Introdução
A cidadania é um dos fundamentos da República Brasileira, expresso no Artigo 1º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), o qual, junto com o princípio da dignidade humana, forma a ideia de nação que cuida para que todos vivam em plenitude de exercício de direitos individuais e coletivos (BRASIL, 1988). A preocupação máxima do legislador constitucional em criar um estado de direitos se revela na própria estrutura da Constituição, que inova no mundo jurídico ao descrever primeiro os direitos e garantias individuais para só depois cuidar da organização do Estado.
No plano internacional, a Declaração das Nações Unidas Sobre os Direitos Humanos de 1948 (DDPH/1948) (ONU, 2001) infere que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos, dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade, de onde se extrai que ser cidadão é viver com dignidade e exercitando seus direitos de forma consciente e fraterna. Para a DDPH/1948, cidadão é aquele que tem o direito e a possibilidade de dirigir os negócios públicos, de votar e ser votado e de ascender em condições de igualdade às funções públicas do seu país.
Apesar de esculpida no texto constitucional e em declarações internacionais de direitos humanos, a cidadania ainda é negada à significativa parcela da população, que é aviltada em seus direitos, muitos deles fundamentais para viver com dignidade, dando causa a que muitos grupos sociais ainda tenham que lutar diariamente por ela.
Dentre os grupos que ainda não têm o reconhecimento de seus direitos estão os povos indígenas que, desde a colonização, sofrem com as diversas tentativas de extermínio e ainda hoje lutam pela efetivação dos direitos descritos na CRFB/88 para viver em cidadania plena, lutas estas que nem sempre são pacíficas, sendo que algumas, inclusive, resultam em confronto com os não indígenas.
A situação acima descrita confronta com o escrito no texto constitucional, que mais uma vez inovou no mundo jurídico ao criar um capítulo especial para os indígenas, com um sistema de proteção à sua cultura, crenças, tradições e formas de organização social.
Essa dicotomia entre o descrito nos marcos legais e a cidadania negada aos povos indígenas nos levou a investigar a questão da cidadania sob o olhar dos próprios indígenas da TICG, para identificar o que eles entendem pela palavra cidadania e como veem o exercício da mesma no dia a dia das aldeias.
Neste contexto, este artigo focará na questão da cidadania indígena, olhando-a sob a perspectiva dos atingidos pela falta dela: os indígenas, suas lutas e suas conquistas, e questionando com eles o conceito de cidadania, como ela se efetiva na prática e como exercitá-la em uma aldeia.
Escolhemos para responder essas questões um grupo de estudantes indígenas do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade do Estado do Pará (UEPA), por este grupo ter acesso constante à literatura sobre os direitos dos povos indígenas e, por serem estudantes de um curso superior intercultural, estarem em condições propícias para a formação de conceitos.
Duas questões principais orientam o estudo: qual o entendimento do indígena que tem acesso à formação superior intercultural sobre cidadania; e como a cidadania afirmadora de identidade vem sendo assimilada nos marcos legais.
O trabalho pedagógico que antecedeu a entrevista e a pesquisa em si é importante, na medida em que o grupo pesquisado é composto de estudantes indígenas em formação superior, mas também são lideranças em suas aldeias, sendo três deles, inclusive, caciques. A maioria são professores na educação escolar indígena e quatro deles são membros de diretoria de associações indígenas, reforçando a ligação entre a educação e a construção da cidadania dos indígenas.
O fato do grupo pesquisado ser composto por estudantes de um curso de licenciatura intercultural, que tem como principio filosófico a dialogicidade, entendida sob a ótica de Paulo Freire (1994) como o encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para ser mais, que não se esgota na relação eu-tu, mas é um encontro dos homens para a tarefa de saber-agir, é elemento importante para compreender o pensamento dos participantes sobre cidadania e reforça a importância de tornar pública a voz dos indígenas.
O indígena, a cidadania e o direito de ser indígena
Pensar a cidadania sob a ótica do historicamente dominado exige volver o olhar para um novo tipo de conhecimento, que se produz, usando termo de Santos (2019), ancorado nas experiências de resistência de grupos sociais que até então são vítimas de injustiças sociais e da negação de direitos, mesmo que este direito já esteja positivado na Constituição e nas leis.
A CRFB/88 assegura o direito do indígena de permanecer com suas formas de organização social e convivências próprias, inclusive reconhecendo os seus direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupa, nada mais justo se considerarmos que estes eram os primeiros habitantes de nossas terras. Segundo Ribeiro (1995), até a chegada do colonizador, o espaço geográfico brasileiro era ocupado por diversos povos indígenas organizados em tribos autônomas, autárquicas e não estratificadas em classe, que disputavam os melhores locais para viver. A chegada do colonizador muda até a forma do indígena habitar, pois, no ato de colonizar, tentou montar no Brasil uma espécie de presença local avançada de uma civilização urbana e classista. Este tipo de tentativa de dominação ocorreu, também, com os demais povos ameríndios, Quijano (2014) observa que na medida em que as relações sociais eram baseadas na dominação, as identidades dos diferentes grupos estavam associadas às hierarquias sociais, lugares e papéis correspondentes ao padrão de dominação colonial que foi imposto.
