos fracos e dos inferiores chegam até as crianças não como gestos de amor, atenção e reconhecimento do seu valor, mas como estigmas que produzem cicatrizes profundas que impedem, de maneira especial as crianças pobres, de ir além, de transgredir os limites que a escola e a vida lhes impõem, enformando negativamente a imagem que elas possuem de si mesmas.
Na correspondência enviada aos diretores de escolas, chama a atenção o fato de a regência de turmas fracas ser vista como uma ameaça à carreira do professor. Por isso, recomendava-se que as turmas fracas ficassem a cargo de professores que não necessitassem mais angariar pontuação para participar de concursos de remoção. Naquela época, a produtividade, ou seja, o número de alunos aprovados, contava pontos para a classificação em concursos de remoção de cadeira. Nessa direção, o texto da correspondência salientava:
A fim de evitar futuras queixas ou reclamações dos regentes de classe, sugerimos que as turmas fracas sejam confiadas, de preferência, aos professores já estabilizados no cargo e no estabelecimento e que, por conseguinte, não dependem de quantitativos para efetivação ou remoção. (Estado do Espírito Santo, 1960)
A Lei nº 549, de 7 de dezembro de 1951, em vigor na década de 1960, que criou mecanismos de controle de rendimento e frequência para o concurso de remoção, estabeleceu parâmetros que vinculavam a classificação nos concursos ao objetivo maior dessa lei, que era o aumento da frequência à escola pelos professores e com rendimento satisfatório dos alunos. Para obter boa classificação no concurso de remoção, era privilegiado o seguinte elemento: “Rendimento escolar, conferindo-se dois pontos por aluno aprovado, acrescentando-se ao total mais dois, cinco, oito ou dez pontos, conforme se trate de escola ou classe de 2ª, 3ª, 4ª ou 5ª entrância, respectivamente” (Estado do Espírito Santo, 1951).
A preocupação com os professores que regeriam as turmas fracas demonstra que havia pouca confiança por parte da Secretaria de Estado da Educação e Cultura e dos professores na possibilidade de essas turmas obterem bom rendimento e de as crianças serem aprovadas no fim do ano, apontando para a perversidade das classificações que condenam previamente muitas crianças ao fracasso. Ironicamente, como escrito na correspondência aos diretores escolares, as orientações para a formação de turmas visavam:
Beneficiar a criança;
Facilitar o trabalho do mestre na classe;
Elevar o padrão do ensino nas escolas;
Levar o professorado a alcançar melhores resultados no rendimento escolar. (Estado do Espírito Santo, 1960)
Bakhtin (2010), ao analisar a forma como Dostoievski tratava as personagens dos seus romances, criou um conceito central em sua obra que é o inacabamento, a inconclusividade do ser humano, dos sujeitos. Dostoievski, assim como Bakhtin, também tinha uma atitude negativa ante a psicologia de seu tempo, que coisificava a alma do ser humano, causando-lhe humilhação, desprezando a sua liberdade, a sua inconclusividade. Contrapondo-se ao determinismo em alguns campos da psicologia, a “ênfase principal de toda a obra de Dostoiévski, quer no aspecto da forma, quer no aspecto do conteúdo, traduz uma resistência contra a coisificação do homem, das relações humanas” (Bakhtin, 2010, p. 71, grifos do original). Desse modo, as opiniões das personagens coincidem com a aversão do próprio Dostoievski pela psicologia de sua época, cujo sistema determinista buscava produzir um acabamento e a conclusão dos sujeitos independentemente da sua vontade. Os critérios de formação de turmas, sugeridos pela Secretaria de Estado da Educação e Cultura, partiam de teorizações no campo da psicologia que definiam as crianças previamente e impunham limites para suas possibilidades de desenvolvimento, considerando níveis de maturidade testados pelo Testes ABC.
Mais tarde, as turmas passaram a ser formadas observando-se o critério idade, pois a própria psicologia, especialmente a genética, evoluiu no sentido de determinar níveis de desenvolvimento de acordo com esse fator. Conforme evidencia a Circular nº 61, de 1968 (Estado do Espírito Santo, 1968), os testes de maturidade deveriam ser abandonados, passando a formação de turmas a orientar-se segundo a idade cronológica das crianças.
AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM
No início da década de 1960, o currículo do ensino primário no Espírito Santo abrangia as disciplinas Língua Vernácula, Conhecimentos Gerais e Matemática. Assim como o currículo visava manter a uniformidade dos conhecimentos aprendidos, as provas também passaram a ser utilizadas como mecanismo de controle do ensino-aprendizagem com vistas à melhoria do rendimento escolar das crianças da 1ª série. Além das orientações para os professores no sentido de ajudá-los a aplicar as provas, uma única prova final para cada série era elaborada pela Secretaria de Estado da Educação e Cultura e encaminhada a todas as escolas.
Nas instruções para a prova de leitura oral, do documento intitulado Instruções referentes à prova de leitura oral - 1ª série primária, constam as seguintes orientações: o valor da prova é 100 pontos e a nota obtida na prova de leitura oral deve ser somada à média da prova escrita e dividida por 2 (Estado do Espírito Santo, 1967b). O resultado final, então, é a média das duas provas. No que se refere à aplicação da prova oral, tudo deveria ser feito cuidadosamente, segundo o seguinte ritual:
II - Aplicação da prova de Leitura Oral.
a) Os alunos serão chamados, dois de cada vez, na ordem em que figuram na lista de exames. O examinador dará ao primeiro a folha 1, e ao segundo, a folha 2.
b) O aluno receberá o texto para prévio, dizendo-lhe, antes, o examinador: “Leia, para você, com muita atenção, tudo o que está escrito nessa fôlha (indicar a fôlha correspondente a cada aluno); quando acabar, avise-me”.
c) O segundo aluno deverá sentar-se no fundo da sala, sendo chamado para junto do examinador quando o primeiro aluno tiver acabado a prova.
d) Depois que o primeiro aluno tiver terminado o estudo do texto de leitura (tempo máximo: 10 minutos), o examinador dirá: “leia, em voz alta, esta historieta” - (mostrar).
e) Durante a leitura o examinador não intervirá quando o aluno incidir em qualquer erro, limitando-se discretamente, a anotações em listas previamente preparados, que lhe facilitem o julgamento posterior. Deverá, no entanto, estimular o aluno a prosseguir na leitura, quando sentir que, embora tenha parado, seja capaz de ler até ao fim.
f) Acabada a leitura, o examinador fará, oralmente, as perguntas correspondentes ao trecho lido que figuram nas presentes instruções e escreverá na lista de exame, cujo modelo enviamos junto, os pontos obtidos pelo aluno. (Estado do Espírito Santo, 1963, p. 1, grifo nosso)
Dessa forma, para ler oralmente para o professor, as crianças recebiam um pequeno texto, denominado de historieta, e tinham a oportunidade de o ler primeiramente de forma silenciosa para depois o ler para o professor. Assim, o teste de leitura final era baseado em um pequeno texto, e não em palavras e frases, como proposto em outros momentos pela Secretaria de Estado da Educação e Cultura.
As provas parciais eram elaboradas pelos professores nas escolas e passavam por análises da professora encarregada pela Secretaria de Estado da Educação e Cultura para avaliar a qualidade dos textos de provas aplicadas. O resultado da análise era informado às escolas pela Divisão de Orientação e Pesquisas Educacionais, com indicações das falhas mais comuns encontradas nas provas.
