INTRODUÇÃO
A história da educação confunde-se com a da humanidade. A educação sempre foi e permanece sendo objeto de interesse, estudos, investigações, análises e reflexões por vários agentes da sociedade, da esfera das políticas públicas a diversas áreas do saber: das ciências humanas - que são as áreas ou disciplinas que colocam o homem e as relações sociais no centro da pesquisa, tais como sociologia, psicologia, filosofia, antropologia e história - e das ciências sociais aplicadas - como economia, entre outras. Entendendo-se o ser humano e todos os fenômenos que dizem respeito a ele, aqui especificamente a educação, como fenômenos inerentes à sociedade e à política, a transformação da educação está relacionada às mudanças políticas, sociais e econômicas que acontecem ao longo da história da humanidade, de época para época, de sociedade para sociedade. A modernidade, caracterizada por ordem, progresso, verdade, razão, sistemas únicos de entendimento da realidade, fronteiras, barreiras, longo prazo, objetividade, teorias universalistas, instituições sólidas, hierarquia, entre outros, dava ao sujeito a confortável sensação de que o mundo era seguro. Entretanto, essa sensação foi estremecida pelos rápidos processos de mudança que deram a este mesmo mundo uma configuração pós-moderna.
A educação participa na vida e no crescimento da sociedade, tanto no seu destino exterior como na sua estruturação interna e desenvolvimento espiritual; e, uma vez que o desenvolvimento social depende da consciência dos valores que regem a vida humana, a história da educação está essencialmente condicionada pela transformação dos valores válidos para cada sociedade. À estabilidade das normas válidas corresponde a solidez dos fundamentos da educação. Da dissolução e destruição das normas advêm a debilidade, a falta de segurança e até a impossibilidade absoluta de qualquer ação educativa. (Jaeger, 2003, p. 4)
Na passagem da modernidade para a pós-modernidade, o homem deparou-se com um mundo em que a totalidade não mais existe. Mudaram os valores, as noções de família, maternidade, paternidade, educação, religião, classes, tempo/espaço, nação, trabalho etc. Muda o estar no mundo, muda o agir humano. O homem foi lançado da segurança à liberdade, das verdades duradouras às incertezas cotidianas, de sujeito a mercadoria. De acordo com Bauman (2008b, p. 161), “o sucesso na vida dos homens e mulheres pós-modernos depende da velocidade com que conseguem se livrar de hábitos antigos, mais do que a rapidez com que adquirem novos.” Vive-se numa cultura do excesso, do eterno mais e, consequentemente, do descartável, das coisas, vontades e sentimentos intensos, voláteis e urgentes. O homem é marcado pela falta de tempo e pela velocidade, as mudanças ocorrem num ritmo alucinante, provocando turbulências. Tudo é banalizado graças às facilidades de se obter e descartar, bem como ao excesso. A violência e a miséria não mais preocupam nem chamam a atenção. Passam despercebidas. As identificações de grupo não mais são de classe ou ideológicas, são mais identificações de ONG, de tribo. Para Bauman (1999, p. 5): “O problema da condição contemporânea de nossa civilização moderna é que ela parou de questionar-se. Não formular certas questões é extremamente perigoso.” Ao não questionar-se e não questionar o mundo a sua volta, ou seja, ao não ter um posicionamento reflexivo sobre sua própria existência e sobre o mundo, o homem é algoz e vítima de uma sociedade caótica e transtornada, na qual as instituições que as compõem, como por exemplo, a família e a escola, ambas por natureza, com a função de educar, se perdem no turbilhão volátil de valores, conhecimentos, informações, identidades, enfim, num turbilhão de referências que não dispõem de nenhum tipo de permanência e nem foram criadas para permanecer. Justo o oposto, são criadas para se liquefazerem. A crise está instalada, não só na esfera da educação, mas também em todas as esferas da sociedade. Entretanto, é por meio da educação que, se encontra no cerne do turbilhão, que o homem tem a oportunidade de emergir, ressignificar o estar no mundo, o sistema de referências que o rege e suas ações no social.
