Introdução
O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei Federal 8.069, de 13 de julho de 1990) fez trinta anos de promulgação em 2020. Por sua definição, encarregou as famílias, a comunidade, a sociedade e o Estado para assegurar a proteção integral a todas as crianças e adolescentes no Brasil, de forma articulada e interdependente. Tal articulação foi alcunhada, mais tarde, de Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA).
A ideia de proteção integral anotada neste Estatuto, encontra lastro na concepção de que todas as pessoas com idade inferior a 18 anos ascendem à condição de sujeitos de direitos, rompendo com a doutrina sociojurídica em voga até a sua promulgação, que destinava tal grupo à intervenção do mundo adulto. Desse novo modo, coloca-os como titulares de direitos comuns a toda e qualquer pessoa humana, bem como de direitos especiais decorrentes da condição peculiar de pessoas em processo de desenvolvimento.
Para tanto, o Ministério Público (MP) é essencial à proteção pretendida e, por isso, o capítulo quinto do ECA é reservado a este “sujeito”, que age na composição do SGDCA, atribuindo-lhe competências administrativas para assegurar os direitos infantoadolescentes. De maneira geral, sua atuação volta-se à guarda dos interesses sociais, ou seja, à proteção dos direitos difusos e coletivos, todos os ligados à coletividade. Também, na defesa dos interesses individuais, desde que indisponíveis, caracterizados como direitos fundamentais, pois são inerentes à pessoa humana, tais como o direito à vida, à liberdade, à integridade física e psíquica, à igualdade perante a lei, à saúde, à educação, dentre outros alcançáveis por sua tutela.
Neste contexto, a sua intervenção não se resume à via jurisdicional, mas atua em diversas frentes com a finalidade de garantir que os direitos anunciados se tornem realidade na vida das crianças e adolescentes. Age para atenuar as distorções existentes entre os protocolos consignados nas convenções internacionais de direitos humanos, na Constituição e nas legislações infraconstitucionais3 , e exigir dos poderes públicos as medidas adequadas para que os seus objetivos sejam efetivados. Especificamente no campo dos direitos sociais, o Ministério Público tem a obrigação de monitorá-los em seu desdobramento, enquanto políticas públicas, dentre estas, a política de educação com adjetivação de qualidade.
Nesta direção, o MP tem adotado medidas, de âmbito institucional, para asseverar a eficácia das políticas de educação, com destaque às ações sugeridas pelo projeto Ministério Público pela Educação (MPEduc), e que analisamos como práticas sociais do discurso de qualidade educacional, em vista da proteção integral. De tal modo, percorremos como objetivo deste artigo identificar os mecanismos e as contingências implicadas nas práticas sociais do Ministério Público de Pernambuco (MPPE) para assegurar o direito à qualidade da educação básica, circunscritas no projeto MPEduc, por meio de um levantamento documental, analisado a partir da teoria social do discurso ( FAIRCLOUGH, 2001 ).
Ora, no horizonte celebrativo do trigésimo aniversário do Estatuto, muitos desafios à consecução dos direitos humanos estão postos, dentre os quais, ameaças aos direitos educacionais. De tal modo, observar a atuação deste sujeito do SGDCA, na incidência sobre a garantia do direito à educação é percebê-lo como copartícipe da afirmação da educação de qualidade como direito humano. Por essa razão, interessou-nos particularmente a atuação do MPPE como afirmação mobilizadora, articuladora e incentivadora dos princípios de proteção e promoção da prioridade absoluta das crianças e adolescentes, conforme é posto desde o artigo 227 da Carta Magna de 1988, que é regulamentado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e fundante da doutrina da proteção integral infantoadolescente.
O corpo do artigo está organizado em três partes. A primeira seção trata da educação como direito, de modo a localizá-la na amplitude de atuação e de interesse do Ministério Público; a segunda, apresenta a metodologia da pesquisa realizada; a terceira seção traz os resultados da investigação acerca a atuação ministerial sobre a política educacional em Pernambuco, através do projeto Ministério Público pela Educação e, ao final, apresenta considerações a respeito das contribuições do MPPE para a efetivação do direito à educação de qualidade.
Educação: direito humano de natureza social
A Constituição Federal do Brasil , de 1988, ampliou a abrangência dos direitos e garantias fundamentais, de modo que, desde o seu preâmbulo, prevê a estruturação do Estado de direitos, fundado na democracia, com o objetivo de assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, plural e não discriminatória.
Mas, de todos os direitos anunciados, o direito à educação prescinde de primordial cuidado, clareza e contundência. Listado com primazia no sexto artigo constitucional, fez-se entendê-lo como direito social, valor de cidadania e de dignidade da pessoa humana. Por sua vez, os direitos sociais evocam a noção de promoção, cuidado e proteção como atividade estatal, que busca garantir os interesses da sociedade.
Por esta acepção, os direitos sociais vinculam-se aos princípios da própria República, no entendimento de que o direito à educação se constitui como elemento componente de um projeto político de coletividade, aportado nos ideais de solidariedade, justiça social e igualdade material, em atendimento às necessidades dos que mais carecem de proteção estatal. De oferta obrigatória pelo Estado, sua aplicação tem a finalidade de alcançar igualdade de oportunidades, redução das desigualdades e melhores condições de vida para todos.
Neste percurso, a Constituição Federal de 1988 (CF/88), explicitamente, reconhece no artigo 205 a educação como direito de todos e dever do Estado e da família, promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho ( BRASIL, 1988 ). Não se encerrando aí, ao longo de outros artigos, a educação se assenta como dignidade humana e como valor ontológico, e é enfatizada como um critério de efetivação da cidadania ativa ( NASCIMENTO, 2018 ).
Desse modo, o artigo 206 da CF/88 aponta para os critérios mínimos que promovam uma relação de igualdade na execução de políticas públicas educacionais, conforme expresso:
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
[...] IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
[...] VII - garantia de padrão de qualidade ( BRASIL, 1988 ).
