A instituição, o dispositivo grupal e a produção de outros modos de coexistência
Em um mundo onde as desigualdades sociais se aprofundam e os problemas ambientais se multiplicam é imprescindível não somente teorizar, mas também criar e aplicar dispositivos interventivos, somados a outras práticas e investigações, que possibilitem avançar na resolução desses problemas. Este é o objetivo da pesquisa aqui apresentada, na medida em que propomos outros modos de coexistência através de intervenções pedagógicas micropolíticas em espaços formais, não formais e informais de ensino, a fim de suscitar o cuidado de si mesmo, do outro e do ambiente nos processos formativos em educação ambiental.
As relações intersticiais entre prática e reflexão teórica, entre o que acontece dentro e fora dos espaços de intervenção, transitando entre o consciente e o inconsciente das pessoas, dos grupos e das instituições, indicam a existência de potenciais inventivos nas regiões limítrofes, nos entrelugares. É o que acontece quando o humano se arrisca fazendo incursões para além das rotinas e lugares seguros, colocando em questão suas próprias certezas, transversalizando saberes nas fronteiras da educação, arte e filosofia.
Assim, o principal foco da pesquisa está nos processos de experimentação de novas maneiras de viver e se relacionar, sem impor uma nova categorização de universais, mas articulando certas dimensões singulares do real a fim de recompor os territórios existenciais conhecidos, abrindo linhas de potencialidade que permitam ao humano reinventar-se a si mesmo e ao mundo em que vive.
Além dos problemas atrelados à divisão social do trabalho, analisados profundamente por Marx, compreendemos ser necessário avançar na análise de outras formas de controle instituídas a partir da modernidade, ampliando o entendimento das questões socioambientais no mundo contemporâneo. Do ponto de vista conceitual, não podemos perder de vista os três momentos-movimentos da instituição:
[...] toda instituição compreende um movimento que a gera: o instituinte; um resultado: o instituído; e um processo: a institucionalização [...] O instituído cumpre um papel histórico importante porque vigora para ordenar as atividades sociais essenciais para a vida coletiva. Para que os instituídos sejam eficientes, devem permanecer abertos às transformações como que o instituinte acompanha o devir social. Contudo, o instituído tem uma tendência a permanecer estático e imutável, conservando, de juri estados já transformados de facto e tornando-se assim resistente e conservador [...] Exemplos de instituições são: a linguagem, as relações de parentesco, a divisão social do trabalho, a religião, a justiça, o dinheiro, as forças armadas etc. Um conglomerado importante de instituições é, por exemplo, o Estado. Para realizar sua função regulamentadora, as instituições materializam-se em organizações e estabelecimentos [...]. As instituições regulam as atividades humanas, indicando o que é proibido, o que é permitido e o que é indiferente, podem ser expressas em leis (princípios-fundamentos), normas ou hábitos (BAREMBLITT, 2012, p. 156 e 157).
Vivemos em uma sociedade na qual se difunde uma forma particular de regulação (DELEUZE, 1992a, 2005), o controle incessante em meio aberto. Os dispositivos tornam-se mais sofisticados na medida em que cresce a necessidade de regular os comportamentos e manter a ordem pública. Há uma lógica do confinamento que se propaga em toda a sociedade, sem que, necessariamente, existam muros que separem o lado de dentro das organizações (escolas, presídios, empresas, hospitais, entre outras) do seu exterior. O disciplinamento dos corpos foi gradualmente introjetado (FOUCAULT, 2013) deixando o exercício do poder cada vez mais discreto e mais efetivo.
Para entender os dispositivos que se estendem às demais atividades humanas e produzem corpos cada vez mais limitados em seus movimentos e formas de expressão é preciso saber como funcionam os processos de regulação que gradativamente se instauram no cotidiano e tornam o movimento humano mais e mais fragmentado, repetitivo e previsível-controlável.
Entretanto, os dispositivos de controle não têm apenas uma orientação possível ou configuração inalterável. Foucault, segundo Deleuze, altera o mapa dos dispositivos descobrindo suas linhas de subjetivação. Faz isso “para não os deixar encerrar-se simplesmente nas linhas de força intransponíveis que impõem contornos definitivos” (DELEUZE, 2005, p. 86). Sugere que a sociedade que disciplina corpos também pode ser um ambiente de produção de subjetividade, capaz de gerar novas formas de poder e de saber. A qualquer momento podemos atualizar a capacidade corporal que permite ações radicais e até mesmo impensáveis, retomá-la e colocá-la no curso da produção do novo, pois a espécie humana possui a capacidade de intervir sobre si mesma, de recriar seus territórios existenciais e mudar o rumo dos acontecimentos. Criamos e reinventamo-nos porque somos corpos voltados à diversidade, diferindo inclusive de nós mesmos.
O dispositivo se define pelo que detém em novidade e criatividade, e que ao mesmo tempo marca a sua capacidade de se transformar, ou de desde logo se fender em proveito de um dispositivo futuro, a menos que se dê um enfraquecimento da força nas linhas mais duras, mais rígidas, ou sólidas. E, na medida em que se livrem das dimensões do saber e do poder, as linhas de subjetivação parecem ser particularmente capazes de traçar caminhos de criação, que não cessam de fracassar, mas que também, na mesma medida, são retomados, modificados, até a ruptura do antigo dispositivo [...]. Pertencemos a dispositivos e neles agimos. À novidade de um dispositivo em relação aos que o precedem chamamos atualidade do dispositivo, a nossa atualidade. O novo é o atual. O atual não é o que somos, mas aquilo em que nos vamos tornando, aquilo que somos em devir, quer dizer, o Outro, o nosso devir-outro. É necessário distinguir, em todo o dispositivo, o que somos (o que não seremos mais), e aquilo que somos em devir: a parte da história e a parte do atual. A história é o arquivo, é o desenho do que somos e deixamos de ser, enquanto o atual é o esboço daquilo em que nos vamos tornando (DELEUZE, 2005, p. 92 e 93).