Provas excessivamente longas;
Questões não ligadas ao interesse infantil;
Ausência de exercícios de composição;
Ausência de certa escala de dificuldades;
Falta de variedade nos tipos de exercícios;
Falta de técnica na organização de alguns dos exercícios;
Ausência de leitura silenciosa. (Estado do Espírito Santo, 1963, p. 2)
Conforme escrito, na análise das provas, foi apontada ausência de exercícios de composição, de leitura silenciosa e, também, não havia questões que levavam em conta os interesses das crianças. Os demais aspectos assinalados dizem respeito à técnica de elaboração de provas e de itens de testes. Pelas falhas dos instrumentos avaliativos, os professores eram orientados quanto à técnica de elaboração. Assim, ao organizar as provas, os professores deveriam levar em conta:
1 - Uma escala de dificuldades bem ampla, incluindo algumas questões fáceis, médias e difíceis. O predomínio deverá ser de questões de dificuldade média. Há quem afirme com segurança que uma prova bem dosada é formada de:
10% de assuntos indispensáveis
15% de assuntos complementares
5% de assuntos minuciosos
2 - Um número de questões relativo ao nível da classe:
Para o 1 o ano:
LÍNGUA VERNÁCULA - 7 questões a saber:
Leitura silenciosa ...................................... (1)
Exercícios de gramática ............................ (3)
Ditado ........................................................ (1)
Composição ............................................... (1)
Cópia de seis linhas, de preferência, com letra de imprensa para ser copiada com letra cursiva ............................ (1). (Estado do Espírito Santo, 1963, p. 3, grifos do original)
Além de orientações para aplicação da prova de leitura e elaboração das provas parciais, eram enviadas às escolas que alcançassem resultados satisfatórios mensagens oficiais parabenizando-as por esses resultados. Isso é indicado por meio da Circular nº 15, de 11 de dezembro de 1962, da Divisão de Orientação e Pesquisas Pedagógicas, dirigida ao diretor do Grupo Escolar Prof. Augusto Luciano.
Ao enviar a V. Sª os mínimos de aprovação, vimos apresentar-lhe os nossos efusivos agradecimentos, extensivos a toda equipe desse estabelecimento, pelos trabalhos realizados durante o decorrer do ano letivo de 1962.
A Divisão de Orientação e Pesquisas Pedagógicas avalia, pelas informações recebidas, o trabalho desenvolvido em nossas escolas. Sente a sua grandeza. O espírito de sacrifício, o idealismo que o impregna. É mister agradecer. (Estado do Espírito Santo, 1962, p. 1)
Todavia, chegou um momento em que houve falta de recursos financeiros para a realização de postagem de correspondências para as escolas, incluindo a postagem das provas elaboradas pela equipe da Secretaria de Estado da Educação e Cultura. Diante disso, foi necessário autorizar as escolas a elaborar também as provas finais. A Circular nº 16/65, da Divisão de Orientação e Pesquisas Educacionais, oficiou essa autorização e determinou que o diretor deveria elaborar a prova sozinho ou com a equipe de professores. Se fosse feita com a equipe, era preciso a atenta supervisão do diretor da escola. Para ajudar a organizar as provas, a circular sugeriu a busca de documentos orientadores do trabalho de formulação das provas:
- a separata do “Boletim” nº 61, que ora enviamos;
- Boletins nº 8, 30, 36, que contém trabalhos relativos à organização de provas;
- Sugestões de exercícios para as diversas séries (Boletins 51, 52, 53, 54 e 55);
- folheto: “Leia! Isto interessa a você - 1963”. (Estado do Espírito Santo, 1965)
A indicação de orientações para a formulação das provas parciais e finais fundamentava-se na ideia de que instrumentos de avaliação mal preparados e mal dosados poderiam contribuir para elevar os índices de reprovação na 1ª série.
De modo geral, os documentos orientadores recomendavam que as questões deveriam estar ligadas ao interesse infantil. Nesse sentido, assinalavam: “Deve-se ter cuidado ao selecionar os trechos para o ditado, leitura silenciosa, observar se estes correspondem ao gosto infantil. Dentro deste princípio é aconselhável abolir os ditados de palavras soltas ou excessivamente longas” (Estado do Espírito Santo, 1965, p. 17-18). Sobre a composição, esclareceu que todo o tipo de “redação [...] envolve desde a formação de sentenças, organização de historietas, narrativas, interpretação, bilhetes, cartas, ofícios etc.” (Estado do Espírito Santo, 1965, p. 18).
