Introdução
O estatuto que a educação de adultos (EA) conquistou na academia fez-se como resultado de um processo de complexificação do campo, que ocorreu no espaço e no tempo. A relação que se estabeleceu entre o campo da EA e os saberes disciplinares consagrados foi dando lugar a uma matriz de temas que formam a autonomia teórica da EA.
Dessa matriz temática fazem parte diversas problemáticas que originaram debates de cariz teórico-conceptual e teórico-pedagógico que têm animado o panorama histórico e as caraterísticas da EA, pressupondo: i) tomar a realidade dos sujeitos da educação como problema central; ii) desenvolver, a partir daí, um diálogo aberto e ético, em que a uma liberdade de problematizar e desconstruir corresponda também uma liberdade de investigar e propor.
Ora, deriva daí o eixo central e fio condutor da discussão apresentada neste texto, na medida em que nele se perceciona o conceito de mediação, sobretudo na esteira da proposta de Reina (2001), como mediação ampla,2 ou seja, uma mediação preocupada fundamentalmente em intervir para melhorar, com as pessoas, o seu bem-estar social. E, em EA, essa é, na essência, a definição do papel do educador. Entendemos, pois, que revisitar autores como Malcolm Knowles e Paulo Freire, que deram importantes contributos históricos na discussão em torno da relação pedagógica do educador com o educando, é um exercício que se reveste de interesse porque nos permite convocar uma moldura conceptual pertinente para ajudar a pensar a mediação sociopedagógica como prática de criação de pontes e espaços de diálogo que aprofundem a comunicação intercultural de um modo potenciador de redes sociais mais robustas, que possam refundar uma cidadania social para o nosso conturbado tempo (BARROS, 2013b). Com esse objetivo iremos, portanto, apresentar criticamente o essencial do modelo andragógico de Knowles e o essencial do conceito de dialogicidade de Freire, visando ensaiar uma discussão que, partindo de uma comparação entre esses dois contributos, permita identificar pistas de cariz teórico-conceptual e teórico-pedagógico que iluminem o papel do educador contemporâneo enquanto mediador sociopedagógico.
Sobre o debate entre andragogia e pedagogia
O modelo andragógico de Knowles, que conheceu ampla divulgação, suscitou um dos primeiros debates sistemáticos no panorama internacional da EA. Esse debate surge da tentativa de restringir o domínio teórico da pedagogia, até então entendido em termos globais, contrapondo-lhe o que seria uma especificidade para o adulto: a andragogia. O debate foi-se desenvolvendo em torno do conceito e da visão teórica que subjaz ao modelo e que originou um conjunto de elaborações teórico-conceptuais, designadas perspetivas andragógicas.
Apesar de o auge dessas ideias ocorrer na década de 60 do século XX, o termo andragogia antecede-lhe em várias décadas. Com efeito, sua história parece remontar ao século XIX, altura em que, segundo Jarvis (1987), Alexander Kapp, um professor alemão, teria criado o termo para descrever a filosofia educacional de Platão. Não tendo, no entanto, sido bem aceite naquela época, o termo cairia em desuso para reaparecer na literatura quase um século mais tarde num relatório elaborado por Rosenstock na Alemanha, em 1921, e no título de um livro de Hanselmann na Suíça, em 1951. Desde então, o termo seria utilizado tanto na Europa – especialmente na Europa de leste, onde goza ainda de muita popularidade – como nos Estados Unidos (JARVIS, 1987).
Embora utilizado regularmente na Europa de leste, segundo referem Krajnc (1989) e Skalka e Livecka (1977), é a história americana do termo andragogia que o irá introduzir nos círculos internacionais de debate da EA. Assim, segundo Brookfield (1987), o termo terá sido usado nos Estados Unidos inicialmente por Anderson e Lindeman, em 1927, sem ter sido, no entanto, popular naquele país até à década de 60, altura em que um educador de adultos jugoslavo, Dusan Savicevic, a frequentar uma escola de verão na Universidade de Boston, irá dar conhecimento a Knowles desse termo. O educador norte-americano faria desse conceito a temática central de toda a sua obra, tendo sido responsável, quer através dos seus livros quer através das suas numerosas palestras, pela sua difusão mundial.
O impacto que as formulações elaboradas por Knowles em torno do conceito de andragogia veio a atingir só poderá ser compreendido se situado no contexto histórico e social da década de 60 do século XX. Uma década que, em matéria de EA, seria marcada, por um lado, por uma considerável e rápida expansão da oferta educativa dirigida aos adultos, e, por outro lado, pela consequente procura sistemática dos procedimentos – que, de resto, nessa época se diversificariam consideravelmente – mais adequados a essa nova população-alvo da ação educativa deliberada. Ora, do ponto de vista teórico, a questão que dominava na época, influenciada pelas investigações realizadas no âmbito da psicologia, era a de compreender as caraterísticas individuais dos adultos para que, a partir do conhecimento das suas especificidades, fosse possível encontrar as estratégias de ação educativa mais apropriadas a cada um dos adultos. De facto, nesse período torna-se consensual a ideia de que seria conveniente estabelecer uma clara clivagem, tanto teórica como cronológica, entre a infância e a adultez, a que corresponderiam abordagens educativas distintas (CANÁRIO, 2000).
Assim sendo, e atendendo às próprias caraterísticas dicotómicas da racionalidade científica dominante, não surpreende que Knowles tenha construído o seu modelo teórico com base numa argumentação (que considerámos muito discutível) que incide no contraste e no antagonismo entre os processos educativos utilizados para a educação das crianças e os processos educativos utilizados para a educação dos adultos, entendidos como dois campos de educação opostos. Cabendo, nessa abordagem, ao primeiro campo a designação de pedagogia, ao segundo seria dada a designação de andragogia, a partir de uma justificação que atende, em grande medida, à etimologia da palavra pedagogia – cuja origem reside na derivação grega dos termos paid (que significa criança) e agogus (que significa conduzir ou indicar o caminho) – e dos termos añer e andr- (que significa adulto). É com base nesse raciocínio que, para Knowles (1980, p. 40-42), uma vez que pedagogia significa, literalmente, “a arte e ciência de ensinar crianças”, então a definição de andragogia poderia ser “a arte e ciência de ajudar os adultos a aprender”.