Nesta pesquisa é o próprio dispositivo microssocial do grupo que propomos aperfeiçoar, na perspectiva de colocá-lo a serviço da produção de subjetividade e da resistência às novas formas de dominação – sabedores de que ela pode, a qualquer momento, se recompor no entrecruzamento com linhas mais duras, mais rígidas ou sólidas, com linhas de estratificação ou de sedimentação. Entendemos também o dispositivo como:
Uma montagem ou artifício produtor de inovações que gera acontecimentos e devires, atualiza virtualidades e inventa o novo radical. Em um dispositivo a meta a alcançar e o processo que gera são imanentes entre si. Um dispositivo compõe-se de uma máquina semiótica e uma pragmática e se integra conectando elementos e forças (multiplicidades, singularidades, intensidades) heterogêneos, que ignoram os limites formalmente constituídos das entidades molares (estratos, territórios, instutuídos etc). Os dispositivos, geradores de diferença absoluta, produzem realidades alternativas e revolucionárias, que transformam o horizonte considerado do real, do possível e do impossível (BAREMBLITT, 2012, p. 147).
A questão que impulsiona a investigação busca compreender de que forma o dispositivo grupal pode contribuir com a produção de modos de coexistência que façam emergir as potencialidades latentes do humano, suas capacidades sensoriais, intuitivas e inventivas, promovendo o cuidado consigo mesmo, os outros e o meio ambiente.
Isso implica romper com um tipo de alienação entendida como inatividade física, mas também com outras formas de alienação: diminuição da capacidade de pensar e agir por conta própria, falta de engajamento político, crescente sentimento de solidão e isolamento, inércia intelectual, passividade diante dos problemas socioambientais, embotamento da criatividade e da expressão, indiferença e falta de cuidado com os outros e o mundo, perturbação mental e falta de sensibilidade.
A análise institucional e a ecosofia de Félix Guattari
A concepção de intervenção aqui desenvolvida encontra seus parâmetros epistemológicos no campo da análise institucional desenvolvida na França a partir dos anos 60. Busca compreender e transformar os diversos sentidos cristalizados nas instituições, objetivando interrogá-los a partir de um entendimento sociopolítico. A pesquisa-intervenção, de certa forma, provoca rupturas nas perspectivas colocadas pelo movimento da pesquisa-ação2, principalmente naquelas referentes às relações entre teoria e prática, entre sujeito e objeto.
O campo de análise da pesquisa é sempre um campo político e constituído por múltiplas forças que se propagam por contágio e contaminação. René Lourau3 (1997, 2004) afirma que os processos que nele ocorrem acontecem por transdução, difusão, contágios, por contiguidades ou proximidades em dimensões transversais, rizomáticas e vão além-aquém das ideias de dedução e indução em dimensões verticais como produção do conhecimento. Nesse complexo universo do trabalho de campo, a relação sujeito-objeto é sempre implicada e atravessada por devires.
O campo do empírico, aqui entendido como campo de intervenção, é um espaço delimitado pelas possibilidades que surgem no decorrer das atividades artístico-pedagógicas, e permitem o deslocar-se nos fluxos dos acontecimentos, em consonância com as portas que se abrem e se fecham, de acordo com as continuidades e interrupções.
A pesquisa-intervenção constitui-se como uma espécie de aventura por territórios desconhecidos, em virtude do permanente processo de transformação e adequação aos grupos e espaços onde acontecem as intervenções pedagógicas. Acentua a importância de aprender a lidar com imprevistos e incertezas no seu próprio corpo e fazer proliferar outros modos de subjetivação, aberto a surpresas, dúvidas, inquietações e oscilações. A investigação mostra seu potencial produtor de sentidos, na medida em que o método de trabalho consegue implementar novas formas de se relacionar, mais sensíveis, inventivas e menos opressoras, esteticamente aprazíveis, colocando em questão as formas instituídas e vislumbrando o que está além das fronteiras das dimensões instituídas. E esse além das fronteiras é um território inexplorado ou até mesmo inexistente, que através das intervenções pedagógicas tentamos inventar, produzindo outros mundos, outras possibilidades de coexistência, novos territórios, outras dimensões para o real através da proliferação de formas de cuidado.
Portanto, um agenciamento coletivo (GUATTARI, 1981, 1992) é processado para que novas formas de pensar e se relacionar possam emergir, muitas vezes, conectando acontecimentos distintos e até mesmo contraditórios, constitutivos do campo de intervenção desta pesquisa, no qual uma mutiplicidade de linhas proliferou nas aulas ministradas e nas microintervenções realizadas pelos alunos, nos encontros do grupo de pesquisa (CNPq) e no Grupo de Teatro Interativo, nas atividades desenvolvidas na ONG Comunidade Casa do Caminho, nas inúmeras conversas informais a respeito de questões pessoais e não acadêmicas, na partilha de sonhos e utopias, nos textos criados coletivamente, na elaboração conjunta de táticas e estratégias de ação, na participação em eventos acadêmicos, nos cursos de formação e outras atividades extensionistas, nos múltiplos afetos que atravessaram o processo de investigação, entre outros acontecimentos. O advento dessas multiplicidades enriqueceu sobremaneira o relacionamento social e contribuiu para o (re)conhecimento e aproveitamento dos valores dos próprios grupos.
