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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.46  São Paulo  2020  Epub 06-Ago-2020

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202046238077 

SEÇÃO TEMÁTICA: Infância, Política e Educação

A reinvenção do cotidiano1 em tempos de pandemia2

The reinvention of everyday life in times of pandemic

Bianca Salazar Guizzo3 
http://orcid.org/0000-0003-1080-2210

Fabiana de Amorim Marcello4 
http://orcid.org/0000-0001-9720-2650

Fernanda Müller5 
http://orcid.org/0000-0002-1788-8662

3- Universidade Luterana do Brasil, Canoas, Rio Grande do Sul, Brasil. Contato: bianca.guizzo@gmail.com.

4- Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Contato: famarcello@gmail.com.

5- Universidade de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil. e-mail: fernandamuller@unb.br.


Resumo

Em 2020, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) faz 30 anos. Esse marco coincide com a pandemia causada pela COVID-19, que coloca em conflito noções de direito ligadas à preservação da vida e da liberdade apresentadas pelo próprio ECA. Diante desse contexto, este artigo trata a respeito de reinvenções e deslocamentos diante da quarentena, os quais se pautam pelo direito à vida ao mesmo tempo em que restringem o direito à liberdade. Ao assumir a inseparabilidade que Michel de Certeau postula quanto às noções de estratégia e tática, o artigo explora, metodologicamente, seis cenas expressivas da reinvenção do cotidiano – e que estão vinculadas, cada uma a seu modo, a três dimensões específicas: a relação de famílias com as tecnologias; a relação das famílias com a escola; e a relação das famílias com suas crianças. As quatro cenas iniciais, exploradas a partir da configuração de estratégia, indicam esforços para a conformação das formas de organização do social. Neste caso, fica evidente como, de um lado, a relação das famílias com as tecnologias, e, de outro, a relação das famílias com a escola sugerem práticas comprometidas com a manutenção de formas de existir, mesmo em meio a um contexto de excepcionalidade. As duas últimas cenas, situadas a partir da configuração de tática, dão visibilidade às práticas cotidianas das famílias com suas crianças, ou seja, ao que entendemos serem relatos de pessoas ordinárias e que, justamente por meio dessa condição, apontam possibilidades de criação do novo.

Palavras-Chave: Escola; Família; Infância; Tecnologia; Pandemia

Abstract

In 2020 the Brazilian Child and Adolescent Statute (ECA) turns 30 years old. This milestone coincides with the pandemic caused by COVID-19, putting in conflict notions of people’s rights linked to the preservation of life and freedom presented by ECA itself. This article explores the reinventions and displacements resulting from the quarantine, which attend to people’s right to life in a context where restrictions are imposed to their right to freedom. By assuming the inseparability of Michel de Certeau’s concepts of ‘strategy’ and ‘tactics’, the article methodologically deals with six expressive scenes of a new practice of everyday life, which are linked, each one in its own way, to three specific dimensions: the families’ relationship with technologies; the relationship of families with the school; and the relationship between families and their children. The four initial scenes, explored from the configuration of ‘strategy’, indicate efforts to shape the forms of social organization. In this case, it becomes evident how, on the one hand, the relationship of families with technology, and, on the other, the relationship of families with school, suggest practices that are committed to maintain ways of existence, even in the midst of a context of exceptionality. The last two scenes are based on the ‘tactic’ configuration and give visibility to everyday practices of families with children, which we view as ordinary people’s reports that, through this very condition, suggest creative possibilities.

Key words: School; Family; Childhood; Technology; Pandemic

Em 2020, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 30 anos – e, com ele, faz-se evidente a persistência, em sua forma legal, de definições que localizam crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. Como marco histórico, a então nova legislação veio no rastro da Constituição cidadã recém promulgada (BRASIL, 1988), na nada tênue divisa entre o ímpeto da abertura democrática e os anseios de conquistas de direitos sociais. No entanto, no atual contexto, importa menos comemorar de forma celebratória o aniversário do ECA e sim, colocar em perspectiva os avanços até então por ele prometidos – seja por meio da avaliação dos tensionamentos e obstáculos em direção à garantia de uma série de direitos da criança e do adolescente, seja pela consideração do desafio inescapável que hoje, maio de 2020, enfrentamos: uma nova pandemia causada por um vírus pouco conhecido, agressivo e que coloca em risco a vida de milhares de pessoas.

E se as conquistas do ECA podem ser colocadas em perspectiva em função da pandemia que atinge o mundo, isso se deve ao fato de que, até onde se sabe, a melhor forma de prevenção de contaminação se dá mediante o isolamento social – o que fazem governos estaduais e municipais do país quando, desde março, passaram a decretar estado de quarentena.

Assim, entendemos que a pandemia introduz a urgência do direito à vida, o que encontra equivalência no capítulo I do ECA, porém suprime, por outro lado, ainda que momentaneamente, o direito à liberdade (capítulo II), ao menos, da maneira como contemporaneamente a entendemos (BRASIL, 1990). Em outras palavras, direitos como aqueles já consolidados através de leis como o ECA se esmaecem e se desestabilizam. No contexto da epidemia, o direito a frequentar a escola é posto em segundo plano no intuito de preservar outro direito, ainda mais fundamental, aquele do direito à vida.

Creches, pré-escolas, escolas e universidades suspenderam atividades presenciais; parte da indústria e do comércio, de restaurantes e de serviços em geral foi igualmente fechada. O delivery, o takeaway, o home office e o homeschooling foram imediatamente instalados ou intensificados (pelo menos, para as classes média e alta) como formas de manter as famílias em casa. Agora, a pergunta a que se tenta responder todos os dias, nos mais variados lares brasileiros, é o que fazer com as crianças.

Nosso argumento, que buscaremos defender neste artigo, é o de que a quarentena dá origem a um deslocamento. É a criança fora de lugar, assim como o adulto fora de lugar diante da criança. Mais do que isso, a quarentena coloca em evidência um cotidiano inventado e legitimado para ela – ali mesmo, no tempo e no espaço até então centrado, basicamente, na escola. Tomamos, neste texto, a criança associada à noção de infância apresentada pelo ECA – no sujeito de zero a 12 anos incompletos – como protagonista de uma relação reconfigurada, a partir da quarentena, com as principais instituições sociais de educação, quais sejam: a família e a escola.