O presente artigo tem como objetivo discutir se a educação proposta por Max Scheler - educar para humanizar, para desenvolver o espírito, o que é intrínseco ao homem e somente a ele (justo aquilo que o diferencia dos outros seres vivos) - tem lugar na pós-modernidade de Zygmunt Bauman, época na qual a fluidez, a descartabilidade, o imediatismo e o consumismo reinam soberanos e, ainda, era na qual as pessoas e as coisas, ambas mercadorias, só têm valor por sua utilidade imediata.
MAX SCHELER: EDUCAÇÃO COMO UM PROCESSO DE HUMANIZAÇÃO
Max Ferdinand Scheler, filósofo social, teórico dos valores, escritor de incontestável exuberância e religioso alemão, nasceu em Munique, em 22 de agosto de 1874, e faleceu ainda jovem, em 1928, aos 54 anos de idade. Discípulo do filósofo Rudolf Eucken, simpatiza com as teorias vitalistas de Henri Bergson e depois de Edmund Husserl, tornando-se o primeiro fenomenólogo. Scheler não tomou como objeto primeiro e central de preocupação e estudos a educação, mas sim preocupações e elaborações na esfera da ética, principalmente dos valores. Tendo desenvolvido uma axiologia, tratou com igual importância a filosofia da religião e a questão antropológica, desenvolvendo uma antropologia filosófica. Essas questões centrais e originárias, ética/valor, religião e antropologia, levaram-no a outras problemáticas. Entre elas está a educação, especialmente porque Scheler viveu, ressalta-se aqui, as décadas de 1910 e 20, nas quais a educação na Europa foi objeto de extremo interesse e divergência entre diversos segmentos. Dessa forma, não seria ilegítimo considerar que Scheler se apropriou da educação como objeto de preocupação, reflexão, análise e discussão, propondo-a como um “processo de humanização” que será, na visão educativa, um de seus conceitos-chave, fundamentais. Para tanto, Scheler parte de uma questão fundamental: quem é o homem? O que é peculiar ao homem? O homem é um processo, um eterno vir a ser, um avançar e retroceder baseado na hierarquização dos valores, que reflete a forma de percepção que ele e a sociedade atribuem aos valores e os vivenciam no cotidiano. Educar implica humanizar, o que se traduz no ato de desenvolver o espírito, aquilo que é inerente ao homem, e é justamente essa especificidade que o diferencia de todos os demais seres vivos (Schulz, 2017). Scheler, tendo vivido antes, durante e depois da Primeira Guerra Mundial, época bastante conturbada e crítica, buscou entender o contexto que chegou a intitular de decadência em razão da inversão da hierarquização de valores. A civilização ocidental, de base greco-romana e judaico-cristã, com o transcorrer do tempo, assistiu ao ruir do que considerava ser mais elevado para o homem e para a humanidade, concedendo lugar privilegiado ao utilitarismo, à ciência positivista e ao capitalismo, sendo estes uma ameaça à educação culta. “A mais profunda inversão da hierarquia valorativa, que a moral moderna carrega consigo é, porém, a subordinação, que vai se insinuando cada vez mais, dos valores vitais aos valores da utilidade” (Scheler, 2012, p. 163).
Scheler (1986) distingue três níveis de saber: o de dominação ou de realização; o da essência ou cultural; e o metafísico ou de salvação. O saber de dominação está no nível da realização técnica, que busca um domínio técnico sobre o mundo e sobre nós mesmos e que, certamente, tem alguma importância para a sociedade; entretanto, esse saber não pode ser exclusivo, uma vez que degenera a cultura, o humano. São necessários o enfrentamento e a superação dessa tendência. O saber da essência é o saber da cultura, é a maneira que ela enquadra a educação, defendendo uma formação nem meramente técnica nem meramente utilitarista, mas uma formação que priorize a humanização, a formação do ser, destino próprio do homem. O saber das essências é um saber humanizador que mostra ao homem quem é ele enquanto homem, jamais o colocando no lugar do objeto com o propósito de aliená-lo. O saber da salvação é o saber mais alto na hierarquia, que significa, de fato, tornar-se um microcosmo.