Apesar da lógica de simples dicotomização em que assenta todo o modelo, ao contrapor os termos pedagogia e andragogia, Knowles não estabelece uma simples paridade de sentidos inversos entre ambos os conceitos, como à primeira vista poderia parecer, mas faz o que tem sido apelidado de “um interessante salto semântico” (DAVENPORT, 1993, p. 110). Caso contrário, o termo andragogia deveria ser entendido literalmente, à semelhança do que aconteceu com o termo pedagogia, como “a arte e ciência de ensinar adultos”, e não como “a arte e ciência de ajudar os adultos a aprender”. Ao proceder dessa forma, Knowles enfatiza ainda mais, através da linguagem, a diferenciação de cariz didático que defende existir entre a educação de crianças e a EA (KNOWLES, 1960, 1970, 1980). Na sua linha de pensamento, é possível identificar um conjunto de pelo menos seis pressupostos em torno dos quais se estabelece e estrutura o essencial da comparação entre pedagogia e andragogia, que iremos mencionar de seguida para ilustrar melhor a lógica subjacente à construção desse modelo.
Há, pois, nessa abordagem teórico-pedagógica, uma primeira questão relacionada com a forma como é entendida, num e noutro caso, a necessidade de saber ou conhecer, considerando-se que, enquanto no modelo pedagógico parte-se do pressuposto de que a criança necessita apenas de saber que tem de aprender o que o professor lhe ensina, no modelo andragógico parte-se do pressuposto de que o educando adulto tem necessidade de saber em que medida o conhecimento a adquirir lhe poderá ser útil. Ou seja, num caso o conhecimento é imposto e no outro caso o conhecimento é aceite depois de avaliado numa lógica de caráter instrumental. Uma segunda questão envolve o autoconceito ou conceito de si, isto é, de quem aprende. Nesse ponto, enquanto no modelo pedagógico parte-se do pressuposto de que a criança tem um papel de dependência em relação ao papel do professor, que decide o que deve ser aprendido, no modelo andragógico parte-se do pressuposto de que o educando adulto é um ser independente, pelo que o trabalho deve ser desenvolvido numa lógica autodiretiva, na qual o educador tem apenas de estimular e alimentar esse movimento de autonomia. Ou seja, num e noutro caso, há um entendimento pré-estabelecido da ideia de autoconceito, que a pedagogia nega à criança e a andragogia impõe ao adulto.
Nessa abordagem teórico-pedagógica, uma terceira questão compreende o tipo de papel atribuído à experiência de quem aprende, considerando-se que, enquanto no modelo pedagógico parte-se do pressuposto de que a experiência da criança é de pouca utilidade – o que é valorizado é a experiência do professor, a quem cabe transmitir os seus conhecimentos através de um leque de métodos didáticos –, no modelo andragógico parte-se do pressuposto de que a experiência do educando adulto pode ser um rico recurso para promover a aprendizagem, através de um conjunto de métodos ativos e experienciais. Ou seja, a experiência, reconhecida apenas ao adulto, funciona como um indicador para os procedimentos de diferenciação didática.
Uma quarta questão está relacionada com a disposição ou vontade para aprender. Neste ponto, enquanto no modelo pedagógico parte-se do pressuposto de que as crianças estão prontas para aprender aquilo que a sociedade define e que é traduzido em termos de objetivos internos à lógica escolar, no modelo andragógico parte-se do pressuposto de que os educandos adultos aprenderão aquilo que tiverem necessidade de saber. Ou seja, num caso pressupõe-se que há uma disposição indistinta para aprender e noutro caso, que há uma disposição para aprender que está condicionada pelo meio.
Uma quinta questão compreende o sentido e a orientação dados à aprendizagem, sendo que, enquanto no modelo pedagógico parte-se do pressuposto de que o sentido das aprendizagens só será compreendido a longo prazo, pelo que predomina uma lógica disciplinar e compartimentada a nível curricular que se centra nos conteúdos, no modelo andragógico parte-se do pressuposto de que o sentido das aprendizagens está no contributo a curto prazo que estas podem dar para a resolução de problemas e tarefas, bem como para o aperfeiçoamento de desempenhos práticos. Ou seja, num caso opera-se uma fragmentação com o contexto e no outro caso há uma instrumentalização em função do contexto.
Por fim, nessa abordagem teórico-pedagógica uma sexta questão diz respeito à motivação para aprender, entendendo-se, neste ponto, que: enquanto no modelo pedagógico parte-se do pressuposto de que a motivação das crianças resulta de estímulos externos, no modelo andragógico parte-se do pressuposto de que o principal fator de motivação do educando adulto é de ordem interna. Ou seja, a motivação num caso pode ser condicionada do exterior mais facilmente que no outro, supondo-se a criança como um ser aberto e o adulto como um ser fechado sobre si, a quem cabe automotivar-se para aprender.
É a constituição desse universo teórico-conceptual, influenciado pela perspetiva da psicologia do desenvolvimento e da psicopedagogia, que permite a Knowles, na sua obra, contrapor, em moldes dicotómicos, dois modelos que considera como distintos e opostos. Ele o faz, porém, numa abordagem teórico-pedagógica que, estando mais preocupada em construir a própria oposição, acaba por restringir, em termos maniqueístas, as possibilidades existentes em cada um dos modelos, criando fronteiras que absolutizam uma distinção nem sempre realmente necessária, ou mesmo suficientemente fundamentada.