Os dispositivos que tratam da igualdade de condições para o acesso e permanência à escola e da qualidade da educação têm encontrado importante reforço na atuação dos agentes do SGDCA, com fundamento no Estatuto da Criança e do Adolescente. Por assim dizer, o direito à educação, como direito social, obedece a normas gerais que proporcionam o atendimento de condições para que haja um desenvolvimento de toda pessoa humana – um dos princípios da qualidade. Portanto, trata-se, de
[...] prestações positivas proporcionadas pelo Estado, direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. ( SILVA, 2005 , p. 286, grifo do original).
Daí que a educação, anunciada como um direito fundamental de natureza social, represente para aquele que a ela se submete, “uma forma de inserção no mundo da cultura e um bem individual, e para a sociedade que a concretiza, ela se caracteriza como um bem comum” ( DUARTE, 2007 , p. 697). Notadamente, a proclamação da educação como direito social parte do pressuposto do avanço dos direitos em âmbito local, mas, sobretudo, internacional, dada num processo lento e complexo, ligando-se às transformações globais da sociedade, e acompanhado do nascimento do Estado democrático de direito ( BOBBIO, 2004 ).
Tais direitos vão se materializando nas Declarações de Direitos e se incorporando nos princípios das Constituições dos Estados-Nação. Consequentemente, embora com certo atraso, a educação foi incorporada a este seleto grupo sendo praticamente universalizada em todas as cartas nacionais de direitos ( CURY, 2002 ). Além disso, no caso do Brasil, é compreendida como um bem inalienável, legalmente confirmado, o que garante ao interessado exigir seu cumprimento pelo poder público, como é possível aferir nos parágrafos do artigo 208 da CF/88:
§ 1º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo .
§ 2º O não oferecimento do ensino obrigatório pelo poder público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente. ( BRASIL, 1988 , grifo do original).
O legislador admitiu a responsabilização do gestor público pela não oferta da educação básica. Por tal, é importante anotar que o registro da educação como direito da cidadania e dever do Estado imputa: “o acionamento do mandado de injunção, entre outros instrumentos legais, podem cooperar para garantir que o Estado universalize a educação básica e para que se possa controlar os abusos que vierem a ser perpetrados pelo poder estatal” ( CURY, 2002 , p. 29).
Portanto, o direito público subjetivo consiste num instrumento jurídico de controle da atuação do Estado, por meio do constrangimento judicial, caso este não execute seu dever. Nestes termos, observa Duarte (2004):
O direito público subjetivo confere ao indivíduo a possibilidade de transformar a norma geral e abstrata contida num determinado ordenamento jurídico em algo que possua como próprio. A maneira de fazê-lo é acionando as normas jurídicas (direito objetivo) e transformando-as em seu direito (direito subjetivo). ( DUARTE, 2004 , p. 113).
Além disso, os direitos sociais, pela própria natureza, invocam do poder político uma demanda de recursos para sua aplicabilidade plena, em consonância ao Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Os direitos sociais, econômicos e culturais, nos termos em que estão concebidos pelo Pacto, apresentam realização progressiva. Vale dizer, são direitos que estão condicionados à atuação do Estado, que deve adotar todas as medidas técnicas, isoladamente e por meio da assistência e cooperação internacionais, até o máximo de seus recursos disponíveis, com vistas a alcançar progressivamente e a completa realização dos direitos previstos. ( PIOVESAN, 2003 , p. 175).
O princípio da proibição do retrocesso está implícito na atual Carta Constitucional em razão do próprio princípio da dignidade da pessoa humana, impondo ao Estado a intervenção ativa para transformar em realidade a declaração realizada ( SARLET, 2001 ). Reporta assim, à necessidade de sua atuação como “Estado Máximo”, a fim de encontrar robustez para ampliar suas ações perante a garantia do direito social.
Nesta perspectiva problematizamos a qualidade da educação, princípio basilar sobre o qual se assenta o direito educacional. É por meio da efetivação da qualidade, que se assegura o pleno desenvolvimento da cidadania ativa, ou seja, a educação com qualidade permite ser instrumento inigualável para se ter acesso aos outros (às vezes, novos) direitos fundamentais. Do contrário, sem qualidade, não há efetivação do direito, o que pode acarretar também em menor acesso aos outros direitos básicos, acabando por reproduzir o ciclo de desproteção, violência e violação de direitos de crianças e adolescentes.
A educação, neste contexto, é entendida como o lócus privilegiado de promoção dos direitos infantoadolescentes, porque reúne em torno de si um dos eixos geradores da Proteção Integral , além das reivindicações para se assegurar o reconhecimento e a afirmação dos direitos humanos infantoadolescentes. Tal junção é sintetizada no artigo 227 da CF/88 quando se lê, originalmente4:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente, com absoluta prioridade , o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. ( BRASIL, 1988 , grifo do original).
Nestes termos, é certo que as conquistas dos direitos educacionais é uma afirmação do próprio ECA ( BRASIL, 1990 ), já que foi ele que regulamentou primeiro o acesso, a permanência das crianças e dos adolescentes na escola, bem como definiu com clareza as repercussões das normas constitucionais em relação a educação, posto que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, só foi aprovada em 1996. Por este caminho, este Estatuto pormenoriza a Proteção Integral , pondo fim à concepção sociojurídica da doutrina da situação irregular do menor, que negava a cidadania à parcela da população infantoadolescente.
Caracteriza, pela primeira vez na história do país, todas as crianças e todos os adolescentes com igual dignidade em respeito, proteção e acessibilidade aos direitos humanos. Dá à educação um importante destaque e a determinação de responsabilidades pela ameaça ou violação a este direito. Neste contexto, o Ministério Público desponta como um dos principais atores responsáveis para exigibilidade de garantia do direito à educação de qualidade.
