INTRODUÇÃO
Este artigo analisa formas históricas e contemporâneas de segmentação da profissão docente no Brasil. Parte do princípio de que a noção de profissionalização sempre esteve presente na organização dos professores desde a constituição dos sistemas escolares, como apontam estudos em diferentes partes do mundo (Nóvoa 1991, 1993; Apple, 1995; Hargreaves, 1998; Contreras, 2002; Lessard e Tardif, 2004; Tenti, 2005). Apesar de conterem especificidades, esses estudos tendem a aceitar que o magistério se constitui como um corpo de trabalhadores que historicamente tem se orientado rumo à profissionalização.
Este texto analisa a profissão docente no Brasil, pela identificação de segmentações históricas que interferiram na constituição dos professores como um grupo profissional homogêneo. Na primeira seção, com base em revisão de estudos históricos, políticos e estatísticos sobre a educação, buscou-se compreender as formas de segmentação que caracterizaram a constituição da profissão docente no país. Argumenta-se que, como em muitos países ocidentais, os professores se tornaram progressivamente reconhecidos como um grupo profissional apenas com a consolidação dos sistemas nacionais de educação, ocorrida no Brasil em meados do século XX (Vicentini e Lugli, 2009). Isso porque os professores somente se tornaram numericamente expressivos com a expansão da educação pública estatal. Para Nóvoa (1987), o processo de profissionalização do professorado fez-se sob a tutela do Estado, ainda que não se deva ignorar o papel desempenhado pelos movimentos associativos forjados desde as décadas iniciais do século XIX.
A profissão docente no Brasil não se estruturou como um grupo homogêneo. Ela caracterizou-se originalmente por distinções significativas, derivadas de maneira especial de três fontes: o modelo federativo da organização estatal brasileira, o desenvolvimento desigual das áreas urbanas e rurais, e a estrutura e organização da educação básica no país. Essas distinções traduzem-se em segmentações da profissão docente, que, apesar das transformações vividas na educação brasileira, sobretudo nos últimos 30 anos, ainda persistem.
Os fatores que determinam a segmentação da profissão docente têm também relação com as formas de contratação, as condições de emprego (se no setor público, se no privado) e ainda as diferenças na sua formação. No que tange à formação de professores, as políticas e instituições formadoras determinam, em grande medida, a estratificação profissional entre os docentes, bem como as condições de acesso à carreira e ao exercício da atividade de ensino. Outro elemento bastante importante, e que também espelha as segmentações mencionadas, são as formas de organização da categoria em defesa de melhores condições de trabalho e remuneração.
Na segunda seção do artigo, é discutido o aparecimento de novas segmentações na profissão docente resultantes das reformas educacionais das últimas décadas. Essas reformas, orientadas pelos princípios da nova gestão pública (NGP), promoveram mudanças importantes na organização e gestão escolar que resultaram em fragmentações dos profissionais docentes.
Na última seção, o texto ressalta a convergência com tendência verificada em nível internacional de maior individualização da profissão docente por meio não só das políticas de responsabilização, mas também das orientações nos processos de formação e carreira.
PROFISSÃO DOCENTE NO BRASIL: UMA HISTÓRIA DE MÚLTIPLAS SEGMENTAÇÕES
As análises sobre a profissão docente no Brasil neste texto tratam de seu desenvolvimento histórico, considerando a referida profissão em suas especificidades e em suas relações com o contexto sociocultural e político, buscando cobrir distintos recortes temporais em uma perspectiva de longa duração.
A Constituição Federal da República do Brasil (Brasil, 1998) estabelece a noção de federalismo cooperativo, que conjuga um poder regulatório central com um poder regional ou local, buscando garantir o que é comum e o que é diferenciado. De acordo com Cury (2016), a dialética entre o comum (nacional) e o diferencial (estadual/municipal) conta com dispositivos que possuem trajetórias históricas que se apoiam em um federalismo educacional, de caráter descentralizado, cujas bases estão no Ato Adicional de 18341.
O papel político desempenhado pelas províncias e pelo Poder Executivo naquele momento era alvo de constantes conflitos que colocavam esses dois polos políticos em oposição. Por um lado, os conservadores defendiam a monarquia constitucional e as suas diretrizes políticas centralizadoras. Em contrapartida, os liberais acreditavam que os poderes régios deveriam sofrer limitações e que as províncias deveriam ter maior autonomia. Essa reforma da Constituição autorizou cada uma das províncias a criar sua Assembleia Legislativa com poderes para legislar sobre economia, justiça, educação. Passados cem anos, a Constituição Federal de 1934 firmou a alçada privativa da União para estabelecer as Diretrizes e Bases da Educação Nacional e determinou ainda ser de sua competência a educação superior e o ensino privado.
Esse regime descentralizado teve efeitos diretos na constituição da profissão docente que podem ser sentidos na atualidade, de maneira especial nas condições sob as quais a educação pública foi desenvolvida nos diferentes estados e municípios, pelo fato de o país ser tão desigual e diverso. A estabilidade das relações de trabalho, dos salários e da promoção de carreira varia de acordo com a capacidade de cada estado e município de financiar a educação, característica persistente aos dias atuais. Embora esteja estipulado na legislação nacional atual que o ingresso na profissão para as redes públicas de ensino deva ser exclusivamente por intermédio de concurso público, garantindo aos professores a condição de funcionários, muitos estados e municípios empregam boa parte de seus professores por meio de contratos temporários.
Essa estrutura torna evidente a oferta múltipla que dá expressão às diferentes segmentações que se refletem na profissão docente. Em primeiro lugar, coexiste um ensino oficial, organizado pelo governo federal ou pelos poderes públicos descentralizados (estados e municípios). Em oposição, o ensino é livre à oferta por instituições privadas, contando em alguns casos com subvenções públicas. Na oferta privada de educação, observa-se a separação entre instituições particulares, comunitárias, confessionais e filantrópicas.
A história da profissão docente no Brasil pode ser compreendida como um processo de construção que abrange um intervalo temporal de cerca de dois séculos. A primeira lei de educação no Brasil data de 15 de outubro de 1827, com base na qual foi definindo-se tipos de formação e especialização, bem como de carreira e remuneração, para determinado grupo social que foi crescendo e consolidando-se.
A educação básica, sendo prioritariamente de responsabilidade dos estados e municípios, tem sua oferta em redes públicas organizadas autonomamente pelos entes federados, respeitando as normas federais, de modo especial aquelas que definem as diretrizes e bases da educação nacional.
