INTRODUÇÃO
António de Sena Faria de Vasconcelos Azevedo, conhecido comumente por Faria de Vasconcelos, nasceu no município de Castelo Branco, em Portugal, em 2 de março de 1880, numa família de magistrados. Formou-se em direito na Universidade de Coimbra e rumou em direção à Bélgica, em 1902, para cursar o doutorado em ciências sociais na Universidade Nova de Bruxelas, grau que obteve em 1904, com o tema "Esboço de uma teoria de sensibilidade Social" (Marques, 2012). Nesse ano, foi contratado como professor para lecionar a disciplina de psicologia e pedagogia no Instituto de Estudos Avançados da mesma universidade, prosseguindo os seus estudos nesse domínio.
Faria de Vasconcelos não foi, de facto, um pedagogo de formação base, mas é conhecido como um dos principais educadores ligado à educação nova. Esse movimento assumiu-se como uma tentativa estruturada de dimensão internacional, particularmente sensível ao "terceiro-tempo pedagógico" e à pedagogia ativa, que valorizava a observação, a experimentação e a dedução como contrapontos à educação tradicional, marcadamente expositiva, memorística, passiva e mecanizada nos procedimentos, assinalada pelo autoritarismo e violência do professor e desligada da realidade social (Bonito e Sebastião, 2023).
Faria de Vasconcelos cria, em 1912, a Escola Nova de Bierges-les-Wavre. Era uma escola rural, a cerca 25 km de Bruxelas, que surgiu no âmbito do movimento internacional das "escolas novas", sendo, no caso da Bélgica, a primeira no campo (Marques, 2012) e permitindo que os alunos pudessem contactar diretamente com a quinta, o curral, a colmeia, os terrários e os aquários. Funcionou apenas dois anos escolares, sendo impedida de continuar a sua ação pela invasão alemã, em agosto de 1914.
Com essa contingência social, Faria de Vasconcelos dirigiu-se para a Suíça e foi acolhido por Adolphe Ferrière (1879–1960) e por Édouard Claparède (1873–1940) no recém-criado Instituto Jean-Jacques Rousseau. Ali abriu, em 1915, outra escola, mista, contemplando a coeducação, instalada provisoriamente no chalé de Ferrière, em Les Pleiades sur Blonay, no cantão de Vaud. Faria de Vasconcelos dedicou-se a várias atividades e, nesse mesmo ano, publicou Uma escola nova na Bélgica [Une école nouvelle en Belgique], livro testemunho da sua Escola Nova de Bierges-les-Wavre, com prefácio de Adolphe Ferrière, à época, diretor do Gabinete Internacional de Escolas Novas, dando a este a oportunidade para enunciar 30 princípios caracterizadores de uma escola nova. Essa obra só veio a ter a sua primeira tradução para língua portuguesa, publicada pela Universidade de Aveiro, precisamente passados cem anos da sua edição original (Vasconcelos, 2015).
Neste trabalho, analisam-se as principais linhas de força defendidas por Faria de Vasconcelos para a escola nova e para o ensino das ciências, com base na análise documental da sua obra Uma escola nova na Bélgica, em sinopse com autores de destaque na área da educação em ciência.
DA ESCOLA NOVA DE FARIA DE VASCONCELOS
Faria de Vasconcelos concebeu a sua escola nova como um "laboratório de pedagogia prática", que desempenhasse "o papel de explorador ou de pioneiro das escolas públicas, mantendo-se ao corrente da psicologia moderna nos meios que aplica, e das necessidades modernas da vida espiritual e material, nos objetivos que estabelece para a sua atividade" (Vasconcelos, 2015, p. 9-10). Entre os vários princípios que caracterizavam essa escola, destacam-se: a. a organização de trabalhos manuais, obrigatórios para todos os alunos, com objetivo educativo e de utilidade individual ou coletiva; b. o ensino baseado em fatos e experiências, em que a teoria se segue à prática, nunca a precedendo, e centrado na atividade pessoal da criança, numa associação entre o estudo intelectual e os demais trabalhos manuais; c. investimento nos interesses espontâneos da criança; d. trabalho individual (pesquisa, preparação de apresentações) e trabalho coletivo (troca e ordenação ou elaboração lógica em grupo dos documentos de trabalho de cada um); e. estudo de poucas matérias por dia (Vasconcelos, 2015). Na sua escola existiam, ainda, previstas recompensas ou sanções positivas aplicando-se aos trabalhos livres, com o objetivo de aumentar o poder criativo e o espírito de iniciativa; e a emulação, por meio da comparação feita pela criança entre o seu trabalho atual e o anterior.