Nessa abordagem, a dicotomização aparece alicerçada num entendimento particular dado ao desenvolvimento humano (SANTOS, 2016) que considera que, à medida que os indivíduos amadurecem, as suas caraterísticas principais, enquanto seres que aprendem, vão também se alterando em áreas fundamentais para a aprendizagem humana, por exemplo, no que diz respeito ao autoconceito, que a partir desse prisma se pressupõe que evolui desde a personalidade dependente da criança na direção de um ser adulto, visto como autodirigido; ou também no que concerne à experiência, tida nessa ótica como uma progressão linear que acaba por se acumular com o passar do tempo para vir a constituir um reservatório de recursos disponíveis para a aprendizagem durante a adultez; ou, de igual modo, no que se refere à destreza para aprender, que se conceptualiza, nesse âmbito, como estando orientada para o desenvolvimento de tarefas mais relacionadas com os distintos papéis sociais que o adulto passa a desempenhar; ou mesmo inclusivamente, ainda, com a perspetiva temporal, que se associa à aprendizagem que, nessa lógica, se perceciona evoluir, por sua vez, de uma perspetiva a longo prazo própria da criança para uma perspetiva a curto prazo específica do adulto, ou seja, de uma aplicação do conhecimento projetada no futuro e centrada no indivíduo para uma aplicação imediata do conhecimento centrada nos desempenhos (KNOWLES, 1980).
No modelo andragógico de aprendizagem dos adultos teorizado por Knowles, é ainda notória a influência da psicologia humanista, corrente em que se defende tanto as qualidades do eu – valorizando-se, nesse particular, a experiência subjetiva –, como o respeito pela liberdade pessoal e o direito de escolha (MARTORELL; ARROYO, 2002). Nessa abordagem, estão ainda presentes três ideias fundamentais: primeiro, que a habilidade para aprender permanece intacta ao longo da vida; segundo, que o processo de aprendizagem é um processo interno controlado pelos indivíduos e que implica todas as dimensões da pessoa, nomeadamente a intelectual, a emocional e a fisiológica; terceiro, que existem certos pressupostos que, ao serem considerados na aprendizagem, podem conduzir mais facilmente ao crescimento e ao desenvolvimento de quem aprende (KNOWLES, 1960, 1970). A esse propósito, Krajnc (1989), inspirado nos princípios do modelo andragógico, salienta que, após o desenvolvimento infantil, o ser humano, durante a vida adulta, atravessa ainda um processo de desenvolvimento físico e psicológico relacionado com o seu status e com as suas responsabilidades sociais perante terceiros, bem como com o seu maior reservatório de experiências, o que torna mais particulares as suas necessidades de aprendizagem. Assim, Krajnc (1989, p. 19) enfatiza que “era decisivo organizar as experiências de aprendizagem de forma adequada à vida adulta, visto que a aprendizagem nos adultos é diferente em extensão e, segundo muitos, por vezes na forma, comparativamente à aprendizagem nas crianças”.
Com base nos pressupostos destacados, vemos que o contributo específico de Knowles para a construção histórica de uma autonomia teórico-pedagógica da EA está relacionado com a sua proposta de desenho do processo andragógico, que ficaria conhecida como o ciclo andragógico de Knowles. Nesse modelo, existem sete fases implicadas no ciclo andragógico, consideradas pelo autor como fundamentais para elaborar “o planeamento de programas de EA abrangentes e o processamento de experiências de aprendizagem específicas” (KNOWLES, 1980, p. 59). Ora, as sete fases sequenciais e progressivas do ciclo andragógico proposto por Knowles são: primeiro, a criação de um clima que favoreça a aprendizagem; segundo, o estabelecimento de uma estrutura organizativa que permita a participação do adulto no planeamento; terceiro, o diagnóstico das necessidades de aprendizagem; quarto, a formulação dos objetivos das aprendizagens; quinto, a conceção de um desenho ou roteiro de atividades; sexto, a operacionalidade efetiva das atividades; e sétimo, a reavaliação do diagnóstico de necessidades de aprendizagem, que poderá reconduzir o adulto a um novo ciclo (KNOWLES, 1980).
Portanto, o pensamento de Knowles daria origem a um dos primeiros debates teórico-conceptuais existentes no âmbito da construção de uma progressiva demarcação teórica em EA. De facto, a problemática suscitada em torno da abordagem que procura opor pedagogia e andragogia gerou um significativo nível de controvérsia, tendo suscitado, ao longo do tempo, diversas argumentações que se mostraram favoráveis a esse modelo dicotómico, bem como um considerável conjunto de argumentações oponentes e críticas que, desconstruindo as suas bases, demonstraram a artificialidade das suas principais elaborações.
No contexto da produção teórica que enveredou por adotar a abordagem andragógica, sobretudo no Leste Europeu, encontrámos dois géneros de argumentação: um de caráter filosófico-positivista, que enfatiza a ideia de que as diferenças de tipo existencial entre a infância e a adultez são tão significativas que requerem uma profunda diferenciação ao nível da prática educativa, que permita abordar didaticamente, de um modo eficaz e especializado, as inquietações ou dúvidas existenciais tidas como padrão para cada idade; e um outro tipo de argumentação que sublinha mais a ideia de que uma sociedade democrática não tem o direito de ressocializar os adultos, pelo que a sua educação tem de ser autodirigida, ao invés do que se pressupõe como necessário para as crianças, estas, sim, no auge do processo de socialização (MCKENZIE, 1977; SKALKA; LIVECKA, 1977; KRAJNC, 1989; MERRIAM, 2001).