Com base no princípio de que “ler é interpretar”, para a avaliação da leitura silenciosa, era oferecida uma escala de dificuldades com questões mescladas entre fáceis, médias e difíceis, posto que as questões mais difíceis exigem maior esforço mental da criança, resultando num cansaço que poderia interferir na qualidade do trabalho da criança, motivando um falso resultado do seu aproveitamento escolar.
Nos conhecimentos exigidos em uma prova final da 1ª série pela Secretaria de Estado da Educação e Cultura, estava, de certa maneira, conformado o currículo da alfabetização, bem como os parâmetros para se considerar um aluno alfabetizado. Este seria aquele que fosse capaz de ler silenciosamente um texto e responder a perguntas oralmente ou por escrito. Além disso, deveria resolver atividades de gramática, escrever palavras ou frases ditadas pelo professor, escrever uma composição para verificação da grafia. Esses critérios deveriam ser cuidadosamente levados em conta no momento da avaliação. Os alunos que não demonstrassem esses conhecimentos na prova seriam avaliados como analfabetos e, portanto, estariam reprovados.
Os textos da avaliação deveriam ser escolhidos para proporcionar leitura prazerosa com mensagens positivas para as crianças. Nesse sentido, havia orientações sobre o que é aconselhável e desaconselhável conter em um texto para crianças, conforme transcrevemos no Quadro 1.
De acordo com o exemplo contido no Quadro 1, o texto escrito na primeira coluna é desaconselhável para uma prova, e o da segunda coluna, aconselhável. O primeiro trata da doença do pai da personagem Lina, portanto, de algo negativo que pode influenciar emocionalmente a criança no momento da realização da prova, repercutindo de forma negativa nos seus resultados. O segundo, escrito na segunda coluna, tem uma mensagem positiva. Esta poderia contribuir para o bom ânimo dos alunos e, por consequência, para o bom resultado das avaliações. Além disso, o primeiro texto é composto de pequenas frases, e, no segundo, há um diálogo e sinais de pontuação, travessão etc. Apesar de o segundo texto ter características distintas do primeiro, não podemos dizer que é um enunciado, ou seja, uma unidade da comunicação discursiva. Criado apenas para avaliação, não possui autoria, não permite respostas nem responde a outros textos ou perguntas que as crianças tenham feito. Como assinala Bakhtin (2003, p. 381): “Aquilo que não responde a nenhuma pergunta não tem sentido para nós”.
Os resultados da avaliação eram registrados no boletim do resultado final, como mostra a Figura 1.
Como pode ser lido no boletim de resultado final, das 32 crianças matriculadas, ou das matrículas efetivas, 23 foram consideradas analfabetas. Em virtude do insucesso das medidas adotadas para elevar o índice de alfabetização, a Secretaria de Estado da Educação e Cultura assumiu novas normas de avaliação, mais flexíveis, conforme Resolução do Conselho Estadual de Educação (CEE) nº 30, de 12 de outubro de 1966 (Estado do Espírito Santo, 1966), estabelecendo que a prova oral não teria mais caráter eliminatório, isto é, não reprovaria sozinha, mas deveria ser coadjuvante na determinação da média final. Os novos critérios envolviam leitura de textos compostos de seis frases. Cada frase lida com clareza e correta expressão valeria 2 pontos. Assim, a nota da prova oral era somada à média da prova escrita e dividida por 2. O resultado final, então, era a média das notas obtidas nos dois exames. A partir de então, o sistema de promoção e de avaliação do rendimento escolar, das provas e dos exames passou a ser atribuição das escolas.
Dessa forma, a permissão de as escolas elaborarem as provas deixou de ser uma situação contingencial para se tornar norma, passando as escolas a assumir toda a responsabilidade pelo sistema de promoção e de avaliação do rendimento escolar, das provas e dos exames. A ficha que segue mostra uma das maneiras utilizadas para verificar o desempenho em leitura oral (Figura 2).
*A parte branca foi inserida para preservar a identidade dos alunos. Fonte: acervo pessoal digitalizado.