A escola de Bierges-les-Wavre tinha particularidades especiais. Instalada em cerca de 60.000 m2, tinha dois edifícios para a prática de ensino: um de aulas, que exigiam silêncio, calma e concentração, e outro, afastado do primeiro, reservado a oficinas e laboratórios. O segundo edifício situava-se ao fundo da propriedade. Tinha quatro salas de aula, uma de desenho e um laboratório de ciências naturais, onde se faziam dissecações e existiam microscópios, coleções, aquários e terrários. À volta dos edifícios ficavam o jardim, a mata e os terrenos de cultivo.
Na organização do meio ambiente dessa escola surgiam os trabalhos manuais, em oficina, em diversos produtos, quais sejam, a madeira, o ferro e a cartonagem. Segundo o autor, esses trabalhos constituíam um fator precioso do desenvolvimento físico e intelectual da criança, contribuindo para o desenvolvimento capacidades de observação, comparação, imaginação; estimulavam o espírito de iniciativa e de construtividade, promoviam o desenvolvimento do rigor e constituíam a oportunidade de aplicar o conhecimento de outras áreas (por exemplo, das ciências naturais).
Um exemplo desses trabalhos era a construção de um grande terrário destinado ao laboratório de ciências naturais, tendo a ideia surgido numa aula de zoologia. Faria de Vasconcelos acentuou que um jovem foi encarregado, pelos colegas, para a construção desse terrário, porém não partira à aventura sem conhecer os meios disponíveis. Primeiramente, houve um período de investigação, de documentação prévia.
Os trabalhos manuais não se faziam por simplesmente fazer: tinham uma utilidade relacionada com a vida real, expressão de ideias e satisfação de necessidades pessoais (desejo de construir, imaginar, criar; gosto pela fantasia e pela invenção) ou necessidades sentidas pelo ambiente social no qual a criança se desenvolvia, vivia ou trabalhava.
A par dos trabalhos manuais, desenvolvia-se a educação intelectual. Vejam-se alguns dos seus princípios. A escola, com os seus edifícios e campos, constituía o ambiente vivo, real e natural, que poderia ser o livro sempre aberto da ciência. Para o efeito, a criança tinha contacto direto com as formas de vida, podendo observar, ver, experimentar, agir, manipular, criar e construir. O ensino estava adaptado à evolução natural da criança, tendo em conta as suas necessidades, interesses e curiosidades. Assim, por exemplo, a descrição das características externas dos seres, os seus costumes, a sua vida e utilidade precedia o conhecimento das suas caraterísticas fisiológicas e o estudo das classificações.