De acordo com o Censo Escolar (Brasil, 2019), realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), na distribuição das matrículas por dependência administrativa, percebe-se maior dominância da rede municipal, que detém 47,7% das matrículas na educação básica. A rede estadual foi responsável por 32,9% das matrículas da educação básica, as instituições privadas alcançam participação de 18,6%, e a rede federal tem participação inferior a 1% do total dessas matrículas. Em relação à localização, as matrículas da educação básica são encontradas de forma majoritária na área urbana (88,7%). Nas instituições privadas, 99% das matrículas estão em escolas urbanas. A rede municipal é a que apresenta a maior proporção de matrículas em escolas rurais (19,5%), seguida da rede estadual (5,2%).
No que se refere aos professores da educação básica, eles somavam 2.226.423 em todo o país, conforme o referido Censo Escolar (Brasil, 2019). Na educação infantil, atuavam 589,9 mil professores. Desse total, 69,3% possuía formação em nível superior completo (68,4% em grau acadêmico de licenciatura e 0,9% em bacharelado), 8,1% estava com o curso superior em andamento e 15,8% tinha o curso de ensino médio normal/magistério. Foi ainda identificado nesse total 6,9% com nível médio ou fundamental completo. Desde 2014, tem sido observado crescimento gradual no percentual de docentes com formação em nível superior completo atuando na educação infantil, que passou de 62,5%, em 2014, para 69,3%, em 2018.
No ensino fundamental (Brasil, 2019), atuavam mais de 1,4 milhão de professores, 762,9 mil nos anos iniciais e 763,8 mil nos anos finais. Do total de docentes que atuavam nos anos iniciais, 78,5% tinha nível superior completo (77,3% em grau acadêmico de licenciatura e 1,2% bacharelado), 6,3% estava cursando o ensino superior e 11% tinha o ensino médio normal/magistério. Foram identificados ainda 4,3% desses professores com nível médio ou inferior.
Um total de 513,4 mil professores atuava no ensino médio em 2018. Desse total, 93,9% tinha formação em nível superior completo (88,6% em grau acadêmico de licenciatura e 5,3% em bacharelado) e 3,3% estava cursando nível superior (Brasil, 2019).
Conforme Barreto (2010), os estudos sobre os professores costumam descrevê-los como uma categoria profissional relativamente homogênea, proveniente, em larga medida, dos estratos médios da população, contudo pesquisas mais recentes têm apontado diferenças de renda significativas entre os docentes de acordo com o nível educacional a que se dedicam, a região do país, a dependência administrativa, o setor (público ou privado) e a localização, rural ou urbana, das escolas (Tenti, 2005; Oliveira e Vieira, 2012).
Com base no conceito genérico de profissão como um termo que se refere a atividades especializadas que possuem um corpo de saberes específico e acessível apenas ao grupo profissional, com códigos e normas próprios e que se insere em determinado lugar na divisão social do trabalho (Rodrigues, 2002), este texto discute algumas segmentações que podem ser vistas como desafios que os docentes enfrentam para se constituírem de fato como profissionais. Essas segmentações dizem respeito à sua formação, às condições de trabalho e acesso à carreira, ao exercício das atividades (saberes e práticas) e ao seu status.
A profissionalização docente pode ser compreendida como um movimento de dado grupo de trabalhadores em defesa de reconhecimento social e valor econômico, mas, em razão das distinções e complexidades que comporta, apresenta dificuldades de se identificar como profissão no sentido tradicional. Sendo assim, podemos considerar que é próprio da profissão docente o caráter segmentado.
PROFESSORES URBANOS E PROFESSORES RURAIS
As diferenças entre professores que atuam em centros urbanos e aqueles que trabalham em áreas rurais refletem uma forma histórica e duradoura de segmentação da profissão docente que revela a acentuada desigualdade do país, produto da expansão e consolidação do sistema nacional de educação e rápida urbanização da sociedade brasileira durante o século XX.
Ribeiro (2015), em estudo que focalizou o período de 1910 a 70, explica que a aceleração dos processos de industrialização no Brasil nas primeiras décadas do século XX associada ao surgimento de centros urbanos de médio e grande porte provocou a rápida emigração do meio rural, que, até os anos de 1940, concentrava dois terços da população brasileira. Essa população deslocou-se em busca de trabalho e de melhoria do seu padrão de vida, o que pode ser confirmado pelos índices de alfabetização e de consumo, superiores nas áreas urbanas em relação às rurais.
De acordo com a autora, a educação oferecida no meio rural expressava, até o fim dos anos de 1940, total desconhecimento das questões que se colocavam a essa população. As estruturas precárias em que funcionavam as escolas, o despreparo dos professores, na sua grande maioria leigos, ou seja, sem formação para o exercício do magistério, somados ainda às dificuldades de acesso dos alunos, favoreciam o fracasso da educação rural, evidenciando o grande número de analfabetos. A partir do momento em que o Brasil começou a se desenvolver industrialmente, os centros urbanos começaram a crescer, assim como sua oferta educativa.
No fim da década de 1920, surgiram dois movimentos importantes que influenciaram a educação do meio rural: o nacionalismo e o ruralismo. Como explica Nagle (1974), o nacionalismo contestava a dominação estrangeira por meio do currículo escolar que transmitia à criança uma visão romântica do país. O ruralismo defendia a regionalização do ensino, a exaltação da terra e da gente brasileira, na defesa das ideias “Brasil: país agrícola”, “fixação do homem no campo” e “ruralização do ensino”. Com o fortalecimento das concepções nacionalistas, desenvolveu-se, no país, a ideia do ensino rural voltado à construção de uma identidade do povo e da nação brasileira.
As iniciativas mais importantes para a formação dos professores do meio rural datam dos anos de 1930, como um esforço para a habilitação de docentes leigos rurais, como é o caso da primeira escola normal rural, em Juazeiro do Norte (Ceará), em 1934. Essa instituição de formação de professores surgiu com o movimento de ruralização do ensino primário de 1930, o qual tinha o objetivo de criar cursos especiais normais para docentes leigos rurais, nos moldes de “adaptação curricular”. No entanto, segundo Werebe (1963, p. 221), a escola normal rural não foi avante porque somente um terço dos que se formavam permanecia no campo.
De acordo com Piacentine (2012), apesar de o ensino propriamente rural ter se espalhado no Brasil a partir dos anos de 1940 e 50, as primeiras providências concretas, no que diz respeito à formação de professores leigos que atuavam na zona rural, deram-se somente com a aprovação da Lei nº 4.024, em 1961, que estabeleceu normas quanto à formação do magistério para os ensinos primário e médio.