A educação de qualidade ofertada como ação do Estado, de caráter universal, está passível às várias formas de controle e exigibilidade. Coube ao ECA dotar o Ministério Público de competência para atuar sobre as políticas sociais que protegessem os direitos infantoadolescentes, agregando-se aos vários sujeitos do SGDCA ou agindo extrajudicialmente para seu pleno funcionamento. Neste estudo, buscamos os efeitos destas ações para a proteção integral, a partir dos aportes da teoria social do discurso.
Considerações metodológicas
Embora possa haver múltiplas formas de o MP atuar em favor da educação, o projeto MPEduc chama-nos especial atenção porque ambiciona garantir que haja a oferta da educação, assegurando-lhe qualidade. A escolha deste campo de investigação deu-se quando dos levantamentos empíricos para a pesquisa de doutoramento ( NASCIMENTO, 2018 ) que investigava a ação de sujeitos do SGDCA para assegurar a qualidade da educação, tendo como lastro o discurso de proteção integral de crianças e adolescentes.
Quando fizemos um aprofundamento das complexas relações estabelecidas entre os sujeitos do SGDCA, foi possível perceber várias práticas que visavam assegurar a qualidade da educação, inclusive dentre aqueles que tradicionalmente não pertencem à arena educacional (como o Poder Judiciário, redes empresariais, etc.). Entretanto, mantivemos a perspectiva de focalização nas ações que visassem a qualidade como proteção integral, justificada pela vasta gama de documentos normativos nacionais e internacionais que fundamentam tal doutrina jurídica.
Nossa pesquisa debruçava-se, inicialmente, sobre os registros de demandas por qualidade da educação no Conselho Tutelar, mas o levantamento de referenciais empíricos nos levou a notícias que também o Ministério Público atuava por meio de medidas extrajudiciais, tendo como fundamento legal o ECA. Tomamos ciência de que o projeto é realizado em três grandes etapas: pelo diagnóstico das condições da educação ofertada pelas redes públicas de ensino básico; na apresentação de medidas corretivas aos gestores públicos; e na prestação de contas à sociedade das providências adotadas e dos resultados obtidos.
De modo especial, esta última etapa ocorre por meio de audiências públicas. Entretanto, o projeto mantém um website com a disponibilização do conjunto dos documentos produzidos durante as várias etapas do projeto, para livre acesso, que foram consultados remotamente. Em todo o país, duzentos municípios que executaram ações referentes ao projeto foram foco de atuação do MPEduc. Em Pernambuco, seis Varas se comprometeram com este projeto: Barra de Guabiraba, Cedro, Água Preta, Manari, Santa Maria da Boa Vista e Recife. Porém, apenas as quatro últimas desenvolveram algumas atividades. No caso da capital do estado, o projeto cobria a área da Primeira Região Político-Administrativa (RPA1) – área central da cidade.
Com a intenção de identificar os mecanismos e as contingências implicadas nas práticas sociais do Ministério Público de Pernambuco para assegurar o direito à qualidade da educação básica, realizamos download dos documentos, categorizando-os por cidade e grupo de direitos da educação que foram ameaçados ou violados, de modo a comprometer a qualidade da educação. Durante o processo de pré-análise, selecionamos para estudo os municípios pernambucanos que mais prospectaram avanço nas etapas previstas, mesmo que os dados não indicassem conclusão de todas elas, em nenhuma das cidades. Desta feita, foram averiguados Manari5 e Água Preta6 .
Realizamos uma investigação do tipo pesquisa documental ( CELLARD, 2008 ) com vistas a identificar as intervenções administrativas deste órgão no âmbito do projeto Ministério Público pela Educação. Pretende-se, com isso, caracterizar as intervenções do MPPE aplicadas na política educacional e seus possíveis resultados em termos de melhorias na qualidade da educação, de modo que seja possível asseverar indicativos protetivos.
Os dados foram coletados em 2018 e analisados com base na teoria social do discurso ( FAIRCLOUGH, 2001 ), que propõe a análise tridimensional de um evento discursivo, tratando-o como texto (evento), prática discursiva (sistema linguístico) e prática social (ordem do discurso).
Por essa perspectiva, as relações discursivas que constituem os conflitos indubitáveis à consecução da proteção integral estabelecem-se como entidades intermediadoras entre o potencial abstrato presente nas estruturas linguísticas e a realização desse potencial em eventos concretos. Portanto, compreendemos os inquéritos civis, e por conseguinte, as recomendações interpostas pelo MPPE como práticas sociais do discurso. Isto é, por meio delas se induzem políticas públicas que asseguram qualidade na educação, potencialmente capaz de gerar proteção dos aprendentes.
O direito à educação de qualidade como demanda para a proteção integral
O ECA impôs um novo discurso sobre as crianças e os adolescentes, imputando-lhes uma nova postura jurídico-assistencial, na condição de sujeitos de direitos, o que revogou a dicotomia criança versus menor. Igualmente, impôs uma inversão na racionalidade de atendimento às demandas infantoadolescentes por direitos, cidadania e justiça.
Instruiu uma forma de mobilizar as políticas de Estado para assegurar os direitos infantoadolescentes, corresponsabilizando os órgãos estatais, organizações da sociedade civil, a família e a comunidade em geral, de forma a dar caráter a um Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. Esta forma de caracterizar a efetivação dos direitos imprime uma centralização na criança e no adolescente como destinatários privilegiados dos esforços coletivos, para que lhes sejam garantidas todas as oportunidades e facilidades de desenvolvimento.
O SGDCA foi regulamentado pela Resolução n. 113, de 19 de abril de 2006, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente ( BRASIL, 2006 ), e está ancorado em três frentes de atuação: a defesa dos direitos, a promoção da política, e o controle e a incidência sobre a implementação das ações de Estado. Conforme sua característica, cada agente do Estado ocupa assento nesta articulação, e nenhum passaria imune. Isso porque a lógica da proteção integral aciona todos os esforços e todos os sujeitos políticos e sociais para atuarem na superação da situação do não direito, da ameaça ao direito e para a vigilância frente às políticas públicas que efetivam os direitos.