Os números evidenciam mudanças nos resultados, porém o documento intitulado Instruções Gerais para a apuração do rendimento escolar dos grupos escolares, escolas reunidas e cursos supletivos noturnos doEstado do Espírito Santo (1967b) mostra não haver nenhuma ação no tocante à intervenção pedagógica para atendimento aos alunos que permaneciam sem aprender a ler e a escrever: Os alunos que fossem julgados improváveis pelo regente de classe, visto que, se promovidos, constituirão problema para o regente do 2º ano, não serão obrigados aos exames, sendo considerados como “ANALFABETOS” (Estado do Espírito Santo, 1967b, p. 3). Nesse sentido, permanecia a orientação de que só deveriam ser alistáveis para exames os alunos que já soubessem ler e escrever, pois a promoção deles representava problemas para os professores.
Partindo do princípio de que as palavras são “fenômeno ideológico por excelência” (Bakhtin e Volochinov, 2004, p. 36) e que possuem a capacidade de refletir e refratar as condições de produção sócio-históricas constituídas do discurso, pensamos que a exclusão dos alunos analfabetos da lista dos que podiam ser submetidos à prova de leitura é um fragmento material da maneira como esses alunos e essas pessoas eram concebidos na escola e na sociedade. Na história das próprias Constituições brasileiras e nas relações que elas estabeleciam com os sujeitos analfabetos, encontramos formas de conceber esses sujeitos, as quais tinham repercussão geral na sociedade.
A primeira Constituição de 1824, outorgada por D. Pedro I, considerava cidadãos brasileiros os nascidos no Brasil, “quer sejam ingênuos1, ou libertos” (Brasil, 1824). Nessa carta, não se fazia diferença dos alfabetizados ou não. Na segunda Constituição, de 1891, iniciou-se o estigma aos analfabetos, fixando que mendigos, analfabetos e soldados não podiam alistar-se como eleitores. A Constituição promulgada de 1934 ratificava essa norma, dispondo que não podiam alistar-se para eleitores os que não soubessem ler nem escrever. A Constituição de 1937 retornou com o termo analfabeto. Esse mesmo termo repetia-se nas Constituições de 1946 e de 1967. Na atual Constituição de 1988, que devolveu ao país o Estado democrático de direito, o voto do analfabeto é facultativo, ou seja, dito de outro modo, não é necessário. O fio histórico em torno das subjetividades produzidas sobre o analfabetismo explica porque essa prática de exclusão dos analfabetos, até mesmo como a do direito de participar de uma avaliação, estaria arraigada na cultura da escola, a qual legitima a seletividade social.
Como dito, as orientações da Secretaria de Estado da Educação e Cultura sobre a avaliação se voltavam para o aspecto mais formativo e processual do que classificatório. É o que mostra as recomendações legais do Sistema de Ensino, segundo a Lei nº 2.227/67, mais precisamente o art. 55.
A apuração do rendimento escolar ficaria a cargo dos estabelecimentos de ensino, sob orientação da Secretaria de Estado da Educação e Cultura.
§ 1º Na avaliação do aproveitamento do aluno, preponderarão os resultados alcançados durante o ano letivo, nas atividades escolares, assegurada ao professor autoridade de julgamento.
§ 2º A avaliação do rendimento de aprendizagem envolverá apreciação sobre todos os aspectos implícitos na educação integral, abrangendo não só a avaliação de conhecimento, mas também a de atitude e hábitos, habilidades e formas de comportamento consentâneo com os fins educacionais. (Estado do Espírito Santo, 1967a)
Incluíram-se, como critério avaliativo, além do conteúdo escolar, outros aspectos, como atitudes, hábitos, habilidades e formas de comportamento consideradas adequadas. A ideia de inserir elementos vinculados a atitudes e comportamentos acrescentava à avaliação um caráter mais flexível e subjetivo, ficando o professor com a tarefa de decidir quem deveria ou não ser aprovado. Abria-se, com isso, uma brecha para a diminuição do índice de reprovações na 1ª série.