Tudo isso era feito em harmonia com a evolução natural das necessidades da criança, mas também com o desenrolar que seguiu na história das ciências que se lhe ensina. Conduzia-se a criança a reconstituir a ordem em que as várias construções científicas foram sendo alcançadas, fazendo corresponder as etapas do ensino das ciências às etapas da sua formação e desenvolvimento. A esse propósito, Faria de Vasconcelos considera que ninguém se atreveria a contestar que aquela era a ordem verdadeiramente natural segundo a qual era conveniente apresentar os conhecimentos, além de que:
a criança que percorre estas etapas, que redescobre assim as várias ciências, que experimentou por si, atuou, procurou e encontrou, não esquece o que aprendeu. Sob a orientação de professores, ela faz por conta própria, nas áreas que estuda, experiências, verificações e descobertas que levaram as ciências ao estádio de desenvolvimento em que se encontram hoje em dia. Isso permite-lhe adquirir conhecimentos numa ordem natural e lógica e mantê-los de uma forma precisa, pessoal e duradoura. (Vasconcelos, 2015, p. 72)
Faria de Vasconcelos sublinhou a aquisição por parte das crianças de bons métodos de trabalho como vantagem, uma vez que a sua reconstrução pessoal de todas as peças que constituem o corpo da ciência tem significado elevado na sua vida: além de possuírem os conhecimentos, saberem servir-se deles, utilizá-los e aplicá-los. Daí que a "instrução" fosse essencialmente educativa; não somente encher, mas formar o espírito da criança, fazendo apelo constante à sua curiosidade, interesse e colaboração ativa. Por isso, ensinava-se o mínimo possível fazendo com que se descobrisse o mais possível, num esforço pessoal de pesquisa e descoberta.
Para a factibilidade dessas ideias, era necessário ter um número limitado de alunos em cada turma, já que Faria de Vasconcelos se opunha a um ensino coletivo aplicado a um número elevado de alunos. Objetivamente, o autor pontuou que no segundo ano de existência da escola havia 25 alunos na Páscoa. No ano seguinte já havia 35, e a sua intenção era de não ir além dos 60. Faria de Vasconcelos sabia que um ensino igual para todos só era dirigido a um número restrito de alunos, aqueles que representam a média em termos de desenvolvimento intelectual. Os mais capacitados sentiam-se a marcar passo e desinteressavam-se; os mais fracos não acompanhavam e ficavam para trás. Para evitar isso, a educação deveria beneficiar todos, ou seja, considerar as desigualdades naturais que existiam entre os alunos, o seu grau de desenvolvimento intelectual, as suas aptidões e as suas necessidades intelectuais.
É precisamente das escolas novas que surgiu a ideia das classes móveis por disciplina. Os alunos eram agrupados de acordo com as suas aquisições e capacidades, de modo que uma criança poderia estar no 6.° ano em francês, no 5.° em inglês e no 4.° em matemática. Cada aluno tinha, assim, o seu programa próprio de aprendizagem e o seu próprio horário. Tal obrigava a um número elevado de professores: para os 25 alunos existiam 17 professores.
A duração de cada aula era de cerca de 45 minutos, com um intervalo de 10 a 15 minutos até a seguinte, de modo a renovar as disposições de vontade, atenção e interesse. As aulas decorriam no período da manhã e, pela tarde, realizavam-se trabalhos manuais, visitas de estudo em grupo e o trabalho e estudo individuais. Mas não se tratava de um horário estanque: um professor poderia concluir a sua aula antes de decorridos os 45 minutos e poderia dar-se o caso de haver aulas, em caso de necessidade, no período da tarde.
Faria de Vasconcelos preocupava-se com a interdisciplinaridade ou, mais em concreto, com a ausência dela e a dispersão de se estudar uma infinidade de assuntos sem nenhuma ligação ou relação orgânica sensível entre si. Para contrariar essa disseminação disciplinar, concentrou um conjunto de áreas num trimestre que tivessem relação entre si. Assim, por exemplo, nos trimestres da primavera e verão, ocupavam-se mais eficazmente da zoologia e da botânica, diminuindo o estudo de outras áreas, que era desenvolvido nos trimestres de outono e inverno (Vasconcelos, 2015).
Essa medida aplicava-se também à gestão da aula: numa manhã era estudada apenas uma área e não uma variedade delas. Por exemplo, numa manhã se reuniam as ciências experimentais: alternativamente, química e física. Ficava-se com tempo suficiente para manipular, fazer experiências, realizar pesquisas. Destaca o autor: "é apenas nesta condição que o trabalho é realmente produtivo, porque eu não posso conceber que numa hora se faça ciência experimental, permitindo à criança agir e construir" (Vasconcelos, 2015, p. 80).