Portanto, dada a importância de zelador dos direitos, imposta pelo artigo 127 da CF/88, o Ministério Público é um dos sujeitos atuantes do SGDCA, mais especificamente no eixo defesa dos direitos, como um dos principais protagonistas. Nisto enseja que, por meio desta Instituição, a defesa dos direitos de cidadania passa a não depender de ações individuais de cada cidadão lesado, permitindo-lhe o controle dos atos administrativos na garantia dos direitos constitucionais.
E, embora as suas funções institucionais estejam previstas no artigo 129 da atual Constituição, não se restringem a elas. É por tal razão que o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a ampliação de atuação deste órgão como um todo, e admite a responsabilização de todos os promotores, em cooperação, em assegurar a Proteção Integra l.
Assim sendo, é preciso deixar de lado a noção “tradicional” de “atribuição única” da Promotoria da Infância e da Juventude e começar a raciocinar em termos “atribuição conjunta ou compartilhada” entre a Promotoria da Infância e da Juventude e outras Promotorias especializadas, como da saúde, educação, patrimônio público, consumidor etc., que se mostra fundamental para que o Ministério Público cumpra a contento seu papel na defesa (cada vez mais eficiente) dos direitos e interesses infanto-juvenis. ( DIGIÁCOMO; DIGIÁCOMO, 2013 , p. 298).
Portanto, em conformidade com o ECA, além da fiscalização da lei, o MP atua como protagonista na aplicação das medidas de proteção ou em favor do usufrutuário das políticas municipais, no papel de interventor para a materialização das políticas públicas, inscritas nesta legislação. Sua atuação se desenvolve de diversas formas, sendo, de maneira geral, judicial ou extrajudicial (administrativamente).
Então, ao se tratar da garantia do direito à educação, com a imperativa qualidade a lhe adjetivar, o Ministério Público pode fazê-la valer, contra as omissões do Estado ou da família, por meio de instrumentos processuais como: o mandado de segurança, o mandado de injunção e a ação civil pública, dando efetividade prática aos direitos que estão na ordem jurídica. Assim, também, pode fazê-lo pela via extrajudicial, utilizando-se de inquérito civil, procedimentos administrativos e sindicância, recomendações, termo de ajustamento de conduta, audiências públicas e reuniões.
Nosso estudo focaliza a atuação extrajudicial do Ministério Público de Pernambuco, como potencializador célere dos interesses da sociedade, no que toca vislumbrar efetivo o princípio da qualidade, como um direito da educação. Essa perspectiva coaduna com o princípio da desjudicialização no campo das infâncias que está em voga no ECA, decorrente da ideia de maior agilidade, com o objetivo de estimular, no âmbito do próprio SGDCA, soluções simples, ágeis, imediatas para as causas das infâncias. Além disso, é resultado da histórica luta da sociedade, no que inclui os próprios meninos e meninas para revogação do Código de Menores, caracterizado pela excessiva vigilância da autoridade pública e de medidas judiciais e policiais repressivas e autoritárias, imprimindo ao Juiz de Menores a decisão monocrática sobre os destinos da população classificada de menor.
Fundamentados nesse princípio, compreendemos que a variação da oferta de educação pelo poder público, em que pese a qualidade, não pode ser analisada apenas por medidas legais, por isso, o projeto MPEduc situa-se para nós, num lócus estratégico. Não excluindo as pressões e lutas sociais em defesa desse direito, observamos neste circunscrito a ampliação de seu atendimento como decorrência da interferência não jurisdicional, promovida na agenda da governança local, sob a observância da proteção integral como discurso para a qualidade desejada.
O Estatuto da Criança e do Adolescent e remete à compreensão de qualidade educacional, como um indutor de práticas capazes de promover, concomitantemente, o desenvolvimento dos sujeitos para a humanização, o social para a convivência pacífica e fraterna e o econômico para a plena sustentabilidade de um país. É, igualmente, um processo de construção da integralidade do ser humano e de integração de todas as dimensões da vida: dos saberes, das aptidões, das habilidades, da capacidade de discernimento e de ação. Em síntese, é a possibilidade do gozo da cidadania ativa, por meio da participação equitativa da construção do mundo preexistente, em transformação.
Portanto, a atuação do Ministério Público na defesa da educação é um desafio de grande importância institucional, tendo em vista ser um dos órgãos do SGDCA capaz, pelo exercício de sua função, respaldada na autonomia, independência na defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais difusos e/ou coletivos, refrear as situações de oferta irregular da política, como expressão do direito.
Ora, tendo como perspectiva a proatividade exigida do Ministério Público, principalmente na hipótese preventiva, muitas ações podem ser feitas, tais como a realização de audiências públicas, reuniões diversas, trabalhos em rede, solicitação de esclarecimentos, entre outras, tal como foi possível verificar no projeto Ministério Público pela Educação.
O Ministério Público pela Educação: lugar de promoção da qualidade educacional
Pelo exposto, é aceitável afirmar que o MP pode ser um órgão articulador para garantir o direito à educação de qualidade, já que a instituição tem como características funcionais a autonomia, a independência e a defesa da ordem jurídica, dos interesses sociais, difusos e coletivos. Entretanto, a atuação desta instituição em defesa da educação dá-se com a promulgação do ECA, tendo como objeto rever as falhas na efetividade da política (SILVEIRA, T. G., 2017). Mas, é a partir dos anos 2010 que torna essa atuação mais ativa, porque foi
[...] somente em 2013 que o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais, por meio da Comissão Permanente de Educação deste órgão, faz uma recomendação de que os Ministérios Públicos dos estados criem promotorias especializadas em educação; e, no ano seguinte, em 2014 surge um projeto nacional de defesa da educação pelo Ministério Público, o “Ministério Público pela Educação”. (SILVEIRA, T., 2017, p. 42).