Com relação à prova oral, houve diminuição no nível da exigência da capacidade de leitura, como forma de facilitar a realização das provas pelas crianças. Os professores deveriam atribuir mais pontos à leitura de palavras e reduzir os pontos na leitura de frases. Nessa nova lógica avaliativa, a leitura como decodificação ganhou mais força. Ou seja, o código passou a ser enfatizado, apesar de ser “apenas um meio técnico de informação [...] [não tendo, portanto,] significado criador cognitivo” (Bakhtin, 2003, p. 383). As leituras de historietas contidas nas orientações anteriores foram substituídas pelas de frases e palavras. As palavras cobradas na prova oral não estavam vinculadas a nenhum contexto, como também não pertenciam a um campo semântico, e variavam desde palavras monossílabas a polissílabas, com variadas acentuações tônicas (Figura 3).
A exigência do nível de leitura cobrada na prova oral associava-se às demandas do que deveria ser compreendido pelos sujeitos considerados alfabetizados, no entanto focar a leitura apenas em palavras diminuía a exigência do nível de compreensão do que se lia e criava mais facilidades ao aluno e, dessa forma, melhorariam os índices estatísticos. Graff (1994) ajuda-nos a refletir que, além da questão pedagógica, implícita nos encaminhamentos da avaliação, havia também uma questão ideológica e política, pois, segundo esse autor, ao longo da história da alfabetização a leitura e a escrita foram objetos de controle dos grupos dominantes. Apesar de estarem disponíveis, deveriam ser organizadas, protegidas e até mesmo cerceadas. Nesse sentido, a leitura como compreensão, na nova perspectiva avaliativa da Secretaria de Estado da Educação e Cultura, deixou de ocupar lugar central no processo avaliativo, abrindo espaço para uma leitura mecânica e descontextualizada. Além da questão ideológica posta, sugeria mudanças pedagógicas, uma vez que os dados apresentados em fichas anteriores à vigência dessas normas evidenciavam o grande número de reprovações, não esquecendo, portanto, que muitos alunos nem sequer eram alistados para a prova. Mudaram-se, nesse contexto, tanto o conteúdo quanto a forma.
Para diminuir ainda mais os altos índices de reprovação, a Circular nº 61/68 (Estado do Espírito Santo, 1968), emitida pela Divisão de Ensino Primário, informou que os alunos de 1ª série deveriam ter notas somente de agosto a dezembro e que a média final seria somada e dividida por 5. Essa orientação estava de acordo com a programação curricular de ensino da leitura e da escrita previamente determinada. Pelo programa de ensino adotado, até o mês de agosto, todos os alunos já estariam lendo palavras. Logo, com a avaliação dos alunos feita a partir desse mês, as notas obtidas contribuiriam para um resultado positivo na média final.
Com a promulgação da Lei nº 5.692/71 (Brasil, 1971), foi instituída no Espírito Santo a modalidade chamada avaliação somativa, para verificação da aprendizagem na alfabetização. No programa de formação de professores, denominado de Avaliação e Recuperação no Processo Ensino-Aprendizagem, realizado pelo Departamento de Apoio Técnico da Secretaria de Estado da Educação e Cultura, essa modalidade de avaliação era explicada. Assim, segundo escrito no texto intitulado “Avaliação somativa”, esta deveria ser aplicada após a introdução de um bloco de unidades de estudo ou ao fim de um bimestre, com o objetivo de verificar a aprendizagem dos conteúdos trabalhados nessas unidades. A adoção da avaliação somativa tinha como finalidade prover uma base objetiva para a determinação de conceitos, uma vez que os testes formativos propunham apenas guiar o ensino e não deveriam ser usados para atribuir conceitos. Desse modo, a avaliação somativa forneceria ao sistema escolar dados que permitiriam uma visão global do processo das várias classes, no tocante aos propósitos do bloco de unidades ou do bimestre.
Os instrumentos que faziam parte da nova sistemática de avaliação eram fichas destinadas ao acompanhamento do aluno. Nesse sentido, o referido programa de formação orientou o professor que, antes de iniciar o processo de ensino da leitura e da escrita propriamente dito, era necessário focar a avaliação nos aspectos sensoriais, tais como:
discriminação visual com as habilidades: tamanho, forma, cor, posição, detalhes, sinais gráficos, figuras fundo, memórias visuais;
discriminação auditiva com as habilidades: sons não orais, sons orais, memória auditiva;
coordenação espaçotemporal com as habilidades: análise e síntese, esquema corporal, tato, olfato e paladar, posição e direção, tempo;
coordenação motora, com as habilidades: amplo e fino;
expressão oral com habilidades de organização de ideias, linguagem correta, compreensão das ideias em frases completas.