No plano internacional, quanto ao direito à terra, a Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre povos indígenas e tribais (OIT, 1989), reconhece o direito de posse da terra ou território que os indígenas ocupam coletivamente ou utilizam de alguma forma, conclamando os governos dos países signatários a promover medidas para salvaguardar esse direito, inclusive sobre terras que não sejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais tenham, tradicionalmente, tido acesso para suas atividades e subsistência.
A posse da terra em que vivem e o usufruto exclusivo dos seus bens têm sido ponto central na luta pela cidadania dos povos indígenas e outros povos tradicionais brasileiros. Little (2002), afirma que os povos tradicionais se esforçaram por mostrar que seus territórios, à diferença de territórios étnicos em outras partes do mundo, não representam uma ameaça ao Estado brasileiro por não terem fins separatistas e não terem exércitos próprios. Esses povos se consideram como cidadãos brasileiros e procuram o reconhecimento de seus territórios e do modo de vida que construíram ali.
A demarcação das terras indígenas tornou-se um divisor de águas na luta desses povos pela cidadania. Os povos que já têm suas terras demarcadas3, 441 no total, segundo dado colhido no site da Fundação Nacional do Índio (Funai)4, estão em patamar de luta diferenciado. O quantitativo de terras demarcadas representa menos da metade das 1296 terras indígenas existentes no Brasil, o que significa que, para a maioria dos povos indígenas, cidadania é a luta pela demarcação de suas terras. Estudo realizado por Silva (2019), com os Gavião Kỳikatêjê da Terra Indígena Mãe Maria, no Estado do Pará, mostrou que esse povo, que já tem sua terra demarcada, planeja um futuro autônomo e autossustentável, com um plano de vida aos moldes do que Little (2002) chama de Projeto de Etnodesenvolvimento Local. A Terra Indígena Cobra Grande, onde se desenvolveu a pesquisa, teve o processo de demarcação concluído em dezembro de 2018 (Processo FUNAI/BSB nº 08620.064329/2013-36), mas ainda pendente de homologação.
A posse e o usufruto da terra, no entanto, não são os únicos elementos a compor a cidadania indígena. Da própria CRFB/88 se extraem outros dois elementos fundantes do ser indígena: direito à organização social própria e direito à cultura diferenciada. Araújo Júnior (2018) infere que, se comparada às constituições anteriores, a Constituição de 1988 afasta o paradigma assimilacionista e enfatiza a autonomia desses povos, com respeito a seus modos de vida. Esses três elementos, terra, organização social própria e cultura diferenciada, nos levam a entender o Brasil sob o olhar pluriétnico já tratado em estudos como o de Villares (2013), e que o direito à cidadania plena está fundamentado na garantia da diferença e respeito às diversas formas de viver.
Este olhar pluriétnico exige o despir-se de toda forma de preconceito sobre os indígenas incutidos na “sociedade nacional” pelo dominador, perceber cultura como um processo dinâmico que evolui com os homens e, também, viver a diferença e romper com o olhar colonialista que vê o indígena como o estranho, o primitivo, usando expressão de Bauman (1998).
O indígena, como qualquer outro grupo humano, quer viver bem, para isso, percebe que tem de conviver com os kariwa5, mas não mais na relação de dominador e dominado, e sim em relações em que os diferentes respeitem a forma de ser e viver do outro, em interculturalidade. Como nos ensina o indígena Luciano (2006), pertencente ao povo Baniwa, interculturalidade é uma prática de vida que pressupõe a possibilidade de convivência e coexistência entre culturas e identidades. Sua base é o diálogo entre diferentes, que se faz presente por meio de diversas linguagens e expressões culturais, visando à superação da intolerância e da violência entre indivíduos e grupos sociais culturalmente distintos.
É nesse enredo de luta por direitos, de cidadania negada e de mobilização indígena para que se cumpram os dispositivos legais que realizamos a pesquisa.
Localização e contexto da pesquisa
A pesquisa foi realizada na Escola Indígena Nossa Senhora do Carmo, da Aldeia Caruci, pertencente à Terra Indígena Cobra Grande. Segundo o Relatório do Ministério da Justiça (BRASIL, Ministério da Justiça, 2009), a Terra Indígena Cobra Grande (TICG), com aproximadamente 8.900 hectares, situa-se na mesorregião do Baixo Amazonas e Microrregião do Baixo Tapajós, no Município de Santarém, zona de influência da Rodovia Santarém-Cuiabá. Especificamente, a área se situa no interior do assentamento agroextrativista da Gleba Lago Grande da Franca, majoritariamente às margens do baixo Rio Arapiuns e estendendo-se em sentido norte até o Lago Grande do Curuaí. O processo de demarcação foi concluído pela Fundação Nacional do Índio (Funai), em 20 de dezembro de 2018 e está pendente de homologação pelo Ministério da Justiça.