De fato, por sua mediação restauram-se direitos humanos, como por exemplo, a inclusão na unidade de ensino de criança ou adolescente que estejam fora da escola (vagas), ou assegura-se insumos que permitam as condições de oferta de ensino com qualidade mínima, promove-se a permanência na escola (combate à evasão escolar), faz-se a fiscalização dos orçamentos públicos destinados à educação e a correspondente aplicação das verbas públicas.
Os poderes requisitórios e investigatórios concedidos ao membro do MP pelo ECA servirão não apenas para permitir a coleta de elementos de convicção indispensáveis à propositura da demanda judicial, mas também para tentativa da solução do problema pela via administrativa. (SILVEIRA, A., 2010, p. 242).
Para tanto, o MP tem-se utilizado de instrumentos extrajudiciais para a exigibilidade do cumprimento dos deveres atribuídos aos tríplice-responsáveis (família, comunidade/sociedade e Estado) pela efetivação da proteção integral infantoadolescente. De modo que, a Promotoria de Justiça, por meio do projeto MPEduc, vem desenvolvendo atuação para a efetividade do direito à educação, em algumas cidades de Pernambuco.
Esse projeto tem origem na elaboração do planejamento estratégico do órgão.
Em 2011, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) realizou enquete com membros do Ministério Público para que apontassem os temas considerados relevantes e prioritários. Na ocasião, os 1.474 membros participantes fizeram uma classificação de 50 temas destacados dos planejamentos estratégicos do Ministério Público, de acordo com sua relevância e prioridade. ( BRASIL, [2000 ]).
Após a consolidação dos dados, a temática da educação foi apontada como a sexta prioridade no ranking dos temas levantados, após: tráfico de drogas, crime organizado, fiscalização das contas públicas, saúde e crimes contra a administração pública.
Em resposta a esta demanda, em 2014, o Grupo de Trabalho “Educação”, da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, criou o referido projeto, tendo como “principal objetivo estabelecer o direito à educação básica de qualidade” ( BRASIL, [2000 ]) tendo em vista que “a educação faz toda a diferença para o pleno desenvolvimento da pessoa, para o exercício de sua cidadania e em sua qualificação para o trabalho” ( BRASIL, [2000 ]). Para isso, firma parceria com os Ministérios Públicos estaduais, que atuam localmente.
E para alcançar o objetivo principal, o MPEduc conta com o envolvimento dos membros do Ministério Público e também dos gestores públicos e dos cidadãos. Com o fortalecimento da parceria entre as instituições, o trabalho ganha mais força e possibilita que o MP enfoque sua atuação em questões essenciais para todos. ( BRASIL, [2000 ]).
A parceria entre os órgãos ministeriais visa “demostrar para a sociedade que a área de educação é uma prioridade da instituição” ( BRASIL, [2000 ]). Além disso, anota que quanto maior for o envolvimento e a participação dos membros do Ministério Público no projeto, melhores serão os seus resultados.
Foram traçados, ainda, como objetivos específicos:
(i) Estabelecer o direito à educação como prioridade nos trabalhos desenvolvidos pelo Ministério Público; (ii) Levar ao conhecimento do cidadão informações essenciais sobre seu direito de ter acesso a um serviço de educação de qualidade, bem como sobre seu dever em contribuir para que esse serviço seja adequadamente prestado; (iii) Identificar os motivos dos baixos índices de Desenvolvimento da Educação Básica [...]; (iv) Acompanhar a execução das políticas públicas, bem como a adequada destinação dos recursos públicos; (v) Verificar a existência e a efetividade dos conselhos sociais com a atuação na área de educação. ( BRASIL, [2000 ], grifo do original).
Destacamos que o segundo objetivo proposto aponta para a corresponsabilidade da sociedade na promoção do direito educacional e também elenca como fundamental o controle social para a sua efetividade. Nesse sentido, o diálogo desse projeto com as finalidades do SGDCA, está textualmente posto. Suscita daí, então, a compreensão que a qualidade da educação não pode ser vista como restrita ao ato ou a técnica de ensino, mas os elementos consignantes desse direito estão relacionados com a democracia, a cidadania e os recursos intra e extraescolares.
Na execução deste projeto, a atuação do MP segue o caminho para a proteção integral, utilizando-se de recursos extrajudiciais, seja na coleta de informações, realização de audiências públicas, análise de questionários ou visitas às escolas. Estes recursos permitem que sejam realizados diagnósticos das condições das unidades escolares da rede pública de ensino de nível básico. Verificados problemas, servirão de base para a atuação junto aos gestores públicos, sob forma de recomendações.
Em Pernambuco a assinatura do protocolo de intenções entre o Ministério Público de Pernambuco e o Ministério Público Federal (MPF) ocorreu em 10 de junho de 2014, quando foram expostas pelo Procurador-geral de Justiça as intenções com o projeto:
Não podemos aceitar que escolas públicas municipais funcionem precariamente em fundo de quintal ou em casas alugadas a parentes de políticos. Vamos fazer um pente fino na educação pública estadual e municipal e exigir dos gestores públicos respeito ao sistema público de ensino. (PERNAMBUCO, 2014a, p. 67).
A parceria estabelecida entre o Ministério Público de Pernambuco e o Ministério Público Federal prevê que o primeiro acompanhe a execução das políticas locais de educação. Para isso, são “realizadas inspeções nas escolas e audiências públicas para inserir a sociedade na discussão. Posto que, profissionais da área de educação poderão sinalizar as demandas de cada município, de modo a embasar a atuação conjunta do MPF e do MPPE” (PERNAMBUCO, 2014a, p. 67). Estas inspeções têm como objetivo colher “informações sobre diversos aspectos das escolas, como alimentação, transporte escolar, inclusão social, estrutura física e área pedagógica, através de questionários eletrônicos que deverão ser preenchidos por escolas e conselhos de educação” (PERNAMBUCO, 2014a, p. 67).