No contexto da produção teórica crítica que desenvolveu argumentações oponentes à abordagem andragógica, a linha condutora da maioria dessas elaborações vai no sentido de demonstrar o frágil estatuto teórico em que a teoria andragógica se autoposiciona quando insiste em criar um modelo assente numa base estritamente dicotómica, em lugar de reconhecer as caraterísticas holísticas inerentes à educação (LEON, 1977). É devido a essa fragilidade teórica, que tende a reduzir a própria noção de pedagogia a uma pedagogia escolar tradicional, que a perspetiva andragógica tem sido acusada de representar mais uma aspiração a uma ideologia do que uma teoria da aprendizagem dos adultos (DAY; BASKETT, 1982).
Nesse sentido, o modelo andragógico e o modelo pedagógico não seriam, como proclamou Knowles, duas distintas artes ou ciências de ajudar os adultos a aprender ou de ensinar crianças, mas duas perspetivas distintas de abordar a educação de adultos e crianças, principalmente porque o pensamento de Knowles foi também inspirado nos princípios da Escola Nova e nas duas perspetivas sobre educação a que Dewey se refere: a tradicional e a progressista (BARROS, 2011). A esse mesmo respeito, Jarvis (1989, p. 74-75) afirma que, “na verdade, Knowles utiliza o termo ‘pedagogia’ para se referir ao currículo clássico e ‘andragogia’ para se referir ao currículo romântico. [...] pedagogia é a ‘educação desde o topo’ enquanto andragogia é a ‘educação entre iguais’”.
Há a referir, de igual modo, no contexto da crítica à abordagem andragógica, que a elaboração teórica em que se assentam os seus pressupostos é construída segundo uma lógica a que Jarvis (1987, p. 171) se refere como “uma inclinação para catalogar”, não fornecendo, na realidade, uma base teórico-conceptual que permita aceder à validade das frequentes listas de caraterísticas apresentadas nos seus escritos, ficando muitas vezes num nível mais descritivo do que analítico. De modo geral, um dos problemas centrais do pensamento de Knowles prende-se com o facto de a sua visão estar excessivamente centrada no indivíduo em termos psicológicos, sem levar devidamente em consideração os contextos sociais, políticos, culturais, económicos e históricos que influem no campo pedagógico.
Ora, a abordagem andragógica pensada “numa espécie de vazio social” (CANÁRIO, 2000, p. 138) sofre, como vimos, de diversas fragilidades que, de resto, foram sendo reconhecidas pelo próprio Knowles (1980, p. 43), que afirmou:
[...] na sua origem, defino andragogia [...] em contraste com pedagogia. [...] estou agora no ponto de observar que a andragogia é apenas outro modelo de suposições acerca dos aprendentes para ser utilizado lado a lado com o modelo pedagógico de assunções, constituindo dois modelos alternativos para testar as assunções na “adequação” com determinadas situações.
Na verdade, como lembra Jarvis (1995, p. 90) a esse propósito, “o facto de ele ter reformulado a ideia em várias ocasiões ilustra o facto de que cada assunção está consideravelmente aberta a debate”. Se a isso juntarmos o peso das críticas – que visibilizam os problemas semânticos, a falta de clarificação e robustez teórica da maior parte das suas assunções e a dificuldade de entender uma pedagogia isolada dos contextos sociais –, então podemos concluir no sentido do questionamento crítico acerca de se, afinal, essa abordagem representa um contributo teórico legitimo e com pertinência para o campo hodierno da EA.
Assim sendo, na problemática-chave que se centra no debate que opõe pedagogia e andragogia, concordamos com Jarvis (1987, p. 185) quando este afirma, referindo-se ao modelo andragógico de Knowles, que “era a primeira grande tentativa no ocidente de esboçar uma teoria abrangente da EA [até quando] foi visível que não era tão extensiva quanto ele talvez tinha previsto”. Mais do que um marco teórico no âmbito da EA, essa abordagem teórico-pedagógica contém em si, apesar das suas insuficiências, o mérito de ter representado uma tentativa que procurou contribuir para a construção de uma autonomia teórica da EA.
Sobre o conceito de dialogicidade
No conceito de politicidade da educação, em torno do qual considerámos que o pensamento crítico e radical de Paulo Freire está estruturado, as categorias do diálogo e da comunicação servem de base para o desenvolvimento dos pressupostos pedagógicos da sua abordagem político-pedagógica (BARROS, 2014). Nesse âmbito, o seu conceito de dialogicidade contém as ideias principais com as quais Freire elabora uma teoria da educação e da ação cultural que é também uma teoria do conhecimento com fortes implicações para a maneira de perspetivar a missão da EA.
A práxis educativa freiriana incorporou sempre, desde o início da sua ação alfabetizadora com adultos, o objetivo de contribuir para desenvolver e aumentar a democracia, porque partiu do pressuposto epistemológico de que a prática educativa nunca é neutra e de que o educador tem que estar ciente, quer trabalhe na alfabetização ou na pós-alfabetização, de que o processo educativo que operacionaliza na sua prática profissional irá contribuir para incluir ou excluir o educando. Como afirma Freire,
[...] um educador reacionário opera metodologicamente diferente de um educador revolucionário. [...] um caminha com o objeto na mão, o objeto de conhecimento tanto quanto possível possuído por ele e por sua classe; o outro não se considera possuidor do objeto de conhecimento, mas conhecedor de um objeto a ser desvelado e também assumido pelo educando. (GADOTTI; FREIRE; GUIMARÃES, 1995, p. 64-65).
Possuidor de uma clareza teórico-pedagógica acerca das estreitas relações entre educação e política, Freire seguiu sempre o seu impulso democrático, tomando partido por uma educação para a responsabilidade política e social que, abrindo caminho para a pronúncia do mundo pelos oprimidos, contribuísse para o processo da sua emancipação ideológico-cultural, condição para a sua libertação económico-social e política (BARROS, 2016; BARROS; RALHA-SIMÕES, 2016). Daí a importância concedida, nas práticas pedagógicas freirianas, às experiências de debate e de análise dos problemas reais dos educandos, como ponto de partida do trabalho educacional realizado com adultos.