A TICG é composta por 05 (cinco) aldeias: Arimun, Caruci, Garimpo, Lago da Praia e Santa Luzia, onde vivem, aproximadamente, segundo o Instituto Sócio Ambiental (ISA), 583 indígenas autorreconhecidos, de três povos distintos: Arapiun, Jaraki e Tapajó (Brasil, 2020). Estes povos são falantes da língua portuguesa e em processo de reavivamento da língua indígena Nheengatu, espécie de língua indígena geral amazônica.
No Relatório Circunstanciado de identificação e delimitação da Terra Indígena Cobra Grande (BRASIL, 2009), é reconhecido que estes povos têm plena consciência de que ao longo dos séculos sofreram diversas perdas e rearranjos culturais e sabem que muitos elementos de seu modo de vida pouco se diferenciam do modo de vida das comunidades do entorno e de segmentos familiares de suas aldeias que não se entendem como indígenas e, frente a isso, respondem com a valorização dos elementos tradicionais que marcam e caracterizam sua distância em relação aos Kariwa6.
A Aldeia Caruci, em linha reta no curso do Rio Arapiuns, é a primeira das aldeias do território, às margens do lago do mesmo nome, delimitando-se com as comunidades de Nova Sociedade do Urucureá, Araci e Cururu. Na aldeia vivem 150 pessoas e destas, 97 são indígenas. A subsistência é baseada na pesca, caça, coleta, extrativismo, cultivo de pequenas roças e criação de animais domésticos, e as moradias, em sua maioria, são feitas com esteios de madeira e palha de caruá.
Os participantes da pesquisa
Participaram da pesquisa quatorze indígenas alunos do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena, área de ciências humanas e sociais7 da UEPA, pertencentes a seis diferentes etnias: Arapiun (7 participantes), Apiaká (1 participante), Borari (1 participante), Jaraki (1 participante), Tapajó (2 participantes) e Tupaiú (2 participantes). Três dessas etnias pertencem ao Território Indígena Cobra Grande (Arapiun, Jaraki e Tapajó) e três pertencem ao Território Indígena Tapajós Arapiuns (Apiaká, Borari e Tupaiú). Oito participantes são do sexo feminino e seis do sexo masculino. Dois dos participantes são lideranças (caciques) indígenas em suas aldeias.
Metodologia
A pesquisa de abordagem qualitativa e enfoque crítico-dialético se enquadra naquilo que André (2008a, 2008b) chama de estudo de caso do tipo etnográfico em educação. Este tipo de pesquisa, que pode ser feito com corte temporal adequado às exigências dos objetivos propostos ao estudo, se caracteriza por preservar alguns princípios metodológicos da pesquisa etnográfica sem, contudo, conter todos os seus elementos e com preocupação dirigida a uma situação educacional. Os dados analisados foram construídos por meio de entrevista semiestruturada, após uma série de intervenções pedagógicas desenvolvidas dentro de uma disciplina em um curso de formação de professores indígenas (licenciatura intercultural), que incluiu rodas de conversa, elaboração e aplicação de projetos educacionais com a comunidade da aldeia indígena Caruci, Terra Indígena Cobra Grande.
A disciplina em questão é a Prática Como Componente Curricular - Projeto Integrado de Práticas Pedagógicas Interculturais Indígenas: povos indígenas e cidadania, que faz parte do Curso de Licenciatura Intercultural indígena da UEPA, desenvolvida dentro de um roteiro estruturado em diversos passos. Inicialmente o tema cidadania foi explanado pelo professor/pesquisador, especialmente sobre os dispositivos da CRFB/88 que tratam dos direitos dos povos indígenas. Em seguida o grupo foi instado a ler textos sugeridos sobre o tema entre povos indígenas. Diante da heterogeneidade do grupo, formado por pessoas de seis diferentes etnias, foi proposto um debate sobre o conceito de cidadania plena, que se fez importante para firmar no grupo a ideia sobre o assunto.
No segundo momento o grupo foi instado a produzir projetos educacionais sob o tema central: Povos Indígenas e Cidadania. Para este momento o grupo se debruçou sobre a realidade das aldeias, levantando um conjunto de situações que afetam o ser cidadão nas comunidades. Ao final deste trabalho o grupo propôs diversos subtemas que se relacionam com cidadania. Estes temas foram dispostos em um quadro e a cada participante foi sugerido que escolhesse dentre os temas aquele que melhor se adequasse à realidade de sua aldeia e formulasse um projeto de intervenção que retratasse a questão da cidadania a partir de um problema de sua comunidade.
Os projetos de intervenção desenvolvidos foram:
As comidas na tradição Caruci: tratou da questão do uso de enlatados, embutidos e comidas congeladas e resfriadas compradas na cidade de Santarém para serem consumidas na aldeia. O projeto teve como objetivo mostrar o sabor das comidas tradicionais da aldeia preparadas com ingredientes existentes na comunidade. Utilizou como metodologia uma oficina de preparação de comidas e bebidas tradicionais para alunos da Escola Indígena Nossa Senhora do Carmo.
A chegada da energia elétrica e da televisão - perigos para a cultura: tratou da chegada da televisão à aldeia e seus impactos na cultura indígena, como a diminuição da participação dos indígenas nos rituais. O objetivo do projeto foi discutir com a comunidade sobre os limites ao uso da televisão na hora dos rituais. Utilizou como metodologia a roda de conversa no bosque da aldeia Caruci com os pais e velhos da aldeia.