A análise institucional coloca em evidência certas alienações e opressões, favorece a análise crítica e pensa as intervenções como formas inovadoras de se relacionar, colocando em crise as formas instituídas. Propicia o surgimento de “processos auto-analíticos e autogestivos circunscritos (se for o caso), mas tendendo sempre a que se expandam até conseguir um alcance generalizado e revolucionário” (BAREMBLITT, 2012, p. 137). Assim, as intervenções pedagógicas aconteceram na universidade, mas também em espaços comunitários, nas ruas da cidade, postos de saúde, hospitais, escolas, eventos, associações de bairro, enfim, em espaços públicos e privados. Trata-se de um dispositivo grupal cujo objetivo maior é refletir atuando, intervindo. O que importa são as conexões, os intercâmbios, as trocas, trabalhando o intermezzo, os entrelugares, não só se refugiando na reflexão sobre, mas operando, criando, conclamando outros a se engajarem no processo criativo. Solidarizando-se. A intervenção pedagógica faz surgir a diferença e a singularidade, emergindo multiplicidades a partir das condições dadas e operando no mesmo âmbito dessas condições, impelindo o humano a transformar a si mesmo na busca de outros modos de coexistência, incitando a produzir espaços de produção do novo, de acontecimentos outros.
As intervenções problematizaram temas ligados às questões ambientais, do ponto de vista da relação entre o humano e o não humano (permacultura, saúde alimentar, agricultura orgânica, ecocidadania, biodiversidade, mudanças climáticas, ecoturismo, aquecimento global, fontes energéticas alternativas, recursos hídricos, matas ciliares, desastres naturais etc.), e às questões sociais, do ponto de vista das relações que o humano compõe com outros humanos: movimentos sociais, mídia e comunicação social, o Estado, os processos grupais, a relação indivíduo e sociedade, dinheiro, exclusão social, capitalismo, globalização, religiosidade, processos de socialização, modernidade/pós-modernidade, transculturalidade, classe, raça, gênero etc.
As intervenções pedagógicas contribuíram para os processos de formação do humano, no perpétuo jogo entre forças virtuais e atuais, culturais e naturais, promovendo ações sem se filiar, mas fazendo alianças sempre; intensas, porém não eternas muito menos subservientes. As intervenções foram orquestradas por um coletivo-professor-pesquisador-militante que afeta e se permite afetar, junto e a partir do grupo, enquanto constrói coletivamente e abre passagem para outros processos de diferenciação que não o idêntico, o identitário. Privilegiaram modos de subjetividade coletiva em construção, sem a pretensão de criar modelos ou impor soluções, na perspectiva de uma ética do acontecimento impulsionada pelo intempestivo da atualidade.
O resultado dessas interferências e mediações contribuiu para que o sujeito se torne diferente do que é, sendo ele mesmo. E isso é possível através de um conjunto de atividades prático-teóricas que abordam os problemas inerentes às relações que o humano estabelece, em termos do cuidado de si e dos outros (ecologia mental), da produção de grupos-sujeito na dimensão da ecologia social, assim como o cuidado com as plantas, os animais, a terra, o ar, a água etc. – atividades problematizadoras das fronteiras entre o humano e o não humano, na perspectiva da ecologia ambiental.
O dispositivo conjugou elementos prático-teóricos do teatro do oprimido, de Augusto Boal (2014); da somaterapia, de Roberto Freire (1988); do psicodrama, de Jacob Levy Moreno (2012); dos grupos operativos, de Pichon-Rivière (2009); da biodança, de Rolando Toro (2002); da sociopoética, de Jacques Gauthier (2012); do clowning, de Jean-Pierre Besnard (2006, 2014); e, mais recentemente, do esquizodrama, de Gregorio Baremblitt (1982, 2004).
No campo epistemológico da análise institucional situa-se a ecosofia (GUATTARI, 1990, 2015), concepção de educação ambiental que embasa esta investigação, manifestando a necessidade de produzirmos um pensamento que ultrapasse os limites da lógica cartesiana e problematize o lugar do humano como centro e medida de todas as coisas. Para Guattari, é preciso que o conhecimento avance a tal ponto que possamos nos entender e sentir integrado aos demais seres, rompendo as fronteiras que separam a natureza humana de outros seres vivos e bens naturais. Através de articulações políticas e práticas cotidianas pode emergir um questionamento mais amplo acerca das normas e premissas sociais, é o que vem indicando nossas intervenções pedagógicas.
A concepção ecosófica da educação ambiental tem como ponto de partida a relação corpo-ambiente, e como desafio “propiciar o livre fluir da produção e do desejo na vida biológica, psíquica, comunicacional, política, ecológica etc.” (BAREMBLITT, 2012, p. 151), proporcionando um aprendizado que se desdobre na transformação de si e do ambiente em que o corpo está inserido.