Em termos gerais, a educação, nessa abordagem, é pensada como um conceito dinâmico que pressupõe uma ação eminentemente humana, realizada por um sujeito que interatua com outros sujeitos e com o mundo, num processo de construção do conhecimento que é intersubjetivo e dialógico. Trata-se de encarar o diálogo como condição de conhecimento, numa relação pedagógica concebida em termos antiautoritários.
O diálogo, na pedagogia da libertação de Freire, é mais do que uma forma técnica ou um recurso tático; é uma categoria ética, que se distingue da relação antidialógica da pedagogia tradicional pela promoção do inter-reconhecimento dos sujeitos dialógicos, numa ação-reflexão de dizer a palavra verdadeira em que se afirmam os valores democráticos e a reciprocidade da dignidade humana. Do seu caráter ético deriva, para Freire, que o diálogo é uma exigência existencial, pois, como sublinha, “se é dizendo a palavra com que, ‘pronunciando’ o mundo, os homens o transformam, o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens. [...] [o diálogo] é um ato de criação” (FREIRE, 2001, p. 79). É assim que na pedagogia freiriana o diálogo ético adquire um valor central mas multiforme, de sentido psicológico, metodológico, epistemológico e político, que lhe é conferido pela dialogicidade do ser humano, visto como ser de comunicação e de relação.
Na educação problematizadora, que Freire contrapõe à tradicional educação escolar por si designada de educação bancária, a interação entre o sujeito e o objeto do conhecimento é entendida não como dualismo, mas como uma unidade dialética que possibilita a criação do sujeito cognoscente e a recriação do mundo. A proposta inovadora que Freire faz no campo da alfabetização de adultos nasce de uma abordagem educacional que encara a pedagogia como um ato político, um ato de conhecimento e, por conseguinte, um ato criador. Ele próprio o afirmaria em diversos momentos da sua obra, dos quais se pode destacar o seguinte exemplo:
[...] para mim seria impossível engajar-me num trabalho de memorização mecânica dos ba-be-bi-bo-bu, dos la-le-li-lo-lu. Daí que também não pudesse reduzir a alfabetização ao ensino puro da palavra, das sílabas ou das letras. Ensino em cujo processo o alfabetizador fosse “enchendo” com suas palavras as cabeças supostamente “vazias” dos alfabetizados. (FREIRE, 2000, p. 19).
Freire rebela-se contra o trabalho pedagógico domesticador, assente na lógica da cartilha, que coisifica os educandos e os impede de pensar certo; afirma, por isso, que “não basta saber ler que Eva viu a uva. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho” (FREIRE, 2000, p. 41).
Na abordagem de Paulo Freire, o princípio fundamental de diferenciação entre uma educação libertadora, que é problematizadora, e uma educação dominadora, que é bancária, assenta-se na conceção da relação educador-educandos. Assim, a primeira distingue-se da segunda pela transformação da real assimetria dessa relação em simetria ética, um processo que ocorre através do diálogo ético. Tal diálogo ético é também a ética do método, que, assim entendido, faz surgir a impossibilidade epistemológica da pura transmissão de conhecimentos, na medida em que quem aprende já não pode ser visto como absolutamente ignorante e gnoseologicamente passivo. Por isso o diálogo é condição de conhecimento na educação problematizadora. Aqui reside, no nosso entender, a radicalidade crítica e democrática da pedagogia freiriana, segundo a qual o saber é património de todos – dos excluídos e das classes poderosas, dos educadores e dos educandos –, o que implica considerar, no processo educativo, o “saber de experiência feito” que todo educando tem, pois, como afirma Freire (2001, p. 68), “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os Homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”.
Foi a partir desses pressupostos pedagógicos que Paulo Freire elaborou o seu célebre método de alfabetização de adultos. Trata-se de um método de conscientização pioneiro e inovador, na medida em que se assenta numa metodologia político-pedagógica inédita, representando, na nossa opinião, um marco incontornável na história da construção de um corpus teórico, crítico e humanista no campo da EA.
No método dialógico que Paulo Freire elabora, propõe e aplica, o essencial da metodologia passa por articular, criticamente, uma investigação temática a uma postura problematizadora. Em termos genéricos, merece destaque assinalar que da investigação temática resultam a matéria e os conteúdos para elaborar as suas bem conhecidas codificações; da postura problematizadora permanente nasce o processo de descodificação; e de ambas resulta a perceção crítica do que é a cultura, tomada no seu sentido antropológico (BLASER, 2016).
Nessa pedagogia dialógica, o trabalho desenrola-se não nos termos de uma tradicional sala de aula escolar – onde se valorizam os processos curriculares abstratos e na qual predominam os comunicados que são depositados pelo educador no educando, que os deverá memorizar –, mas, pelo contrário, nos pressupostos dialógicos do que Freire designou como círculo de cultura, onde se valorizam os processos culturais concretos e em que todos os participantes estão ativos no diálogo, comunicando-se livre e democraticamente, num ato em que se gera uma maiêutica social e em que se constrói conhecimento. O círculo cultural revela uma opção político-pedagógica alternativa ao modelo escolar clássico, pois, como enfatiza Freire (2001, p. 68), “torna possível a relação dialógica, indispensável à cognoscibilidade dos sujeitos cognoscentes, em torno do mesmo objeto cognoscível”. A relação entre educador e educandos é mediada por formas de discurso e por conteúdos programáticos enraizados no capital cultural dos educandos, sendo na base da dialética codificação-descodificação de situações-problema concretas dos contextos de vida dos educandos que se torna possível, mediante um diálogo crítico e problematizador, desocultar a realidade e politizar o conceito de cultura. É nesse enquadramento que, no universo do pensamento freiriano, ganham consistência político-pedagógica as elaborações em torno da ideia de uma cultura do silêncio, conceito que condensa, a nosso ver, as dimensões antropológico-culturais da opressão e da invasão cultural, que Freire veementemente rejeita.