É somente a partir da imagem da essência do homem, pesquisada pela antropologia filosófica, que é possível chegar a uma conclusão quanto aos verdadeiros atributos do fundamento supremo de todas as coisas, conclusão que é um prolongamento inverso do ato do espírito que teve sua origem no centro do homem. [...] o homem é um microcosmo, isto é, um mundo em miniatura; todas as gerações essenciais do ser, o ser físico, químico, vivo, espiritual, se encontram e se cruzam no ser do homem; e, portanto, também é possível estudar no homem o fundamento supremo do grande número, do macrocosmo. E por isso o ser do homem enquanto microteos é também o primeiro acesso a Deus. (Scheler, 1986, p. 15-16)
Paradoxalmente, é justamente este saber, o saber da salvação, que caiu no esquecimento por se priorizar o saber utilitarista; e, para recuperar o saber da salvação, será necessário o enfrentamento da superação do ressentimento (Scheler, 2012).
É evidente que o objeto central das preocupações e estudos filosóficos de Scheler foram os valores e sua hierarquização. Em sua obra clássica O formalismo na ética e a ética material dos valores, de 1916 (apudMatheus, 2002), encontram-se reunidos os elementos centrais de sua filosofia, a educação e o conceito de valores e sua hierarquia, sendo esta a hierarquia de valores, a base de Scheler sobre a objetividade deles. Ele afirma que a hierarquia de valores é universal, necessária e, ainda, concebe a hierarquia baseada na importância. Em síntese, para Scheler, os valores existem a priori da experiência de forma hierárquica, do menos importante e imediato ao mais importante e mediato, dos materiais aos vitais, éticos e religiosos, sendo estes últimos (éticos e religiosos) os únicos valores absolutos (Schulz, 2017). Os homens não inventam valores, simplesmente intuem e valoram.
Para Scheler (1916 apudMatheus, 2002), não existe nem história nem coesão social sem percepção de valores. São os valores que afastam ou unificam os homens, bem como estabelecem as distinções entre uma era histórica e as que a antecedem ou sucedem.
O homem, no entanto, não pode deixar de lado sua característica fundamental: ele é um ser em busca de valor. Ele está em constante procura do que pode valorizá-lo ou, simplesmente, do que vale para ele. Enfim, o homem é um ser em constante processo de avaliação. Dessa exigência fundamental surge o grande impasse: avaliar como? Com que referencial? Conforme a época, o local e as circunstâncias, o que é considerado “o bem” para o ser humano muito tem variado. (Werneck, 2003, p. 2)
De acordo com Scheler (1916 apudMatheus, 2002), toda e qualquer sociedade tem em sua constituição as diferentes classes, em decorrência de seu nível de poder econômico, político e cultural, e atribui a cada uma delas um comportamento consonante com os valores percebidos. Há em cada membro de cada classe algo que ultrapassa sua individualidade, que é a presença de um elemento introduzido pela classe nos valores pessoais e que Scheler denomina, a priori, de social. De acordo com ele, não há o eu sem o nós porque os valores apreendidos pela classe passam a fazer parte de toda a escala individual de valores. No entanto, isso não implica que a noção de indivíduo se esgote em sua adesão aos valores da classe à qual pertence. Estes interferem, mas não são os únicos nos quais o indivíduo se firma. Os valores materiais são dependentes das classes sociais na proporção em que assumem primazia na conduta ética. Para Scheler, os valores materiais têm exclusividade total na determinação dos atos humanos. Os materiais são mais fortes, mais prementes e mais imperativos. Precisamente por isso são objetivamente inferiores na escala de valores. Sendo positivos, em si mesmos, os valores materiais tornam-se eticamente negativos quando elevados acima dos valores superiores - os vitais e os espirituais. Estes são universais e necessariamente superiores aos valores materiais, tais quais os valores materiais, que são universais e necessariamente mais fortes e prementes que os espirituais. Instaura-se assim, mesmo que de forma implícita, uma dualidade entre os valores superiores e os inferiores, tanto na ação individual e coletiva quanto na produção do conhecimento individual e social. Segundo Scheler, não é por sua força que os valores materiais condicionam os valores espirituais, uma vez que estes, mesmo mais frágeis, permanecem e predominam no tempo e no espaço; eles têm sim maior poder, justamente por condicionarem a escolha dos valores inferiores. Consequentemente, as ações educativas, os projetos educacionais, a produção e a forma do saber, em todo e qualquer grupo social e época, decorre necessariamente da relação entre os valores inferiores e os superiores, quer dizer, têm uma relação direta e clara com a hierarquia de valores. Entretanto, a questão que inquieta Scheler é: o que é o homem e o que o difere dos outros seres vivos?