Falamos de um cotidiano, de espaços reinventados – compreendidos, aqui, pela já clássica acepção de Michel de Certeau (1998) –, na medida em que a quarentena acaba por acionar práticas, ações, atitudes que colocam em cena tanto a manutenção (de desigualdades, de hierarquias, de formas de controle), como a criação de formas de existir; tanto o fortalecimento (dessas mesmas desigualdades, hierarquias e formas de controle), como sua suspensão. Se valemo-nos dessa premissa para entender o que hoje se passa na escola, na família, por exemplo (e isso em função de uma série de exigências que a pandemia nos impõe), é porque buscamos mostrar o modo simultaneamente dinâmico e pouco previsível como o singular e o plural, o macro e o micro interagem entre si, reproduzindo-se mutuamente, mas também reconfigurando-se.

Assim, partindo da noção de que houve uma urgente reorganização do espaço e do tempo cotidianos (gerando o deslocamento que mencionamos), escolhemos três dimensões que precisaram ser reinventadas com a pandemia e com o isolamento social que ela exige. Concentramo-nos, pois, nas práticas cotidianas, nas ações e atividades ordinárias por meio das quais as balizas de nossas ações são não apenas reproduzidas, mas também, criativamente inventadas (CERTEAU, 1998). Com isso, o objetivo deste texto é tomar a pandemia (em seu caráter de ineditismo) como elemento central para discutir as formas pelas quais “artes criativas do fazer cotidiano” (MENDONÇA, 2012, p. 345) se efetivam no limite entre a conformação e a suspensão em direção a novas formas de existir.

Ressaltamos, ainda que de modo breve, o modo como Certeau (1998) apresenta, em sua teorização, o princípio básico de dinamicidade na construção do cotidiano: por meio da relação mutuamente constitutiva entre estratégias e táticas. As primeiras, de acordo com o autor, correspondem ao lugar do poder instituído, do espaço consolidado por meio do qual os enquadramentos das interações são, de antemão, estabelecidos; as segundas, por sua vez, caracterizam-se como aquelas práticas murmurantes, produzidas, em grande medida, pelos sujeitos ordinários nas lacunas de um poder arbitrário, na direção não apenas da construção de frestas de transgressão em meio a um contexto dominante mas também, especialmente, como “contestação da dominação e [...] singularização dos sujeitos” (MENDONÇA, 2012, p. 345).

Assim, partindo do pressuposto da inseparabilidade entre estratégias e táticas, tratamos, em um primeiro momento, da primeira dimensão, qual seja, das alterações impostas sobre a relação das famílias com as tecnologias (apontando para as adaptações que os processos de ensinar e de aprender vêm sofrendo); em seguida, destacamos uma segunda dimensão, no caso, ligada à relação das famílias com a escola (e aqui buscando pensar a sustentação da máxima de que “a educação não pode parar”6, que parece ganhar lugar privilegiado mediante as alterações das formas de a escola fazer-se presente nos espaços privados do lar). Entendemos que, em conjunto, essas duas dimensões indicam, direta ou indiretamente, modos pelos quais parece persistir um modelo de normalidade em meio a um contexto de excepcionalidade; garantias de regularidade nos marcos de uma singularidade sem precedentes.

Enfim, essas duas dimensões, que entendemos serem exemplos de estratégias, parecem indicar os esforços empreendidos para a organização e a conformação de um deslocamento que se faz incontornável. Além disso, a fim de enfatizar as formas pelas quais podemos falar das vozes que se apropriam diferentemente das lógicas [dominantes] de ação (CERTEAU, 1998, p. 48), apresentamos também uma terceira seção, visando a discutir a relação das famílias com suas crianças, porém, agora no que tange ao modo como o deslocamento de que falamos vem acompanhado de uma necessidade de redefinição daquilo que parece não encontrar nem na casa, nem na escola, orientações seguras e previamente determinadas. Mais precisamente, tratamos de uma terceira dimensão implicada com a reinvenção de novas práticas do espaço, na qualidade de “maneiras de frequentar um [ou dois] lugar [lugares]” (CERTEAU, 1998, p. 58).

Certamente, outras dimensões poderiam ser abordadas, mas optamos, aqui, por focalizar, de modo aprofundado, apenas essas três e, para tanto, recorremos a conteúdos diversos produzidos pelos diferentes atores envolvidos nesse cenário: múltiplas vozes, imagens e sons que hoje perpassam nosso cotidiano e chegam até nós pelo telefone, pelo computador, pelo jornal. Em outros termos, metodologicamente, a reflexão a que propomos se baseia em algumas cenas, as quais se colocam menos como situações particulares e mais como lentes de aumento em relação a como crianças, suas famílias e as escolas vêm enfrentando a pandemia e seus efeitos no cotidiano. O modo como compreendemos aqui o conceito das cenas fundamenta-se nas reflexões de Fischer (2007, p. 290-292). Embora muito distintas entre si (já que dizem respeito tanto a matérias extraídas de jornais, de sites; imagens alçadas das redes sociais e arquivos de áudio que viralizaram em aplicativos de mensagem) e embora também possam ser multiplicadas ad infinitum, metodologicamente, elas se revelam, cada uma a seu modo, como cenários sintomáticos daquilo que, em meio à pandemia, se apresenta a nós como desafio e possibilidade. Acreditamos que essas cenas também podem ser compreendidas como práticas cotidianas, na medida em que, a modo de Certeau, “exacerbam e desencaminham nossas lógicas” (CERTEAU, 1998, p. 43), fortalecem e fraturam, de maneira ativa e viva, nossos tempos e espaços.

A reinvenção do cotidiano mediada pelas tecnologias

Cena 1

Como famílias e escolas têm se adaptado ao ensino a distância forçado pela pandemia.

Apoio dos pais é fundamental para que estudantes organizem uma nova rotina e aprendam com as ferramentas digitais.

Os primeiros dias de ensino a distância (EaD) foram tensos [...]. As aulas remotas, uma imposição do distanciamento social determinado pelo governo do Estado desde março para frear a expansão do coronavírus traziam desafios tecnológicos, e as lições chegavam em um ritmo difícil de acompanhar. (FARINA, 2020, s/p).

Cena 2

Sem aulas presenciais há dois meses no Rio Grande do Sul devido à pandemia do novo coronavírus, as escolas tiveram que desenvolver iniciativas [utilização de plataformas digitais e rede sociais] para que os alunos não fiquem sem atividades. Mesmo assim, muitos estudantes não conseguem acompanhar os conteúdos por falta de acesso à internet. [Uma] professora relata que, para os alunos que não têm acesso à internet, infelizmente, a escola não tem dado atendimento, no momento, porque está fechada (DEPOIS, 2020, s/p).