Essa organização permitia dispor de tempo para se dedicar a um tema, favorecendo o desenvolvimento da inteligência e do caráter, para que se sentisse ao vivo a necessidade das qualidades da paciência, tenacidade e a continuidade do esforço. Ao estudar um animal ou grupo de animais, por exemplo, ligavam-se os conhecimentos comuns a outras áreas (geografia, história, botânica, física, química), apelando à observação, experimentação, leitura, diálogo, redação e desenho.
Imagine-se uma lição de zoologia, que Faria de Vasconcelos apresenta como exemplo do seu clímax de interdisciplinaridade. O estudo da respiração necessita de envolver a química para explicar fatos e experiências sobre o oxigênio e o carbono. Mas o estudo dos ossos tem de recorrer à física, porque as articulações funcionam como alavancas, ou à química, para se ocupar da composição dos ossos.
DA DIDÁTICA DAS CIÊNCIAS NATURAIS
Para elaborar a sua didática das ciências naturais, Faria de Vasconcelos apoia-se em autores contemporâneos à época. Veja-se, por isso, algumas dessas influências e orientações práticas, gerais e sumárias, para que se possa compreender como é que a sua escola nova aplicava o programa de ciências naturais.
Socorrendo-se das ideias do biólogo inglês Herbet Spencer (1820–1903), Faria de Vasconcelos defendia que as ciências naturais respondiam às necessidades e interesses intelectuais das crianças, uma vez que a maioria era instintivamente naturalista, constituindo, por isso, a base e o pivô da educação intelectual das crianças com 7–10 anos. Os alunos eram agrupados e distribuídos em quatro secções, função das suas idades. As ciências naturais tinham lugar nas três primeiras, que incluíam crianças dos sete aos 17 anos.
Herbet Spencer atacou a ortodoxia da época, não com base na sua experiência de ensino ou estudo profissional da educação, mas antes com argumentos procedentes da teoria da evolução, pronunciando-se agressivamente sobre o desenvolvimento infantil, o currículo e os métodos de ensino (Holmes, 1994). Reclamou que o que era ensinado nas escolas não tinha valor prático e que a ciência deveria substituir as línguas clássicas no currículo, constituindo, na verdade, todo o currículo.
Para Herbet Spencer, o ensino deveria partir do concreto para o abstrato, por intermédio de exemplos, de modo que o pensamento fosse conduzido do particular ao geral. Por isso, as crianças deveriam ser conduzidas a realizar as suas próprias investigações e a tirar as suas próprias inferências, sendo informadas o mínimo possível e induzidas a descobrir o máximo possível (Holmes, 1994). Herbet Spencer propôs que, em vez de se adquirirem conhecimentos pelo prestígio social e poder que conferiam, a educação deveria ser de uso prático para os seus destinatários. À pergunta "para que serve", Herbet Spencer responde que seria para ajudar os indivíduos a viver de modo satisfatório.
Para os trabalhos práticos, Herbet Spencer considera que não há mais do que seguir o ensinamento da natureza. Os sentidos deveriam ser educados pela observação, fundamentados na ideia de que, "se for desprezada a educação dos sentidos, toda a outra educação se ressentirá d'uma letargia, d'uma indolência, d'uma insuficiência impossíveis de remediar" (Spencer, 1927, p. 79, apudDuarte, 2010, p. 41).
Muitas destas ideias de Herbet Spencer são criticáveis. Ainda assim, por mais extremas que possam parecer, pode-se argumentar que atualmente cada problema social tem um componente científico e que encontrar soluções envolve uma compreensão de alguns elementos da ciência. Veja-se, na continuação, as vantagens da aprendizagem das ciências naturais elencadas por Faria de Vasconcelos.