O homem é, por si, um ser superior e sublime, acima de toda a vida e seus valores, acima da totalidade da natureza; o ser em quem a psique se purificou e se libertou do serviço que presta à vida elevando-se ao espírito, a um espírito a cujo serviço se coloca agora a vida tanto no sentido objetivo quanto no subjetivo psíquico. (Scheler, 1986, p. 37)
Em síntese, o homem, para Scheler, é um ser pulsional e espiritual, tendo a educação um papel fundamental no desenvolvimento e na apropriação do saber das essências.
O princípio da pulsão representa a tendência para a reprodução, a produção econômica e a dominação, que se identifica com a espécie de saber de dominação ou realização, com os valores mais baixos, enquanto o espírito é o saber das essências e o princípio prioritário da educação. (Schulz, 2017, p. 559)
Com base em sua axiologia e no conceito de homem como ser pulsional e espiritual, Scheler (1986) define educação como humanização, um processo voltado à formação das essências e do espírito, como o é a solidariedade.
O homem tem que aprender novamente a compreender a grande e invisível solidariedade de todos os seres vivos entre si na vida total, a solidariedade de todos os espíritos no espírito eterno e, ao mesmo tempo, a solidariedade do processo do mundo com o destino da evolução do seu fundamento superior e a solidariedade deste fundamento com o processo do mundo. (Scheler, 1986, p. 120)
Como o homem é um eterno avançar e retroceder, é só por intermédio da educação que ele pode retomar seu lugar de humano. “A grande destinação seria a de chegar a ser pessoa, ou seja, chegar ao pleno valor humano” (Werneck, 2013, p. 41).
A ERA PÓS-MODERNA DE ZYGMUNT BAUMAN
Talvez não exista pior privação, pior carência, que a dos perdedores na luta simbólica por reconhecimento, por acesso a uma existência socialmente reconhecida, em suma, por humanidade. (Bourdieu apudBauman, 2008c, p. 7)
Zygmunt Bauman, de origem pobre e judaica, nasceu na cidade de Posnânia, na Polônia, em 15 de novembro de 1925 e faleceu em 2017, aos 91 anos, na cidade de Leeds, na Inglaterra. Foi um sociólogo, professor emérito de sociologia da Universidade de Leeds e de Varsóvia, o qual conquistou notoriedade nas últimas décadas de sua vida. Dedicou-se a analisar, com recurso ao conceito de modernidade líquida (Bauman, 2001), temas sobre os quais as narrativas da condição humana se desenvolveram e que, indubitavelmente, são inquietantes na contemporaneidade: emancipação, individualidade, tempo/espaço, trabalho, política, identidade, liberdade, consumo, descartabilidade, amor e comunidade. Segundo Bauman (2001, p. 15), “seria imprudente negar, ou mesmo subestimar, a profunda mudança que o advento da ‘modernidade fluida’ produziu na condição humana.” Para Anthony Giddens, Bauman tornou-se o teórico da pós-modernidade (apudBauman, 2011). Seus textos ainda são marcados pela contundência às questões éticas e humanitárias inerentes à condição humana na era pós-moderna, na qual a mudança é nossa única permanência e a incerteza, nossa única certeza.
O sucesso da vida dos homens e mulheres pós-modernos depende da velocidade com que conseguem se livrar de hábitos antigos, mais do que a rapidez com que adquirem novos. O melhor de tudo é não se incomodar com a questão dos padrões; o tipo de hábito adquirido no aprendizado “terciário” é o hábito de viver sem hábitos. (Bauman, 2008b, p. 161)
A sociedade pós-moderna exige mudanças rápidas, volatilidade, trocas e descartabilidade. É o mundo das incertezas, no qual a liberdade individual reina soberana. Sociedade na qual o indivíduo e sua autonomia estão acima da comunidade. Nas palavras de Lipovetsky (2005, p. XXI): “A cultura pós-moderna é um vetor de aumento do individualismo; diversificando as possibilidades de escolha, liquidificando os pontos de referência, minando o sentido único e os valores superiores da modernidade.”
