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Ciência & Educação

versão impressa ISSN 1516-7313versão On-line ISSN 1980-850X

Ciência educ. vol.30  Bauru  2024  Epub 19-Nov-2024

https://doi.org/10.1590/1516-731320240060 

ARTIGO ORIGINAL

A ressignificação de conceitos astronômicos por meio da observação astronômica

Astronomical concepts resignification through astronomical observation

1Instituto Federal de São Paulo (IFSP), Departamento de Ciências e Matemática, São Paulo, SP, Brasil

2Universidade de São Paulo (USP), Instituto de Física, Departamento de Física Aplicada, São Paulo, SP, Brasil


Resumo

Neste estudo apresentamos o processo de complexificação de conceitos astronômicos por meio de uma atividade escolar de observação de um planeta por telescópios. Durante esta atividade, acompanhamos o desenvolvimento do conceito do objeto observado. Por meio da negociação de significados e a ampliação dos instrumentos mediadores estabelecidos e desenvolvidos com parceiros mais capazes, o objeto observado, inicialmente tratado como uma estrela, foi complexificado e ressignificado como planeta. Analisamos o desenvolvimento conceitual por meio da Teoria da Atividade Cultural Histórica como um processo de complexificação do conceito. Os dados foram coletados por meio de gravações de voz, imagens fotográficas e registros escritos ao longo do desenvolvimento da atividade de observação astronômica. A partir da análise foi possível identificar que novas mediações foram estabelecidas durante a interação dos sujeitos com o pesquisador e os instrumentos de observação, que possibilitaram enunciados mais complexos, permitindo identificar a ‘transformação’ de estrela em planeta.

Palavras-chave: Teoria da atividade cultural histórica; Ensino de astronomia; Conceito científico; Observação astronômica

Abstract

In this study, we present the process of understanding complex astronomical concepts through a school activity that involved observing a planet with a telescope. During this activity, we tracked the development of the concept of the observed object. Through discussions and interactions with more knowledgeable partners, the object initially identified as a star was reinterpreted and understood as a planet. We analyzed this conceptual development using the Theory of Historical-Cultural Activity, viewing it as a process of increasing complexity. Data for this study was collected through voice recordings, photographs, and written notes made during the astronomical observation activity. We were able to identify that new forms of mediation emerged during the interactions between the participants and the researcher, as well as with the observation instruments. This interaction allowed for the development of more complex ideas and facilitated the ‘transformation’ of the object from a star to a planet.

Keywords: Cultural historical activity theory; Astronomy teaching; Scientific concept; Astronomical observation

Introdução

Desde os primórdios da humanidade, várias atividades humanas se desdobraram em sincronia com o fluxo dos fenômenos naturais, como as fases lunares, a disposição das estrelas no firmamento e as mudanças das estações do ano. O desenvolvimento dessas atividades sociais culmina, algumas vezes, em sínteses instrumentais que nem sempre expressam a história da sua produção, como é o caso dos calendários (Sodré; Mattos, 2022). Estes instrumentos tornaram-se, independentemente de sua história de criação, objetos sobre os quais as várias sociedades humanas se organizaram em seu entorno, pois com ele era possível identificar as melhores épocas para a agricultura, para a caça ou para os festejos religiosos (Elias, 2007).

Por outro lado, outros fenômenos não tão regulares, como os eclipses, passagem de cometas ou impactos físicos de meteoritos, eram relacionados, em sua maioria, às vidas cotidianas numa perspectiva mítica. A interpretação social de tais fenômenos determinava (e era determinada) por axiologias dominantes nos diferentes momentos históricos em que os fenômenos ocorriam. Tais interpretações, a cada época, foram preservadas por meio de registros iconográficos, arquitetônicos ou mesmo por meio da literatura, como no caso do renascimento (Bon et al., 2010).

A importância das relações historicamente estabelecidas entre tais fenômenos celestes e os fenômenos terrestres, se expressa na produção de modos de sobrevivência das sociedades primitivas, que tinha como base a possibilidade de previsão dos fenômenos e de suas consequências. Assim, de certo modo, se estabeleceu, na observação dos fenômenos celestes, a busca de relações com os mais diversos acontecimentos terrestres, nascimentos, mortes, boas ou más colheitas, datas comemorativas, entre outros (Mozaffari, 2012).

Inicialmente, parte dessa atividade se desenvolveu como Astrologia (Gregory, 1947; Pannekoek, 1930). No entanto, na medida em que novos instrumentos - cuja acurácia e precisão permitiram a construção de modelos preditivos mais bem-sucedidos - eram desenvolvidos, este conhecimento foi se estabelecendo nas práticas sociais como atividade científica da Astronomia. A atividade de observação do céu, que está na raiz de ambas as perspectivas - Astrológica e Astronômica -, permitiu o mapeamento da abóboda celeste a partir da Terra e a caracterização dos objetos visíveis e de suas trajetórias e ciclos nas diferentes épocas. Tais observações foram sintetizadas numa cartografia da esfera celeste que, ao longo do tempo, serviu como instrumento para sustentar diversas atividades humanas, tais como as viagens marítimas e terrestres (Medeiros; Medeiros; Monteiro Junior, 2004).

Atualmente, a maioria das pessoas não tem consciência de como as observações celestes estiveram visceralmente ligadas ao desenvolvimento das atividades humanas ao longo da história (Carvalho, 2016). Isso se manifesta no baixo interesse que jovens e adultos têm em observar o céu. Ao longo do tempo, nos afastamos das atividades sociais que determinaram o significado do céu, da posição e do movimento dos astros ‘visíveis’ como instrumento de compreensão do mundo terreno. Hoje em dia, tais significados vêm sendo determinados pelas formas como a astronomia é ensinada e divulgada que, em sua maior parte, não se refere às atividades que os sustentam. A divulgação da astronomia tem se valido de instrumentos mediadores que são expressão das sínteses das atividades

científicas como, por exemplo, telescópios espaciais, que produzem imagens as quais dificilmente podem ser superadas em impacto quanto aquelas que são feitas a olho nu ou com telescópios amadores. Por outro lado, tais imagem espetaculares, normalmente tratadas, não permitem que os sujeitos compreendam as mediações necessárias para construí-las, dando a ideia de que estas imagens são o próprio objeto observado.