Ávila (2013) argumenta que, durante muito tempo, os órgãos públicos esqueceram as escolas da zona rural, transformando-as em subproduto das escolas urbanas. Por não ter formação adequada, os professores das escolas rurais não respeitam o universo cultural para o qual ensinam. Destaca que os indicadores da educação rural são sempre os piores. Na zona rural, é muito comum as escolas com classes multisseriadas, sob a orientação de uma única professora ministrando aulas de 1ª a 4ª série do ensino fundamental, e que desenvolvem seus estudos de acordo com planos semanais.
As classes multisseriadas são predominantes nas escolas rurais, e a maior parte localiza-se nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país. Para Hage (2010), o trabalho docente nas escolas com turmas multisseriadas se caracteriza pela sobrecarga de atividades, pela instabilidade no emprego e por angústias relacionadas à organização do trabalho pedagógico. Nessas classes, uma única professora atua em múltiplas séries concomitantemente, reunindo estudantes da pré-escola e dos anos iniciais do ensino fundamental em uma mesma sala. Ressalta ainda que a professora é obrigada a assumir outras funções além da docência, tais como: merenda, limpeza da escola e atividades de secretaria e de gestão. O autor salienta que essas professoras são, em sua maioria, temporárias e, por esse motivo, sofrem pressões de gestores públicos, políticos e empresários locais, encontrando-se submetidas a uma intensa rotatividade, ao mudar constantemente de escola e de comunidade.
De acordo com Pereira e Macêdo (2018), grande parte das escolas multisseriadas do campo localiza-se em pequenas comunidades afastadas das sedes dos municípios, e diversos fatores incidem diretamente no exercício docente.
Em recente pesquisa sobre as condições de trabalho nas escolas rurais no estado da Bahia, Ramos (2020) demonstra que a precarização e a intensificação têm sido marcas das condições de trabalho dos professores das escolas rurais, o que pode ser percebido pelos seus baixos salários, pela ausência de planos de carreira, pela débil formação e pelas contratações precárias sem vínculos estáveis, em alguns casos envolvendo parcerias com o setor privado. Além das precárias instalações das escolas, a sobrecarga de trabalho e a quantidade excessiva de alunos nas turmas são fatores que corroboram para a desvalorização dos docentes do meio rural em comparação aos docentes urbanos. O autor conclui que a desvalorização do docente do meio rural está ligada à pouca atenção historicamente recebida pela educação do campo no país.
Carvalho (2018) constata que, no decorrer da última década, a distribuição de professores entre localização rural e localização urbana mostrou relação praticamente estável (proporção em média de 16% de professores nas zonas rurais), indicando a persistência da desigualdade na distribuição de professores entre ambas as localidades ao longo dos anos. Essa tendência explica-se pela redução da população rural, resultante da queda geral da população com menos de 18 anos e do êxodo rural em direção às regiões urbanas. De acordo com a autora, a redução da população de crianças e jovens nessas regiões, por um lado, pode diminuir a demanda por professores, e o êxodo rural dos professores em busca de melhores oportunidades de trabalho, por outro lado, pode reduzir a oferta de professores.
DOCÊNCIA E GÊNERO: PROFESSORES E PROFESSORAS
A divisão de gênero é talvez a maior segmentação que historicamente marca a profissão docente não só no Brasil e exerce importante influência na identidade desses profissionais, apesar de presente em muitas profissões. Essa divisão está relacionada à presença de um maior contingente feminino nos níveis mais elementares da educação básica. Esse é um tópico bem explorado em pesquisas sobre gênero e profissão docente, demonstrando que os baixos salários estão ligados à discriminação de gênero (Morgade, 2007; Yannoulas, 2013).
De acordo com estudo produzido pela Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI, 2013), o peso das professoras na educação pré-primária é muito elevado em toda a região, ultrapassando 92% em 2011. Na educação primária, três de cada quatro professores da Ibero-américa são mulheres, entretanto o estudo constata que essa proporção diminui progressivamente nas etapas superiores.
Segundo Gatti e Barreto (2009), a escolarização de nível médio da mulher se deu pela expansão dos cursos de formação para o magistério, permeados pela representação do ofício docente como prorrogação das atividades maternas e pela naturalização da escolha feminina pela educação. Forte determinante da entrada da mulher no mercado de trabalho, a carreira do magistério expandiu-se por meio de um padrão altamente segmentado do ponto de vista do gênero, seja em comparação a outras carreiras, seja com respeito à própria carreira docente, a qual durante muitas décadas reservou aos homens as funções de mando nos sistemas educativos (direção e supervisão), enquanto as mulheres ficaram restritas às salas de aula.
Ainda de acordo com as autoras, predominantes de maneira especial no magistério das séries iniciais do ensino fundamental e da educação infantil, as mulheres constituem igualmente maioria absoluta dos estudantes de pedagogia: 92,5%. O processo de feminização das outras licenciaturas, um pouco mais tardio que o dos cursos de formação das professoras primárias, ocorreu acompanhando a expansão dos ginásios, nos anos de 1950 e 60, e a popularização da escola de primeiro grau de oito anos, após a Lei nº 5.692/71, que foi seguida da perda relativa de prestígio dos professores e, de maneira particular, dos licenciados e da piora nas condições de trabalho e remuneração. As autoras ressaltam, porém, que nesse segmento da docência, que é desenvolvido pelo professor especialista, os homens mantêm presença significativa, chegando a constituir quase a metade dos estudantes dos cursos de licenciatura.
Dos 2.226.423 professores da educação básica no Brasil, 1.780.000 são mulheres e 446.423 homens. Na educação infantil, a presença feminina é quase absoluta, sendo 570.007 mulheres e 19.886 homens. Nos anos iniciais do ensino fundamental, a predominância do sexo feminino é muito forte, mas essa diferença já diminui um pouco, contabilizando 677.086 mulheres e 85.798 homens. Nos anos finais do ensino fundamental, cresce bem mais a diferença entre os sexos dos professores, embora esteja longe de um equilíbrio: são 242.537 homens e 521.294 mulheres. No ensino médio, a diferença é menos acentuada, sendo 210.191 professores do sexo masculino e 303.212 do sexo feminino (Brasil, 2019).
Como afirmam Vicentini e Lugli (2009), o magistério, essencialmente feminino, esteve subordinado a uma administração fundamentalmente masculina, entretanto Ferreira (1998) argumenta que a entrada das mulheres no magistério marcou o despontar do feminino para a vida pública, como também o início de uma trajetória de lutas e conquistas desse gênero na sociedade brasileira.