Uma sociedade sem herança, constituída de indivíduos órfãos de verdades simbólicas e de ideias, que correm atrás da sedução das imagens, impostas de diversas formas. Na ausência de identificações, tentam arranjar uma identidade que lhes permita viver o momento e a adotam sem nenhuma firmeza ou convicção. Ou seja, os padrões identitários não são mais marcados e as referências perdem-se. Essa ausência de pontos de referência duradouros é o agente causador do grande mal-estar da instabilidade da própria identidade. O tédio da segurança na modernidade deu lugar à insônia dos indivíduos pós-modernos (Bauman, 1998). O mundo contemporâneo é um mundo desorientado, com ênfase no curto prazo. Não há longo prazo, o que significa mudar, não se comprometer e não se sacrificar, além de corroer as ideias de integridade, confiança e ajuda mútua. As redes institucionais, sociais e afetivas pós-modernas caracterizam-se pela forca de laços fracos, o que quer dizer que as formas passageiras de associação são mais úteis aos indivíduos que as relações de longo prazo e, ainda, os laços sociais fortes já não mais seduzem, já não trazem nem fazem mais sentido. A pós-modernidade não aprecia nem a lógica nem a coerência racional, estando submetida à comunicação e às imagens, sendo estas instantâneas e incoerentes. Diz Badiou (1994, p. 13): “É um mundo muito rápido e sem memória. Um mundo em que as opiniões são ao mesmo tempo extremante móveis e extremamente frágeis. Sustentar firmemente uma lógica do pensamento é, portanto, muito difícil.” Segundo Sennett (2006), como pode um ser humano decidir o que tem valor duradouro em uma sociedade impaciente, que se concentra no momento imediato? “Como pode um ser humano desenvolver uma narrativa de identidade e história de vida numa sociedade composta de episódios e fragmentos?” (Sennett, 2006, p. 27). O mundo contemporâneo é um mundo de concretudes, no qual as significações se resumem ao concreto da sobrevivência, “o sujeito se torna fruto e vítima daquilo que lhe é imposto e que o golpeia” (Da Poin, 2001, p. 14). A sociedade estrutura-se e organiza-se em torno de critérios e objetos reais, concretos, excessivos, imediatos, promovendo a alienação e o consumo não reflexivo e voraz, consumo este caracterizado por um distanciamento reflexivo que Bauman chama de consumismo. Em suas palavras: “O consumismo chega quando o consumo assume o papel chave na sociedade” (Bauman, 2008c, p. 41). O consumo é um atributo e uma ocupação do indivíduo enquanto ser humano, na mesma medida em que o consumismo é um atributo da sociedade, na qual as relações humanas são constituídas em consonância com o padrão e à semelhança das relações entre aqueles que consomem e os objetos por eles consumidos. Essa relação faz-se presente em todas as esferas da sociedade, em todas as esferas possíveis do consumo, sempre regida pela volatilidade, utilidade, publicidade e descartabilidade. A educação não escapou dessa vicissitude.
O consumismo de hoje não consiste em acumular objetos, mas em seu gozo descartável. Sendo assim, por que o “pacote de conhecimentos” adquiridos na escola e na universidade deveria escapar dessa regra universal? No turbilhão de mudanças é muito mais atraente o conhecimento criado para jogar fora, o conhecimento pronto para utilização e eliminação instantâneas, o tipo de conhecimento prometido pelos programas de computador que entram e saem das prateleiras das lojas, num ritmo cada vez mais acelerado. (Bauman, 2010, p. 43)
Segundo Bauman (2010), a educação ao longo do tempo exigiu algumas revisões e reformas. Suas características constitutivas, que até então não haviam sido questionadas, agora parecem tornar necessária sua substituição. A ideia de algo duradouro parece causar repulsa. Os objetos e os laços precisam ser descartados sem dificuldade, não se acumulam objetos. “Por que o ‘pacote de conhecimentos’ adquiridos na universidade deveria escapar dessa regra universal?” (Bauman, 2010, p. 42). A ideia da educação institucionalizada, com o conhecimento que deve ser conservado, não corresponde mais às aspirações dos jovens. Em outras palavras, a educação do tipo sólida, presente na era moderna, entra em choque com a educação do tipo líquida, presente na era pós-moderna. Uma das principais características do líquido é, por um lado, a fluidez e, por outro, a ausência de forma que, inevitavelmente, redunda numa multiplicidade delas: o líquido toma forma de acordo com recipiente no qual ele é colocado e, ainda, não passa de um produto que deve ser consumido no momento imediato e logo em seguida descartado como todo e qualquer outro.