Apesar da escassez das atividades de observação do céu, há um reconhecimento acadêmico e escolar de que são importantes para que as pessoas reconheçam seu lugar no universo. Nessa perspectiva, os assuntos de astronomia continuam sendo pautados em currículos escolares, nos diversos níveis de ensino da educação básica e em diferentes graus de profundidade (Soler, 2012).

A demanda do ensino de Astronomia, particularmente na escola, gera uma contradição quando são utilizadas metodologias de ensino que têm como princípio a necessidade de que os conhecimentos científicos devam ser relacionados com os conhecimentos cotidianos, aqueles mais próximos dos estudantes (Lago; Ortega; Mattos, 2020). Entretanto, como a relação entre os fenômenos astronômicos e o mundo mais imediato das pessoas não está mediada pelas construções históricas, o conteúdo da Astronomia perde seu sentido mais pragmático e imediato, aparentando estar distante das vidas dos estudantes (Lago; Ortega, Mattos, 2018). Tal constatação reforça a ideia do envelopamento escolar, ou seja, o conhecimento escolar só tem sentido dentro da escola e não na vida dos estudantes (Engeström, 1991).

Reconhecida a importância histórica da observação celeste na construção da ciência astronômica, tal atividade passou a ser considerada central na educação em astronomia. A observação astronômica é citada como uma atividade importante em vários trabalhos da área de ensino de ciências. Em sua maioria ressaltam que o contato com o céu é fundamental para o entendimento de fenômenos astronômicos (Azevedo; Mann, 2017; Barclay, 2003; Bretones; Compiani, 2010; Kim, 2017; Klein et al., 2010; Okulu; Oguz-Unver, 2015; Saçkes; Smith; Trundle, 2016; Stanger, 2010). Além disso, algumas pesquisas demonstram o grande potencial motivador que a Astronomia observacional pode gerar sobre as pessoas, tanto em ambientes de educação formal quanto informal (Costa Júnior et al., 2018). Assim, em um primeiro momento, a atividade de observação do céu inicia a tomada de consciência da dificuldade e da beleza de compreendermos os movimentos do universo, incluindo o próprio movimento da Terra. Do ponto de vista da Teoria da Atividade Histórico Cultural (TAHC), a transformação destas atividades iniciais acarreta, também, na transformação dos significados dos conceitos por ela sustentados (Lago; Mattos, 2021).

Assim, neste trabalho, a partir da perspectiva da TAHC, desenvolvemos uma atividade educacional objetivando o desenvolvimento da consciência dos estudantes a partir da observação do céu. Particularmente, na microgênese da atividade escolar, investigamos, o processo de significação de um objeto celeste observado por estudantes do ensino médio. A atividade de observação do céu foi desenvolvida em uma escola pública brasileira de ensino médio. Os resultados se referem à parte da atividade na qual os estudantes tiveram oportunidade de observar um corpo luminoso no céu, incialmente identificado como uma estrela, mas que, posteriormente, foi reconhecido como o planeta Vênus. Exploramos o desenvolvimento das relações conceituais feitas pelos estudantes, por meio das interações com outros estudantes e com o pesquisador que coordenou a atividade. Assim, além de registrados e analisados os enunciados relativos ao processo de ressignificação do objeto

observado, também foram analisados os enunciados relativos aos instrumentos, identificando novas mediações entre os estudantes e os instrumentos de observação disponíveis na atividade. Como resultado final, identificamos as transformações do objeto por meio das transformações dos sentidos atribuídos ao objeto, inicialmente tratado como ‘estrela’ e posteriormente como ‘planeta’.

Referencial teórico

Teoria da Atividade Cultural Histórica (TACH)

A psicologia cultural-histórica tem seu início com os trabalhos de Lev Vygotsky, no início do século XX, na antiga União Soviética. Tomando posição contrária às perspectivas subjetivistas das teorias psicológicas que o precederam no campo da Psicologia, Vygotsky desenvolveu uma perspectiva dialética da relação entre sujeito e objeto, introduzindo a ideia de mediação como forma de compreender os processos de desenvolvimento dos seres humanos no mundo. Além disso, Vygotsky introduziu o método genético, com o qual pretendia captar o movimento complexo do desenvolvimento humano em diferentes e simultâneos níveis hierárquicos. Nessa perspectiva, o ser humano se desenvolve tanto na escala filogenética, como na ontogenética, na sociogenética e na microgenética. Tais níveis de desenvolvimento expressam, na verdade, a complexidade da determinação do que é o ser humano. Essa radicalidade na investigação de Vygotsky pretendia, assim como Marx fez para o capital burguês, construir uma lógica própria dos fenômenos da psicologia humana (Rodrigues; Camillo; Mattos, 2014).

Alexei Leontiev, colaborador de Vygotsky, deu continuidade aos seus trabalhos de pesquisas aprofundando o conceito de Atividade humana. Para Leontiev (1978, 2004), a atividade é desenvolvida por meio de ações conscientes coordenadas pelos sujeitos, que têm, cada uma, seu fim específico e não necessariamente coincidente. Tais ações estão determinadas por operações, que são as condições concretas de sua realização, e que estão fora da consciência imediata dos sujeitos. A atividade responde, primeiramente e de forma direta, às necessidades humanas. Por exemplo, a atividade de ensino-aprendizagem é um conjunto coordenado de ações de alunos e professores que se movem em direção a um objetivo comum (o aprendizado de um conteúdo), o qual é a manifestação concreta do motivo da atividade (educar o estudante), que surge de uma necessidade coletiva (formação escolar de uma sociedade).