Sem as escolas, tem-se a impressão de que o mundo parou. E a vida tem esta habilidade: de mostrar que o impensável e o improvável acontecem e que nossos horizontes de ação podem ser limitados. Nesta seção, nosso objetivo é discutir um primeiro deslocamento: aquele desencadeado pela relação entre as famílias e as tecnologias. Além disso, também é importante pensar a respeito de como esse deslocamento acaba por acionar usos marcadamente homogeneizantes (e, por isso mesmo, tão desiguais) quanto aos modos como a educação pode (ou deve) se efetivar à distância. Nos termos de nossa discussão central, cabe mostrar, a partir das cenas acima descritas, a flagrante incompatibilidade (e até inconsistência) entre, de um lado, estratégias de normalização do cotidiano educacional (que buscam reforçar pressupostos de que a educação pode ser privatizada, especialmente para uma parcela da população) e, de outro, suas dificuldades de efetivação em nosso país (especialmente para uma parcela expressiva da população que tem uma condição socioeconômica menos favorecida).

Com o objetivo de que os dias letivos não fossem de todo perdidos, foi preciso retomar o que vinha sendo proposto nas escolas. Uma das brechas encontradas para isso, como mostram as cenas 1 e 2, foi o ensino mediado pelas tecnologias, que exigiu um reajuste nas relações que se estabelecem cotidianamente entre os membros de uma comunidade escolar. Assim, problematizamos novas relações promovidas e criadas por aqueles que têm tido a oportunidade de vivenciar um modo de aprendizagem mediado pelas tecnologias, sobretudo considerando aquilo que, já há décadas, Certeau (1998, p. 114) salientava: o “papel decisivo dos procedimentos e dispositivos tecnológicos na organização de uma sociedade”.

A cena 1, composta pelo trecho de uma matéria jornalística, revela que famílias têm tido dificuldades de acompanhar e realizar as atividades propostas em função do ritmo acelerado como essas são enviadas. Por isso, e conforme a própria matéria, Os primeiros dias de ensino a distância (EaD) foram tensos [...]. A cena 2, por sua vez, mostra o modo como algumas escolas públicas vêm tentando propor a continuidade do ano letivo. Fica explícito que não são todos/as que têm condições de levar a cabo uma educação mediada pelas tecnologias, por razões que incluem, entre outras, a impossibilidade de acesso à internet: [...] muitos estudantes não conseguem acompanhar os conteúdos por falta de acesso à internet. Dito de outro modo, ainda que as redes e as escolas públicas tenham feito esforços de se reinventar em tempos de pandemia, há dificuldades para garantir que todos os estudantes continuem o ano letivo de modo uniforme.

Já grande parte das escolas das redes privadas tem empreendido esforços para dar continuidade ao ensino de forma ininterrupta e, tanto quanto possível, estável. Sabemos que “[...] os procedimentos tecnológicos têm efeitos de poder específicos, obedecem a funcionamentos lógicos próprios e podem produzir uma alteração fundamental nas instituições da ordem e do saber” (CERTEAU, 1998, p. 116). Em tempos de pandemia, os procedimentos tecnológicos têm provocado alterações e produzido reajustes de relações entre professoras e crianças, entre crianças e responsáveis e entre responsáveis e professoras. A mediação propiciada pelas tecnologias emerge, então, como um esforço para que os laços sejam mantidos e parece, pois, buscar naturalizar e fortalecer, na qualidade de estratégia que é, os usos da tecnologia como facilitadores (da aprendizagem, das relações interpessoais) e não como práticas excludentes e desiguais (e o próprio fato de colocarmos em destaque as cenas 1 e 2 indica nossa crítica a esse aspecto).

O que vemos nos casos de grande parte das escolas privadas do Brasil é que a proposição de uma espécie de estudos domiciliares intermediados por recursos tecnológicos levou a outra forma de reinvenção do cotidiano, tal como vimos discutindo nesta seção. Ainda que os estudos domiciliares venham hoje sofrendo críticas e questionamentos, ao mesmo tempo ganham força e conquistam um número cada vez maior de adeptos.

Embora não seja tarefa fácil definir o que é estudo domiciliar (homeschooling), amparamo-nos nas pesquisas de Barbosa (2016) e Oliveira e Barbosa (2017) para, aqui, brevemente, defini-lo, mesmo que seja um assunto minado de controvérsias. As referidas pesquisas argumentam que o estudo domiciliar geralmente é levado a cabo por responsáveis que têm como propósito investir tempo e recursos na formação intelectual de seus filhos. Tornar um filho homeschooler não é uma escolha simples, nem gratuita, uma vez que, muitas vezes, demanda que um familiar renuncie a conquistas profissionais, em busca de uma educação mais qualificada e/ou menos dolorosa para suas crianças. Algumas vezes, a adesão ao estudo domiciliar está implicada com razões delicadas e pontuais, como, por exemplo, casos que envolvem bullying e exclusão.

Ainda que reconheçamos a importância dessa discussão, nosso foco refere-se ao modo impositivo pelo qual muitas famílias precisaram aderir a um modelo de estudo domiciliar mediado pelas tecnologias e como isso afetou o cotidiano de distintos sujeitos que precisaram se reinventar. O subtítulo da matéria que compõe a cena 1, Apoio dos pais é fundamental para que estudantes organizem uma nova rotina e aprendam com as ferramentas digitais, deixa claro que a reorganização do cotidiano afetou não apenas os/as alunos/as, mas também seus responsáveis.

Crianças (na sua condição de alunos/as), responsáveis e professoras foram surpreendidos e precisaram rever suas práticas de formas sensivelmente diferentes daquelas com que estavam habituados e familiarizados. Professoras precisaram aprender a preparar materiais didáticos (atividades, videoaulas, recados motivacionais etc.), mas também a lidar com aplicativos e/ou ambientes virtuais nos quais disponibilizar esses materiais. Suas rotinas alteraram-se bruscamente, pois, além de planejar, também precisaram aprender a gravar, estar online e sanar dúvidas. Crianças, por sua vez, precisaram aprender não só com suas professoras, cujas aulas virtuais foram disponibilizadas inclusive em plataformas como YouTube, mas também com seus próprios responsáveis, num espaço completamente familiar (suas casas), ainda que num tempo flexível, negociável. Pode-se dizer que essas novas noções de espaço e tempo estão imbricadas com a produção de novos modos de pensar a educação e os processos pedagógicos.