Segundo Bauman (2008a, p. 42):
A ideia de que a educação pode consistir ainda em um “produto” feito para ser apropriado e conservado é desconcertante, e sem dúvida não depõe a favor da educação institucionalizada. Para convencer seus filhos da utilidade do estudo, pais e mães de outrora costumavam dizer que “aquilo que você aprendeu ninguém vai poder lhe tirar”. Esta talvez fosse uma promessa encorajadora para os filhos deles, mas para os jovens contemporâneos, deve representar uma perspectiva horripilante.
Um ponto bastante interessante apontado por Bauman (2010) é que, se as transformações contemporâneas são imprevisíveis, o mundo muda desafiando a verdade do saber existente, como a educação e o conhecimento poderiam representar o mundo agora? Como justificar o benefício da transmissão do conhecimento pelo professor ao aluno, por meio da experiência humana? Os professores na modernidade tinham autoconfiança para “esculpir na personalidade dos alunos, como fazem os escultores com o mármore, a forma que se presumia sempre justa, bela, boa e, portanto, virtuosa e nobre” (Bauman, 2010, p. 44). Em um mundo volátil, o conhecimento pode se dissolver no momento que é aprendido. A educação e a aprendizagem foram criadas para serem duráveis quando a memória era uma riqueza. Hoje, a memória parece ser inútil.
Em um mundo volátil, de mudanças instantâneas e erráticas, os hábitos consolidados, os esquemas cognitivos sólidos e as preferências por valores estáveis - objetivos últimos da educação ortodoxa - transformam-se em desvantagens. Pelo menos, este é o papel que lhes oferece o mercado do conhecimento, que [...] odeia a fidelidade, os laços indestrutíveis e os compromissos a longo prazo, considerados obstáculos que atravancam o caminho e precisam ser removidos. (Bauman, 2010, p. 47)
O homem pós-moderno, na leitura de Bauman, é aquele: cuja subjetividade é composta de opções de compras; que não se torna sujeito sem antes virar mercadoria, embora uma mercadoria desejável e desejada; que se organiza em torno de objetos concretos e que irá se definir pelo real da genética, dos psicofármacos, da beleza, do corpo, do sexo, enfim, irá se definir apoiado nos modelos propostos pela mídia, na qual a publicidade cria um sistema de necessidades que faz com que o homem consuma o que a indústria precisa vender e descarte aquilo que precisa ser substituído. Esse poder de decisão da publicidade sobre o homem vale também para outras questões, tais como o amor romântico e a educação. O consumo excessivo é o estandarte do sucesso e a via que leva à fama e ao aplauso. É necessário colocar em ato os verbos consumir, possuir e descartar. Essa é a condição pós-moderna para a felicidade e, talvez, até para a dignidade humana. “A alegria de ‘livrar-se’ de algo, o ato de descartar e jogar no lixo, esta é a verdadeira paixão no mundo” (Bauman, 2010, p. 41)
CONSIDERACÕES FINAIS
Bauman foi, de fato, um crítico incisivo da sociedade atual, contemporânea, que está estruturada em torno do consumo, do imediatismo, do espetáculo do corpo e do capitalismo. “Para completar a versão popular e revista do cogito de Descartes, ‘Compro, logo sou...’, deveria ser acrescentado um sujeito” (Bauman, 2008c, p. 26).