Faria de Vasconcelos considerava que as crianças, no período de 7–10 anos, têm um papel extremamente importante em termos de aquisição de hábitos de trabalho, de sentido crítico, de controlo e pesquisa científica. O contacto direto com a realidade, as formas da natureza e da vida e com as realidades e formas do trabalho humano seriam aspetos determinantes. O ensino das ciências naturais deveria, por isso, obedecer a um conjunto de princípios.
Observação e experiência. Retomando as ideias de Herbet Spencer, Faria de Vasconcelos entende que para o ensino ser interessante e vivo deve ser tornado concreto, isto é, colocar as crianças diante das coisas, dos fatos da natureza. Defende, por isso, que se estuda zoologia por meio do estudo direto das realidades concretas e vivas e não unicamente por livros.
Características mais evidentes e meio local. Deve-se partir dos aspetos mais imediatos, dos animais, de plantas, da terra e as que estão ao redor. Por isso, estudam-se, primeiramente, as camadas geológicas, os depósitos e aluviões dos terrenos da escola, a geologia do ambiente mais próximo.
Natureza prática do ensino. Deve-se dar a conhecer a utilidade de seres vivos e das formações geológicas para o ser humano, bem como os processos da sua transformação industrial.
Elaborar ideias gerais. Não se trata de memorizar unicamente. É preciso chegar gradualmente a esquemas conceituais acerca das leis naturais, permitindo chegar a generalizações, a grupos sintéticos e a classificações.
Entendimento sistêmico. Associado todo o conhecimento (física, química, geologia…), que se relaciona com determinado objeto, seria possível chegar a um conhecimento holístico dos fenômenos.
Na escolha dos métodos didáticos, Faria de Vasconcelos defendeu que o "bom senso pedagógico do professor saberá escolher", para cada um dos graus de ensino, "os processos, exercícios e meios de trabalho que mais particularmente lhe convêm, ampliando ou restringindo o seu âmbito e alcance" (Vasconcelos, 1923, p. 10). Veja-se, então, como se estruturava uma aula de ciências naturais da sua escola.
O trabalho prático era assumidamente considerado estruturante para a aprendizagem das ciências. O estudo prático da anatomia e da fisiologia, em zoologia e botânica, era realizado por meio de dissecações e preparações anatômicas feitas pelos alunos. Faria Vasconcelos distinguia esse tipo de trabalho prático das experiências, aulas que consistiam, por exemplo, no estudo do movimento, da circulação, da respiração, da digestão dos alimentos e outros imensos temas. Seguiam-se as visitas de estudo e a manutenção de um jardim, de cultivo e experiências. Em geologia, realizavam-se igualmente experiências, reproduzindo diversos fenômenos geológicos: meteorização, ciclo da água, movimentos do solo. Os fenômenos geológicos eram observados diretamente em visitas de estudo a dunas, pedreiras, minas, grutas, cortes, obras de engenharia (alicerces, poços), zonas de sedimentação e de erosão, galerias etc.
Pela sua importância, a escola dispunha de coleções, feitas pelos alunos, para responder a um interesse natural e para representar, tanto quanto possível, o meio envolvente (por exemplo, rochas, minerais, insetos, folhas). A cartonagem, a modelagem e a carpintaria são trabalhos manuais que apareciam associados ao desenho, essenciais para exprimir e ilustrar as aquisições e as descobertas realizadas.
A sala de aula tinha à sua volta terrários, aquários, frascos de vidro com preparações anatômicas, com odor característico. Começava-se pela preparação do plano de trabalho a realizar. Perguntava-se, questionava-se, respondia-se de um lado e de outro; estabelecia-se a discussão, que resultava num programa determinado de atividades bem definidas. Acordava-se um conjunto de observações e comparações a fazer sobre um, dois ou três animais.
Feitas as anotações, os alunos poderiam permanecer na sala e realizar a dissecação ou as preparações anatômicas e microscópicas. Cada aluno tinha a sua própria bolsa de dissecação, com o seu pequeno microscópio e a sua lupa. Seguia-se, depois, a pesquisa em todos os documentos disponíveis: observações, experimentações, resultados pessoais, atos que podem ser feitos em qualquer lugar da escola. Havia, portanto, um plano elaborado em sala de aula e um conjunto de questões criadas cuja resposta se obtém das observações necessárias.