Os trabalhos de Vygotsky e Leontiev desembocaram no que hoje se chama de Teoria da Atividade Cultural Histórica (TACH). Essa perspectiva teórico-metodológica permite identificar e compreender o desenvolvimento das mediações estabelecidas entre os sujeitos e o objeto da atividade. Toda atividade é desenvolvida dentro de uma comunidade, na qual as interações verbais têm importância e são fonte de dados sobre os processos interativos entre sujeitos e entre sujeitos e o objeto da atividade. O principal motor da atividade são as contradições, que são identificadas nos diferentes sentidos estabelecidos pelos sujeitos no processo dialógico.

Ensino de Astronomia e TAHC

No caso particular investigado, como em qualquer atividade, na observação astronômica podem surgir contradições que, para serem superadas, é necessária a introdução de novos instrumentos mediadores, que ressignifiquem as interações dos alunos (sujeitos) com o céu (objeto). Embora os alunos já tenham tido algum contato prévio com conceitos de astronomia, esse aprendizado tende a ser abstrato e idealizado, sem muitas experiências práticas de observação (Çelikten; Ertepinar; Geban, 2012), como ocorre, por exemplo, no ensino das fases do planeta Vênus, um tema que se apresenta de forma abstrata do ponto de vista observacional. Porém, é a partir dessa vivência dos estudantes que estabelecemos o ponto de partida para desenvolver o processo de complexificação dos conceitos e superação de contradições.

De forma geral, os objetos astronômicos estão distantes do cotidiano da maioria das pessoas e para chegar a observá-los é necessário a construção de mediações que permitam um olhar para o céu que discrimine as diferentes qualidades dos objetos brilhantes. Para tanto, é necessária uma cadeia conceitual mediadora que possibilite que tal discriminação se estabeleça como, por exemplo, a discriminação entre estrelas e planetas.

Quando aprendemos que nem todos os objetos que brilham no céu são estrelas, significa que compreendemos que os objetos celestes que emitem luz não necessariamente são fontes da sua própria luz - fontes primárias. Por outro lado, é necessário aprender também que, apesar dos planetas brilharem, eles refletem a luz produzida pelas estrelas. Sabemos, no entanto, que é difícil discriminar a partir da observação a olho nu, a qualidade da luz refletida pelos planetas, tornando-os indistinguíveis das estrelas nesse nível de observação. A complexificação conceitual se estabelece com mediação ainda mais complexa para discriminarmos as diferentes qualidades de luz refletida pelos planetas, por exemplo, ela depende da posição relativa do planeta, do observador e da fonte luminosa, e, indo ainda mais além, depende de outros fatores como, por exemplo, a composição da atmosfera do planeta. À medida que estes objetos celestes são cada vez mais mediados, mais complexos são os instrumentos mediadores necessários para os estudantes desenvolverem consciência das razões pelas quais o planeta Vênus tem fases similares à Lua.

Os conceitos são formados ao longo do desenvolvimento das atividades humanas e são sustentados por elas (Lago; Mattos, 2021). Usando como pano de fundo as atividades humanas relacionadas à astronomia, Lago e Mattos (2021) apontam que conceitos são desenvolvidos nas atividades humanas e, ao mesmo tempo, sustentam essas atividades. Assim, a comunidade que compõe a atividade desenvolve sistemas conceituais cujos sujeitos, com diferentes níveis de consciência e volição (Lago; Ortega; Mattos, 2018), sustentam ações coordenadas na direção de superar alguma necessidade daquela comunidade. Esses níveis de consciência, refletem os diferentes níveis em que os sujeitos experienciam a atividade e que, ao mesmo tempo, determinam os diferentes modos de uso dos conceitos.

Ao maior ou menor nível de consciência e volição do sujeito em relação ao sistema conceitual, nos referimos ao sistema hierárquico que Vygotsky (1987) arquiteta para os conceitos cotidianos e científicos. Neste sistema conceitual, por exemplo, o conceito de ‘irmão’ tem lugar diferente em relação ao conceito de ‘revolução’; enquanto o primeiro encontra-se em uma região menos sistematizada, o segundo tem uma forma mais sistematizada. Para Vygotsky (1987), falta de sistemacidade e espontaneidade de conceitos (consciência) são sinônimos. (Lago; Ortega; Mattos, 2018, p. 9).

Essa argumentação está apoiada na tese de que há uma “estrutura comum da atividade humana e a consciência individual” (Leontiev, 2004, p. 98), ou seja, a consciência e a atividade humana constituem uma unidade dialética. Dessa forma, os autores pretendem reforçam a relação essencial entre duas categorias costumeiramente tidas como separadas, conceito e atividade.

Argumentamos sobre a relação, essencial e interconectada, entre conceito e atividade como uma unidade, que surge por meio da práxis humana; isto é, os conceitos constituem-e-são-constituídos dentro das atividades. Eles [conceito e atividade] estão intrinsecamente conectados e não devem ser considerados separadamente ou uma mesma coisa, mas uma unidade. (Lago; Mattos, 2021, p. 34).

Dessa forma, a atividade sem um sistema conceitual não pode ser considerada coletiva e objetivada, logo deixando de poder ser considerada como atividade (Lago; Mattos, 2021).

Desenho das atividades

Com objetivo de entendermos a complexificação dos conceitos pelos estudantes por meio da inclusão de novos instrumentos mediadores na atividade, planejamos uma atividade de observação astronômica do planeta Vênus. Esta atividade consistiu de uma sequência didática desenvolvida com alunos dos dois últimos anos do Ensino Médio, em uma escola pública brasileira, na cidade de São Paulo. Um dos pesquisadores foi professor titular da escola durante quatro anos e manteve uma boa relação com a direção e a coordenação da escola, o que permitiu o apoio da administração escolar para a realização da atividade de ensino e pesquisa, da qual foi responsável. Assim, organizamos um minicurso no contra turno dos alunos, tendo a observação do céu como temática. O ambiente escolar, em que foi desenvolvida a atividade - no estacionamento da escola, não favorecia a observação do céu em função do excesso de luminosidade na região entorno da escola. Entretanto, eram as condições disponíveis para a realização da atividade.