As atividades programadas dão-se por meio de parcerias com os gestores públicos locais e com os representantes da sociedade civil, usuários do serviço e interessados, tendo como intenção a coleta de informações sobre a prestação do serviço, a realização de audiências públicas, a aplicação e análise de questionários, além das visitas às escolas.
Contribuindo para uma justaposição da racionalidade jurídica na esfera escolar, a estratégia de atuação do projeto segue a seguinte ordem cronológica: (a) instauração de Inquérito Civil Público; (b) reunião com Secretaria de Educação e Conselhos; (b) primeira audiência pública; (c) visitação às unidades de ensino; (d) expedição de recomendações; (e) segunda audiência pública. (SILVEIRA, T., 2017, p. 48).
As reuniões com os chefes da Secretaria de Educação visavam sensibilizar estes gestores para aderir ao projeto e requerer das unidades escolares, dos conselhos e dos gestores que respondessem aos questionários elaborados para embasar o diagnóstico. Este questionário envolveu oito componentes que apontam para as dimensões da qualidade. São eles: (i) aspectos de infraestrutura das escolas; (ii) inclusão de pessoas com deficiências; (iii) alimentação escolar; (iv) programas de transferência de recursos para escola e de composição didática, como acervo bibliográfico; (v) Conselho de Acompanhamento e Controle Social do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica - FUNDEB; (vi) Conselho de Alimentação Escolar; (vii) perfil dos gestores das unidades educacionais e de pessoal; (viii) manutenção de escolas indígenas e seus aspectos, quando for o caso. Sobre estes itens são realizadas as recomendações ministeriais.
De maneira geral, foram expedidas trinta e oito recomendações, com vista à qualificação educacional, sendo vinte e cinco em Manari e treze no Recife, conforme verificamos por temas no quadro abaixo. Estas recomendações foram endereçadas à Secretaria de Educação do estado de Pernambuco (13), Secretaria de Educação do município de Manari (20) e da Cidade do Recife (04), para o Corpo de Bombeiros do estado de Pernambuco (02) e para o Conselho de Alimentação Escolar do estado de Pernambuco (01).
Fonte: Brasil, [2000 ].
As justificativas adotadas em todas as recomendações consideravam a fundamentação do direito educativo concernente ao prescrito no Estatuto da Criança e do Adolescente, e na qualidade educacional instada na Carta Constitucional de 1988, a saber:
CONSIDERANDO que a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelecem que é dever da sociedade e do Poder Público garantir a toda criança e adolescente, com absoluta prioridade, a efetivação do direito fundamental à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho (artigo 205 da CRFB/1988 e artigo 53, caput do ECA), assegurando educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos, inclusive para aqueles que não tiverem acesso na idade própria (artigo 208, I da CRFB/1988). (PERNAMBUCO, 2014b, p. 2).
CONSIDERANDO que o artigo 206 da CRFB/88 garante que o ensino será ministrado com a observância de princípios, constitucionalmente assegurados, do qual se destaca o princípio da garantia do padrão de qualidade, firmado no inciso. VII (PERNAMBUCO, 2014b, p. 2).
Portanto, todas as recomendações do projeto estão fundamentadas nos princípios da proteção integral da criança e do adolescente. Não apenas porque a educação tem esse segmento como destinatário, mas porque se fundamenta nela própria como medida de proteção integral, como determinação ministerial.
Não encontramos registro de (des)cumprimento das recomendações expedidas pelo MPPE, mas fato comum a todas que foram analisadas, é a verificação de sua execução por meio de respostas ao órgão, sendo estipuladas metas e prazos de implemento, estando sua recusa sujeita a aplicação de medidas de judicialização descritas no ECA.
Fixa-se o prazo de 10 (dez) dias úteis para a resposta sobre o acatamento à presente Recomendação. Em caso de negativa, serão adotadas por estes órgãos do Ministério Público Federal e Ministério Público do Estado de Pernambuco as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis. (PERNAMBUCO, 2014b, p. 3).
Aceitamos a hipótese de que todas as recomendações tenham sido cumpridas, já que findo o prazo de cumprimento, realizar-se-ia nova audiência pública para informar a sociedade sobre os trabalhos desenvolvidos, bem como sobre as providências adotadas, ou não, pelos gestores públicos.
Dessa forma, o MP, cumpre um emprego pedagógico em sua atuação. Sua dimensão pedagógica coloca a instituição como um dos agentes de incidência na arena do discurso da qualidade da educação, vinculado à ideia de ação sistêmica, ou pelo menos, em parceria com outros sujeitos políticos da sociedade.
A função pedagógica da instituição recai sobre a sociedade quando o MP demonstra quais são os direitos fundamentais constantemente infringidos pelas instituições e omitidos pelo Estado. [...] Desta forma, a instituição busca ensinar não só os direitos que existem e devem ser requeridos, mas também a forma prática como ele é requerido. A outra face desta questão é que, na medida em que ensina também afirma sobre como deve ser . (SILVEIRA, T., 2017, p. 94, grifo do original).
Neste campo, o projeto disponibiliza uma série de vídeos tutoriais para que o cidadão compreenda como exercer a fiscalização sobre os recursos públicos da política educacional, bem como fornece informações de como e onde exercitar o controle social. Para isso, apresenta um organograma de como os Conselhos da área da educação podem requerer informações e atuar politicamente, e disponibiliza modelos de documentos para requisição de informações, com o intuito de potencializar a ação de advocacy .
O MPEduc traz consigo o potencial de contribuir com a qualificação da educação, especialmente por pensar a sua atuação pelo estabelecimento de parceria com os profissionais da educação e a atuação em rede. Logo, o foco na qualidade faz com que o projeto seja um importante instrumento para ampliação da dignidade de crianças e adolescentes.