Redes sociais - perigos e potencialidades: se debruçou sobre a possibilidade de usar as redes sociais (especificamente, o Whatsapp) para divulgar a cultura indígena e, por outro lado, sobre os perigos à cultura pelo uso inadequado do referido aplicativo. O objetivo do projeto foi pensar formas de usar o aplicativo de mensagem de forma positiva para a cultura indígena Tapajós-Arapiuns, usando como metodologia o debate com lideranças indígenas da TI sobre como usar aplicativos de mensagens para expandir a cultura indígena e lutar por seus direitos.
Participação dos pais na escola - lição de cidadania: discutiu com a comunidade a baixa frequência dos pais no acompanhamento das atividades dos filhos e reuniões na escola, com o objetivo de aumentar a participação dos pais de alunos na vida da escola. A metodologia escolhida para este trabalho foi fazer um “dia de recebimento dos pais”, com reuniões coletivas e individuais, jogos e rituais.
Educação Intercultural e Bilíngue - em busca da autonomia: discutiu a necessidade de um projeto pedagógico escolar que respeite as bases da educação indígena dispostas no Referencial Curricular Nacional para a Educação Escolar Indígena (BRASIL, 1988) e demais legislações da educação intercultural indígena, com o objetivo de mobilizar os habitantes da aldeia para discutir como a escola pode contribuir no projeto societário da comunidade. A metodologia escolhida foi realizar uma assembleia ampliada na escola, com participação das lideranças indígenas, pais, professores e anciãos da comunidade.
Organização e rotina escolar: se debruçou sobre como os processos pedagógicos, resoluções e portarias da Secretaria de Municipal de Educação de Santarém/Pará que são desenvolvidos na escola devem respeitar as características da aldeia, o tempo das experiências e a forma de viver da comunidade. O objetivo do trabalho foi discutir, com os professores e direção da escola, formas de adequar as normas escolares ao projeto societário da aldeia de modo a respeitar as formas de ser e viver indígena. A metodologia utilizada foi uma oficina sobre rotina escolar e legislação da educação indígena.
Participação nas decisões da aldeia: o projeto discutiu a baixa participação dos habitantes da aldeia nas discussões internas e na definição da organização da comunidade, transferindo as decisões para o cacique. O objetivo foi o de debater com os indígenas, especialmente os mais velhos, sobre a importância das rodas de conversas entre cacique, lideranças e sábios para a tomada de decisões sobre coisas que afetam a comunidade. A metodologia usada foi roda de conversa, apresentação cultural e palestra.
Importância das organizações indígenas para a construção da cidadania: centrou-se nos direitos dos povos indígenas que têm sido conquistados com participação efetiva das associações próprias dos indígenas, nas esferas local, regional e nacional, com objetivo de discutir com a comunidade indígena a importância das associações e das organizações indígenas na conquista de direitos garantidos em lei. O projeto usou como metodologia a reunião.
Uso das novas tecnologias de informação para propagação da cultura indígena: discutiu formas de aproveitar a chegada da energia elétrica nas aldeias da TI para divulgar o modo de vida indígena nas redes sociais, com o objetivo de usar as tecnologias de informação disponíveis para divulgar a cultura e tradições dos povos da TI Cobra Grande, usando como metodologia palestra informativa, baixar aplicativos de redes sociais para aparelhos celulares existentes nas aldeias e fazer levantamento do artesanato, danças e rituais para divulgar nas redes sociais.
O artesanato como manifestação da cultura e cidadania indígena: teve por base a desvalorização do artesanato original indígena por peças industrializadas e compradas na cidade. O objetivo do projeto foi despertar a comunidade para a importância do artesanato como elemento de identidade indígena. Usou como metodologia a roda de conversa e mostra de artesanato.
As responsabilidades das lideranças indígenas para com o seu povo: focou na baixa participação das lideranças da aldeia na organização da comunidade, com o objetivo de discutir as responsabilidades das lideranças na tomada de decisões e organização da aldeia. Usou como metodologia um ritual e roda de conversa no bosque da aldeia.
A língua indígena como manifestação da cidadania: trabalhou a questão do reduzido número de indígenas que se interessam em se comunicar na língua Nheengatu, com o objetivo de introduzi-la no cotidiano da escola da aldeia e na própria aldeia. Fez-se uso de minicurso de alfabetização na língua Nheengatu.
Contrapontos entre a tecnologia indígena e as tecnologias do branco - interculturalidade: o projeto tratou da substituição gradativa das técnicas indígenas de caça, pesca e agricultura por tecnologias dos não indígenas, em especial o uso de celular. O objetivo foi o de pensar com a comunidade maneiras de conviver com as tecnologias do não indígena disponíveis na aldeia, sem diminuir a importância das técnicas indígenas que garantem a sobrevivência da aldeia. A metodologia foi roda de conversa, mostra de artefatos tecnológicos do não indígena existentes na aldeia e dos artefatos construídos pelos indígenas para facilitar sua vida.