PROFESSORA UNIDOCENTE E PROFESSORES ESPECIALISTAS
Outra segmentação importante tem relação com a organização da educação básica nas suas diferentes etapas. As condições de trabalho e a formação de professores que atuam na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental são muito diferentes daquelas encontradas nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio. A professora unidocente, também conhecida como monodocente, polivalente ou multidisciplinar, tem sido caracterizada como uma profissional que ensina as várias disciplinas que compõem o currículo escolar dos anos iniciais do ensino fundamental e da educação infantil.
Para Mello (2000), a divisão entre o professor polivalente e o especialista por disciplinas teve na educação brasileira sentido burocrático-corporativo. Segundo a autora, pedagogicamente, não há sustentação para a divisão que foi causada pela separação histórica entre os dois caminhos de formação docente: o normal de nível médio e a formação superior. Ela explica que, a partir dos anos de 1970, a formação do professor das séries iniciais passou a ser feita também em nível superior, mas, mantendo a segmentação tradicional, o locus dessa formação não foi o mesmo das licenciaturas, e sim os cursos de pedagogia nas faculdades de educação. Assim, a distância entre o curso de formação do professor polivalente e os cursos de licenciatura, nos departamentos ou institutos, imprimiu àquele profissional identidade pedagógica esvaziada de conteúdo.
De acordo com Caixeta (2017), os professores unidocentes têm por tarefa desenvolver o processo de ensino-aprendizagem na perspectiva interdisciplinar, visando à formação integral das crianças. Portanto, para a autora, uma compreensão ampla da profissionalidade na unidocência não pode desconsiderar a relação de mão dupla entre formação e atuação, porque a atuação unidocente não está dissociada dos contextos da formação inicial nem da formação em serviço que envolvem os profissionais. A formação inicial e a formação continuada desses professores constituem, pois, fatores importantes na construção de sua identidade profissional e no seu reconhecimento pelo conjunto da sociedade. Assim, podemos considerar que a profissionalidade unidocente está associada com as características da formação e das condições de trabalho desses professores.
No Brasil, a formação de professores para a educação infantil e os anos iniciais do ensino fundamental historicamente era realizada em cursos normais de nível médio. Com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 9.394, de 1996, ela passou a ser realizada, de maneira preferencial, em cursos de pedagogia, admitindo, no entanto, a formação mínima no curso normal, de nível médio.
Segundo Barreto (2010), o locus da formação do professor para o nível superior após a referida lei coloca em nova escala os desafios da docência. Esta passou a desempenhar papel central na própria dinâmica de crescimento do ensino superior no país. Para a autora, a diferenciação instituída entre a representação do trabalho da “professora primária”, polivalente, e o do “professor secundário”, especialista nas disciplinas, permanece e pode ser constatada tanto na estrutura curricular dos cursos de formação de professores como nas carreiras, nos salários e nas representações da sociedade.
A formação para o professor unidocente sofre muitas críticas na atualidade no Brasil e na América Latina (OEI, 2013; Bruns e Luque, 2014). Gatti e Nunes (2009), analisando os currículos de cursos de pedagogia, afirmam que a formação panorâmica desses cursos acaba por promover uma apropriação generalista de conteúdos, o que poderia ensejar a indefinição do perfil profissional na unidocência e comprometer o alcance e a efetividade de uma prática interdisciplinar.
Caixeta (2017) observa que a formação das professoras unidocentes parece favorecer mais o desenvolvimento de uma profissionalidade técnica, dificultando sua compreensão sobre a unidocência com essência interdisciplinar. A interdisciplinaridade é, para a autora, uma característica da profissionalidade na unidocência que a distingue da docência especializada. Ela considera que a profissionalidade no contexto da unidocência é definida pelas exigências que envolvem o trabalho pedagógico nesse tipo de atividade e determinada pelos saberes e habilidades próprios da profissão docente constituídos na formação inicial e continuada. A profissionalidade dessas professoras é identificada na performance das práticas pedagógicas, que constituem o modo como elas planejam seu trabalho, as facilidades, as dificuldades e os desafios que enfrentam na realização de suas tarefas. A proximidade e a identificação com a infância, próprias do ensino fundamental, requerem do professor unidocente saberes e habilidades muito específicos, além de acompanhamento mais próximo das aprendizagens.
A autora afirma ainda que suas observações em campo indicaram compreensão da unidocência mais pela via da profissionalidade técnica do que pela profissionalidade fundamentada na interdisciplinaridade e reflexão crítica de seu trabalho. Salienta a preocupação dessas professoras com as formas de ensinar que privilegiam os conteúdos, denotando dissociação entre conhecimentos disciplinares e conhecimentos didático-pedagógicos. Esse é um fenômeno que tem raízes nos processos de formação inicial e continuada e que exerce acentuada influência no entendimento que as professoras têm a respeito daquilo que consideram essencial para o exercício de sua atividade profissional.
De acordo com Terigi (2010), os limites do saber pedagógico é um problema que afronta a profissão docente. A docência é uma profissão que faz dos saberes e da transmissão cultural seu conteúdo substantivo. Por um lado, o docente transmite um saber que não produz e, por outro, produz um saber que não é reconhecido, ou seja, o saber que é produzido acerca da transmissão.
As condições de trabalho dessas professoras interferem consideravelmente na sua identidade profissional. Caixeta (2017) afirma que essas professoras, diante das condições precárias das escolas, como problemas de infraestrutura, equipamentos e insuficiência de apoio pedagógico, acabam tendo de atuar como superprofessoras, flexíveis, polivalentes, multifuncionais. Além disso, a autora salienta que, com uma estrutura mínima, elas acabam realizando um trabalho pedagógico solitário, sem reciprocidade entre os pares nem, por conseguinte, interdisciplinaridade. A ausência do diálogo contribui, de acordo com Caixeta (2017), para a construção de uma cultura de isolamento e individualismo na unidocência que é confundida com autonomia profissional.
Tal sentimento é compartilhado por Hage (2010), que afirma que as profissionais unidocentes desenvolvem um trabalho solitário diante do isolamento que vivenciam e do pouco preparo para lidar com a heterogeneidade de idades, séries, ritmos de aprendizagem presentes nas suas classes, o que é fonte de muitas angústias.
A segmentação entre professores unidocentes e professores disciplinares teve forte expressão na organização sindical docente. As primeiras associações de professores criadas no Brasil reuniam apenas os professores primários (unidocentes). Somente nas últimas décadas do século passado elas passaram a incluir os demais professores. Isso contribuiu para uma fragmentação nessa representação que se explica também por outros fatores. Bauer, Diniz e Paulista (2013) apontam para a proibição da sindicalização dos funcionários públicos no Brasil, que se estendeu da década de 1930 até a Constituição Federal de 1988, como o principal fator para essa fragmentação da organização sindical em educação.