A defesa do direito à educação, com vistas à sua qualificação, está posta como uma das dimensões laborais do MP determinadas pelo ECA, que acrescenta às suas atribuições novas frentes de atuação. O sentido de qualidade da educação prevalente na acepção do MPEduc está vinculado aos parâmetros mais objetivos e passíveis de materialidade jurisdicional inscritas na legislação, tal como os insumos, a não oferta, ou a oferta irregular do serviço.
Embora haja acenos à gestão democrática, não toca nas questões referentes aos processos democratizantes, mas volta-se para assegurar burocraticamente as instâncias de controle e gestão escolar. Adentrar na organização subjetiva da escola, certamente iria desvelar que os processos pedagógicos, a negação e/ou violação e a afirmação do direito ocorrem subjetivamente, pari passu às questões objetivas. Isto é, as culturas organizacionais das escolas implementam determinados modelos de gestão que podem resultar em maior ou menor resultados socialmente transformadores, indutores de uma cidadania ativa, inclusive enfrentando o binômio escassez de recursos versus necessidades de insumos e políticas sociais interconexas.
O Ministério Público e a garantia de uma educação pública de qualidade
O Ministério Público, instaurando inquéritos civis públicos para recolher informações acerca da existência de violações do direito à qualidade educacional, pode tomar as providências legais (extrajudiciais ou judiciais) para sanar o problema, como observadas:
i. Mobilização de produção de diagnóstico situacional. O planejamento público, especialmente em cidades do interior, carece da produção de informações sobre si e os impactos de suas políticas públicas. Além disso, a consignação de canais de diálogo e de articulação com os principais sujeitos relacionados à comunidade escolar está previsto como um dos recursos da metodologia do MPEduc. Com essa ação, cria-se um espaço importante de interlocução para a discussão, reflexões conjuntas e busca de melhorias na qualidade do ensino dos municípios e a corresponsabilidade para este fim;
ii. Zelo pela correta aplicação dos recursos de financiamento da educação, que busque a aplicação adequada do erário disponível, tanto do ponto de vista da quantidade, mas também da qualidade de sua execução, com destaque às verbas decorrentes do Fundeb por ser a principal fonte de financiamento da educação básica, e o maior montante de recursos de transferências para a maioria dos municípios pequenos.
Tal razão faz com que os recursos do Fundeb sejam tão utilizados como encabrestamento político, através da contratação temporária de mão de obra educacional precarizada ( NASCIMENTO, 2013 ) e são as mais indevidamente utilizadas pelos gestores em fraudes e desvios em diversos municípios brasileiros. Daí cabe ao Ministério Público a prerrogativa de atuar preventiva e repressivamente sobre a malversação dos recursos públicos, mas também sobre a má utilização destes.
Neste campo, diversas ações são propostas pelo MPEduc, dentre as quais: a) acompanhar, com o apoio dos Conselhos ligados à educação, o orçamento da educação básica; b) cobrar e fiscalizar a transparência da folha de pagamentos das Secretarias da Educação; c) fiscalizar ou cobrar para que os conselhos fiscalizem a aquisição de bens e a prestação de serviços ligados à educação; d) acompanhar e fiscalizar a eficiência nos trabalhos dos Conselhos que deliberem ou acompanhem a execução orçamentária, tendo em vista seu fortalecimento.
iii. Fortalecimento dos Conselhos Municipais relacionados à Educação. Via de regra os Conselhos de cogestão têm sido apenas uma realidade jurídico-formal, ou um instrumento administrativo e politicamente inviabilizado, por força da ingerência dos Chefes do Executivo que incide na escolha dos membros da sociedade civil, extrapolando sua competência. Nascimento (2013) aponta que isto se deve a diversos problemas sociopolíticos e culturais que vão desde a falta de tradição participativa da sociedade civil no controle das atividades políticas e negócios públicos, até a arraigada concepção dos conselhos como órgãos formais, necessários apenas para captar recursos financeiros.
Para tanto, o Promotor de Justiça deve verificar a lei que criou os conselhos e consultar os respectivos regimentos internos para aferição de sua eficácia e funcionalidade. Deve ainda reunir-se com esses Conselhos, oferecer apoio, exigir estruturas adequadas junto ao Executivo, cobrar dos conselheiros uma postura mais compatível com a grandeza das suas atividades, em suma, ser um órgão articulador e fiscalizador para que os Conselhos sejam efetivamente operantes e eficientes nas suas missões. ( NUNES, 2016 , p. 5).
Com as informações disponíveis, o MP provoca o gestor das políticas educacionais, aplicando-lhe, inclusive termos de ajustamento de condutas (TACs), como medidas administrativo-coercitivas para assegurar o funcionamento destes órgãos conforme sua finalidade.
iv. Cobrar a elaboração de planos de cargos, carreira e salários e inclusive concursos públicos como forma de satisfazer as demandas históricas de ajustamento da remuneração do profissional da educação a um piso salarial justo.
v. Prevenção e combate à evasão escolar. As causas e raízes deste problema são muito complexas e demandam vários olhares e reflexões. Em termos globais, o MP pode agir, dentro do SGDCA, no sentido de potencializar a eficiência das ações que provocam a evasão escolar, tais como o combater o trabalho infantil, a fiscalização do transporte escolar adequado, aplicando medidas de proteção em conjunto com o Conselho Tutelar, apoiar a escola na identificação e constatação de alunos que estejam fora da escola, dentre outras formas de agir.
Sobre isso, subscreveu na Recomendação Conjunta nº 43/2014 de 11 de dezembro de 2014, assinada pelo Ministério Público de Garanhuns e endereçada à gestão de Manari:
Ao Sr. Prefeito e ao Sr. Secretário de Educação do Município de Manari/PE, que: a) adotem as providências necessárias a fim de implementar na rede de ensino a FICAI – Ficha do Aluno Infrequente, comunicando ao Conselho Tutelar e à família as faltas do aluno mensalmente; b) formem grupos de visitadores nas escolas, a fim de apurar as razões de eventual evasão escolar.