Quando uso a palavra corpo estou me referindo ao organismo, aos músculos e sangue, tendões, artérias, ossos, funções vitais, digestão, mas também me refiro ao tecido histórico e cultural que compõe o corpo vivo, vivido, motor, constituído no tempo e no espaço. O corpo humano demanda investimentos, inquietações, materializa experiências estéticas. É linguagem, aparato cibernético, genoma, fenômeno midiático e televisivo. É universo microscópico, bactéria, vírus... meio ambiente (AMARAL, 2013, p. 140, grifo do autor).
O corpo recria-se a cada momento ao se lançar no plano dos puros afetos, identificando-se com a eternidade e o caos. O afeto não é só humano, o que é humano são os sentimentos. O afeto é potência vital que transversaliza e torna o corpo capaz de criar enquanto resiste à servidão, à mediocridade, ao intolerável, à vergonha. As contribuições de Deleuze indicam que o corpo resiste ao reinventar a si mesmo e ao ambiente – aqui entendido como lugar de intercâmbio em múltiplas dimensões. Toda vez que corpo e ambiente interagem, no processo de intervenção, são geradas outras correlações de forças entre cultura e natureza, matéria e energia, atual e virtual, razão e intuição, instituído e instituinte, saberes populares e conhecimentos científicos etc., mais potentes e transformadoras. Em que o humano recompõe sua própria subjetividade por meio da práxis e de uma ética do sensível.
As relações vividas no processo de intervenção acontecem graças à existência de um ambiente social que fomenta o intercâmbio entre diferentes histórias de vida e visões de mundo, a coexistência de variados pontos de vista (religiosos, estéticos, políticos, filosóficos, epistemológicos etc.) e a interação entre diferentes grupos étnicos, classes sociais, gêneros, faixas etárias etc.
São modos de convívio agenciados pelo cuidado não somente no âmbito das relações humanas, enquanto são cultivadas relações de amizade, companheirismo, solidariedade, afeto etc., mas também da relação com o ambiente, enquanto são cultivadas novas maneiras de perceber e lidar com os outros animais, as plantas, a terra, o oxigênio, a água etc. Reinventando o cuidar, o tocar, o ver, o sentir, o ouvir, o falar, o afetar e o ser afetado pelo outro e o meio, através de recursos artístico-pedagógicos e vivências em contato com a natureza.
Trata-se de uma educação ambiental (AMARAL, 2013) fundada em uma ética da permanente reinvenção de si e do mundo, instigando o humano a fazer uma busca na tentativa de transformar-se, em alguma medida, no próprio ambiente em que seu corpo habita. Instiga-nos a pesquisar certas possibilidades de intercâmbio com o meio que sejam abertas aos devires: devir-água, devir-vegetal, devir-animal, devir-inumano... devir-outro. Não se trata de um processo passivo, em absoluto, pois o humano se transforma transformando. Os devires promovem a sensibilidade e o cuidado com a vida, já que no momento em que me experimento outro (experimento devir água, ar, ou um pássaro, ou um peixe, uma pedra), permito-me vivenciar na perspectiva do outro, por exemplo, os desequilíbrios ecológicos causados pela sociedade capitalista, destruindo a vida em favor do lucro e do enriquecimento de uma ínfima parcela da população.
A pesquisa-intervenção evidencia a importância de aprender a lidar com forças e fragilidades de trabalhar cooperativamente, de lidar criativamente com opressões, de sentir e perceber a vida a partir de outros ângulos e perspectivas. As intervenções têm permitido aprender um pouco mais sobre a força das emoções, ímpetos e sensações. Momentos importantes porque acionam o corpo, rompem com alienações, impulsionando o humano à ação, criando condições de possibilidade para que manifeste suas capacidades sensíveis, estéticas e transformadoras da realidade.
Análise dos dados produzidos na intervenção pedagógica
Neste capítulo iremos delinear o funcionamento do dispositivo a partir da análise de algumas intervenções pedagógicas desenvolvidas. Esta análise incide sobre os processos grupais das atividades realizadas no Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental4 (entre 2009 e 2016) de uma universidade federal, que incluem o trabalho no grupo de pesquisa (CNPq) As Três Ecologias de Félix Guattari5 e no projeto de extensão Grupo de Teatro Interativo: laboratório de pesquisa e intervenção socioambiental6, assim como as atividades desenvolvidas na ONG Comunidade Casa do Caminho7.
Uma das intervenções conduzida pelo grupo de pesquisa (CNPq) As Três Ecologias de Félix Guattari, no IV Fórum dos Mestrados Profissionais em Enfermagem, entre 25 e 27 de novembro de 2014, na Universidade Federal Fluminense, em Niterói/RJ, mostra o funcionamento do dispositivo e sua potencialidade para promover o desenvolvimento de outros modos de viver e se relacionar.