Durante o período que vai da década de 1930 ao fim dos anos de 1980, os professores e demais funcionários públicos estiveram impedidos de se organizarem em sindicatos. Os professores de instituições privadas tinham o direito de se associarem a sindicatos, mas eles sempre foram minoria. No fim do regime militar (1964-1985), os trabalhadores da educação das redes municipais, estaduais e federal passaram a criar associações que não eram reconhecidas legalmente pelo Estado, as quais deram origem aos atuais sindicatos de educação. Conforme Cunha (1995), essas associações filiaram-se à Confederação dos Professores do Brasil (CPB), criada originalmente como Confederação de Professores Primários do Brasil (CPPB) em 1960, por 11 entidades estaduais.
A CPPB teve uma mudança substancial em seu estatuto, em 1979, ao incorporar os professores secundários, quando passou a se chamar CPB. Essa mudança era considerada estratégica para a articulação do movimento em nível nacional. No período de 1982 a 1988, a CPB consolidou-se como entidade federativa e como principal via de organização do sindicalismo docente e filiou-se, em 1988, à Central Única dos Trabalhadores (CUT).
Em 1990, a CPB passou a se chamar Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), em um congresso extraordinário cujo objetivo foi unificar várias federações setoriais da educação numa única entidade nacional. Com a unificação da luta dos trabalhadores em educação e o surgimento de regras de organização sindical, a CNTE ganhou força com a filiação de 29 entidades em todo o país. Atualmente, conta com 52 entidades filiadas e mais de um milhão de sindicalizados (CNTE, 2020).
De acordo com Bauer, Diniz e Paulista (2013), ao suprimir a adjetivação “primários” de sua denominação, a CPB realizou significativa ampliação dos seus quadros, porque passou a receber a filiação de associações de professores licenciados (especialistas), com trajetória política muitas vezes forjada no movimento estudantil e na experiência universitária. Para os autores, essa mudança foi provavelmente motivada pela reforma do ensino de primeiro e de segundo grau, pela Lei nº 5.692, de 1971, que integrou o curso primário ao primeiro ciclo do ginásio. Essa lei propiciou condições legais para a emergência de uma nova fase da organização dos professores, ao determinar que cada sistema de ensino estruturasse a carreira docente, num estatuto do magistério. Entre os elementos novos com que a carreira deveria contar, estava a remuneração conforme qualificação, obtida em cursos e estágios, sem distinção dos graus escolares nos quais os professores atuavam. Em decorrência disso, aumentou a demanda por estudos adicionais para os professores já em atividade.
No fim da década de 1970 e início dos anos de 1980, o grupo profissional de professores ganhou novo terreno com o aumento da organização dos sindicatos. Os sindicatos desempenharam papel importante nas décadas seguintes na luta pelo reconhecimento profissional dos professores, com conquistas legais que garantiram, por exemplo, o piso salarial profissional nacional (PSPN) para o magistério público da educação básica, por meio da Lei nº 11.738/2008, as diretrizes de carreira nº 02/2009, do Conselho Nacional de Educação, e a ampliação da oferta de cursos de formação docente em nível superior para os professores em exercício, pelo Decreto nº 6.700/2009.
PROFESSORES E ESPECIALISTAS EDUCACIONAIS
Outra divisão importante na escola e que reflete alguns obstáculos em relação a uma identidade docente mais homogênea é a que se observa entre professores e especialistas. Nesse caso, essa divisão sofreu alteração de acordo com as mudanças políticas das últimas décadas. Os especialistas, que sempre ocuparam lugar de destaque na hierarquia técnica no contexto escolar, colocando-se como superiores ao corpo de professores, perderam muito terreno com as mudanças ocorridas na organização escolar trazidas pelas reformas mais recentes.
Nos anos de 1980, as críticas às formas clássicas de administração educacional engendraram novas formas de gestão escolar no Brasil. As críticas à hierarquização, à centralização da administração escolar e ao modelo burocrático focado nas especializações levou à consolidação de outras referências de gestão educacional, inscritas na Constituição Federal de 1988, Art. 206, Inciso VI. O princípio constitucional da gestão democrática do ensino público acabou por ser regulamentado em muitas redes pela escolha direta do diretor escolar pela comunidade, o que contribuiu para que a função de administrador escolar se extinguisse em muitas redes de ensino. Além dos diretores, os coordenadores escolares escolhidos por seus pares passaram a ocupar o lugar que antes era dos especialistas: supervisores, orientadores e inspetores. Tais mudanças repercutiram nos currículos de pedagogia.
Essas novas formas buscaram responder, por um lado, aos anseios de maior democratização da escola, trazidos pelo movimento de democratização da sociedade, após 21 anos de ditadura militar, mas, por outro lado, foram orientadas à maior flexibilização das estruturas e ampliação de responsabilidades trazidas pela NGP. Sendo assim, o contexto escolar passou a viver um ambiente em que predominava certa ambivalência entre maior autonomia e participação democrática numa via e maior responsabilidade e prestação de contas em outra.
Apesar dos avanços obtidos pelos sindicatos no reconhecimento da profissionalização dos professores, as conquistas foram insuficientes para superar as profundas divisões e desigualdades derivadas das formas de segmentação que historicamente caracterizaram a profissão docente no Brasil. Essas distinções herdadas ainda estão presentes na atual organização da profissão docente e foram intensificadas pela agenda impulsionada no país por meio das reformas neoliberais da década de 1990, com a difusão dos princípios da NGP em termos federais, estimulando políticas de responsabilização em âmbitos estadual e municipal.
AS POLÍTICAS DE ACCOUNTABILITY ENTRE VELHAS E NOVAS SEGMENTAÇÕES
Na condução das políticas públicas em educação no Brasil, os municípios como entes federados são os responsáveis prioritários pela oferta da educação infantil e do ensino fundamental. Aos estados, cabe a oferta do ensino médio por meio das suas redes públicas. É de responsabilidade dos municípios e dos estados estabelecer os diferentes aspectos relacionados à valorização profissional dos professores, incluindo a remuneração, a jornada de trabalho, o plano de carreira, ainda que obedecendo às normativas gerais para o país.
No que tange ao vínculo empregatício, os professores da educação básica vinculados às redes públicas estaduais e municipais, com raras exceções, se distribuem em efetivos e contratados. Os efetivos passam por concurso público e, por consequência, possuem estabilidade no emprego. Os contratados atuam na docência da educação básica com vínculo precário de trabalho, por período determinado.