Valorização da cultura para fortalecer a cidadania indígena: se debruçou sobre a introdução na aldeia de cantos, danças, enfeites e demais elementos da cultura do não indígena. Diminuição das práticas dos rituais, pinturas e produção do artesanato indígena, com o objetivo de discutir com a comunidade da aldeia a importância da cultura como elemento identitário do indígena. O projeto usou como metodologia o ritual, roda de conversa e mostra de artesanato e pintura.
Os projetos de intervenção foram desenvolvidos em horários diferentes para permitir que todos os grupos participassem de todas as atividades. Após este momento, utilizando a dinâmica da roda de conversa, passamos a discutir os resultados e impressões do conjunto dos grupos sobre o impacto do projeto desenvolvido para a sua comunidade e para a formação de seu conceito de cidadania, em que cada participante discorreu sobre dois tópicos: validade do projeto desenvolvido para a vida cidadã na aldeia e importância do desenvolvimento do projeto para a consciência cidadã de quem o desenvolveu.
Após concluídas todas as etapas do trabalho pedagógico, o grupo foi convidado a participar da pesquisa, desenvolvida a partir de um roteiro de entrevista semiestruturada. Os participantes, após assinarem Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, responderam por escrito a seguinte questão geradora: qual o seu entendimento sobre cidadania e como efetivá-la no dia a dia da aldeia?
Após a digitação e organização das falas, retornamos à aldeia Caruci para que os participantes lessem seus depoimentos e, concordando, assinaram Carta de Cessão de Direitos para uso de seu depoimento neste artigo.
Para analisar os dados, novamente recorremos a André (2008a, 2008b), escutando atentamente os dados para formar categorias descritivas que, neste caso, foram formadas a partir do agrupamento das falas dos participantes que remetiam a uma mesma situação ou temática, assim, as categorias analíticas foram todas produzidas a posteriori.
Das falas, extraímos a necessidade de discutir os dados a partir das seguintes categorias: ser cidadão é lutar por direitos; cidadania é relação direitos-deveres; cidadania é conhecer os direitos para dialogar em condições de igualdade com os demais povos indígenas e com o não indígena.
Na análise das falas consideramos a história dos povos indígenas no Brasil e suas lutas pelo direito de ser indígena; as tentativas de extermínio e/ou dominação cultural; o contato com o kariwa e as consequências para o modo de ser e viver do indígena da TI Cobra Grande, e a resiliência demonstrada pelos indígenas brasileiros, em especial os da TI Cobra Grande, para manter sua cultura e tradições.
Resultados e discussão
Analisamos a fala dos indígenas na perspectiva defendida por Bondiá (2002), para quem as palavras produzem sentido, criam realidades e, às vezes, funcionam como potentes mecanismos de subjetivação. Nessa busca, nos atentamos para a fala de P98, onde afirma que “cidadania é uma das virtudes para uma sociedade justa e fraterna”.
Categoria 1. Ser cidadão é lutar por direitos
Os indígenas brasileiros têm um histórico de resiliência e de luta. Desde a ocupação das terras brasileiras pelo colonizador português até nossos dias, não são raras as tentativas de extermínio dos povos indígenas de diversas formas. As tentativas foram, e ainda são, de dois tipos: pelo aniquilamento da cultura, obrigando o indígena a falar uma língua que não é a dele, sobrepujando sua cultura, e pela violência física, com matanças e castigos. Isso levou alguns povos indígenas a tentar, inclusive, o autoextermínio, pois como afirma Honneth (2003, p. 214) “toda tentativa de se apoderar do corpo de uma pessoa, empreendida contra a sua vontade e com qualquer intenção que seja, provoca um grau de humilhação que interfere destrutivamente na autorrelação prática de um ser humano”. Na fala de P3 se percebe que o indígena quer ver materializado, na prática, o que está descrito na CRFB/88.
Vivenciando a cidadania na prática é cumprir seus direitos como cidadão brasileiro sem discriminação da raça e cor. (P3).
Para manter sua cultura e tradições e ter o direito de ser como são, os indígenas travam incessantes lutas por direitos e, após séculos de exploração, têm conseguido afirmar alguns direitos que só foram possíveis graças a sua organização, principalmente a partir da década de 1970, onde passaram a se organizar em associações, o que lhes deu ainda maior força e presença no cenário nacional e internacional, ao ponto desses indígenas influenciarem, inclusive, na elaboração da Constituição Federal de 1988. Talvez por isso, P2 afirma que:
A Cidadania é você pertencer a uma organização, é estar organizado, é exercer o direito de contribuir com as suas opiniões, é estudar, buscar informações que venham ajudar no desenvolvimento da aldeia, acompanhar as mudanças das leis no país e lutar em busca de melhoria para o povo. (P2).
A fala de P2 é representativa da ligação entre cidadania e as lutas de seu povo. Os povos indígenas do Brasil têm sofrido, desde a ocupação pelo colonizador europeu, forte tentativa de dizimação, quer pelo uso da força, quer pela retirada de direitos e/ou pela tentativa de “embranquecer9” o indígena.