Na abordagem freiriana estamos, portanto, perante uma pedagogia que não se esgota no terreno educativo ou escolar, mas que se projeta sempre no campo social e político, pois os seus referenciais de análise não são apenas os linguísticos e cognitivos, mas são os históricos e sócio-existenciais. Isso porque, como Freire repete sucessivas vezes, ninguém escolhe ser analfabeto. Há, assim, no tipo de processo pedagógico que essa perspetiva propõe, o objetivo análogo de promover uma relação reflexiva sobre a realidade, visando desencadear uma autonomia nos indivíduos e nas classes populares que lhes possibilite a apreensão crítica dos seus contextos de vida e a libertação das situações concretas de opressão em que se encontram, situações que devem passar a ser percecionadas como sendo histórica e socialmente instituídas, sendo, portanto, politicamente mutáveis.
É por isso que Freire concebe um método dialógico para alicerçar a prática educativa, entendida como ação comunicativa e gnoseológica, no qual o que importa é o ensino-aprendizagem da leitura da palavramundo. Como ele mesmo coloca, no seu método,
[...] a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele. [...] podemos ir mais longe e dizer que a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo mas por uma certa forma de “escrevê-lo” ou de “reescrevê-lo”, quer dizer, de transformá-lo através da nossa prática consciente. (FREIRE, 2000, p. 20).
Desse modo, na educação problematizadora não se valorizam os tradicionais pacotes standards de conhecimento, mas os conteúdos que são propostos pelos participantes, pelo que o conhecimento é algo que se produz dinamicamente e em contexto. Tal lógica pressupõe que é necessário levar em conta a relação dialética que existe entre linguagem e pensamento, na medida em que, para que o conhecimento seja possível, terá de ser em primeiro lugar comunicável. Como lembra Freire, a linguagem do educador
[...] corre o risco de perder o contacto com o concreto. Quanto mais somos assim, mais distantes estamos da massa das pessoas, cuja linguagem, pelo contrário, é absolutamente ligada ao concreto. Devido a isso, nós, intelectuais, primeiro descrevemos os conceitos, enquanto as pessoas primeiro descrevem a realidade, o concreto. (FREIRE; SCHOR, 2000, p. 131).
Resultam daí pelo menos dois princípios ético-pedagógicos que são constituintes da própria relação educador-educandos no âmbito de uma educação que procure contribuir para a libertação dos indivíduos e dos grupos. Trata-se de ter presente, por um lado, o princípio segundo o qual se reconhece, aos educandos, o direito de partir de uma atitude curiosa da sua história e do mundo para se envolverem gradualmente numa análise crítica da realidade; e, por outro lado, o princípio segundo o qual se exige, do educador, que parta da realidade dos educandos, respeitando a diferença e o princípio da consciência máxima possível, em cada momento do movimento de ida e volta entre o abstrato e o concreto, que todo o ato de pensar implica.
A deontologia da filosofia educacional freiriana reconhece, ainda, como fundamental, sempre no âmbito de uma relação pedagógica entre educador e educandos que procure constituir-se em prol da autonomia, que se tome dialeticamente a tensão entre liberdade e autoridade, uma tensão característica, no fundo, de qualquer situação educacional. Tanto mais assim é quanto mais se admite que, no âmbito quotidiano da vida social e cultural, são poucos os encontros humanos que estejam isentos de uma certa opressão, qualquer que esta seja, uma vez que as pessoas, sobretudo devido à classe social, ao género, à orientação sexual ou à etnicidade, tendem a ser vítimas e/ou causadoras de opressão.
Surge assim, como imperiosa na relação pedagógica democrática, a necessidade de estabelecer limites, sem os quais facilmente a liberdade se pode corromper em licenciosidade e a autoridade pode degenerar em autoritarismo, como alerta Freire (1997, p. 122) quando lembra que, “de modo geral, os autoritários consideram, amiúde, o respeito indispensável à liberdade como expressão de incorrigível espontaneísmo, e os licenciosos descobrem autoritarismo em toda manifestação legítima de autoridade”. Daqui decorre que, na abordagem político-pedagógica de Paulo Freire, nem a politicidade nem a diretividade, consubstanciais à natureza do fenómeno educacional, impõem à função de educar um dever de impossível neutralidade.
Discussão: ensaiando uma comparação
Ao revisitar as ideias-base de Malcolm Knowles e Paulo Freire, dois autores-charneira no património teórico-conceptual da educação de adultos, quisemos colocar em realce quer as suas linhas epistemológicas centrais, quer os traços mais caraterísticos dos seus contributos. Este exercício habilita-nos agora a encetar uma discussão em que nos propomos a ensaiar uma comparação entre essas contribuições, no sentido de explicitar pontos divergentes e convergentes entre as proposições de ambos os autores, tendo em vista identificar fundamentos perenes que, a partir desta reflexão, possam animar o trabalho dos educadores críticos humanistas da contemporaneidade.
Malcolm Knowles e Paulo Freire: principais divergências entre seus contributos
Um dos pontos mais marcadamente divergentes entre os contributos desses dois autores relaciona-se com o sentido que é atribuído às aprendizagens suscitadas nos adultos pelo trabalho educacional. Enquanto no modelo andragógico o importante é que as aprendizagens contribuam para a resolução de problemas e tarefas, bem como para o aperfeiçoamento de desempenhos práticos no curto prazo, no modelo freiriano reconhece-se aos educandos o direito de partir de uma atitude curiosa da sua história e do mundo para se envolverem gradualmente numa análise crítica da realidade, em sentido mais lato e complexo, pelo que o sentido se constrói visando ao longo prazo.