A intervenção pedagógica, em forma de oficina aberta aos participantes do Fórum, intitulada Experimentações Estéticas de Cuidado, foi realizada conforme as seguintes etapas: 1) apresentação dos participantes (orientados a não se apresentarem ao grupo dizendo quem são, mas quem desejariam vir-a-ser); 2) relaxamento e alongamento corporal; 3) técnica dos sentidos8 (com olhos vendados, os participantes foram orientados a utilizar os demais sentidos para entrar em contato com os materiais colocados em suas mãos: frutas e temperos diversos, bolsa térmica com água quente, cosméticos e pedras de gelo em um saco plástico); 4) exibição de audiovisuais (Atrevete9 e Elephant Gun10) seguida de uma roda de conversa (problematização em torno da importância de um devir-outro – devir-criança, devir-louco, devir-mar, devir-animal etc. – como forma de conhecimento de si e invenção de novas maneiras de se relacionar consigo mesmo e o mundo); 5) técnica da caminhada com olhos vendados11 (o grupo foi dividido em duplas, sendo que uma pessoa da dupla fica de olhos vendados e a outra a conduz em silêncio pelo espaço ao ar livre); 6) técnica do canudinho (confecção de canudinhos com folhas de papel e, logo após, caminhada ao ar livre guiados apenas pela visão de um dos olhos através do orifício do canudinho, como forma de perceber e potencializar a transversalidade); 7) técnica do vídeo-fórum (foram convidadas três voluntárias para apresentar um quadro clínico no qual uma enfermeira e uma técnica de enfermagem estariam atendendo uma paciente, que assume o ponto de vista do ator em movimento já que a câmera filmadora está sendo operada por ela mesma).
Ao final das atividades, cada participante fez um breve relato. Ao conduzir e ser conduzido, a maioria dos participantes comentou sobre o vínculo e a relação de confiança que estabeleceu com o outro, bem como a perplexidade diante de um ambiente onde transitam cotidianamente e que a técnica proporcionou experimentar como se fosse a primeira vez, fazendo-os repensar sobre o cuidado de si, do outro e do mundo. Sobre estar olhando através do canudo de papel, dois participantes comentaram sobre a dificuldade de enxergar e a angústia sentida durante a atividade, em função da desacomodação na perspectiva do olhar. Porém, nesse processo de transversalização surgiram aqueles que descreveram a oportunidade de olhar “detalhes e riquezas das coisas e seus movimentos que não estamos acostumados a ver”. Um participante relatou que “conhecer aos poucos, devagarzinho, pode ser mais intenso do que olhar o mundo todo de uma vez”. Outro comentou que ver “objetos em longa distância também produz o aguçamento dos sentidos, principalmente da audição. São os barulhos que evitam choques entre as pessoas, sendo necessário ter uma maior movimentação circular para o deslocamento”.
Posteriormente, os participantes foram solicitados por e-mail a responderem às seguintes perguntas: 1) Que pistas a oficina forneceu sobre o que pode impulsionar você a se transformar naquilo que gostaria de se transformar num futuro próximo ou distante? 2) Que pistas a oficina forneceu sobre o que pode estar impedindo/dificultando você de ir ao encontro de seus desejos e vontades?
Dentre as respostas, destaca-se o relato de um dos participantes que valorizou o aprendizado e enalteceu o desafio que o levou a lidar com situações inusitadas, que ampliaram seus territórios existenciais. Nesse sentido, ele citou o surgimento de uma força ativa potencialmente capaz de promover o desenvolvimento de outros modos de viver e se relacionar:
A oficina me auxiliou a descobrir o que são meus medos internos, minhas vaidades e preocupações, fez refletir sobre o que já conquistei em minha vida e como fiz para conquistar, assim como, o que ainda não conquistei e porque ainda não cheguei lá!!! Visualizei meus desafios e minhas potencialidades, pude refletir e me conhecer melhor. [...] Eu nasci com asas... Para desbravar novos caminhos, potencializando os que me rodeiam, minha família e me tornando alguém que é capaz de enfrentar novos desafios constantes para atingir novas metas de felicidade! [...] mas preciso lembrar de cuidar mais de mim e aprender a cada dia a dizer não, pensando em minha família, na minha vida e o que ainda quero e posso conquistar para também me realizar como pessoa e como profissional, auxiliando novos seres humanos, crianças, famílias, amigos e outros seres que ainda vou conhecer e esbarrar por esta vida! Esta acredito ser minha missão... pois vou conseguir ser uma articuladora musical, que metaforicamente, além de mostrar que ainda é uma vontade interna que tenho de verdade de aprender a tocar instrumento musical, preciso me tornar mais política, articulando novos projetos de trabalho e de vida!!!
Em outra intervenção pedagógica, realizada no dia 5 de setembro de 2009, com a participação de voluntários da ONG Comunidade Casa do Caminho, através do Projeto de Ensino e Extensão Formação Continuada de Agentes de Saúde Mental Comunitária12, foi realizada uma improvisação dramática.
O dispositivo, enquanto improvisação dramática (BOAL, 2014), pressupõe um tipo de espaço cênico onde as pessoas não representam personagens, na concepção tradicional do teatro, mas apresentam-se a si próprias guiadas pelos fluxos do aqui e agora. Nesse espaço, os corpos daqueles que animam o processo grupal são entendidos como forças de composição das intervenções, contribuindo para a formação em educação ambiental. Isso acontece enquanto é estabelecido um jogo de correspondência entre quem se apresenta e quem assiste, entre o que se passa nas intervenções e na vida cotidiana. Esse processo é aqui entendido como formação de si e só se viabiliza e ganha potência nas relações dos corpos entre si e com o ambiente.