Concluída a pesquisa, regressava-se à sala e apresentavam-se os resultados ao professor e aos colegas. Nesta terceira fase da aula, fazia-se o ponto de situação das observações realizadas, a correção, perante os animais estudados, dos registos incorretos ou desenho a aperfeiçoar e a necessidade de adquirir conceitos complementares. Na quarta fase, classificavam-se e agrupavam-se definitivamente os documentos, observações e experiências reunidas: era a organização sistemática da aula. No tempo individual de estudo, o aluno passava a limpo, para caderno próprio, a lição preparada na sala de aula por ele próprio, pelos colegas e pelo professor. Tratava-se da redação. A aula era, por assim dizer, "um pedaço de vida, porque associamos o aluno a tudo o que acontece à sua volta" (Vasconcelos, 1923, p. 92).
Mensalmente, um aluno e um professor realizavam uma conferência, em contraditório, sobre um tema à sua escolha, dirigida à escola, aos pais e aos amigos. No boletim da escola, relatavam as suas próprias conferências, as dos colegas e as dos professores.
Para que tudo isso se realizasse seria necessário um conjunto de recursos colocados à disposição dos alunos: livros, laboratórios e oficinas. Os jornais diários, por exemplo, eram facultados aos alunos: aí se encontrava uma fonte preciosa de informação e notícias que poderiam ser discutidas, compreendidas e interpretadas. Cortavam-se as notícias dignas de nota e classificavam-se os recortes por áreas, sendo coladas em cartões para uso dos alunos.
Tudo isso acontecia porque não existiam livros didáticos para os alunos na escola de Faria de Vasconcelos. Não se seguia nenhum. Faria de Vasconcelos era contra compêndios, principalmente por entender que não existiam manuais elaborados em harmonia com o seu plano de estudos. Disse que, "para desenvolver nos alunos o espírito crítico, o controlo da mente e criar neles hábitos de documentação e pesquisa, é absolutamente necessário libertá-los da escravidão intelectual e moral do manual" (Vasconcelos, 2015, p. 96). Apelou, por isso, à observação, à experimentação, à pesquisa e às descobertas pessoais, interessando-lhe que os alunos agissem e pensassem por si próprios. Que fossem eles próprios a organizar, coordenar e sistematizar aquilo que aprendiam pela sua própria experiência pessoal.
Ainda que as experiências e pesquisas realizadas em laboratório ganhem se feitas com instrumentos precisos e rigorosos, há por vezes interesse educativo aumentado quando o aluno constrói o seu próprio dispositivo. É aqui que entra o papel das oficinas. Na Escola Nova de Bierges-les-Wavre, às crianças era dada a liberdade de usar o laboratório de modo livre: tinham acesso a todos os instrumentos de pesquisa, com ou sem o professor presente. Faria de Vasconcelos acreditava que o professor fazia ciência experimental quanto realizava uma experiência em frente dos alunos, mas considerava a assistência à demonstração insuficiente: era necessário que o aluno realizasse a sua própria experiência (Vasconcelos, 2015).
Faria de Vasconcelos revelou como preparava uma visita de estudo. A preparação traduzia um trabalho coletivo. A turma nomeava até três alunos, responsáveis pela preparação da viagem, consoante a importância e amplitude do projeto, para preparar e organizar a visita dos pontos de vista material e intelectual. O primeiro passo era saber, exatamente, o que se ia observar, localizando o máximo possível do que se poderia ver em dois ou três pontos da região, evitando deslocações inúteis e perda desnecessária de tempo. Para o efeito, reuniam-se os livros considerados necessários, para se lerem atentamente com a tomada de notas do que fosse interessante e acréscimo de alguma ideia própria. Depois, determinavam-se os pormenores materiais da viagem: dias, datas, alojamento, alimentação, transportes, autorizações de visitas e os pequenos pormenores. Por fim, havia que preparar os colegas, por meio de leituras e durante as aulas, de modo a que fossem capazes de entender tudo que iriam visitar.