De acordo com o Censo Escolar 2019 (Brasil, 2020), são mais de 560 mil professores de rede pública em todo o país que vivem com contratos temporários de trabalho. Só nas escolas estaduais, são 276 mil, ou 40% dos professores. A média de temporários nos estados é maior que entre a das redes municipais, com 25,5% de seus professores nesse tipo de contrato em 2018.
Estudo realizado por Pereira Junior (2019) sobre os vínculos de professores de redes públicas no Brasil, de 2014 a 2018, mostra um cenário bastante desfavorável aos professores. Constata que em 16 das 27 unidades federativas do país houve diminuição dos percentuais de docentes concursados nas redes estaduais de ensino. A pior situação foi encontrada em Minas Gerais, cuja diminuição na quantidade de professores efetivos atingiu 51,4%. Em seguida, apareceu o estado de Alagoas, cuja queda foi de 47,4%. O estudo verifica que, no período abordado, todos os estados tiveram queda na proporção de professores concursados, variando de 0,6 a 11%.
A segmentação entre professores efetivos e professores contratados é provavelmente a mais incômoda de todas as situações vividas pelo corpo profissional, pois ela institui hierarquias informais, já que os efetivos são mais pertencentes à escola que os contratados e, por isso, se sentem mais donos da instituição. Ela também repercute em disparidades no tocante à participação na gestão escolar e nas decisões sobre o destino dos estudantes. Os contratados, em geral, têm menor autoridade.
De acordo com Ambrósio (2007), o professor contratado é bastante explorado, pois tem o cumprimento de sua carga horária exclusivamente desempenhado em sala de aula. Para o autor, o contrato institui dois tipos de professores na escola pública, sendo o contratado mais explorado e submetido a relações desiguais de trabalho, tanto no que se refere à instabilidade no emprego quanto ao regime de aposentadorias. Para ele, essas relações afetam a autoestima dos professores contratados, que acabam sentindo-se menos motivados para o trabalho.
A organização sindical dos docentes em geral não contempla os professores contratados, o que os joga em uma zona de instabilidade muito grande, pois são os professores contratados os que mais carecem de melhores condições de trabalho.
Entre os aspectos voltados à valorização dos profissionais, destacam-se a realização de concursos públicos e o estabelecimento de planos de carreira e de remuneração mínima. O mencionado PSPN garante um salário inicial mínimo para todos aqueles que desempenham as atividades de docência ou de suporte pedagógico à docência (direção ou administração, planejamento, inspeção, supervisão, orientação e coordenação educacionais). O valor atual do PSPN é R$ 2.886,15. A União, os estados, o Distrito Federal e os municípios não poderão fixar abaixo desse valor o salário inicial de nenhum professor com formação em nível médio, na modalidade normal, para a jornada de no máximo 40 horas semanais, obedecendo-se à proporcionalidade em casos de jornada diferenciada.
Em estudo produzido pelo Inep (Brasil, 2017) sobre a remuneração dos professores no Brasil, constataram-se diferenças significativas entre esses profissionais para jornadas e atividades similares. O levantamento inédito acerca da remuneração do magistério, com dados relativos ao ano de 2014, apresentou informações a respeito do pagamento feito a 87,4% dos professores do país. Considerando os 2.184.395 vínculos empregatícios encontrados na pesquisa (há professores com mais de um vínculo), apenas um quarto deles estava em instituições privadas de ensino e só 1,1% atuavam na rede federal de educação básica. Os dados quanto às redes estaduais incluem 25 estados e o Distrito Federal, ficando de fora do estudo somente o Rio de Janeiro.
Nesse estudo ainda, verificou-se que os docentes de instituições privadas são os mais mal pagos, com médias salariais inferiores às praticadas nas redes públicas municipais, estaduais e federal, para uma jornada semanal de 40 horas. A média de remuneração dos docentes que trabalham em escolas particulares era de R$ 16,24 por hora, ou R$ 2.599,33 por mês, considerando a remuneração total para 40 horas semanais, o que equivalia a 3,6 salários mínimos. De acordo com o levantamento, que localizou informações salariais de 70,6% dos mais de 370 mil professores de escolas particulares, são os empregadores do setor privado os que pagam os salários mais baixos.
Entretanto, ainda que se observe que os docentes das instituições privadas são os mais mal pagos, é necessário considerar que o setor privado suporta grande estratificação. Como os valores encontrados no estudo são uma média, é possível que haja grande diferenciação salarial entre os professores dependendo da instituição contratante.
Na rede municipal, em que atua mais da metade dos professores do país, a média de remuneração é de 4,3 salários mínimos. Na rede estadual, os professores recebem em média o equivalente a 4,8 salários. Já os professores da rede federal são os mais bem pagos do país: eles recebem em média R$ 48,55 por hora de trabalho, ou R$ 7.767,94 por mês. Nesse caso, a remuneração sobe para 10,7 salários mínimos, o triplo do valor pago no setor privado. A rede federal, porém, representa apenas 1% dos professores do país.
A rede municipal, principal responsável pelos estudantes da educação infantil e do ensino fundamental, conta com 1.065.630 vínculos empregatícios de professores. Dos 5.228 entre os 5.700 municípios do país, com dados incluídos no levantamento, só 1.171 mantêm contratos médios com carga horária entre 40 e 44 horas semanais. A média dos contratos é de carga horária de 30 horas. Por outro lado, na lista de municípios que pagam o menor valor por hora aos professores, praticamente todos têm contratos de, em média, 40 horas pelo menos.
As redes estaduais representam mais de 700 mil vínculos empregatícios e têm como principal responsabilidade o ensino médio. O estudo localizou as informações de remuneração de 95,6% dos professores vinculados a uma das 27 redes.
Esse estudo teve como objetivo comparar a média salarial dos professionais da educação com aquela recebida por outras profissões com a mesma exigência de escolaridade. Nesse sentido, concluiu que, em 2018, o rendimento médio dos professores da educação básica correspondia a 69,8% do salário médio dos outros profissionais com curso superior. Enquanto a média salarial dos docentes é de R$ 3.823, a do conjunto dos trabalhadores brasileiros graduados é de R$ 5.477,05. Ao se comparar o salário médio dos profissionais das áreas de exatas ou saúde, a defasagem é de 50%.
Todavia, é importante observar que a média salarial dos professores de rede pública, apesar de ainda muito baixa em relação a de outras profissões com grau equivalente de formação, vem crescendo. Nos últimos sete anos contados pelo estudo, o crescimento foi de 6,4%. Mas os desafios de melhor remuneração persistem e se expressam por outros indicadores. Cerca de 10% dos municípios do Brasil ainda não têm plano de carreira para seus professores, o que é bastante preocupante, já que a carreira representa um importante fator de valorização profissional e de aumento salarial.