Os responsáveis precisaram mediar a relação entre professoras e crianças, reaprender conteúdos até então esquecidos e aprender a lidar com aplicativos e ambientes virtuais: baixar conteúdos, acessar sites de bibliotecas, filmar atividades, tirar fotografias, fazer postagens que comprovassem a realização das atividades. Para todas essas tarefas, precisaram investir grande parte do seu tempo em uma nova demanda agora a eles imposta, bem como assumir o uso efetivo das tecnologias digitais, já que essas compõem as condições de possibilidade para a continuidade da educação neste momento vivido.

Por mais que especialistas de diferentes áreas (pedagogia, psicopedagogia, psicologia, entre outras) recomendem o estabelecimento de uma rotina, a maneira como os sujeitos têm lidado com a educação caracteriza-se pela flexibilização, pois esse modo de ensinar sugere lidar com outras linguagens, outras temporalidades e, consequentemente, com diferentes experiências. De acordo com Saraiva (2018, p. 32), em uma educação mediada pelas tecnologias, “o espaço-tempo perde seu caráter rigidamente universal, relativizando-se e flexibilizando-se. Os corpos perdem sua fixidez e são convidados a se mover: no movimento fundem-se as dimensões espaço e tempo”.

Como temos procurado argumentar, a reinvenção do cotidiano a partir dos estudos domiciliares mediados pelas tecnologias não tem sido vista como simples. Talvez as dificuldades venham se dando pelo fato de as relações interpessoais presenciais estarem sendo fortemente afetadas. Cury (2006, p. 673), nesse sentido, afirma que é nas escolas que os sujeitos “aprendem a partilhar com os outros os valores, as emoções e as contradições da convivência social, postos nos princípios de igualdade, diferença e de respeito às regras do jogo democrático”.

Finalizamos esta seção retomando o argumento do deslocamento e indicando, nele, a necessária redefinição de um cotidiano no qual o ensino domiciliar mediado por recursos digitais se faz agora decisivo. Nesse novo cotidiano, professoras, crianças e responsáveis precisaram redimensionar e fazer dialogar suas experiências com as tecnologias. Na qualidade de estratégia, tais práticas, de modo mais amplo, parecem apenas reafirmar uma lógica tão familiar e quase trivial do mercado vinculada aos pressupostos meritocráticos – promovendo, com isso, novas formas de configuração do cotidiano. Nossa intenção não foi discutir a eficácia (ou não) do modo como a educação vem sendo empreendida em tempos de pandemia. Ao contrário, procuramos problematizar as condições que têm sido dadas aos sujeitos (e mesmo criadas por eles) para que consigam atravessar essa experiência inusitada e inédita.

A reinvenção do cotidiano e as nem tão novas práticas de ensinar e aprender

Cena 3

Lazer e obrigações: como organizar a rotina das crianças na quarentena?

Pais e filhos reunidos em casa por dias a fio podem até lembrar um ambiente de férias familiares. Mas a realidade imposta pelo novo coronavírus, que chegou com o ano letivo em andamento e muitos dos adultos de volta ao trabalho, não tem nada de lúdico. Sem poder sair, as famílias precisam, agora, conciliar as atividades de todos os moradores em um único ambiente. Para que consigam atravessar o período da melhor forma, segundo especialistas, é preciso calma e foco no presente para reinventar a rotina da casa.

– [...] Esse não é um período de férias. Isso tem de ser entendido pela criança para que ela possa se conectar com o que está acontecendo. A rotina deve ser mantida da forma mais natural possível – diz a psicopedagoga Jacinta Staudt. (VARGAS, 2020, s/p).

Cena 4

Sim, nós estamos preparados! A Educação não pode parar!

Desde o dia 16 de março, toda a Direção, Equipe Pedagógica, de Tecnologia e Corpo Docente, vem se adaptando de forma calma e organizada ao cenário de dificuldade mundial que todos estão enfrentando. [...] São nas crises que se afloram o melhor de cada um. Mantenham a calma. “A calma permite análise, análise permite decisões, decisões permitem passos e passos nos levam de volta ao caminho.” [...] (COLÉGIO PRIMO, 2020, s/p).

Nesta seção, abordamos o deslocamento relativo às relações entre escola e família com ênfase na reinvenção do cotidiano por meio de uma estratégia específica: a intensificação da máxima segundo a qual “a educação não pode parar”. A estratégia a que nos referimos parece clara: aprender não é algo que possa ser suspenso. Nesse sentido, e como um desdobramento da questão anterior (sobre a relação entre família e tecnologia), cabe-nos aqui pensar que tipo de escola é esta que, para uma parcela considerável da população, insiste em ganhar corpo e presença mesmo à distância – e, neste caso, sob a tão facilmente aceitável presunção de que o ano não pode ser perdido, de que os conteúdos e os currículos devem manter-se ininterruptos. Nossa intenção é discutir que condição de aprendizado é esta que deve ser garantida mesmo diante das mais radicais incertezas em que estamos mundialmente imersos.

Uma primeira leitura do imperativo segundo o qual “a educação não pode parar” nos aponta para sua consonância com aquilo que, há mais de três décadas, vem sendo entendido como sociedade da aprendizagem – algo que diz respeito tanto a um modelo econômico e social hegemônico de organização, como também, e com efeito, a um ethos contemporâneo relativo às formas de os sujeitos serem produzidos e de produzirem-se a si mesmos. Esse estado pedagógico quase permanente a que crianças são submetidas (e certamente nós, adultos, também) se relaciona à intensificação do uso dos computadores e da internet, como abordado na seção anterior. Por outro lado, também está relacionado, de forma especial, a um modo de educação que se expande e que se conecta aos mais distintos aspectos da sociedade de maneira totalizante (POPKEWITZ et al., 2009): é um tipo de estratégia voltada para a manutenção, o fortalecimento e mesmo a reprodução de padrões educacionais já estabelecidos (ainda que sofrendo variações e tensionamentos). Diante disso, acreditamos que, no jogo dinâmico dos usos das tecnologias, e considerando o cenário de interações que a configuração social (e familiar) criada via confinamento organiza, encontram-se também algumas rupturas (ou pelo menos paradoxos) nesta mesma sociedade de aprendizagem.