A sequência didática proposta estava dividida em três atividades: (i) Introdução ao telescópio; (ii) Observação do céu noturno; e (iii) Experimento de simulação da formação das crateras lunares. Todas as atividades foram desenvolvidas no contraturno dos alunos, dentro da própria escola, sob a supervisão do pesquisador.

Neste trabalho, apresentamos rapidamente a atividade I (Introdução ao telescópio), mas vamos explorar mais detalhadamente a atividade II (Observação do céu). Nesta última, compareceram 25 alunos dos dois últimos anos do Ensino Médio, os quais foram divididos em dois grupos (um de 9 alunos e outro de 16 alunos), que realizaram a mesma atividade, mas em datas diferentes. Nas transcrições das áudio-gravações os alunos serão identificados com a letra A e um número que os distingue, enquanto o pesquisador será referido pela letra P. Não apresentaremos aqui a atividade III, que tratava de conceitos ligados à Lua e a formação de suas crateras, pois será objeto de outro texto.

I Introdução ao telescópio

Para que os alunos observassem o céu, foi necessário que aprendessem a manipular um telescópio, o que foi feito juntamente com uma apresentação sobre a história desse instrumento. A primeira atividade foi dividida em duas partes, a primeira se refere a uma palestra sobre a história do telescópio, na qual foram destacadas suas partes e funcionamento. Posteriormente, foi oferecida uma oficina com objetivo de ensinar a manusear um telescópio, especificamente montar e focar os telescópios refratores. Após a realização dessas duas partes, os alunos montaram quatro telescópios refratores e aprenderam a manusear a parte focal da ocular.

Aproveitando o grande comprimento do pátio do estacionamento da escola (cerca de 100 metros), colocamos painéis com textos em um dos lados do pátio. Assim, com os telescópios localizados no lado oposto aos dos painéis, os estudantes deveriam ler as frases escritas nos painéis ao focalizarem a ocular. Fizemos os registros dessa atividade por meio de anotações em um caderno de campo, as quais eram compostas por descrições das ações dos estudantes e pela transcrição de comentários feitos pelos estudantes durante o aprendizado do uso do telescópio.

II Observação do céu

A atividade de observação do céu noturno, realizada no estacionamento da escola, teve como maior dificuldade a localização da escola, pois além de refletores de iluminação do local, havia muitos prédios no entorno, dificultando a visão total do horizonte e de algumas regiões do céu. Nos dois dias em que foram realizadas as observações, o céu estava sem nuvens, deixando visíveis algumas estrelas, o planeta Vênus e a Lua em fase crescente. As observações começaram por volta das 18h e terminaram às 20h.

Essa atividade de observação tinha dois objetivos: (i) a observação do planeta Vênus, que chama a atenção dos alunos pelo seu brilho e por ser um dos primeiros objetos a aparecer no céu naquele horário e (ii) a observação da Lua (relativa à terceira atividade) que, por estar em quarto crescente, chamava a atenção pelo seu brilho e tamanho no céu. Os alunos tinham à disposição os quatro telescópios refratores, cuja imagem formada era de baixa qualidade, os quais tinham sido instruídos sobre o manuseio, na primeira parte. Além dos telescópios refratores, foi disponibilizado um telescópio refletor, que produzia uma imagem de alta qualidade e era manipulado pelo pesquisador para a focalização dos objetos.

Para a observação de Vênus, os alunos foram, inicialmente, orientados a procurar algum ponto luminoso no céu para observar. Assim, conforme planejado, os alunos identificaram o ponto luminoso mais evidente naquele momento - Vênus. Em seguida, apontaram os telescópios refratores na direção do ponto e, com a ajuda do pesquisador, iniciaram a discussão sobre sua natureza.

As atividades de observação do céu noturno foram áudio-gravadas com um gravador digital e posteriormente foram transcritas. Ao longo da atividade, os alunos fizeram registros nos seus cadernos de campo, descrevendo e desenhando suas observações. A análise, aqui apresentada, se restringe aos dados obtidos com os diálogos gravados durante a observação do Planeta Vênus e com as anotações feitas pelos alunos.

Análise e resultados

Na atividade de observação astronômica, os alunos criam grandes expectativas ao olhar pelo telescópio, pois as imagens do universo que eles têm acesso no seu cotidiano, são aquelas divulgadas na mídia e que causam enorme impacto pela grande beleza e qualidade. Entretanto, quando olham diretamente pelo telescópio amador, as imagens, de menor qualidade, são mais difíceis de serem compreendidas, o que exige maior interação do professor para o estabelecimento de novas mediações. A figura 1 ilustra a diferença entre as imagens de Vênus divulgadas na mídia eletrônica e uma obtida com um telescópio amador.

Fonte: NASA/JPL, 1996-07-18. Fonte: Foto de Trevor Jones, 2024.

Figura 1 (a) Foto de Vênus pelo Projeto Magellan; (b) Foto feita por meio de um telescópio amador na mesma fase observada pelos alunos 

No início da atividade de observação, o céu começava a escurecer, os alunos foram orientados pelo pesquisador a procurarem objetos que poderiam ser investigados com o telescópio. Logo no começo da atividade, um aluno já ressalta o objeto que lhe chamou a atenção:

  • A17: Olha uma estrelinha.

  • P: Já começou a aparecer estrelas.

  • A: Cadê?

A partir daí o pesquisador aproveita o termo utilizado pelo estudante (“estrelinha”) para introduzir o fenômeno observável mais imediato na observação celeste que é o de objeto brilhante visível no céu. Em seguida, orienta os alunos para começar a observação do objeto pelos telescópios.

  • P: Todo mundo viu a estrelinha nascendo?

  • Alunos: Sim.

  • P: Então a gente vai observar aquela.