Durante a visita, a comissão organizadora tinha a missão de fornecer informações no local e explicações complementares. O guia mostrava o caminho a percorrer, apoiando-se nos alunos mais velhos. Toda a logística era preparada por essa comissão.
Terminada a visita de estudo, o trabalho continuava. Registavam-se os fatos dignos de interesse. A turma nomeava o(s) colega(s) que iria(m) realizar conferências sobre a visita de estudo para os demais colegas, pais e amigos ou, se se justificasse, organizar uma exposição de documentos, fotografias, mapas, gravuras, notas e produtos, tudo recolhido durante a viagem. Essas atividades pós-visita tinham por objetivo realizar uma síntese, ou seja, um quadro vivo do trabalho realizado, revelador dos resultados obtidos.
Ao professor cabia o papel, antes da visita de estudo, de contribuir para o trabalho de pesquisa e documentação. Durante a visita, ele fornecia informações e explicações que a comissão organizadora não fosse capaz de produzir ou que os outros participantes não tivessem conseguido entender. O professor orientava, esclarecia, corrigia e completava o trabalho dos alunos organizadores. Era um guia das aprendizagens.
A avaliação das aprendizagens deveria corresponder ao resultado do esforço realizado pelo aluno, comparando com o seu próprio esforço e os resultados do seu trabalho no passado. No processo de avaliação de determinado aluno eram envolvidos os professores, os colegas e o próprio aluno. A avaliação era expressa por um número e resultava da média dos intervenientes.
Em síntese, Faria de Vasconcelos é um homem que acompanhava, e bem, o conhecimento científico da sua época. Revelava uma leitura sintópica de vasta literatura, da Europa e dos Estados Unidos da América, que lhe permitia sintetizar os grandes pilares da didática das ciências de então, tão pertinentes e coincidentes com os que ocuparam os pedagogos nas gerações seguintes. Tinha pensamento sobre a importância da educação científica na formação cidadã e a compreensão da natureza do conhecimento científico (Cleminson, 1990). A sua visão revela a integração de saberes e perspetiva holística e o desenvolvimento do ensino em contexto (Barab et al., 2006), com base no estudo de ideias prévias (Akerson, Flick e Lederman, 2000).
Faria de Vasconcelos preconizava uma didática assente num conjunto de pressupostos, muitos deles que viriam a constituir, passado um século, o âmago da educação em ciência. Defendia-se uma aprendizagem ativa, com base no aprender fazendo e no desenvolvimento de atitudes científicas (Murugan, 2019). O seu pensamento didático envolvia trabalho prático e experimental (Parcerisa, 1996; Pedrinaci, 2000; Millar, 2004; Abrahams e Millar, 2008; Orion, 2010), atividades realizadas em ambientes exteriores à sala de aula (Behrendt e Franklin, 2014; Marques, 2019) e raciocínio e resolução de problemas (Leite e Dourado, 2013). São identificadas descrições que revelam práticas orientadas para competências na área da linguagem, textos, informação e comunicação (Kulgemeyer e Schecker, 2013), a par do pensamento crítico e criativo e para o interesse (Mora, 2014) e desenvolvimento pessoal e autonomia. O modelo de escola de Faria de Vasconcelos representa uma escola ativa (Bartolomeis, 1977), de base interdisciplinar, que critica o uso do manual do aluno (Gérard e Roegiers, 1998; Koster, 2002). Mas a escola não estava isolada. Algumas das atividades desenvolvidas poderiam ser realizadas por escolas de outros meios.