Num primeiro momento, nas cenas 3 e 4, a educação parece conectada ao que haveria de mais desenvolvimentista, ao mesmo tempo em que esbarra em estratégias que retomam traços disciplinares muito antigos e previsíveis. Na primeira cena, a matéria jornalística parece indicar que educação é “coisa séria”, não é brinquedo e exige menos maleabilidade e autonomia, disciplina e rotina. Já na segunda, por sua vez, a peça publicitária de uma escola está inspirada em uma lógica meritocrática que se vale da potência da crise para fazer emergir as qualidades de cada estudante na busca da superação dos desafios que a quarentena impõe. Ora, que tipo de educação, afinal, não pode parar?

Entender de que rupturas (ou paradoxos) falamos implica mostrar alguns elementos sobre a sociedade da aprendizagem – estar preparado para aprender por toda a vida; estar em permanente estado de aprendizagem; ser capaz não apenas de organizar, planejar, mas também de dominar um futuro indefinido para o qual “não há linha de chegada” (POPKEWITZ et al., 2009, p. 83). Em suma, “a inscrição do futuro como princípio regulador do presente, a noção de projeto (design) como prática de planejamento biográfico e a comunidade como um espaço para ligar normas e valores coletivos à individualidade” (POPKEWITZ et al., 2009, p. 80) são os elementos que caracterizam o eixo estruturador da sociedade da aprendizagem.

Homo discentis” (NOGUERA-RAMIREZ, 2011, p. 16), o sujeito dessa sociedade, não é meramente moldável, flexível – já que, para isso, seria necessária uma forma anterior: é o indivíduo que produz e adquire sua forma mediante os desafios sempre constantes que o mundo lhe impõe (NOGUERA-RAMIREZ, 2011). Não está restrito ao espaço escolar, aos limites institucionalmente tangíveis, mas expressa um modo de ser e de viver típico do século XXI: “os princípios pedagógicos de aprendizagem propagam-se agora para todo o corpo social”. Em outras palavras, o que temos não é mais a proposta de uma “escola como sociedade” (tal como delineada por Dewey), mas, mais radicalmente, a “sociedade como escola” (POPKEWITZ et al., 2009, p. 82).

O “aprendiz permanente”, assim, “é aquele indivíduo cujas características são a responsabilidade pessoal e autogestão dos próprios riscos e do destino, mediante maximização e correta aplicação da razão e da racionalidade” (NOGUERA-RAMIREZ, 2011, p. 16). Um sujeito devidamente capacitado não necessariamente para o futuro em si, como meta e objetivo, mas para o futuro em seu contingente de incerteza e permanente transformação”, em uma palavra, sujeito “solucionador de problemas” (POPKEWITZ et al., 2009, p. 81; NOGUERA-RAMIREZ, 2011, p. 16).

Recorremos a essa breve descrição da sociedade da aprendizagem e do sujeito que ela visa a produzir com o objetivo de demonstrar que, paradoxalmente, sob a promessa de uma formação presumidamente tão adaptável, criativa e engenhosa em suas soluções, revelam-se cotidianos, práticas e sujeitos já previsíveis e, no limite, desgastados; nos termos de nossa discussão, vemos revelarem-se estratégias voltadas para o fortalecimento dos imperativos produtivistas a que somos assujeitados, mas por meio da reafirmação de cotidianos, práticas e sujeitos que pensávamos já estarem superados, imersos em práticas disciplinadoras. Mais propriamente, as cenas que trazemos nesta seção parecem indicar que, para além da matéria que compõe a cena 3, o termo rotina ocupou boa parte das estratégias midiáticas de aconselhamento das mais diversas áreas (psicólogos, pedagogos, psicopedagogos) quando convocados a falar acerca da educação e da gestão das tarefas escolares em casa. Parecia (e ainda parece) impensável falar em aprendizado sem rotina (e não qualquer rotina, mas, se possível, aquela que mais se aproximasse à da escola), sem organização, sem disciplina. Ao dizer isso, não estamos simplesmente defendendo a mera extinção de rotinas ou da organização e da disciplina com as crianças em casa, mas buscamos mostrar o modo automático com que essas lógicas acabam por solapar os pressupostos de uma educação prioritariamente autônoma e maleável.

Na incerteza inexorável em que a noção de futuro parece estar imersa (inclusive a que garante a própria vida em sua continuidade), ironicamente, algo mais conservador se impõe: reféns que são de uma condição permanente de aprendentes, as crianças devem preocupar-se com algo mais imediato e menos multiforme: em não perder o ano, em cumprir uma carga horária legal (tarefa a que a tecnologia se presta de maneira, também ela, mais imediata e menos multiforme). A linha de chegada não apenas se coloca, como se faz palpável e, até certo ponto, banal frente aos anseios até então garantidos por sua inexistência.

Como pensar nas condições de uma sociedade da aprendizagem quando nem o sentido de formação coletiva e partilhada, nem a prometida plasticidade parecem responder aos reclames de um insólito surto pandêmico? Se falamos da insuficiência de uma estratégia é porque, como buscamos mostrar, ela está sustentada por noções de instrução, de disciplina, e mesmo dando novas roupagens à panaceia tecnológica para responder àquilo que, longe de ser estimulantes e sedutores desafios a uma formação plural, emerge como o uso de velhas ferramentas para novos problemas. Talvez sejam estas algumas das questões que se impõem quando nos encontramos frente às exigências de reinventar o cotidiano e, ainda, frente às formas até mesmo contraditórias que socialmente produzimos e com que somos produzidos.