Com o anoitecer avançando, mais nítida a imagem do objeto e mais interesse os alunos demonstravam em saber o que era aquele objeto brilhante no céu. O pesquisador procura instigar os alunos a propor hipóteses sobre a natureza do objeto ao apresentar algumas questões:

  • P: É a única coisa que dá pra ver agora, está de dia ainda, não anoiteceu, então começam aparecer algumas coisas. O que começa a aparecer? O que vocês acham? O que aparece primeiro?

  • A19: As estrelas.

  • Alunos: A Lua.

  • P: A Lua, tem sentido, porque ela já está lá. Mas como vocês sabem diferenciar o que vai aparecer primeiro, o que vai aparecer depois?

  • A14: Chutando.

  • A19: Vênus e Marte que estão mais próximos da Terra.

  • P: Será que é o que está mais perto que aparece primeiro?

  • A13: É o que tem...

  • A12: Mais calor.

  • P: Mais calor?

  • A13: Mais calor não, é...

  • A12: Mais luz.

A proposição das hipóteses, como a feita por A19 (“Vênus e Marte que estão mais próximos da Terra”), ajuda a engajar os alunos no problema de identificar o objeto brilhante no céu. Assim, a questão sobre a natureza do objeto vai se tornando o objetivo da atividade. A necessidade de compreender o que é aquele ponto brilhante no céu se objetiva no próprio ponto brilhante, representando o motivo da atividade: entender os astros do céu. Isso se evidencia, no excerto a seguir, quando A14 manifesta certeza da sua hipótese no diálogo com o pesquisador.

  • P: Eu não vou falar pra vocês o que é, mas eu espero que vocês...

  • A18: Descubram.

  • P: Descubram ao observar, esse é o objetivo da aula.

  • A14: É um planeta professor.

  • P: Você acha que é um planeta?

  • A14: Tenho certeza.

Assim, em contraponto ao sentido típico do senso comum de que pontos brilhantes no céu são estrelas, o aluno A14 introduz a ideia de planeta, em parte devido a alguma vivência anterior, a qual não foi identificada previamente e pela qual teria adquirido esse conhecimento. Com essa convicção, o A14 começa a coordenar ações na direção de satisfazer sua curiosidade, e isso se evidencia na descrição escrita que faz em seu registro: “Espero ver a Lua de uma forma mais clara, seus detalhes. Encontrar algum planeta ou constelação”. Tal expectativa se concretiza na atividade coletiva, em que as ações de A14 têm condições de realização. Tais condições - as operações, como a manipulação do telescópio ou mesmo o lento escurecimento do céu, não estão no nível da consciência imediata dos sujeitos (estudantes), mas dão suporte à realização das ações que constituem a atividade de observação do céu.

Um dos problemas principais para a observação de objetos celestes é a mira da ocular que, para localização do objeto, exige algumas referências que facilitem a identificação e focalização do objeto. No trecho seguinte, um aluno descreve quais foram as ações que ele tomou para conseguir achar o ponto brilhante com o telescópio. A transcrição mostra um grau de consciência que permite afirmar que os procedimentos realizados pelo aluno estavam no nível das ações da atividade de observação do céu.

  • A1: Eu fui pelo prédio.

  • P: É pelo prédio... A árvore ajuda...

  • A1: Professor, eu achei.

  • P: Beleza! Está vendo?

  • A1: Estou.

  • P: Está focalizado ou não?

  • A1: Tá!

O uso do prédio como referência para a localização do objeto é explicitado, entretanto, o processo de focalização só é confirmado, sem uma explicação verbal do aluno, impedindo de reconhecermos se a focalização era uma ação consciente ou se era uma operação, uma condição da localização. O desenvolvimento da consciência dos objetivos da atividade mostra o próprio movimento da atividade, que pode ser identificada com a progressão do diálogo e a introdução de proposições que exigem novas medições. Isso se evidencia quando, a partir da focalização feita por A1, várias ações são realizadas para investigar sua afirmação. Entre elas, os outros estudantes passaram a manusear os telescópios na tentativa de ampliar a imagem do astro observado e, em seguida, começam a discutir com os participantes suas observações. O estabelecimento de uma zona de desenvolvimento proximal se identifica com as mediações estabelecidas entre os estudantes e entre os alunos e o pesquisador que, incluído no diálogo, contribui para que o aluno A1 reorganize sua observação, identificando outra característica até então não notada.

  • P: Tá vendo ... aqui a olho nu ... o que você está vendo ali?

  • A1: Um pontinho.

  • P: Certo, aí quando você está olhando aqui [no obturador] o que você está vendo?

  • A1: Um pontinho.

  • P: Só um pontinho?

  • A1: Não tem a cor dela.

  • P: Está vendo que não é só um pontinho, é isso que eu estou querendo dizer. Ela está meio ...

  • A1: Formato diferente, parece a Lua!

O aluno identifica a semelhança do formato do objeto com o formato da Lua, dando os primeiros indícios de que o objeto não era uma estrela. A imagem se devia ao fato de que Vênus se mostrava, naquele dia, com fase crescente.

Os estudantes apresentam diferentes consciências do objeto, pois atribuem diferentes sentidos a ele. Enquanto o aluno A17 já havia observado o ponto luminoso (Vênus) e enunciado sua hipótese de que se tratava de uma estrela, outros como o aluno A22, ainda se apropriam da ação de observação. Esta é uma ação complexa, com diversas condições de realização (operações), as quais, ainda não haviam sido possíveis para A22. Para esse aluno, em particular, a ação de focar o objeto com a luneta tem condições distintas dos outros alunos (A22: “Gente eu sou míope, não estou vendo nada”). A22 ainda está refletindo conscientemente sobre como apontar o telescópio, como manusear a mira ou acertar o foco do telescópio, dada a condição de miopia, que o impedia de conseguir fazer a observação que os outros já estavam realizando. Aqueles que já haviam focado o objeto como uma ação consciente, passaram para ações mais complexas, como a tarefa de proposição de hipóteses, da qual a própria focalização é uma condição.