Nessa dramatização, o facilitador da atividade propôs ao grupo relatar alguma questão pessoal para trabalhar naquele momento. Uma senhora, inconformada com a morte súbita do esposo, disse que não conseguia entender sua morte e achava que poderia ser ajudada pelo grupo. Um dos autores deste artigo que participava da dramatização, após ouvir o relato, assumiu o papel de marido da viúva e começou a improvisar. Ele narra em seu diário de campo:
Foi um forte momento de catarse. Quando o coordenador pediu que alguém assumisse o papel do marido sai imediatamente da roda [o grupo, em pé, estava formado em círculo no jardim da ONG], sem pensar duas vezes, e comecei a caminhar com a mulher no centro do círculo. Procurei me concentrar e esvaziar a mente buscando um estado meditativo. Não sabia o que estava por acontecer, pois não tínhamos roteiro e não havíamos feito nenhum ensaio ou combinação prévia. A proposta da intervenção era improvisar e isto significa estar no fio da navalha, transitar no limite tênue entre o delírio e a lucidez. Eu sabia que para isto é preciso estar aberto, aguçar os sentidos, estar atento e deixar a intuição conduzir cada palavra, cada movimento, cada célula do corpo. Isso exige total entrega. Durante o diálogo com a mulher não havia tempo para elaborar frases e as respostas estavam sendo criadas durante a execução da intervenção, fluindo com tranquilidade, firmeza e coerência. Eu não sabia o que dizer, apenas abria a boca e falava. Naquele momento senti vontade de tirar os sapatos e colocar os pés na grama, mas não tirei. Senti um poderoso fluxo de energia que vinha da terra e percorria meu corpo. Eu estava apenas canalizando aquela energia, um verdadeiro turbilhão de expressões e palavras, nada mais. Senti um misto de vertigem e excitação, não havia tempo para filtrar o que deveria e o que não deveria ser dito. Meus sentidos estavam aguçados e meu corpo todo estava em prontidão. (Anotação extraída do diário de campo de um dos autores deste artigo, setembro de 2009).
Alguns meses depois, a coordenadora da Casa do Caminho, Marcolina Tacca, mais conhecida como irmã Assunta, comentou que sua sobrinha, a viúva, havia superado o trauma da morte do marido e que nossa intervenção havia sido fundamental naquela superação, por termos contribuído para o reequilíbrio da assistida, que pode, assim, reencontrar sua própria força vital.
Nesse sentido, o interveniente, que assumiu o papel de marido da viúva, acrescenta:
Depois da intervenção três pessoas, em momentos diferentes, vieram conversar comigo. A primeira impressionada com o que havia acontecido perguntou se eu estava em transe mediúnico. A segunda, também perplexa, disse que tinha visto várias gradações de luzes e cores nos iluminando enquanto nos deslocávamos no pátio. E a terceira teceu alguns comentários sobre a importância do teatro em atividades de cura e disse que havia gostado muito da minha atuação. Três perspectivas bastante distintas a respeito do mesmo evento. Quem está certo? Todas as pessoas ou nenhuma delas? (Anotação extraída do diário de campo de um dos autores deste artigo, setembro de 2009).
Diferentemente das metodologias centradas no controle das variáveis, as práticas desenvolvidas privilegiam descontroles e estão abertas à multiplicação das variáveis e a proliferação de perspectivas. Ao contrário dos métodos clássicos, as variáveis estranhas são bem-vindas. Espera-se que interfiram e gerem ondas de desestabilização potencializando a invenção de outros modos de conviver, novas maneiras de lidar com os velhos problemas do humano. É uma forma de nos expressarmos com menos autocensura e de acreditarmos mais nos complexos processos colaborativos, de autorregulação da vida e na capacidade de improvisação do humano.
Todavia, o processo de criação do dispositivo do grupo exige especial atenção e cuidado, pois o que se faz efetivamente é problematizar uma forma de controle específica enquanto os corpos se perdem e se reencontram: o controle ego-centrado. No campo epistemológico onde as intervenções pedagógicas se situam não existe raiz no eu, pois os acontecimentos se dão de maneira descentralizada, multifocada, transversalizante.
A proposta das microintervenções realizadas pelos alunos da pós-graduação em educação ambiental, que surgiu tanto da nossa consideração da inalcançável complexidade macro da problemática ambiental, como da necessidade de produzir, por meio de clinamens (desvios microscópicos nas órbitas dos elétrons na física pré-socrática), modificações a serem produzidas no cotidiano de cada aluno(a); revoluções moleculares (GUATTARI, 1981) sempre relacionadas tanto com a ecosofia quanto com os respectivos projetos de pesquisa de mestrado e doutorado dos pós-graduandos. Algumas dessas produções nos mais diversos campos ficaram registradas nos vídeos ambientais13.
A criação do dispositivo microssocial do grupo é orientada por outra epistemologia, em outra perspectiva, em que “formas variadas de racionalidade e a possibilidade de que outras fontes de conhecimento, não racionais e sim emocionais, intuitiva, sensíveis, imaginativas e motrizes” (GAUTHIER, 2009, p. 5) entrem em jogo no processo de produção do saber. Ela é fruto de um processo de ressingularização das relações, e fundamenta-se na complexidade a partir do paradigma ético-estético de Deleuze e Guattari. Desse ponto de vista, variadas conexões rizomáticas são estabelecidas a todo o momento em um fluxo constante de desterritorialização e reterritorialização.