Os indígenas da TI Cobra Grande, a todo momento, têm que lutar em várias frentes, no plano interno, para reconstruir sua cultura, abalada pelo contato com o kariwa e pela chegada dos encantamentos provocados pela televisão, celular, entre outras facilidades que o kariwa pode lhe oferecer, é por isso que P11 afirma que:
Com a apropriação da tecnologia, está buscando a liderança orientar e planejar o futuro de seu povo, para seus próprios conhecimentos e saberes de seus anciãos. (P11).
No plano externo, a luta dos indígenas é pela homologação da demarcação da TI e contra os madeireiros que invadem suas terras para extrair madeira ilegalmente, destruindo a floresta e afastando os animais que servem de alimento para a comunidade. Lutam também contra a pesca ilegal nos rios Tapajós e Arapiun, que implica na diminuição drástica da reserva de peixes, principal ingrediente de sua alimentação e indispensável no preparo da maioria das comidas tradicionais dos povos indígenas da TI.
O kariwa fazendeiro, madeireiro, minerador, avança sobre as terras indígenas com o intuito de aproveitar a fragilidade da fiscalização para ganhar dinheiro. Ribeiro (1982) já havia denunciado tal situação, afirmando que é o caráter capitalista do sistema econômico que impele a sociedade nacional contra os indígenas.
As falas abaixo evidenciam que os indígenas têm consciência de seus direitos, como ilustram os depoimentos a seguir:
Na prática, no dia a dia, é ser mais liberto, ter mais diálogo com as pessoas que convivemos. (P1);
Cidadania é a maneira pelo qual o indivíduo deve viver enquanto cidadão, exercendo seus direitos e deveres em prol de uma boa convivência (P5);
Cidadania é a participação popular nas tomadas de decisão, seja em qualquer esfera (municipal, estadual ou federal) para garantir que seus direitos e deveres sejam respeitados como verdadeiros cidadãos. (P8);
Cidadania é o indivíduo ser consciente e crítico, ou seja, que conheça seu direito para reivindicar junto ao estado e municípios, desejados para ter seus valores sobre terra, saúde, educação, à cultura, para garantir seu espaço de sobrevivência na sociedade. (P11).
Ainda no plano externo, os povos da TI Cobra Grande reivindicam junto às autoridades municipais: a contratação de professores indígenas para as escolas das aldeias, assento nos órgãos de controle municipais, maior participação dos indígenas nas decisões dos municípios em que vivem, entre outros. A fala de P8 é fruto desse olhar: “Cidadania é a participação popular nas tomadas de decisão seja em qualquer esfera municipal, estadual ou federal para garantir que seus direitos e deveres sejam respeitados como verdadeiros cidadãos”.
Categoria 2. Cidadania é relação direitos-deveres
Ao mesmo tempo em que trava todas essas lutas, o indígena da TI precisa volver o olhar para a organização interna da aldeia, para a escola, para os rituais, danças e demais manifestações da cultura. Nos depoimentos de P3, P4, P6 e P9 se denota a preocupação em que o indígena tenha clareza que também possui deveres para com a sociedade e para com a aldeia.
Cidadania é conhecer seus direitos e deveres como bom cidadão, participar do desenvolvimento do mundo e viver livre. (P3);
A cidadania é ter os mesmos direitos e deveres, assim como os outros têm. (P4);
Para viver na prática a cidadania, devemos cumprir algumas regras da sociedade na qual hoje vivemos e praticamos. (P4);
Viver a cidadania na prática é conhecer os seus direitos e respeitar os direitos dos outros. (P6);
Para vivê-la em nosso cotidiano, precisamos, em primeiro lugar, ser conscientes de nossos deveres e direitos e, como consequência, transmitir aos parentes (povo) que ainda não buscaram esses conhecimentos, para que sua vida e a vida do seu povo seja vivida de forma digna. (P9).
Para analisar os depoimentos acima, extraímos um excerto das palavras de P4: “para viver na prática a cidadania, devemos cumprir algumas regras da sociedade na qual hoje vivemos e praticamos”, representativa da ideia que a cidadania está relacionada ao binômio direito-dever em relação de interdependência.
A cidadania, nessa perspectiva, não tem sentido individual. As ações de um indivíduo, no coletivo, determinam a prática cidadã, em que o direito individual só existe à medida que cumpre o seu dever, que o “meu direito” está limitado ao direito do outro, ou como afirma Bauman (1998), da reunião moral do eu e o outro chegamos reduzidos à simples essencialidade da nossa humanidade comum.
A condição sociopolítica dos participantes justifica a preocupação com o interesse coletivo, são membros de comunidades empobrecidas, que sofrem ataques de diversas ordens e todos os dias precisam afirmar a sua condição de indígenas, principalmente quando tratar-se dos direitos previstos na Constituição Federal de 1988 e normas legais e supralegais, e essa experiência de luta, usando Bondiá (2002), passa, acontece, toca. Assim, as falas dos participantes se confundem com a luta por direitos.