Diferentes modelos de carreira e formas de remuneração refletem interesses conflitantes. Alguns municípios e estados brasileiros têm adotado políticas baseadas no mérito pessoal, na produtividade e na responsabilização dos professores pelo seu próprio desenvolvimento profissional e pagamentos diferenciados. Essas políticas estão fundamentadas nos princípios da NGP, que defende a modernização das profissões, o novo profissionalismo, próprios das políticas de accountability. Elas opõem-se às formas tradicionais de organização das carreiras docentes, com base na estabilidade, na progressão hierárquica e na valorização dos títulos e da experiência.
As críticas à carreira do tipo burocrática são sempre associadas à propensão a que as organizações flexibilizem suas estruturas e o modo de ascensão, recorrendo sempre ao modelo de organização da empresa privada e sua eficiência. Esses modelos tendem a valorizar atributos pessoais como criatividade, iniciativa, compromisso.
No Plano Nacional de Educação aprovado em 2015 (Lei nº 13.005), foram estabelecidas metas para a valorização da profissão docente no país. A Meta 18 refere-se à obrigatoriedade de criação ou reorganização dos planos de carreira dos profissionais da educação básica. O objetivo desse dispositivo legal é melhorar as condições de trabalho e remuneração dos profissionais e, com isso, aumentar a atratividade da profissão docente no país.
O desinteresse dos jovens pelos cursos de licenciatura tem sido evidenciado em estudos mais recentes e é objeto de preocupação em âmbito internacional, como se pode notar no estudo intitulado O papel crucial dos docentes: atrair, formar e reter professores de qualidade, publicado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 2005. Pesquisas em diferentes contextos nacionais revelam preocupações baseadas na percepção por parte dos professores do seu estatuto e condição, como profissionais desmoralizados, sofrendo pelo não reconhecimento do seu métier e com a deterioração de suas condições de trabalho (Tenti, 2005; Malet, 2009; Carlotto, Câmara e Oliveira, 2019).
Pesquisas têm demonstrado o alto grau de intensificação do trabalho, os docentes assumindo novas funções e responsabilidades no contexto escolar (Oliveira e Vieira, 2012) e as condições precárias das escolas (Soares Neto et al., 2013). Somados aos problemas das condições de trabalho pouco adequadas que as escolas públicas brasileiras oferecem, estão ainda os relativos à carreira. São elementos determinantes para a carreira as formas de ingresso, as condições de trabalho, a remuneração e a capacidade de promoção, contudo a tendência crescente dos municípios e estados brasileiros de adotar políticas de gestão por resultados, focados em metas de desempenho, têm ameaçado as formas tradicionais de carreira, contrapondo-se à estabilidade e aos planos de promoção, instituindo a insegurança e a negociação permanente por meio de incentivos monetários como bônus e premiação (Lacruz, Américo e Carniel, 2019).
Essas políticas, favorecidas por uma conjuntura na qual a flexibilidade laboral é motivada por lei, contribuem para maior corrosão das carreiras e precarização das condições de trabalho e têm promovido verdadeira reestruturação da profissão. Essas reestruturações na carreira guardam relação com a forma como os docentes são considerados na sociedade contemporânea e como eles próprios concebem seu trabalho e sua profissão, contudo essa não é uma questão apenas do Brasil.
As políticas de responsabilização baseiam-se na noção de que os indivíduos devem, mediante o conhecimento da sua ação, melhorar sua prática e poder fazer escolhas. Essa lógica de responsabilização moral e profissional tem sido largamente usada nos sistemas públicos de educação, desenvolvendo mecanismos formais, sistemas próprios de medição de desempenho dos alunos, podendo ou não estar associados a incentivos, como bônus.
No Brasil, a bonificação dos professores pelo desempenho dos seus estudantes tem sido uma política largamente utilizada, porém os resultados são medidos por escola, o que significa que, quando a escola atinge a meta de desempenho que a qualifica a receber o bônus, todos os seus profissionais o recebem. Essa política tem engendrado novas segmentações no contexto escolar e interferido na subjetividade dos docentes. Como os testes são aplicados apenas sobre as disciplinas de português, matemática e, mais recentemente, ciências, os professores responsáveis por essas matérias passaram a ter maior importância no processo educativo. Em grupo focal realizado com docentes de cinco estados do Brasil, obtiveram-se relatos de professores que ministram outras disciplinas que expressam maior valorização pelos colegas que ministram português e matemática, já que são essas matérias que no fim definirão se a escola receberá ou não o bônus (Oliveira et al., 2017).
Elemento semelhante foi encontrado por Caixeta (2017) em sua pesquisa ao destacar que, embora as unidocentes tenham como tarefa ensinar conteúdos de todas as disciplinas escolares, o foco das ações formativas em serviço de que participam tem sido as disciplinas de português e matemática.
As políticas de accountability adotadas por grande número de estados e municípios também tendem a aumentar o poder da direção escolar sobre os professores, já que são os gestores escolares que negociam as metas de desempenho da escola com os órgãos superiores e respondem pessoalmente pelos resultados (Oliveira, Duarte e Clementino, 2017). Considerando que eles são muitas vezes professores eleitos por seus pares, essa responsabilização tem aumentado a distância entre gestores e professores, dando origens à nova segmentação na escola. Processo semelhante observa-se em outras realidades nacionais. Cattonar (2015), referindo-se às recentes reformas das funções de inspeção e direção de escolas na Bélgica, afirma que elas têm acentuado a especificidade do controle de inspeção e gestão dos diretores distanciando-se do corpo docente de onde vieram. A autora pondera que essas reformas têm implantado uma nova forma de segmentação da profissão docente, separando grupos profissionais que a constituem.
Outra segmentação importante que aparece mais recentemente entre os docentes é resultante de novos programas que foram incorporados pela escola. Merecem destaque a incorporação da educação infantil (etapa que mais cresce no Brasil depois da ampliação da obrigatoriedade escolar de 4 até os 17 anos) e os programas de educação de tempo integral.
A educação infantil tem sido ampliada na última década com muitos arranjos que não oferecem as condições necessárias para seu bom desempenho. Os profissionais que atuam nessa etapa são os que recebem os salários mais baixos, os que têm menos anos de formação (menor titulação) e possuem maior número de contratos precários. Esses professores também têm sido contratados com outras nomenclaturas, para não ser enquadrados como professores nem passar a receber os mesmos direitos (Oliveira et al., 2017).