A complexidade explica os fenômenos histórico-culturais intrínsecos nos biológicos e aponta para soluções que dependem da internalização de certas concepções. Neste sentido, a Educação Ambiental pode ser o eixo de interlocução das concepções éticas no sujeito, compreendendo-o como homem e animal, instintivo e civilizado, racional e emotivo, sapiens e demens e, mais importante, capacitado para compreender e multiplicar a própria inteligência [...] Os conceitos que cercam as dualidades do homo referem-se principalmente às suas capacidades de abarcar a condição humana na civilização e a condição primitiva do animal humano, parte inevitável da natureza. Refere-se ao paradoxo sociedade ou cultura X natureza, porém retirando a ideia de versus, ou seja, colocando sobre a união entre as condições que o constituem uma não mais que a outra. Porque de fato nunca existiu o homo sem a complexidade de sua subjetividade (indivíduo), seu meio (sociedade) e sua natureza (espécie). A complexidade coloca-se, a nosso ver, como uma epistemologia capaz de compreender o humano, sua natureza interna e sua natureza externa, isto é, por levar em conta todos os aspectos e categorias biológicas e sociais que o cercam: desde a fisiologia à pré-história, história e tradição (SANCHEZ; CALLONI, 2013, p. 7-8).
Esse é o principal desafio de nossas intervenções pedagógicas: reinventar se reinventando, rompendo dualidades, ajudando-se mutuamente, acessando devires, acreditando em intuições, valorizando o outro em suas diferenças, mostrando-se como se vê, expressando-se tal como se sente, ampliando o conhecimento de si mesmo, recriando máscaras e papéis sociais, agindo e pensando com o corpo inteiro em movimento, colocando-se em situações não normais (com relação às normalidades instituídas), vivendo estados distantes do equilíbrio, lidando com acontecimentos inesperados. Enfim, arriscando-se para além dos lugares seguros e confortáveis criados pela necessidade de perpetuar instituições e fixar identidades e papéis sociais, característicos do grupo objeto-assujeitado (GUATTARI, 2005), que transforma o indivíduo em mais um dentre outros indivíduos e reproduzindo valores ligados ao consumo e a lógica produtivista.
O entendimento rígido da realidade e as maneiras de lidar com ela mostraram-se bastante individualistas, reforçando em muitas circunstâncias a primazia do eu e a repetição do mesmo, do hegemônico, do esperado. Ao longo do processo, momentos de cooperação e solidariedade mútua fizeram brotar no grupo variados graus de diferenciação e singularização.
As intervenções pedagógicas indicam que existe uma potência a ser liberada quando o humano rompe com estereótipos e reinventa papéis sociais.
Outra linha instituinte do dispositivo, outra técnica complementar era necessária. Foi o que aconteceu, especialmente nas atividades artístico-pedagógicas, por intermédio do clown – um tipo de palhaço improvisador, desajeitado, imprudente, animado pela interação com o mundo e os outros, que ao expor seu próprio ridículo e eventuais fracassos transforma-os em material cômico, fazendo rir a verdade, colocando em evidência aspectos do humano, via de regra, negados socialmente. O clown caracteriza-se por transgredir as regras, subverter máscaras e papéis sociais, desafiando a ordem vigente e perturbando representações sociais.
No processo de nascimento do clown no contexto do nosso projeto de extensão Grupo de Teatro Interativo: laboratório de pesquisa e intervenção socioambiental (entre agosto de 2015 e novembro de 2016) foi dado um passo significativo em direção à qualificação do vínculo grupal e do seu desenvolvimento. O clown mostrou-se na coragem, improviso e entrega dos membros do grupo, na forma de se relacionar com o meio ambiente, de assumir o seu ridículo, e ter consciência que ele podia ser matéria fundamental para o seu próprio clown, na experimentação de línguas estranhas e de linguagens corporais imanentes, na expressão corporal mais espontânea, no envolvimento, no improviso, na motivação e criatividade durante a elaboração do figurino e da maquiagem, na participação crítica, imaginativa, sensível, reflexiva e inventiva do grupo.
Todavia, este tem sido um processo conflituoso, cheio de avanços e retrocessos. Se, por um lado, o grupo avançou nas atividades realizadas em laboratório, trabalhando a técnica do clowning (BESNARD, 2006, 2014), por outro, progrediu timidamente com relação às intervenções socioambientais propriamente ditas. Talvez porque essas envolvam o intercâmbio com o ambiente situado fora do laboratório, demandando exposição de si mesmo, interação com o público e o enfrentamento das complexas questões socioambientais. Esse é o momento mais exigente, de maior tensionamento, ou seja, quando rompemos as fronteiras do ambiente protegido do laboratório/sala de aula e avançamos em direção ao ambiente mais instável e contraditório do cotidiano. Isso implica um maior grau de intensidade com relação às atividades desenvolvidas no laboratório, deslocar-se para além dos lugares seguros, desterritorializar-se, lidar com imprevistos, desnudar-se num sentido mais amplo, expor seu ridículo aos outros e ao mundo, ao apresentar-se de outro jeito, com outro papel social, outra máscara, sob o signo de outras representações. Em síntese, essas implicações, essa concreta atuação, deve estar corporalmente fidelizada para repercutir os problemas sociais e ambientais.
O grupo vinha percebendo esse tipo de atuação como ameaça, suscitando temores e inibições. Essa constatação foi um desafio para nós pesquisadores, que propomos práticas e articulamos teorias apontando caminhos para enfrentar os problemas socioambientais. O medo apareceu como grande fantasma. O receio da despersonalização, de se misturar com outros corpos, medo do caos, da impossibilidade de classificar ou controlar, de correr riscos e improvisar, de posicionar-se e propor alternativas, de envolver-se mergulhando no processo, o medo do imprevisto, o medo de transformar a realidade transformando a si mesmo. Medo da lei, da moral, da vida e da morte, medo do novo. Medo! Entretanto, o grupo em diversas nuances, contraditoriamente, emergiu como êthos da ação transgressora das verdades instituídas, das regras de assujeitamento e dos significantes sociais dominantes. Rompeu, movido pelo ímpeto da superação de si mesmo, com o êthos da submissão, e foi além do grupo objeto.