Na sociedade pós-moderna, o valor central é o capitalismo globalizado, que se expressa no consumismo, tomado como critério de felicidade e bem-estar. O homem é seduzido não só por outros homens, mas também por objetos de desejo produzidos e impostos pela mídia. Há cada vez mais personalidades individualistas, narcisistas, consumistas, inseguras perante a obrigatoriedade e a multiplicidade de escolhas a serem feitas. As relações afetivas e sociais tornam-se passageiras, fortuitas e fluidas, aumentando a fragilidade dos laços sociais e provocando um sentimento de superficialidade e vazio. Tudo se torna artifício e ilusão a serviço do lucro capitalista. A moda torna-se social e signo de poder. Ninguém é espontâneo, todos são afetados pela publicidade, a autenticidade é forçosamente forjada. Está-se dando uma ruína das identidades sociais e das personalidades, um desgaste político e ideológico. Segundo Bauman (2010, p. 69): “O que importa aos jovens é conservar a capacidade de recriar a ‘identidade’ e a ‘rede’ a cada vez que isso se fizer necessário ou esteja prestes a sê-lo. [...] As identidades devem ser descartáveis.”
A sociedade pós-moderna, chamada por Bauman (2008c) de sociedade de consumidores, não tem lugar para os consumidores falhos, imperfeitos, que saibam a diferença entre o que são e aquilo que consomem, que busquem por referências e valores duradouros. Esses consumidores, na contemporaneidade, estão presos do lado de fora ou sem lugar do lado de dentro. Vive-se numa sociedade do excesso, do imediatismo, do individualismo, do consumismo, de mudanças rápidas, de se buscarem soluções individuais para problemas sociais.
A indiscutível rapidez dos acontecimentos e a globalização da mídia e do jornalismo anestesiam o ser humano. Investe-se em si mesmo e no próprio corpo, mas não se consegue afastar a insegurança da corrida contra o tempo, o medo da velhice e da morte. Há um vazio dos sentimentos, e o desmoronamento do idealismo trouxe apenas apatia e comodismo. O que é o homem pós-moderno?
Partindo de Francis Wolff:
Segundo Kant, as três perguntas fundamentais que o homem pode se fazer são as seguintes: O que devo fazer? O que posso saber? O que posso esperar? Há, porém, ainda segundo Kant, uma pergunta mais importante ainda, a pergunta das perguntas, que é a chave para todas as outras: O que é o homem? (apudNovaes, 2009, p. 37)
Como o homem não é uma célula em estado de livre flutuação, inscreve-se, atua e circula numa dada sociedade, numa dada época; via de regra, o que o homem é reflete a hierarquia de valores de sua classe, a moral, os costumes da sociedade na era em que vive. O homem da era pós-moderna, segundo Bauman (2008c), é um produto do mercado. Se o homem pós-moderno é essencialmente um produto do mercado, isso clareia o sentido da existência humana pós-moderna, assim como permite responder às três outras perguntas: sei que posso esperar ser consumido e consumir; sei que posso saber tudo aquilo que o capitalismo e a ciência positiva revelarem e, principalmente, sei o que devo e não devo fazer, tudo que é ditado pela moda e “imposto” pela mídia.
Tomando como base a existência pós-moderna proposta por Bauman, não seria leviano dizer que o homem é escravo e senhor do consumismo, do imediatismo e do utilitarismo. Que esse mesmo homem se confunde com os objetos que consome, é portador de identidades passageiras e um viajante ansioso da realidade fluida.
O sujeito de hoje guarda uma nostalgia quase melancólica das marcas de um absoluto que não há mais e de garantias de verdade que se perderam. Vivemos em um mundo desencantado e experimentamos atualmente o mal-estar nascido dos vazios provocados pela ausência de Deus, fé e de lei. (Da Poin, 2001, p. 12)
Se, de acordo com Max Scheler, educar é humanizar, o que se traduz no ato de desenvolver o espírito, aquilo que é inerente ao homem - e é justamente essa especificidade que o diferencia dos demais seres vivos -, essa educação, faz-se urgente na contemporaneidade, para que assim ele possa rever sua hierarquia de valores, que é condicionante de suas ações e decisões.