Faria de Vasconcelos não deixou de pensar, igualmente, na inclusão de todos os alunos e na educação integral (Bonito e Sebastião, 2023). Assumiu que existiam desigualdades naturais, isto é, alunos com grau de desenvolvimento intelectual, aptidões e necessidades intelectuais distintas, pelo que seria importante cada um ter o seu programa próprio de aprendizagem. Projeta a sua escola nova como um "laboratório de pedagogia prática, no qual os trabalhos manuais, a vida no campo, a educação física, tudo isso contribuiria para o desenvolvimento de uma cultura geral do espírito, muito para além da somatória e do acúmulo de conhecimentos memorizados" (Boto, 2019, p. 4). Trata-se de um dos autores mais empenhados em mostrar e proclamar a cientificidade do discurso pedagógico, libertando-se do empirismo (Pintassilgo, 2018). Apela, por isso, à observação, à experimentação, à pesquisa, às descobertas pessoais, interessando que os alunos ajam e pensem por si próprios.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Escola Nova de Bierges-les-Wavre de Faria de Vasconcelos pretendia preparar a criança para a vida ativa real, com o desenvolvimento de todas as potencialidades do seu ser, por meio de métodos de educação integral. Procurava-se a formação do ser humano e a do profissional; dito de outro modo, cultura geral e especialização. O que importava na Escola Nova não era que as crianças apenas possuíssem conhecimentos, mas, sobretudo, que pudessem servir-se deles, utilizá-los e aplicá-los. Por isso, rejeitava-se o ensino tradicional e enciclopedista. Concebeu ele, então, uma estrutura assente em dois pilares: uma aula poderia ocorrer em qualquer lugar e não era uma mera exposição para a reprodução memorística pelo aluno. Caberia ao aluno organizar todos os dados em colaboração com o professor e os colegas.
Faria de Vasconcelos defendia que o ensino das ciências naturais constituía a base e o pivô da educação intelectual das crianças com 7–10 anos, que deveria ter os princípios biológico e físico-químico a presidir a sua organização. Deveria dispensar-se o mais possível o livro, como texto de lições. As metodologias de ensino deveriam privilegiar a intuição, a atividade, a observação e experimentação, a indução, a atitude científica, os interesses e as capacidades naturais, competência de raciocínio, espírito e técnica da disciplina. O ensino deveria partir do concreto para o abstrato, por intermédio de exemplos, de modo que o pensamento fosse conduzido do particular ao geral, com os alunos a formarem uma ideia de um todo, em que a diversidade dos pormenores se combinasse na harmonia do conjunto. O autor reforçou a ideia de que no ensino das ciências o papel do professor era primordial. Da sua iniciativa, consagração e boa vontade nasceria o triunfo sobre inúmeras dificuldades, realizando-se a obra de um verdadeiro educador.
A escola deveria ensinar o mínimo possível fazendo com que os alunos descobrissem o mais possível, num esforço pessoal de pesquisa e descoberta. Os alunos eram incentivados a assumir responsabilidades, pelo que o papel do self-government na aprendizagem era estruturante, adquirido pelos exercícios e pela experiência. Cabia aos alunos, por isso, a missão de organizar, coordenar e sistematizar aquilo que aprendiam pela sua própria experiência pessoal. Ao professor cabia o papel de guia das aprendizagens. No processo de avaliação das aprendizagens eram envolvidos o professor, os colegas e o próprio aluno.
Faria de Vasconcelos é um homem curioso e interessante. Curioso, pela audácia em acreditar que poderia contribuir para a formação integral do ser humano, expressão que teve o seu clímax com a sua escola nova na Bélgica. Interessante, por se tratar de um cidadão de língua portuguesa. Acompanhando Fernandes (1979), Duarte (2010), Diniz (2002), Sousa Machado (2016), Felgueiras (2020) e Martins (2019a; 2019b), o nome de Faria de Vasconcelos deveria figurar com destaque entre os grandes pensadores pedagógicos a estudar na formação inicial de professores e, mais além, ser motivo atual de reflexão no estado em que está o ensino das ciências em Portugal.