No engajamento coletivo, são os diferentes níveis de consciência dos sujeitos em atividade que permitem o surgimento de uma zona de desenvolvimento proximal. Nela, os colegas que já realizaram a observação passam a realizar mediações entre os estudantes, que ainda não haviam observado, e o telescópio, como mostra o excerto da interação entre A13, A10, A15, A18 e o pesquisador.

  • A13: Achar esse vai ser um pouco difícil.

  • P: Como você achou?

  • A17: Tem que mudar aqui, olha.

  • A10: Você não mudou, parece que foi sem querer.

  • A17: Está vendo esse buraco aqui da árvore? Segue ele reto. Pega aquele negócio laranjinha, ali.

  • A15: Hum.

  • A13: Achei. Ali bem pequenininho.

A17 se torna um parceiro mais capaz de A13, mediando suas ações com o telescópio. Como esta experiência é nova para a maioria dos alunos, com o prosseguimento da atividade, eles procuram confirmar seus resultados com o pesquisador para validar o resultado das suas ações de uso do telescópio.

  • A15: A gente achou professor [pesquisador], vem aqui.

  • P: Deixa eu ver se está bom. Bem focalizado. É isso mesmo.

  • A15: Está vendo!

Na etapa seguinte, houve uma discussão sobre a observação e sobre as formas de registros realizados pelos alunos.

  • A15: É para desenhar o que eu vi?

  • P: É. Tenta desenhar o que você viu.

  • A15: Uma bolinha...

  • A17: Deixa eu ver.

  • P: Então você não viu direito.

  • A15: Uma bolinha.

Nessa etapa da atividade, apesar dos avanços feitos nas discussões, muitas diferentes mediações concorriam nas observações, por exemplo, alguns estudantes ainda sustentavam por meio de suas observações que o ponto brilhante tinha o formato de uma bolinha e não de uma meia lua.

  • A5: Pra mim continua sendo uma bolinha.

  • A1: Ali em cima do prédio.

  • A5: Pra mim continua sendo uma bolinha, professor.

  • P: É mesmo? Você viu uma bolinha?

  • A5: É... É o que eu estou vendo ali.

O pesquisador avaliava as relações estabelecidas pelos alunos, apontando as contradições entre as observações e as representações propostas.

  • A21: Um ponto luminoso.

  • P: Daqui a gente está vendo um pontinho, mas quando vocês olham no telescópio é um pontinho?

  • A21: Não.

  • A17: Não é redondo, essa coisa aqui [mostrando o desenho do objeto como fase de uma lua].

É neste momento da atividade, na interação entre os sujeitos, que são explicitadas as contradições entre os sentidos estabelecidos pelos estudantes após a ação de observação. O diálogo tem um papel central como processo mediador para se estabelecer, por meio das experiências coletivas e individuais, vivenciadas na atividade pelos alunos, um sentido comum mais complexo, que vai além do sentido inicial imediato de ponto brilhante.

  • A13: Ah, não é redondo mesmo.

  • P: Não é redondo, beleza. Se não é redondo, o que vocês conhecem que não é redondo e está no céu?

  • A17: É um negócio assim.

  • A14: Cometa.

  • A17: Lua ...

  • Vários alunos [simultaneamente]: Parece uma lua!

Fica claro, para o grupo, um sentido que elimina a possibilidade do objeto ser uma estrela. Em outro momento, identificamos esse mesmo movimento dialógico da atividade, no qual os alunos procuravam entender suas observações, e começam a introduzir novos conceitos mediadores que suportam novos sentidos para o objeto observado.

  • A5: Ah! Agora sim.

  • P: Dá pra ver? Repara no que você está vendo, na forma.

  • A2: Sai do foco muito rápido.

  • P: Apoiar pode, só não muito.

  • A5: Está na forma de meia-lua.

  • P: Está vendo, por isso que tem que ficar um tempo.

  • A6: As estrelas têm várias formas?

  • P: Você conhece uma. Bem grande.

  • A6: O Sol.

  • P: É, qual o formato do Sol? É desse jeito?

  • A6: O quê?

  • P: É nesse formato?

  • A6: Não.

  • P: Esse daí é diferente.

  • A6: Sumiu agora.

  • A1: Daqui dá pra ver, olha!

  • P: Mas está ali, olha? Então aconteceu alguma coisa.

  • A6: Você encostou então.

  • P: Não. Não é.

  • A1: É que a Terra está girando. Aí ele andou.

Neste trecho da discussão é possível identificar as novas mediações que vão transformar o conceito inicial de estrela. Ao propor relações já estabelecidas com o Sol, ou seja, que as estrelas têm o mesmo formato que o Sol, portanto são esféricas, os estudantes identificam que o conceito estrela não é suficiente para responder ao seu problema. Assim, surge outra hipótese, a de que estavam observando um planeta. No final do último excerto, é possível observar que A1 age como o parceiro mais capaz, propondo que os objetos observados passavam rapidamente pelo plano focal do telescópio em função da rotação da Terra, uma conceito complexo da observação astronômica, que indica que este aluno tem mediações prévias com o fenômeno, as quais permitem um enunciado tão elaborado.

Reconhecer que a percepção visual contribui para o sentido estabelecido pelos alunos é fundamental, porém sabemos, também, que o conhecimento se estabelece em um processo de apropriação de relações mediadas por instrumentos culturais que se realiza por meio das atividades sociais (Leontiev, 1978; Vygotsky, 2001). Por exemplo, para o estudante A24, a observação o levou à seguinte conclusão: “Na minha cabeça, parece que o Sol está batendo nele [objeto observado]”. A polissemia das palavras é um dos problemas para se identificar os sentidos que são produzidos nos enunciados dos sujeitos. No caso de A24, essa ideia leva à conclusão de que se o Sol está iluminando o objeto observado e que ele não pode ser uma estrela. Essa conclusão parece contribuir para o estabelecimento do sentido de que aquilo pode ser um planeta.