A reinvenção do cotidiano de famílias: o hell’s office e as manias

Cena 5

Oi meninas, boa noite! Já que isso aqui é uma rede de ajuda, mútua, eu quero saber das meninas aqui do grupo, as mães, se tem alguém mais surtado ou sou só eu mesmo. Porque, vou ser muito sincera com vocês, aqui em casa acabou, viu? Acabou a paciência, acabou serenidade, acabou responsabilidade social, acabou tudo aqui. Não tô mais dando conta, não. Não dou conta. Não dou conta. Eu tô surtada, entendeu? Essas crianças precisam voltar para a escola urgente, pelo amor de Deus! Eu não tô dando conta. Hell’s office, hell’s office. Eu tô ficando com ódio, ódio, de cada professora que me manda link pra eu entrar e ver exercício. Eu não tenho condição de fazer exercício com ninguém. Vou dar férias aqui pra todo mundo, por conta. Porque lá na Espanha, lá na Espanha já resolveram que esse negócio de homeschooling estressa as mães. Então é férias, entendeu? Eu não tenho condição, gente, eu não sou pedagoga. Como é que eu vou fazer agora pra trabalhar, pra cozinhar, pra limpar, e ainda pra fazer homeschooling? Aqui gente, eu não sei vocês, mas eu vou dar as férias para o pessoal. Não tenho condição, eu não tenho condição. Outra coisa: eles não param de comer. Quem que perguntou, se está faltando abastecimento? Tá faltando abastecimento. Se essas crianças não voltarem para a escola, vai acabar a comida do mundo. Eles passam o dia inteiro comendo. Eles querem Danoninho, eles querem Sucrilhos, eles querem pão na chapa. ‘–Mãe, me faz pão de queijo’. Que que é isso? Tá acabando com as gôndolas do supermercado. Não tô dando conta, gente! Eu tô surtada. Não dá mais. Aqui é o seguinte: é férias pra todo mundo. Acabou homeschooling. Eu não aguento mais isolamento social. Surtei! Pronto. Falei.

Cena 67

Oi ‘pro’, oh ‘pro’, oi professora, tudo bem? A mãe, a mãe não. Eu não ‘con’. Assim, você professora, sem você professora, nós não, eu e a mãe, eu não consigo aprender bem. A mãe não é igual a ‘senho’, não é igual a você. Você tem as mania de pro, mas a minha mãe não tem. Ela trabalha num restaurante. Ela só tem a mania de fazer comida. Me desculpe de incomodar agora. É que eu só queria falar para a senhora isso.

A reinvenção do cotidiano diz respeito ao reencontro de famílias com suas crianças em casa, em sua radicalidade. Ora, sabemos que, em situações ordinárias da vida cotidiana, crianças circulam de forma fragmentada no espaço, experiência que sempre foi compartilhada com outros. Com o isolamento social, elas passam a não mais contar com a companhia de seus pares, amigos, tampouco de avós, que, segundo orientações, precisam ser preservados. Trata-se de um reencontro radical também pelo tempo de convivência: 24 horas por dia nos setes dias da semana. Aulas foram suspensas e a casa, com isso, se tornou quase que o único lugar possível para se estar.

Estudos têm mostrado o quanto a infância urbana contemporânea tem sofrido um processo de isolamento, que Zeiher (2003) nomeia de insularização, domesticação e molde da vida cotidiana. A infância se diferenciaria de outras etapas geracionais por meio da organização urbana, ou seja, a segregação de lugares para crianças e para adultos definiria uma “diferenciação social” (ZEIHER, 2003, p. 66), e, acrescentaríamos, geracional. E é justamente a noção de “ilha”, sugerida por Zeiher, que associa espaço e tempo. As “ilhas”, isto é, escolas, centros de recreação, playgrounds etc., conectariam a fragmentação e a centralização espaciais e a rotina diária das crianças (ZEIHER, 2003). Assim, em tempos pré-pandemia, crianças circulavam entre ilhas, geralmente, conduzidas por adultos (MÜLLER; DUTRA, 2018).

Logo, a reinvenção do cotidiano tem a ver com novas conjunções de espaço e de tempo. Na quarentena, existe quase que exclusivamente uma única ilha: a casa. O espaço físico, pois, não parece mais dividir de modo tão evidente crianças e adultos. Há circulação na e não fora de casa. Por tudo isso, reiteramos o reencontro radical. E é sobre o que está acontecendo entre famílias e crianças que paira a nossa curiosidade, esta, parcialmente satisfeita quando passamos a ter acesso a mensagens de áudio anônimas que circulam e que viralizam em aplicativos de mensagem e redes sociais.

Começamos a ter pistas a respeito do que se passa do lado de lá (da casa, da “ilha”). Assim como Certeau (1998), tomamos um tipo de fazer da vida cotidiana – o envio de mensagens de áudio gravadas por meio de um aplicativo – para dar visibilidade a pessoas comuns que, em seus relatos, demonstram reinvenções de seus cotidianos. Inspiradas no autor, que “deslocava o olhar das instituições para os sujeitos nas suas artes cotidianas” (VIDAL et al., 2019, p. 10), destacamos a forma lúdica e/ou irônica de nomear aquilo que essas mesmas pessoas ordinárias percebem como deslocado – hell e manias.

Se, até então, vínhamos tomando a noção de “estratégia” (CERTEAU,1998) como central para compreender as dinâmicas das cenas cotidianas, no caso específico das cenas 5 e 6, é a noção de tática que fica em primeiro plano, especialmente porque elas se aproximam daquilo que Certeau (1998) descreveu como relatos. No caso das cenas 5 e 6, entendemos que, como relatos – ou seja, como um tipo de tática que é –, eles indicam que mãe e menino, a um só tempo, “atravessam e organizam lugares” (CERTEAU, 1998, p. 199).

A casa, como único lugar possível de se estar, é posta em “séries lineares ou entrelaçadas” (CERTEAU, 1998, p. 200), ou seja, é a partir dessa referência espacial que percebemos a conexão com outros lugares, como a escola, o supermercado, o restaurante, isto é, com o que está “fora”. Eis aqui, portanto, a função do relato: permitir o transporte simbólico daquilo que, na prática, está interditado ou cercado por novas regras. As duas cenas, na qualidade também de relatos que são, ajudam a compreender, embora jamais totalmente, o que se passa do lado de lá, e nos apontam lugares outros, inventados, metafóricos: o hell’s office e as “manias” (as quais, para o menino, organizam e posicionam pessoas e lugares).

O primeiro relato dura um minuto e 26 segundos e foi enviado por uma mãe que compartilha, provavelmente com outras mães, a experiência em casa com as crianças, já nos primeiros dias de quarentena. Não sabemos quem é a mãe, sua profissão, se tem um/a companheiro/a, como é a casa da família, quantos filhos tem, qual escola escolheu para as crianças, suas condições de vida. Precisamos lidar com essas limitações, sabendo que elas não nos fornecem um quadro mais profundo sobre a sua experiência. Mas enfrentamos o limite que a própria quarentena nos impõe ao tratarmos as informações que temos, referentes a um discurso potente, revoltado, e deslocado – ainda que talvez expresso meramente de forma irônica e/ou irreal.