Um outro ponto notoriamente divergente prende-se com a questão de incorporar ou não os contextos sociais, políticos, culturais, económicos e históricos no trabalho educacional. Nessa matéria, se a andragogia está excessivamente centrada no indivíduo em termos psicológicos, a abordagem freiriana está, ao invés, claramente embutida na complexidade do social que, de resto, considera-se não poder deixar de estar presente, e de modo intenso, no campo pedagógico.
Há ainda a referir, agora de um modo mais focado, que a lógica das sete fases do ciclo andragógico de Knowles tem alguns aspetos bastante divergentes da lógica da metodologia considerada no método freiriano. Assim, se no primeiro caso a ênfase é colocada num diagnóstico de necessidades de aprendizagem individuais e na conceção de um roteiro de atividades que lhe dará resposta, cujo referencial opera pela conjugação da lógica do déficit com a lógica da mecanização, já no segundo caso a ênfase é colocada nos processos culturais concretos do coletivo em situação de círculo de cultura, ou seja, a matéria e os conteúdos têm de ser significantes para o grupo que no início do processo educacional os vai encontrar codificados. Considera-se, como eixo central de todo o trabalho a desenvolver, a postura problematizadora permanente, da qual nasce o processo de descodificação e resulta a perceção crítica do que é a cultura, tomada no seu sentido antropológico. Nesse caso, aprender é visto como um ato em que se gera uma maiêutica social e em que se constrói coletivamente conhecimento.
Por fim, é também possível encontrar entendimentos divergentes para o papel do educador de adultos, sendo que a proposta de Knowles tende a atribuir-lhe um papel mais restrito relacionado sobretudo com a orientação do processo para atingir os objetivos de aprendizagem formulados no início do ciclo andragógico, enquanto a proposta de Freire tende a enfatizar a necessidade de interação entre sujeito e objeto do conhecimento, em que cada um é entendido não como partes de um dualismo, mas como uma unidade dialética que possibilita a criação do sujeito cognoscente e a recriação coletiva do mundo. O círculo de cultura abre caminhos de aprendizagem que podem não ter sido nem imaginados no início do processo e que se exploram numa base de horizontalidade da relação pedagógica, onde, na essência, todos aprendem.
Malcolm Knowles e Paulo Freire: principais convergências entre seus contributos
É interessante constatar que em ambas as propostas parte-se do pressuposto de que o educando adulto é um ser independente, pelo que o trabalho do educador passa sobretudo por estimular e alimentar tal movimento de autonomia. Nesse sentido, quer a andragogia quer a proposta freiriana tratam de uma educação entre iguais, em que se reconhece a capacidade permanente de qualquer ser humano para aprender.
Outra importante convergência refere-se ao tipo de papel atribuído à experiência de quem aprende, sendo que, no modelo andragógico, parte-se do pressuposto de que a experiência do educando adulto pode ser um rico recurso para promover a aprendizagem, através de um conjunto de métodos ativos e experienciais, o mesmo acontecendo no modelo freiriano, no qual sempre se considera no processo educativo o saber de experiência feito que qualquer educando tem.
Há ainda a referir, de um modo mais focado, que a lógica das sete fases do ciclo andragógico de Knowles tem um aspeto convergente com a lógica da metodologia considerada no método freiriano, nomeadamente no que respeita à valorização da participação do educando adulto no processo educacional, atribuindo-lhe voz e permitindo, embora em proporção diferente, que possa influenciar o processo. É na proposta freiriana, porém, que esse entendimento é explorado de forma mais consequente, concentrando-se todo o trabalho educacional em torno da palavra, ou seja, na cultura da palavra que Freire contrapõe à tradicional cultura do silêncio, que bloqueia a transformação pessoal e social que a educação pode espoletar.
Ensinamentos do exercício de revisitar autores essenciais: algumas reflexões
Se é consensual que o modelo andragógico inaugurou um debate muito relevante sobre alguns aspetos essenciais da arte e ciência de ajudar os adultos a aprender, os quais permaneciam pouco teorizados até então, foi, porém, a pedagogia freiriana que abriu caminho na criação de fundamentos político-filosóficos para a práxis educacional de cariz transformador. Isso não significa forçosamente abandonar a andragogia, que efetivamente se sofisticou em alguns contextos, vindo a representar o paradigma mais adotado e mostrando que, a partir da sua base teórico-pedagógica, há elementos suficientes para superar a tendência de querer construir uma especificidade para a EA numa perspetiva de disjunção, baseada em estratégias e procedimentos de mera diferenciação didática.
Argumenta-se, pois, que esses contributos aportam bases que são pertinentes para alicerçar o trabalho do educador crítico humanista no seio da atual modernidade líquida em que vivemos (BAUMAN, 2003), desde que a sua missão se dirija a querer refundar, para os dias de hoje, os pressupostos da cidadania social e que o faça por via da intervenção e da mediação sociopedagógica. É sobretudo nesse âmbito que consideramos especialmente a abordagem teórico-pedagógica freiriana como fundamental, porque ilumina a importância da autorreflexividade na postura epistemológica dos educadores. Na sua proposta, Freire sublinha que é imprescindível que se clarifiquem opções políticas através de uma reflexão-ação que assuma explicitamente a politicidade da educação e, por conseguinte, a impossibilidade da sua neutralidade, pois, como ele próprio nos coloca, “es ingénuo concebir nuestro rol en abstracto como matriz de métodos neutros” (FREIRE, 1990, p. 60).