Entretanto, num processo dialógico, a construção do sentido é dialética, pois não é apenas o sujeito individual que constrói o sentido, mas a coletividade da atividade (Santiago; Mattos, 2023). A construção coletiva do conceito é catalisada pelo enunciado do aluno A17, que conclui sobre as características da forma do objeto observado da seguinte forma: “É um negócio assim ... Lua!”. Essa conclusão não havia sido enunciada para o grupo anteriormente, e ela permite que se faça uma síntese em relação à forma do objeto identificando-a com a forma da Lua. Nesse momento, os demais tomam consciência da similitude entre a forma do ‘ponto brilhante’ e a do satélite terrestre, o que pode ser identificado pelas expressões verbais feitas por vários alunos (“Parece uma lua”). Essa generalização indica que, ao ser introduzida a ideia de fases lunares, os alunos se afastam da ideia de que o objeto poderia ser uma estrela. Entretanto, ainda não conseguem estabelecer um sentido determinado que indicasse o que é o objeto. O pesquisador, ao longo da atividade, promoveu situações em que o objeto observado - o ponto brilhante - foi identificado como um planeta. Um exemplo é o enunciado de A2, que usa um critério de identificação do planeta vinda da sua experiência prévia, com o pesquisador perguntando então o que poderia ser o que eles estavam observando, novamente.

  • A2: É Vênus?

  • P: Então, como você sabe que é Vênus?

  • A2: Sempre falam que é a primeira estrela que aparece.

A2 usa os instrumentos mediadores de outras atividades, trazendo novos sentidos ao objeto. Assim, o aluno introduz uma nova característica do objeto que não está diretamente relacionada à observação pelo telescópio, mas a observação a olho nu (“primeira estrela que aparece”). Apesar do critério de observação trazer uma nova informação, a nomenclatura volta a trazer o nome “estrela”, tornando a relação objeto-palavra-conceito ainda turbulenta.

Anotações dos estudantes

Além dos registros das transcrições das falas dos estudantes, temos os registros feitos pelos próprios alunos, nos quais descrevem suas expectativas e conclusões ao participarem dessa atividade. Desse material, é possível identificar anotações que expressam o desenvolvimento do conceito atribuído ao objeto observado. Nelas podemos verificar, por meio dos textos e desenhos dos alunos, o movimento do conceito ‘estrela’ se complexificando em ‘planeta’.

Nas anotações do aluno A18 (figura 2a), ele relata que, no início da atividade, tinha a hipótese de que o objeto era uma estrela, porém, ao observar pelo telescópio, enxerga uma meia lua avermelhada, confrontando sua hipótese de que era uma estrela.

Fonte: dados da pesquisa.

Figura 2 (a) Trecho dos registros de A181; (b) Trecho dos registros do aluno A92 

A18 deixa claro a construção coletiva do conceito, ao usar a primeira pessoa do plural (“descobrimos”) para expressar o processo de análise que o levou a identificar o objeto observado como Vênus. A18 vai além do consenso em torno de que o objeto é Vênus, para elencar características do planeta, porém, se equivoca sobre ser o “único planeta que possui fazes assim como a Lua”, pois ainda não tem clareza de que as fases são resultado das posições relativas do objeto observado, do observador e da fonte luminosa. Da mesma forma que A18, A9 redige uma síntese de toda a discussão, mostrando o caminho percorrido pela turma e quais as características que os levaram à conclusão de que o objeto observado é o planeta Vênus (figura 2b).

Na figura 3, o relato do estudante A15 chama a atenção, pois redige a hipótese inicial sobre a qual seria o primeiro objeto a ser observado no céu. Curiosamente, o aluno escreve “estrela D’Alva”, nome popular dado ao planeta Vênus. O estudante traz concepções prévias ligadas às relações já estabelecidas com o objeto que esperávamos observar.

Fonte: dados da pesquisa.

Figura 3 Trecho dos registros de A153 

Entretanto, é possível identificar o desenvolvimento conceitual com a atividade realizada. O estudante observa e desenha o objeto com um formato de ‘meia-lua’, reconhecendo que não poderia ser uma estrela. Além disso, usa outras informações introduzidas pelo professor (objetos mais próximos da Terra brilham mais) para caracterizar o objeto como o planeta Vênus.

A análise das anotações de alguns alunos, corrobora a ideia de que os sujeitos da atividade estão com diferentes níveis de consciência em relação ao objeto da atividade. Por exemplo, é possível identificar nas anotações do aluno A5, a evolução dos sentidos atribuídos ao objeto observado (figura 4a). A5, concordando com os enunciados gravados, relata sua observação afirmando a facilidade na localização do objeto e o identifica como “uma bolinha brilhante, meio azul e meio laranja” (CA5). É possível identificar, também, que ao ter acesso a outro instrumento mediador (“telescópio do professor”), viu apenas uma “bola branca”, que atribui o sentido de ‘planeta’. Entretanto, em nova observação, identifica o formato de uma fase (“vi que seu formato mudou”), mas conclui textualmente que, agora, “parece ser uma estrela” (CA5), mostrando que os sentidos atribuídos ao objeto ainda não estão claros.

Fonte: dados da pesquisa.

Figura 4 (a) Trecho do registro do aluno A54; (b) Trecho do registro do aluno A85 

Outro exemplo é o do texto produzido por A8, cujo registro (figura 4b) mostra que há um desenvolvimento turbulento dos sentidos atribuídos ao objeto da atividade. Inicialmente, este aluno percebe o objeto observado como uma “estrela” que “tem formato de lua”. Apesar de afirmar que está “pensando que é um planeta”, o aluno deixa claro que não sabe as razões que o levaram a pensar dessa forma. Além disso, sua dúvida fica ainda mais clara quando se refere ao objeto com os dois nomes 'estrela' ou 'planeta'. Aparentemente, as discussões com os colegas não foram suficientes para que ele compreendesse a cadeia conceitual que sustenta a ideia de que o objeto observado é um planeta.