Os indígenas participantes da pesquisa são alunos de um curso de formação de professores e essa condição contribui para afirmação do discurso da responsabilidade individual diante de seus parentes10. Na elaboração e execução dos projetos de intervenção já se podia ver a preocupação dos participantes com a questão das responsabilidades de cada um nos destinos de sua comunidade e como o direito de um se relaciona com o direito do outro. A questão da coletivização da cidadania levou Bauman (2001) a afirmar que:
Se o indivíduo é o pior inimigo do cidadão, e se a individualização anuncia problemas para a cidadania e para a política fundada na cidadania, é porque os cuidados e preocupações dos indivíduos enquanto indivíduos enchem o espaço público até o topo, afirmando-se como seus únicos representantes legítimos e expulsando tudo mais do discurso público. (BAUMAN, 2001, p. 46).
Como estudantes de um curso superior público e intercultural, os indígenas participantes da pesquisa se veem na obrigação de trabalhar por suas aldeias, é o que se abstrai das falas abaixo:
Vivenciando a cidadania na prática é cumprir seus direitos como cidadão brasileiro sem discriminação da raça e cor. (P3);
A cidadania é também a vivencia de uma boa família na sociedade. (P4);
A cidadania é o uso dos direitos, com o cumprimento dos seus deveres como gente na sociedade. (P9);
O dever de repassar, a prática de cidadania, dos deveres e direitos, das lideranças, da família. (P10);
Vivermos na prática, como forma de contribuição da escola para o fortalecimento a cultura tradicional, trazendo o conhecimento e saberes dos anciãos para a prática na sala de aula. (P11);
Cidadania é o esclarecimento e a razão de boas convivências na sociedade. É também participar e ter outros conhecimentos. Para conviver essa cidadania devemos ter acesso a outras culturas, mas vendo de que formas podemos estar nos beneficiando, buscando sempre o melhor para estar mostrando para as nossas crianças no local onde vivemos diariamente. (P13);
Cidadania é todo conhecimento que damos e vivemos na prática. (P14).
Nas falas se evidencia a preocupação dos participantes com sua própria existência como indígena, mas essa preocupação não se reduz ao eu11, se amplia para um projeto de sociedade indígena, que inclui, desde a organização escolar e as associações internas, as preocupações com sua cultura e com as interferências do modo de vida do kariwa, até a participação dos indígenas nas decisões da aldeia. Nas falas de P12 e P14 resta evidente esta preocupação:
A cidadania é onde podemos vivenciar a nossa liberdade, aquilo que gostamos de fazer, e somos livres, isso é ter cidadania, e para nós vivenciarmos de verdade uma vida plena como cidadão, é só nós cumprirmos com os nossos deveres para podermos conquistar os nossos direitos. (P12);
Ser cidadão é mostrar e levar conhecimentos que temos e vivenciar no dia a dia. (P14);
Para sermos um bom cidadão precisamos ter dialogo para com outras pessoas, é mostrar para nossas crianças que nem todas as coisas servem para elas. (P14).
Categoria 3. Cidadania é conhecer os direitos para dialogar em condições de igualdade com os demais povos indígenas e com o não indígena
As falas também se dirigem à ideia de que, para exercer a cidadania, é necessário conhecer as leis e a ciência do kariwa. Vejamos:
Cidadania é procurar adquirir mais conhecimentos sobre a sociedade e participar de todos, pelo menos uma parte, dos movimentos voltados a cidadania, como reuniões, palestras, seminários, fóruns, assembleias e conferências que estão sempre em prol da construção dos conhecimentos que levem o cidadão a exercer a sua verdadeira cidadania sem perder sua identidade. (P5);
Cidadania é ter conhecimentos dos seus direitos e deveres e fazer os seus direitos serem cumpridos pelo órgão maior. (P6);
Cidadania é proporcionar a construção da identidade e o desenvolvimento da consciência dos alunos e professores a serem cidadãos, sujeitos reconhecidos como pessoas, com seus conhecimentos próprios e científicos na sociedade. (P7);
Para vivermos a prática é indispensável que haja fundamentação de amplas referências culturais, sociais e filosóficas em nossas escolas e aldeias (P7);
Para vivenciá-la na prática é preciso que todo cidadão conheça os seus direitos garantidos dentro da lei maior do país e estar sempre em busca de novos conhecimentos que visem garantir a sua cidadania e vivencia-la. (P8).
A busca de conhecer para dialogar com mais propriedade com o kariwa se deve ao fato de que, desde o processo de ascensão do movimento indígena a partir da década de 1970, estes têm reafirmado a necessidade do empoderamento pelos indígenas dos conhecimentos da “sociedade nacional”, num processo de Educação Intercultural e Bilíngue (EIB) que garanta ao indígena o conhecimento necessário para, no plano interno, organizar seus processos de gestão e, no plano externo, lutar por seus direitos utilizando os instrumentos teórico-técnicos construídos pelo próprio kariwa. Luciano (2011), liderança do movimento indígena, afirma que os indígenas estão decididos a querer ter o domínio pleno dos dois mundos: indígena e não indígena, pois só assim poderão retomar o manejo do mundo, missão que receberam desde os tempos míticos, mas que em parte perderam ao longo do processo de dominação colonial.