A presente Recomendação dá ciência dos fatos ao destinatário e o constitui em mora em caso de este omitir-se nos deveres legais que lhe cabem conforme explanado nos fundamentos desta Recomendação. O descumprimento desta poderá gerar responsabilidade, civil e criminal, em especial em relação à ausência de comunicação ao Conselho Tutelar e/ou à família acerca da falta de frequência dos alunos das escolas públicas de Manari/PE. (PERNAMBUCO, 2014a, p. 4).
A sanção está prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente.
vi. Vigilância quanto a privatização dos sistemas de ensino. Um número significativo de municípios brasileiros tem comprado de grandes grupos ou empresas da rede privada materiais, muitas vezes inadequados à realidade dos estudantes. Estas parcerias normalmente envolvem a aquisição de modelos didáticos, treinamentos de professores e intervenção na execução de políticas educacionais, desconsiderando-se que a educação de qualidade exige planejamento conjunto com os atores locais e que usar a grife de grupos ou organizações privadas não é, necessariamente, garantia de qualidade. Ademais,
muitas dessas redes passam aos pais e à comunidade de forma geral a ilusão de que o nível de ensino através desses sistemas é igual ao dos colégios particulares, o que nem sempre corresponde à verdade. Com isso estamos assistindo a uma terceirização da educação, desacompanhada de um debate com a sociedade. ( NUNES, 2016 , p. 9).
Várias irregularidades estão sujeitas à atuação do Ministério Público, que vão desde a ausência de participação da comunidade na vida orgânica da escola à ausência ou desprezo aos projetos pedagógicos próprios resultantes de desdobramentos sobre a realidade de cada local.
Por fim, o Ministério Público tem papel crucial para garantir educação de qualidade como um direito social. Além disso, em conjunto com o SGDCA pode promover a democratização da educação não só com o acesso, mas também com a permanência de todos no processo educativo promovente da cidadania ativa.
Considerações finais
Tivemos como objetivo identificar os mecanismos e as contingências implicadas nas práticas laborais do Ministério Público de Pernambuco para assegurar o direito à qualidade da educação básica circunscrita no projeto Ministério Público pela Educação (MPEduc). Por tal, foi possível perceber que a indisponibilidade de direitos é a tônica indispensável à atuação do Ministério Público em processos que envolvem crianças e adolescentes. Por assim dizer, a atuação do Promotor de Justiça, principalmente na área das infâncias, guarda estreita relação com a efetividade dos direitos sociais e fundamentais previstos na legislação em vigor. Por isso, insta saber que, por sua atuação, é importante contribuição para a consecução da qualidade da educação.
Em observância ao ECA, em casos em que se resvala do poder público local a oferta de educação de qualidade, por omissão, inexistência, ou deficiência de políticas públicas requeridas, pode o Ministério Público, via ação judicial ou extrajudicial, intervir para a sua concretização.
Com vistas a aferir o direito à educação básica de qualidade o Ministério Público de Pernambuco aderiu ao Projeto MPEduc, no Ministério Público Federal. Pelas ações do projeto foram observadas especialmente as condições para a qualidade da educação, em seus aspectos de insumos necessários ao bom funcionamento da escola. Dessa forma, os municípios, o governo do estado e os bombeiros foram notificados a atuar para assegurar que as políticas públicas educacionais sejam implementadas com zelo, criando as condições para o acesso daqueles que dependem de transporte escolar. Mas, também, condições de permanência com segurança física e nutricional no sistema educacional. Por assim dizer, canalizaram esforços para soluções de irregularidades nos serviços públicos ofertados, demandando um atendimento mais qualificado da educação.
Neste sentido, a respeito da inércia governamental para a execução das prestações positivas para eliminar obstáculos, inclusive de ordem socioeconômica, que impossibilitassem o alcance efetivo dos direitos educacionais, impostas ao poder público pela Constituição Federal de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente , agiu o MPPE. Utilizando-se de suas prerrogativas, e executando as ações previstas no projeto MPEduc, tomou procedimentos extrajudiciais, a partir do monitoramento da situação da educação nos municípios de Manari e Recife, assegurando a restauração do direito.
A aplicação de medida de proteção do direito, com vistas a reestabelecer os direitos educacionais traduz-se em ações de política pública, como programas ou ações de auxílio à família, à criança e/ao adolescente. Assim sendo, cabe ao Promotor de Justiça utilizar das políticas públicas já existentes no município como recurso de sua atuação, e da exigência de ampliação dos direitos, estabelecidos como serviços públicos, a fim de promover a cidadania aos meninos e meninas. Nestes termos, observamos nas recomendações do MPPE, de procedimentos para melhoria das condições de alimentação escolar, da infraestrutura escolar, da gestão de pessoas e da escola.
Notadamente, a ação desse órgão incidiu na gestão da escola por meio da exigência de adoção de mecanismos de gestão democrática, no que se inclui tarefas como o manejo de livros didáticos, reparos prediais e na atuação de competência docente, como o registro de presença. Desta forma, adotou medidas de intervenção na política educacional, recomendando a adoção de medidas que sanassem a carência de professores na rede de ensino, com a abertura de concursos públicos. Do ponto de vista do ensino prestado, fez assegurar o cumprimento de carga horária mínima, a formação continuada e adequação quantitativa de alunos em sala de aula.
Por fim, num momento em que os direitos humanos precisam ser reafirmados, com a atuação integrada com outras autoridades, com a sociedade em geral, mas sobretudo, com os próprios adolescentes e com as crianças, o projeto MPEduc suscita um exemplo eficaz de procedimentos não judiciais para aferir qualidade, ao menos dos serviços públicos ofertados.