Para a avaliação das habilidades sensoriais, o professor deveria utilizar a Ficha de registro de habilidades fundamentais para o início da leitura e da escrita, que contemplava cada uma das habilidades descritas.
Assim que o professor trabalhasse esse bloco de habilidades, procederia à avaliação somativa preparatória. Só eram consideradas aptas a iniciar o processo de aprendizagem da leitura e da escrita as crianças que dominassem as habilidades perceptivas e sensoriais. É necessário salientar que as crianças tidas como analfabetas, na década de 1960, conforme sistemática de avaliação adotada, não realizavam os testes ou as provas finais; somente aquelas avaliadas como aptas pelo professor eram submetidas a essas provas. Com a modalidade de avaliação somativa implementada na década de 1970 e com base na noção de prontidão assumida, crianças passaram a ser impedidas de começar o processo de alfabetização propriamente dito enquanto não demonstrassem domínio de habilidades sensoriais vistas como requisitos para a aprendizagem da leitura e da escrita.
Logo que o aluno atendesse aos requisitos de prontidão para a leitura e a escrita, o professor deveria conduzir o processo de ensino-aprendizagem, com foco nos objetivos a serem avaliados e nos tipos de questões especificados em ficha de acompanhamento, descrito no Quadro 2.
Os objetivos de aprendizagem, assim como os tipos de questões, demonstram o acento sobre a leitura e escrita de palavras cujo domínio se constitui do reconhecimento de sílabas. Como mencionado, o foco sobre a leitura e escrita de palavras, consideradas como atividades mais fáceis que a escrita e leitura de frases e textos, poderia contribuir para a elevação dos índices de aprovação.
Para acompanhamento da aprendizagem da leitura e da escrita, o professor recebia uma ficha, com uma listagem de objetivos a serem alcançados na 1ª série. À medida que determinada criança fosse atingindo-os, o docente marcaria com um X na direção do objetivo e sob o nome do aluno. Os objetivos propostos estão escritos na ficha reproduzida na Figura 4.
Os objetivos descritos na ficha indicavam não só o que seria avaliado, mas também definiam a gradação do ensino: vogais, encontros vocálicos, sílabas, palavras formadas com as sílabas em estudo, leitura de frases e pequenos textos. Chama a atenção na avaliação o fato de esta passar a valorizar mais a leitura e a escrita de palavras, sílabas e frases. Diante da impossibilidade de criar mecanismos que elevassem a aprendizagem, criaram-se formas que facilitavam a elevação dos índices de aprovação pela via do rebaixamento do que era requerido para progredir nos estudos.
Considerando que a avaliação determina o que é ensinado na escola, podemos inferir que esses objetivos conformavam as práticas educativas dos docentes. Se, por um lado, a formação de turmas se baseava em critérios construídos à revelia dos sujeitos, por outro os objetivos descritos na ficha de acompanhamento inicial da leitura eram elaborados fundamentados em uma concepção de linguagem “como um sistema de normas fixas, objetivas e incontestáveis” (Bakhtin e Volochinov, 1992, p. 92) que precisam ser aprendidas pelos sujeitos. Dessa maneira, a avaliação parte da aferição da aprendizagem das unidades mais abstratas da língua, como sons e seus respectivos correspondentes gráficos, e das sílabas. Essas unidades não fazem sentido para as crianças, pois, como mostram Bakhtin e Volochinov (1992, p. 92-93), o que importa para o usuário da língua e, consequentemente, para o aprendiz da linguagem escrita “não é o aspecto da forma linguística que, em qualquer caso em que esta é utilizada, permanece sempre idêntico [...]. O que importa é aquilo que permite que a forma linguística figure em um dado contexto, aquilo que a torna um signo adequado às condições de uma situação concreta”.