Em tom evidente de exaustão, a mãe inicia a gravação: “Oi meninas, boa noite!”. Como se vê, ela não endereça seu desabafo aos “meninos”, homens, pais, ou seja, àqueles que, na hierarquia familiar, estatisticamente, ainda ocupam a posição mais distante em relação ao cuidado com crianças e casas. Antes, o que ela busca é certa empatia, sororidade talvez, ao perguntar se outras mães também estariam tão “surtadas” quanto ela própria. Chamamos a atenção para esse outro deslocamento: a casa passa a ser, também, o local do surto do adulto, o que nos leva a perguntar o que ou quem, afinal, está fora de lugar: Ela, a mãe? As crianças? A insaciedade?

O relato que compõe a cena do hell’s office permite-nos realizar um importante tensionamento quanto à noção de insularização da infância de Zeiher (2003). É na casa que tudo acontece, sem qualquer especialização ou espacialização da infância – ao contrário do mundo social mais amplo e normalizado, onde a escola é o lugar para estudar, o playground é o lugar para brincar, o supermercado é onde se fazem compras. A casa é a única “ilha”, e com as suas fronteiras ainda mais fechadas, diríamos, protegidas, contra a ameaça externa de contaminação. Mas, quando a mãe se refere às gôndolas vazias do supermercado devido ao suposto problema de abastecimento causado pelas crianças, ou melhor, pelas crianças em casa, ela nos dá pistas para repensar o cotidiano a partir dessa única “ilha” bem como do confinamento. Se o controle dos adultos sobre as crianças está presente nas características da estrutura urbana (ZEIHER, 2003, p. 67), uma análise mais profunda dessa cena nos mostra que o controle está instalado na quarentena a partir de, no mínimo, uma dupla relação: de crianças sobre adultos, de adultos sobre crianças. Na casa é onde todas as ações acontecem: comer, brincar, estudar, falar, com limites bem menos demarcados do que em outros espaços. Ao contrário, parece que, em casa, crianças invadem os espaços previstos para o adulto a ponto de transformarem o escritório em inferno.

É como se a mãe estivesse fazendo um exercício de colocar as coisas nos seus devidos lugares. Talvez o que queira nos comunicar, simbolicamente, é que a escola é o lugar da regra, da rotina, do horário, coisa que, a partir do deslocamento das crianças para a casa, pouco existe, ou parece estar fora de controle.

Nos centros urbanos, parecem ser evidentes os lugares para trabalhar, para se divertir, para comer, para estudar. Com a quarentena, e de acordo com a cena 5, a mãe se vê em um mesmo lugar, acumulando as várias funções: “Como é que eu vou fazer agora pra trabalhar, pra cozinhar, pra limpar, e pra ainda fazer homeschooling?”. O home office transforma-se em hell’s office, um trocadilho por ela repetido duas vezes na mensagem, que se intensifica medida em que descreve o isolamento e a demanda por homeschooling. A mãe quer férias. E, geralmente, férias não se passam em casa.

Se há um lamento no desabafo da mãe, também se pode dizer que, na voz anônima do menino, ocorre algo muito semelhante. Ainda que não tenha o mesmo tom de exaustão da mãe, em somente 36 segundos, o relato transcrito na cena 6 nos aproxima da perspectiva de uma criança. Também não sabemos seu nome, a cidade onde vive, o nome de sua mãe ou da professora, a escola que frequenta. Diante dessa limitação, voltamo-nos para uma questão central de sua fala, e que fortalece nosso argumento sobre o deslocamento: o menino necessita, com muita cerimônia, delicadeza e certa hesitação, organizar espaços, funções e “manias”.

Não sabemos se a escola do menino tem enviado atividades, se ele está realizando homeschooling e, em caso positivo, como e em que medida. No entanto, destacamos, de sua fala, o reconhecimento de uma singularidade e mesmo de traços irredutíveis (o que é nomeado de “mania”); mãe e professora não se confundem. Professora tem “manias” de professora, em um lugar institucionalizado – a escola. Já a mãe não é professora, tem sua profissão e, inclusive, é tomada como parceira, como uma “igual”, na medida em que o menino explica que nem ele nem ela conseguem aprender bem os conteúdos escolares. A “mania” da mãe é fazer comida, seja em casa, seja no restaurante onde trabalha, portanto, as manias de mãe também são localizadas.

Que contrastes podemos identificar nos relatos do hell’s office e das “manias” e o que eles nos sugerem sobre os deslocamentos do cotidiano? O que, ao serem enunciados, eles acabam por instituir?

Ambos lançam mão de relatos como uma forma de organizar “os jogos das relações mutáveis que uns mantêm com os outros” (CERTEAU, 1998, p. 203). Nesse caso, esses jogos emergem de modo confuso e desordenado. As palavras-chaves hell e “manias” são descritoras do deslocamento, ao mesmo tempo em que sugerem uma reinvenção. Os relatos, portanto, dispõem, ordenam e, inclusive, regulam as funções (ou “manias”) no espaço, sejam elas de mãe, professora ou criança.

Por outro lado, as cenas 5 e 6 também fazem mais do que isso: na qualidade de relatos, descrevem, mas também criam; são, pois, atos performativos; sua descrição “é fundadora de espaços” (CERTEAU, 1998, p. 209). Com essa afirmação, assumimos uma dupla injunção argumentativa (ainda que provisória), a de que, a um só tempo, ao mostrarem-se como sintomas de deslocamento, os relatos de quarentena também têm a potência de produzir novas relações e de revisar instituições sociais já tão legitimadas, tais como a família e a escola.

Considerações finais

Optamos por perscrutar o que entendemos ser, emblematicamente, três dimensões que, uma vez alteradas em função da pandemia, têm levado os sujeitos a reorganizarem o cotidiano de maneira radical. Assim, considerando o campo educacional, era fundamental colocar em relevo alterações, reajustes mais evidentes entre famílias e tecnologias, entre famílias e escola e entre famílias e crianças. Para tanto, valemo-nos de fragmentos ordinários que, de um modo ou de outro, expressam situações às quais estamos submetidos. O que tais fragmentos mostram não são casos circunscritos; não falam exclusivamente desta mãe ou daquela família, desta escola ou da situação daquele estado ou país. Na condição de “cenas”, nos permitiram abrir um debate e indicar contornos de como não apenas somos insistentemente convocados a uma adaptação em nossas práticas mais prosaicas, mas também à sua permanente reinvenção.