Os docentes que atuam em programas especiais, como o Programa Mais Educação, que implantou os chamados contraturnos nas escolas para acolherem os estudantes em jornada integral, são em sua maioria contratados de forma precária, recebem remuneração mais baixa que os professores do turno regular e não apresentam formação adequada. Clementino (2013) demonstra que esses docentes se ressentem do desprezo que sofrem nessas escolas, provocado por uma separação entre os professores que atuam no turno regular e os docentes do contraturno. Esses novos docentes permanecem invisíveis nas estatísticas oficiais e nas políticas públicas para educação, não sendo, portanto, contemplados nos planos de carreira nem nos concursos públicos, não tendo as garantias salariais dos demais profissionais da educação e tampouco, muitas vezes, são lembrados nas pautas sindicais.
A PROFISSÃO DOCENTE ENTRE A HOMOGENEIZAÇÃO E A DIFERENCIAÇÃO: NOTAS CONCLUSIVAS
A profissão docente apresenta desde suas origens um quadro de segmentação que se intensificou ao longo de seu desenvolvimento. Segmentações históricas foram preservadas e outras novas sendo forjadas pelo desenvolvimento dos sistemas educacionais. De acordo com Lang (2006), há mais de 50 anos os docentes enfrentam reformas das condições de escolarização, influenciadas pelas evoluções técnicas, dos recursos profissionais e do modo de organização e de gestão das instituições educacionais. Ao mesmo tempo, observam-se mudanças importantes na sua composição socioprofissional, o que tem levado a modificações significativas nas identidades herdadas.
Compreende-se que o desenvolvimento da noção de profissionalização é resultado de uma forma específica de organização do Estado, a forma racional-burocrática de estruturação dos serviços públicos, que traz consigo a instituição de um corpo funcional. Os sistemas escolares modernos emergem da organização desse aparato estatal e organizam-se como parte dependente dele (Petitat, 1994). Assim, a primeira grande luta pela profissionalização do magistério esbarra no estatuto funcional, que, por meio de sua conversão em funcionários do Estado, lhes retira a autonomia e o autocontrole sobre seu ofício. Como afirma Tenti (2007), nesse esquema organizacional, os docentes ocuparam status ambíguo.
A história da profissão docente é resultante dessa ambiguidade. Por um lado, ela expressa a luta pela obtenção de um status profissional; por outro, quer usufruir a condição de servidores públicos. Essa ambiguidade convive com múltiplas segmentações que fragmentam essa categoria de trabalhadores e interferem na constituição de sua identidade. Na atualidade, os professores são funcionários públicos ou empregados de instituições privadas que cada vez mais trabalham submetidos a orientações e controles exteriores. A autonomia e o controle sobre o recrutamento, a formação, os títulos e o monopólio são prerrogativas de poder próprias das profissões estabelecidas.
Para Popkewitz (1997), o rótulo profissão é normalmente utilizado para identificar um grupo especializado, altamente formado, competente e digno de confiança pública. Todavia, com frequência, a profissão faz dos seus serviços uma forma de obtenção de prestígio, de poder e de status econômico. Ou seja, desenvolve uma autoridade cultural e social.
A segmentação da profissão tem seus reflexos na formação. Tom (1997) explica que as críticas à segmentação e à falta de direção dos cursos de formação de professores parecem estar inter-relacionadas aos fatores intelectuais e organizacionais que promovem um currículo segmentado, organizando cursos e departamentos em torno de categorias de conhecimento especializado. Esses aspectos também levam a maioria dos programas profissionais a não ter direção. Para ele, a organização departamental promove a segmentação e impede o desenvolvimento de um programa coerente de formação. As críticas dirigidas à formação de professores na atualidade têm sido motivadas por tentativas de adequação desses profissionais às exigências de maior desempenho dos estudantes nas avaliações internacionais, como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA).
A competência dos professores tornou-se ainda mais importante nos países em desenvolvimento, onde a falta de infraestrutura e os recursos são escassos, e os professores são considerados fator crucial para obter educação de qualidade. (Lauchande, Passos e Howie, 2017). Esse é um dos debates centrais que enfrentam os sistemas educativos da Ibero-américa, procurando as melhores combinações de políticas e dispositivos que favoreçam melhores desempenho e qualidade (OEI, 2013).
As críticas à formação tradicional dos professores estão relacionadas com as mudanças introduzidas no trabalho docente pelas reformas educacionais mais recentes. Essas mudanças, orientadas pela NGP, impondo processos de responsabilização sobre as escolas, têm reorientado o exercício profissional e as carreiras docentes. Em estudo realizado por Cuenca (2015) comparando as carreiras de professores em 18 países da América Latina, foi constatado que a maioria dos sistemas educativos na atualidade tem reformado suas carreiras adotando mecanismos mais flexíveis de contratação e vinculando a carreira à avaliação de desempenho dos docentes.
Os vínculos entre carreira e formação docente são cada vez mais fortes, responsabilizando os professores pelo seu próprio desenvolvimento profissional. Essas orientações estão presentes nas políticas de educação em âmbito internacional, como as cúpulas para a profissão docente promovidas pela OCDE (Oliveira, 2020).
São muitas as evidências documentais de que esses vínculos se apresentam como uma tendência internacional generalizada. O relatório de atividade de aprendizagem entre pares do Grupo de Trabalho Education and Training 2020 (European Commission, 2020) sobre as carreiras dos professores, ao discutir o tema diante dos desafios atuais que enfrentam os sistemas educativos europeus, sugere que os sistemas educacionais desenvolvam uma estrutura para as carreiras de professores centrada na noção de competência profissional. De acordo com o documento, uma estrutura para a carreira docente deve ser entendida como um meio para efetivamente mapear e gerenciar as variadas estruturas disponíveis para apoiar o desenvolvimento profissional dos professores e a progressão na carreira, rompendo com narrativas lineares, aceitando que na carreira dos professores os caminhos variam e podem não seguir as hierarquias convencionais da organização da escola.
Esse relatório parece sintetizar as tendências atuais que dominam as políticas de carreira docente no mundo, ou seja, torná-las cada vez mais flexíveis e diversificadas. Essas políticas podem produzir novas segmentações no coração da profissão docente ou contribuir para as já existentes, dificultando a conformação de coletivos e enfraquecendo sua identidade profissional.
As políticas atuais no Brasil, com ampla adoção de mecanismos de mercado e discursos que apelam para a responsabilidade individual dos professores, somadas aos contrastes entre diferentes regiões e redes de ensino, têm aumentado as desigualdades entre professores, reforçando antigas segmentações que marcam esse grupo profissional, além de ensejar novas fragmentações.