Contraditoriamente, nas escolas, por imposição dos órgãos gestores da educação, crianças abstratamente concebidas aprendem um sistema linguístico também abstrato. Nesse contexto, separados tanto os sujeitos como a língua que aprendem da realidade concreta que os constituem, resta por conseguinte o fracasso escolar. A despeito disso, modelos teóricos nos campos da psicologia e da linguística que visam explicar, respectivamente, os sujeitos e a linguagem, baseados em generalizações que ignoram a diversidade essencial de crianças e de linguagens, fundamentaram e continuam a fundamentar a organização das turmas e as avaliações.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como acenado, este artigo teve como objetivo analisar duas ações empreendidas pela Secretaria de Estado da Educação e Cultura para promover a melhoria dos índices de aprovação das escolas públicas do Espírito Santo, nas décadas de 1960 e 70. Assim, foram adotados critérios para a formação de turmas e sistemas de avaliação.
No que se refere à formação de turmas, os critérios implantados seguiam níveis de maturidade das crianças baseados no Testes ABC. No que diz respeito à avaliação, observou-se que o sistema foi modificado nas duas décadas com a finalidade também de proporcionar a elevação dos índices de aprovação. A leitura oral de textos deixou de ter valor, passando a leitura de frases, palavras e sílabas a ser central nas provas, diminuindo, desse modo, a exigência para a aprovação.
Contudo, nem os critérios de formação de turmas nem os sistemas de avaliação adotados no Espírito Santo nos anos de 1960 e 70 contribuíram significativamente para a elevação dos índices de aprovação, porque estavam baseados em princípios que menosprezam as capacidades das crianças pobres, as quais eram reprovadas nas escolas públicas. Para essas crianças, faltavam elementos essenciais para sobrevivência, tais como alimentação adequada, vestimentas, cuidados médicos, saneamento básico etc. No entanto, indiferentemente a essa condição, os órgãos diretores da educação adotavam avaliações e classificações extremamente nocivas à formação desses sujeitos.
Bakhtin (2003), ao discutir o valor que os sujeitos conferem a si mesmos, assinala que esse valor é de “natureza emprestada”, ou seja, advém do reconhecimento do outro. Conforme afirma o autor, os atos de reconhecimento penetram na vida dos sujeitos desde muito pequenos e, sendo assim, “as crianças recebem as definições iniciais de si mesmas” (Bakhtin, 2003, p. 46) por parte das pessoas que convivem com elas. Inicialmente, quando há um meio familiar propício, essas definições, sempre positivas, são formuladas pelos parentes mais próximos (pais e mães).
Na escola, essas definições são difundidas na vida das crianças pelos professores, colegas etc. Assim como as crianças começam “a ver-se pela primeira vez como que pelos olhos da mãe e começa a falar de si mesma nos tons volitivo-emocionais dela” (Bakhtin, 2003, p. 46), na escola as crianças, com base nas avaliações que lhe são feitas, também passam a pensar a si mesmas como a escola as define: fracas, inferiores, imaturas... Essas denominações marcam a vida interior e exterior dos sujeitos, atribuindo-lhes um valor cognitivo que não ajuda a enformá-los positivamente. Conforme acentua Bakhtin (2003, p. 47), o amor da mãe (família) e das outras pessoas “desde a infância forma o homem de fora ao longo de toda a sua vida, dá consistência ao seu corpo interior”.
A frieza com que os órgãos diretores do ensino criam categorias para classificar e avaliar as crianças produzem obstáculos intransponíveis para que estas possam melhorar seu desempenho nas escolas. Como prova disso, até os dias atuais, o maior desafio das escolas, da sociedade e dos governos é a garantia de alfabetização das crianças pobres. Isso porque os cenários mudam, os anos passam, as formas de classificação adquirem bases mais científicas, as avaliações se tornam mais rebuscadas, mas as crianças continuam a ser submetidas a mecanismos estigmatizantes perversos que não contribuem de maneira positiva para formá-las.