A noção de educação liga-se à noção de valor; à descoberta, à apreensão e à hierarquização do que vale para o homem, para seu bem-estar e bem-viver. A educação se refere ao exercício da sensibilidade para a percepção e apreensão do valor, ou seja, do que pode satisfazer as necessidades e anseios humanos. Ela se dá, fundamentalmente, no âmbito da sensibilidade como processo cognitivo, e não especialmente, no da razão. (Werneck, 2014, p. 93)
De acordo com Edgar Morin (2001), os educadores precisam refletir sobre a natureza do conhecimento a ser agenciado pela escola, realçando o ensino sobre a condição humana, a identidade terrena e as incertezas que cada vez mais aniquilam a espécie humana. Isso, com vistas a desenvolver uma educação voltada para a compreensão em todos os níveis educativos e em todas as idades, que pede a reorganização das mentalidades e a ponderação do caráter ternário da condição humana, que é ser ao mesmo tempo indivíduo/sociedade/espécie. Morin (2001) conclui que há necessidade de a educação se preocupar com a ética do gênero humano, procurando estabelecer uma relação de “controle mútuo entre a sociedade e os indivíduos pela democracia e conceber a Humanidade como comunidade planetária” (Morin, 2001, p. 97).
Neste início de século, condicionado por um lado pelas consequências das mudanças rápidas, da volatilidade, das incertezas cotidianas, da estandardização do consumismo e da descartabilidade, do avanço tecnológico, da tecnicização - substituição do homem pela máquina - e, por outro, pela globalização, que tem como uma de suas principais características a desterritorialização, as relações entre os homens e as instituições, sejam elas de natureza econômica, sejam de natureza política ou social, tendem a desvincular-se das contingências do espaço, e a preocupação passa a ser com a construção de uma educação planetária que esteja voltada para a humanização. Esta tem nos quatro pilares a seguir enunciados sua base de sustentação:
Aprender a conhecer, [...] aprender a aprender, para beneficiar-se das oportunidades oferecidas pela educação ao longo de toda a vida.
Aprender a fazer, [...] no âmbito das diversas experiências sociais ou de trabalho que se oferecem aos jovens e adolescentes, quer espontaneamente, fruto do contexto local ou nacional, quer formalmente, graças ao desenvolvimento do ensino alternado com o trabalho.
Aprender a viver juntos, aprender a viver com os outros, desenvolvendo a compreensão do outro e a percepção das interdependências - realizar projetos comuns e preparar-se para gerir conflitos - no respeito pelos valores do pluralismo, da compreensão mútua e da paz.
Aprender a ser, para melhor desenvolver a sua personalidade e estar à altura de agir com cada vez maior capacidade de autonomia, de discernimento e de responsabilidade pessoal. Para isso, não negligenciar na educação nenhuma das potencialidades de cada indivíduo: memória, raciocínio, sentido estético, capacidades físicas, aptidão para comunicar-se. (Delors et al., 1998, p. 101-102)
A incerteza quanto ao destino comum da humanidade assume novas e diversas formas. Apesar das incertezas sobre a própria vicissitude, partilhada pelos habitantes do planeta, a impressão que se tem é paradoxal: nunca, anteriormente, o sentimento de solidariedade foi tão intenso e transformado em ações, mas ao mesmo tempo nunca foram tantas as divisões, os conflitos, o individualismo, a quebra dos laços sociais, os padrões utilitários que se estenderam das relações com os objetos e bens para as relações interpessoais e amorosas. A educação não escapou aos padrões utilitaristas. Houve uma mercantilização desta que está, irremediavelmente, submetida aos grilhões das leis do mercado e da moeda. Uma educação que está mais apontada para a vertente da desumanização, desviando-se, dessa forma, de seu propósito fundamental: educar para humanizar.
Talvez, ainda, seja por meio dessa educação, que por natureza tem o propósito de humanizar, que o homem tenha a oportunidade de subverter a hierarquia de valores que o rege, subordinando os valores utilitários aos vitais e, assim, recolocando-se no mundo como sujeito e não mais como mercadoria e, quem sabe até, retornando à condição da qual nunca deveria ter abdicado: a condição de humano.
De acordo com Werneck (2013, p. 53-55):
O valor vital é o fundamental e primordial para o homem. É condição para sua humanidade [...]. A própria qualificação de “humano” é entendida como elogio por significar estar acima da irracionalidade da vida, ser capaz de sentir além do instinto. Ele torna-se inumano quando abandona o que o caracteriza a sua humanidade.