Com as notas dos alunos é possível corroborar o processo dinâmico do desenvolvimento do conceito atribuído ao objeto observado durante a atividade. Alguns alunos começaram a chegar no conceito de planeta baseados em uma cadeia conceitual - características e razões - que o sustentasse, enquanto outros ainda não tinham consciência das relações estabelecidas coletivamente nas discussões.

Considerações finais

A análise da dinâmica do conceito atribuído ao objeto observado expressa a dinâmica da própria atividade de observação. Foi possível identificar que, ao longo da atividade, os sentidos produzidos se complexificaram na medida em que novas e mais complexas mediações foram sendo introduzidas. O resultado mais evidente é a compreensão de que nem todos os "pontinhos brilhantes" no céu são estrelas, e que existem outros tipos de

astros, como os planetas que possuem aparências variáveis, devido à sua posição em relação ao Sol. A complexificação desses conceitos expressa uma ampliação e/ou transformação das mediações e, consequentemente, a ampliação do entendimento e da consciência do mundo.

Além do objeto observado, outro conceito que ganha novas mediações é o de telescópio. Esse conceito, que é, inicialmente, um instrumento mediador, adquire novos sentidos quando tem seu uso generalizado como um instrumento que amplia objetos que estão distantes, sejam palavras em painéis, a Lua, um planeta distante, ou ainda as estrelas. Vale ressaltar que os telescópios utilizados na atividade têm capacidade de focalização de detalhes de objetos no sistema Solar (planetas e luas), ou seja, só conseguem focalizar, em detalhes, uma única estrela: o Sol. Apesar disso, os alunos em atividade puderam verbalizar e registrar suas ideias em relação ao objeto observado no céu, superando, em sua maioria, a ideia de que era uma estrela.

Os dados nos permitem afirmar que a atividade de observação astronômica, além de ser fundamental para a compreensão dos fenômenos celestes, é de grande potencial para que os sujeitos estabeleçam novas relações entre os objetos observados e instrumentos mediadores, complexificando os conceitos e, portanto, complexificando sua consciência sobre o objeto da atividade. Isso fica mais claro, quando identificamos as ações e operações da atividade, pois, é possível reconhecer que, em determinados momentos, os diferentes sujeitos estão em diferentes níveis hierárquicos de atividade. Para alguns deles, manusear o telescópio se tornou a atividade principal e para outros já tinha se tornado apenas uma operação dentro de uma ação da atividade de observação.

Cabe destacar, também, o papel dos parceiros mais capazes (professor e alunos) ao longo da atividade, pois, as relações estabelecidas por esses sujeitos mais capazes, ajudaram aos colegas a desenvolver outros sentidos para o objeto observado. Isto significa, portanto, que esses parceiros também se tornaram mediadores da atividade para os colegas.

O desenvolvimento dos sentidos atribuídos ao objeto observado ao longo da atividade, indica a relação visceral entre conceito e atividade. Essa máxima se sustenta na ideia de conceito-atividade (Lago; Mattos, 2021). Dessa forma, temos a expectativa de que as atividades propostas, no seu desenvolvimento, movimentem os conceitos pertinentes. Nesse sentido, o desenvolvimento do conceito-atividade se estabelece com o desenvolvimento de novas mediações, novos instrumentos culturais, cujo movimento inclui os instrumentos culturais prévios, que também vão sendo transformados, como é o do caso da aluna que tomou o “ponto brilhante observado no céu” como a estrela D’Alva. A compreensão da aluna, inicialmente sustentada pelas atividades do contexto da sua vida cotidiana, é colocada em movimento ao longo da atividade, por meio das novas mediações, que a levam a compreender o objeto como o planeta Vênus. Entretanto, diferentemente de outras teorias que pretendem a substituição dos conceitos cotidianos pelos científicos, na perspectiva da Teoria da Atividade Cultural Histórica, na perspectiva do conceito-atividade, ocorre uma complexificação do conceito do objeto observado, que passa a ter outros significados, introduzidos na sua unidade com a atividade escolar. E como todo conceito, tem o domínio de validade do seu significado determinado e delimitado pela atividade que o sustenta, seja o planeta Vênus na atividade escolar, seja a estrela d’Alva das observações familiares.

11ª observação: aparentemente uma estrela; olhando do telescópio a aparência é de uma meia-lua avermelhada, contudo, descobrimos ao analisar que era Vênus, pois está perto (entre o Sol e a Terra), e é o único planeta que possui fases assim como a Lua (CA18).

221ª observação: aparentemente uma estrela. Após observar no telescópio tiramos a conclusão de que é Vênus. As primeiras coisas a aparecer são as que estão mais próximo da Terra. Sabemos que é Vênus por causa do seu formato: [desenho]. Vênus é um planeta que tem fases igual a da Lua. No momento está crescente. CA9).

3A primeira coisa que eu acho que eu vou observar é uma estrela (D’alva). Formato da coisa que eu vi: [Desenho] meia-lua. 1ª observação: Vênus. Consta-se que é Vênus pois é o que está mais próximo da Terra, depois da lua, e possui um formato diferente das estrelas (CA15).

4Até agora eu vi uma bolinha brilhante meio azul e meio laranja, não demorei muito para achar, e no telescópio do professor eu vi apenas uma bola branca, para mim parece ser um planeta [Desenho 1] ou [Desenho 2]. Depois eu vi de novo, vi que seu formato mudou [Desenho 3] parece ser uma estrela agr [agora] (CA5).

5A estrela tem formato de lua, mas o que eu vi era baseado nesse desenho [Desenho] a cor dela é branca com uma luz forte. Mas também estou pensando que é um planeta, pois as causas eu não sei. E quando eu vi com o telescópio a estrela ou o planeta, ficou se mexendo, pois a terra gira, portanto a terra girando a (estrela ou planeta) vai se modificando para outro lugar (CA8).

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Recebido: 27 de Março de 2024; Aceito: 20 de Setembro de 2024

Autor Correspondente: arthursantiago@ifsp.edu.b

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