A recuperação dos saberes advindos de sua cultura, combinados com o empoderamento dos saberes da cultura do kariwa, é essencial para o viver dos indígenas da TI Cobra Grande, especialmente por dois motivos: o primeiro, porque o indígena da TI se envolve com elementos da cultura do kariwa, com os quais precisa conviver criticamente, tais como a televisão, telefone celular e redes sociais. O segundo, porque muito de sua cultura foi silenciada na convivência com o modo de ser e viver do kariwa. Esta situação acontece com muitos povos, Quijano (2009), alerta que:
Em todas as sociedades em que a colonização implicou a destruição da estrutura societal, a população colonizada foi despojada de seus saberes intelectuais e dos seus meios de expressão exteriorizantes ou objetivantes. Foram reduzidos a condição de indivíduos rurais e iletrados. Nas sociedades em que a colonização não conseguiu a total destruição societal, as heranças intelectual e estética visual não puderam ser destruídas. Mas foi imposta a hegemonia da perspectiva eurocêntrica nas relações intersubjetivas com os dominados. (QUIJANO, 2009, p. 111).
Este processo de empoderamento tem sido efetivado com o apoio e a participação dos indígenas em diversos cursos superiores em diversas áreas do saber, mesmo que ainda seja em ações pontuais, pois, como afirma Brighenti (2015), em um país multicultural, a interculturalidade deve ser parte do processo educativo. Mas, mesmo essas ações pontuais, tem possibilitado aos povos indígenas terem entre seus habitantes um corpo de pessoas formadas com graduação e pós-graduação, que oferece um impulso aos seus projetos societários. O empoderamento visa romper com o julgo colonialista que se traduz em dominação cultural e material. Fleuri (2017) afirma que o diálogo intercultural crítico com os povos originários implica em desconstruir os processos e princípios coloniais e em promover a construção de modos não coloniais de ser e viver.
Considerações finais
À luz dos objetivos do estudo, destacamos que do ponto de vista metodológico, a estratégia de constituição dos dados, aplicando princípios de pesquisa participante, desenvolvendo o processo formativo, construindo projetos e os aplicando, para só depois buscar nos participantes seu entendimento sobre cidadania foi bastante frutífero, pois assim ganhamos a confiança dos grupos, tornando possível extrair destes a sua real opinião sobre o objeto em estudo.
Da análise dos projetos e das respostas dadas nas entrevistas pode-se concluir que:
a) Os participantes têm consciência que sua sobrevivência enquanto povo indígena depende de lutar por seus direitos na esfera coletiva. Os povos da TI Cobra Grande têm como característica o hibridismo cultural, muitos inclusive não mais se denominam indígenas, sua cultura é constantemente atravessada pela cultura do kariwa e, em muitos casos, há um esforço dos caciques para que participem dos rituais tradicionais dos povos.
A chegada das tecnologias de informação e comunicação do kariwa na aldeia, como televisão e celular, provocaram profundas mudanças no modo de ser e viver dos indígenas, o que reforça o discurso de fazendeiros e madeireiros, que tentam entrar ilegalmente na TI, sob a alegação que as terras não são dos indígenas porque estes “não são mais índios”.
A luta pelo direito coletivo é que tem levado os povos da TI a se organizarem em associações locais, regionais, estaduais e nacionais, pois isto lhes garante reforço nas lutas, bem como apoio jurídico e político às suas reivindicações.
b) Os participantes associam que os seus direitos correspondem aos deveres de cuidar da escola, da família, da cultura, de participar das decisões da comunidade, enfim, é um conceito de direito que extrapola o eu individual e se relaciona ao eu coletivo, a responsabilidade do individuo com toda a comunidade.
Considerando que um dos objetivos da República Federativa do Brasil é construir uma sociedade livre, justa e solidária, os indígenas pesquisados propiciam um dizer à cidadania que muito se aproxima desse princípio, ao não reivindicar direitos sem antes cumprirem seus deveres como cidadãos.
c) Os indígenas avaliam que o ato de conhecer reforçará a luta pelo direito. O Referencial Curricular Nacional para as escolas indígenas (BRASIL, Ministério da Educação, 1998) indica que o acesso do indígena à educação escolar e aos níveis mais elevados do saber permite que se projetem relações igualitárias entre os povos indígenas, a sociedade civil e o Estado e é nessa perspectiva que o movimento indígena tem reivindicado a assunção de uma educação escolar diferenciada, intercultural e bilíngue. Diferenciada porque deve respeitar o jeito de ser e viver de cada povo, sendo sua manifestação de vontade. Intercultural porque deve relacionar no currículo escolar os saberes da sociedade nacional aos saberes tradicionais dos povos indígenas, o que produziria nestes um empoderamento dos conhecimentos científicos sem perder a perspectiva de sua cultura e bilíngue, porque deve compreender o uso da língua materna como elemento identitário de cada povo.
As falas seguiram por uma trilha de unidade no que diz respeito à luta pelos direitos, que deve se dar em diversas esferas. Os resultados nos mostraram que os indígenas da TI Cobra Grande são resilientes, buscam afirmar sua identidade mesmo sofrendo toda sorte de ataques à sua cultura e usam sua organização e conhecimentos para consolidar direitos. Eis a expressão de sua cidadania, lutar pelo que é seu, sua terra, sua cultura e sua gente.