Conceber o conhecimento e a mediação sociopedagógica como um ato dialógico, simultaneamente político e gnoseológico, implica também, como não poderia deixar de ser, atender às caraterísticas básicas que um educador deverá possuir e desenvolver na sua prática profissional, humanista e progressista, o que, nos termos do pensamento freiriano, significa: ser um educador democrático e solidário com a causa dos oprimidos.
Ora, Paulo Freire desafiou os educadores de crianças, jovens e adultos a que ousassem assumir a politicidade da educação, convidando-os a pensar criticamente acerca da sua prática educativa, qualquer que fosse a modalidade da sua ação (BARROS, 2013a; BARROS; BARRIENTOS-RASTROJO, 2014; SCOCUGLIA, 2014). Com efeito, ao longo da sua obra, em diversos momentos teorizou sobre: os três tipos de educadores que podem existir em função da sua própria tomada de consciência, acerca do papel da educação e do papel da sua prática; e os dois paradigmas principais em que se pode alicerçar o seu referencial teórico-ideológico de atuação. Refere-se, assim, ao educador ingénuo, ao educador astuto e ao educador crítico, bem como ao paradigma reacionário da adaptação social por oposição ao paradigma radical da transformação social.
Nesse mapeamento político-pedagógico que a sua abordagem educacional oferece, Paulo Freire não só contribui para a clarificação da relação de interioridade que existe entre política e educação, visibilizando as conexões entre pedagogia e poder, como também propõe a superação dos pressupostos inerentes ao modelo tradicional da educação formal escolar, por si designado de educação bancária, debatendo-se na sua práxis político-educativa esperançada e amorosamente por uma visão radicalmente democrática da educação, da sociedade e do mundo que consideramos ser profundamente atual e pertinente nos dias de hoje.
Realçamos que, no universo temático geral da filosofia freiriana, em especial daquilo que escreveu no seu último livro Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa, podemos retirar algumas das caraterísticas que um educador comprometido com a luta radical, orientada por valores éticos e democráticos, deverá possuir e desenvolver, e que se constituem no âmbito do pensamento freiriano como exigências radicais. Assim, por exemplo, o educador crítico que trabalhe em prol de uma educação problematizadora deverá ter presente a necessidade de ser: tolerante, opondo-se a qualquer tipo de discriminação; amoroso, promovendo a busca pelo ser mais de todos; esperançoso, sabendo encetar uma espera que é pacientemente impaciente; dialógico, exercendo a escuta do outro para assim poder falar com ele; coerente, que forneça pelo exemplo um testemunho ético dos pressupostos que defende; e realista, ciente dos limites existentes num dado momento.
Paulo Freire, o educador e o pensador, foi ele próprio taxativo na explicitação do comprometimento ético-político da sua práxis, afirmando:
[...] sou professor a favor da decência contra o despudor, a favor da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura de direita ou de esquerda. Sou professor a favor de luta constante contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação económica dos indivíduos ou das classes sociais. (FREIRE, 1997, p. 155).
A pedagogia de Paulo Freire é, por conseguinte, uma pedagogia do sujeito, do diálogo e da liberdade; é uma educação como prática da liberdade, uma conceção problematizadora, crítica, dialógica e libertadora, que se opõe radicalmente à educação como instrumento de opressão, uma conceção bancária, nutricionista, digestiva, antidialógica e domesticadora. Ora, se com as ideias-base de Knowles aprendemos a não temer ensaiar teorizações que visem ao reforço do estatuto académico da EA, com Freire aprendemos a não temer contrariar e resistir, pela práxis educacional, à crescente influência de uma governação educacional global que hoje está profundamente alicerçada nos pressupostos do neoliberalismo radical (LEE; FRIEDRICH, 2011; ROBERTSON, 2011), que ameaça converter todas as esferas da vida humana, incluindo a EA, num objeto de mercado.
Reflexões finais: o dialógico como essência da mediação sociopedagógica em prol do humanismo
Ao apresentar criticamente o essencial do modelo andragógico de Knowles e o essencial do conceito de dialogicidade de Freire, visamos ensaiar uma discussão que, partindo de uma comparação entre esses dois contributos, permitisse identificar pistas de cariz teórico-conceptual e teórico-pedagógico que possam animar o papel do educador contemporâneo enquanto mediador sociopedagógico, que tem, no nosso entender, um papel de relevo a desempenhar em prol dos princípios e valores humanistas, que consideramos estar sob ataque na contemporaneidade. Trata-se de defender, para os dias de hoje, uma mediação preocupada fundamentalmente em intervir para melhorar, com as pessoas, o seu bem-estar social. E, em EA, esta é, na essência, a definição do papel do educador.
Desse modo, é particularmente na abordagem político-pedagógica de Paulo Freire que encontramos os fundamentos de uma educação libertadora, que é problematizadora, que se assenta na conceção da relação educador-educandos e cujo cerne é o diálogo ético. Assim, o educador crítico humanista, enquanto progressista radical, está vocacionado para exercer uma mediação sociopedagógica em que não trabalha para o outro, nem sobre o outro, mas sim com o outro, e nesse sentido é fundamental para si o respeito pela identidade cultural dos educandos e pela sua dignidade humana.
Tal enfoque distingue-se da educação assente em dicotomias, bem como da educação progressista liberal ou da aprendizagem ao longo da vida de pendor neoliberal, porque reforça a importância da intersubjetividade na história e contraria a emergência do sujeito conceptualizado como uma identidade individualista e autossuficiente, tal como se concebia na génese da conceção andragógica. O sujeito surge, ao invés, como intersubjetividade humanista e, portanto, como um ser pleno de comunicação. Daqui se inferindo toda a pertinência do princípio dialógico freiriano como pressuposto pedagógico para operacionalizar uma educação problematizadora que, desde o nosso ponto de vista, tem tanto de atual como de urgente no contexto de crise político-ético-social que estamos a atravessar.