Ao recuperarmos as noções de “estratégia” e “tática” de Certeau (1998), nossa intenção foi mostrar que os processos que envolvem adaptação e reinvenção do cotidiano ocorrem de maneira concomitante e complementar. Mais do que isso, tais noções nos serviram de instrumentos para ler como o cotidiano se organiza não como resposta linear a um poder vertical e já dado, nem mesmo como mero atendimento a estruturas dominantes, mas como criação e imprevisibilidade, contingência e inventividade. Analisar desta forma o que chamamos de “cenas” não implicou investir num otimismo romântico acerca de um mundo pós-pandemia – que, por sua vez, operaria em direção a um frágil conceito de progresso. Antes, acreditamos que esse mesmo cotidiano reinventado é composto do novo, ao mesmo tempo em que recupera o que pensávamos estar superado; é marcado pela inconformidade, ao mesmo tempo em que pelo fortalecimento de desigualdades (sociais, raciais, de gênero, por exemplo).

Por mais que tenhamos separado de maneira concreta, e apenas a título explicativo, “estratégias” e “táticas”, sabemos que elas operam concomitantemente, bem como se apresentam permeadas umas pelas outras: ali onde fala a conformação, também haverá espaço para a fratura; ali onde fala a produção do novo, também haverá defesa do que é tido como passado.

Há um consenso, neste estágio de avanço da pandemia e de extensão da quarentena, de que o futuro demandará uma nova normalidade. Nossa compreensão vai em outro caminho: a quarentena fez operar uma nova dinâmica entre “estratégias” e “táticas”, e, como tática, as ações e relatos de pessoas ordinárias mostram possibilidades de criação do novo – o que não necessariamente tem a ver com o binômio “normal” versus “anormal”. E é nesse momento que, novamente, recorremos a Certeau (1998) para refletir sobre a natureza do tempo escolar e sua relação com o tempo social.

O tempo escolar é uma estratégia decorrente da universalização e da emergência da escola para massas. Tempo e espaço escolares demarcam, na vida de crianças e adultos, rotinas específicas, mas, mesmo antes da pandemia, localizadas apenas na escola. Na medida em que as escolas se fecham e as atividades escolares remotas invadem as casas, a estratégia encontra-se na transferência da marcação desse tempo, por meio de vários dispositivos, para as famílias. Isso fica evidente, especialmente, nas cenas 1 a 4. Noções como a relação com o conhecimento e aprendizagem, assim como os usos de tecnologias, acabam forçando uma adaptação da rotina de casa à escolar. O tempo escolar viaja no espaço, mas sua transposição é impossível.

Todavia, essa estratégia não opera sem qualquer resistência. As cenas 5 e 6 colocam em primeiro plano não a estratégia – o tempo escolar –, mas as táticas de famílias para reinventarem o cotidiano. A criatividade encontra-se no anedótico, exagerado, metafórico, mas também na nomeação do que foi nosso fio argumentativo no texto: o deslocamento. Há um exercício de colocar cada coisa em seu lugar, seja ao sentir e nomear o desconforto em ver a casa como inferno, seja na descrição de “manias”. Portanto, a reinvenção do cotidiano diz respeito à resistência ao passado; adaptação de novas formas de viver no presente; e aceitação da incerteza do futuro. Novas previsibilidades são produzidas (encontros entre estratégias e táticas) – algo diferente de uma simples importação do tempo escolar para dentro de casa, onde, afinal, não se tem aglomeração de crianças; recreio e sinetas; chamada; hora definida para comer e se higienizar; e hora de chegar e partir. Afinal de contas, diferentes encontros intersubjetivos são possíveis de acordo com o tempo e o espaço – escola, família, mãe, professora não se confundem. Cada um com suas “manias”.

Ao descrever os reajustes nessas dimensões, vimo-nos também forçadas a considerar uma questão sobre a qual alguns autores têm debatido (CASTRO, 2013), e que parece ainda persistir: a garantia da afirmação da criança como sujeito de direitos não corresponde, necessariamente, e mesmo tendo-se passado quase três décadas, a uma participação ativa e efetiva desses sujeitos na condição de cidadãos. Dizendo de outra forma, ao perguntarmos acerca de como essa garantia tem se efetivado em nossas pesquisas, apontamos aqui para uma dimensão que ainda merece maior tratamento em futuras investigações: como as crianças têm se manifestado sobre estas mesmas alterações tão agudas de suas rotinas? Excetuando-se os momentos em que nós, adultos, lhes concedemos/permitimos a palavra, de que modo elas têm exposto – e, portanto, dado a ver (e ouvir) – como estão vivendo e sentindo o período de isolamento? Como têm encontrado formas de elaborar seus próprios relatos cotidianos e, ainda, como eles têm circulado?

Referências

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1- Título imediatamente inspirado na obra A invenção do cotidiano (CERTEAU, 1998).

2- As autoras agradecem os comentários de Juarez José Tuchinski dos Anjos e dos/as pareceristas ad hoc à versão preliminar do trabalho, assim como a cuidadosa revisão de Edgar Roberto Kirchof. São igualmente gratas às agências de fomento FAPERGS, CNPq e FAP/DF.

6- “A educação não pode parar” corresponde a uma máxima repetida, especialmente, por escolas e universidades privadas e que vem ganhando força inclusive como bordão publicitário.

7- Mantivemos a transcrição livre nas cenas 5 e 6 para mostrar a hesitação e inclusive o tom solene do menino. ‘Pro’ é a abreviatura da palavra ‘professora’, mas que nas duas primeiras ocorrências aparecem como hesitação; ‘con’ é a interrupção de ‘consigo’; e ‘senho’ é ‘senhora’, que, neste contexto, correspondem à interrupção do pronome de tratamento formal, que, na sequência, é trocado pelo informal, ‘você’.

Recebido: 14 de Maio de 2020; Revisado: 05 de Junho de 2020; Aceito: 30 de Junho de 2020

Bianca Salazar Guizzo é professora Adjunta da Universidade Luterana do Brasil, onde atua no Curso de Pedagogia e no Programa de Pós-Graduação em Educação.

Fabiana de Amorim Marcello é professora Associada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Infâncias (GEIN). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS e Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.

Fernanda Müller é professora Associada da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo Interdisciplinar de Pesquisa sobre a Infância (GIPI). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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