Após emergir dos momentos de crise, manifestou-se como grupo sujeito (GUATTARI, 2005) operando de maneira autônoma, criando suas próprias regras, o que faz da posição subjetiva uma atitude de sujeito. Tais devires permitiram o questionamento do sentido da ação e a criação de novos sentidos para suas ações, sendo a lógica aqui apresentada parcial e processual e não totalizadora ou funcionalista. Abriram espaço para o surgimento de movimentos de fluxo e forças instituintes, nos quais cada um e todos têm sua maneira própria de viver e se expressar, têm seu brilho próprio, permitindo o acolhimento de paradoxos e oposições aparentes, e recebendo o outro em suas diferenças.
A experimentação de outros modos de coexistência abriu microfissuras no espesso tecido social ao procurar romper as fronteiras que separam o humano da natureza, o sujeito do objeto, o dentro do fora, abrindo novas perspectivas em termos do cuidado de si, dos outros e do meio ambiente. A pesquisa-intervenção propõe novos horizontes para o processo de formação em educação ambiental e indica outras maneiras de produzir conhecimento.
O dispositivo grupal vem lidando com alguns dos importantes desafios que estão colocados para o campo da educação ambiental, problematizando o modus operandi da sociedade contemporânea e produzindo outros modos de coexistência a partir da criação de um espaço para o diálogo e para a sensibilização ambiental, com vistas a uma vida com mais qualidade e felicidade, em que o trabalho cooperativo possa resistir às opressões e alienações, edificar um mundo inspirado por sonhos e utopias, em que seja possível lidar com o medo da dor, desejar a liberdade e, sobretudo, aprender a lutar pela vida.
O cuidar na formação em educação ambiental
Um dos principais atributos da investigação realizada foi rastrear e explorar determinados paradoxos e dispersões: alguns acontecimentos carregados de potencial transformador, provocadores de sentidos e intuições capazes de colocar o pensamento em fluxo criativo.
O processo de pesquisa revelou-se com potencialidade de colocar em questionamento normas e convenções sociais. Instigando-nos a conceber uma educação ambiental que fomente a criação de dispositivos grupais que promovam possibilidades de intercâmbio entre o humano e o ambiente, mais receptivas aos movimentos instituintes e devires, favorecendo não exatamente o colocar-se no lugar da natureza e sentir como ela sente, mas sim, apreender a natureza que já somos. Parafraseando o geógrafo Elisée Reclus, poderíamos dizer que o humano é a natureza tomando consciência de si própria.
Ao contrário de considerar a natureza como fora de nós, deixar-se percorrer pelos fluxos de um devir-água, ou sacudido por um devir-vento, ou plantado por um devir-árvore, ou incandescido por um devir-relâmpago.
A noção de cuidado elaborada em nossa pesquisa pressupõe a criação de dispositivos grupais na formação em educação ambiental que façam o humano acessar dimensões que lhe permitam vivenciar outros centros de gravidade, outros modos de coexistência, extrapolando o ego, o individualismo, as perspectivas individuais, e que nos permitam criar e experimentar corporalmente as diversidades existenciais.
A relação entre o que acontece dentro e fora do laboratório de pesquisa, entre os universos formais, não formais e informais de ensino, entre um espaço instituído e outro, indica a existência de potenciais inventivos no entre, no intermezzo, nos entrelugares. São lugares de passagem, onde somente é possível transitar; são lugares que se extinguem na medida em que cessam as variações de fluxo, as descontinuidades, os reacoplamentos. Ele só é experimentado quando o humano se desloca para além dos territórios em que exerce domínio, abrindo mão dos seus lugares seguros e mergulhando na criação, na invenção do novo. O entrelugar é prenhe de forças criativas. O dispositivo torna visível algumas das invisibilidades do instituído e, ao fazer isso, produz os dados da pesquisa em um processo de autoanálise coletiva.
Os estudos desenvolvidos a partir das intervenções pedagógicas14 apresentaram-se como alternativas possíveis para desenvolver capacidades intuitivas, sensitivas, criativas, enquanto o humano transita nas fronteiras entre a consciência e o inconsciente. As intervenções mostram que isso é possível quando os sentidos são aguçados e o corpo transforma a si mesmo, gerando ondas de instabilidade e intensificações, quando põe em desordem certa ordem estabelecida e denuncia a incompatibilidade da atual sociedade com as potências e múltiplas possibilidades do corpo humano.
As concepções de educação ambiental voltadas para a tomada de consciência têm sua importância no conjunto do processo de aprendizagem. No entanto, da conscientização à ação existe um trajeto a ser percorrido que envolve a mobilização de intrincados processos corporais que se desdobram na ação. Os processos de formação em educação ambiental são, nesse sentido, a manifestação do que se passa no mundo vivido, na medida em que os acontecimentos se processam, onde a teoria influencia a prática e vice-versa, numa trama que envolve o sentido, o dito, o refletido, o sonhado, o visto, o inenarrável, na qual o verbo pensar é conjugado no eterno gerúndio, num movimento em permanente desconstrução e criação inventiva.