Introdução
Nos últimos anos, a formação inicial do professor de matemática tem sido objeto de discussão tanto das esferas governamentais quanto das Sociedades Brasileiras de Educação Matemática e de Matemática, por consequência, se ainda não temos um modelo de formação inicial isento de críticas, então pelo menos avançamos nas discussões envolvendo, por exemplo: a) o excesso de matemática acadêmica sem a devida articulação com a matemática escolar que será praticada, em sala de aula, pelo futuro professor; b) a aproximação das tendências teórico-metodológicas da educação matemática com a organização curricular dos cursos de licenciatura.
Dois pontos que, do nosso ponto de vista, merecem maior atenção, nas discussões e nos debates sobre a formação inicial do professor de matemática, dizem respeito às distintas e variadas dimensões que interferem no processo de ensino e aprendizagem da disciplina escolar matemática; e às diferentes teorias do currículo.
A nossa primeira filiação teórica a respeito das teorias do currículo foi a classificação dada por Tomas Tadeu da Silva (2000 , 2007 ) às diferentes teorias curriculares – tradicional, crítica e pós-crítica – que partiu da noção de discurso para construir e classificá-las, isto é, como o currículo tem sido definido, caracterizado, em diferentes épocas e em diferentes teorias, e quais são as perguntas que essas teorias ou discursos curriculares procuram responder.
As diferentes teorias do currículo buscam respostas e argumentos para discutirem e justificarem os conhecimentos que devem ser ensinados para que os sujeitos sejam modelados de acordo com o pensamento ideológico dominante da época, ou conheçam e governem a si mesmos e à sociedade em que vivem ( SILVA, 2000 , 2007 ).
Ainda sobre os sentidos discursivos produzidos a respeito das teorias do currículo, a questão envolvendo as relações de poder contribui para a separação-distinção das teorias tradicionais – que desejam ser neutras, científicas e desinteressadas –, das críticas e pós-críticas do currículo – que negam a neutralidade-científica-desinteressada das teorias tradicionais, afirmando que, inevitavelmente, as teorias estão envolvidas em (por) relações de poder. A distinção entre as teorias também é percebida pelos diferentes conceitos empregados por cada uma delas. Inicialmente, o deslocamento da ênfase dos conceitos didáticos-pedagógicos dos processos de ensino-aprendizagem para os conceitos de ideologia-hegemonia-resistência-poder provocou a ruptura com a teoria tradicional-teoria crítica; quando se visibilizou os conceitos de discurso-governança-desconfiança e borrou-se, principalmente, os conceitos de ideologia-hegemonia-resistência, as teorias pós-críticas do currículo recontextualizaram a maneira de perceber-conceber o currículo ( SILVA, 2000 , 2007 ).
No tempo-presente incorporamos Pinar (2007) aos nossos interlocutores e rasuramos a expressão teorias de currículo. Em seu lugar a expressão estudos curriculares produz outros registros discursivos ampliando a compreensão da centralidade desse campo para pensar educação-currículo-disciplina-conhecimento-saber adjetivadas pela escola. É uma prática discursiva interdisciplinar da experiência educativa ( PINAR, 2007 ).
A teoria do currículo é um campo de estudo distinto, com uma história única, um presente complexo, um futuro incerto. Discerníveis neste campo singular são as influências de disciplinas das áreas das humanidades e das artes e, em menor grau, das ciências sociais (principalmente a teoria social). ( PINAR, 2007 , p. 18).
De acordo com Pinar (2007) , a estrutura interdisciplinar do campo do currículo influenciada, sobremaneira, pelas humanidades e artes, proporciona às teorias de currículo distinta especialização na ampla área educacional.
Como campo interdisciplinar distinto [...], os Estudos Curriculares podem ser a única disciplina acadêmica dentro do campo mais alargado da educação. [...]. Somente a teoria do currículo tem a sua origem e deve a sua lealdade à disciplina e à experiência da educação. ( PINAR, 2007 , p. 18 - 19).
Neste sentido, segundo Pinar (2007) , a teoria do currículo é a crítica ao processo educacional contemporâneo e às suas reformas.
De facto, a “experiência educacional” parece precisamente aquilo que os políticos não querem, quando insistem em realçar as notas dos testes, os “rendimentos brutos”. Ao relacionarem o currículo com o comportamento dos alunos nos exames padronizados, os políticos passaram, de facto, a controlar o que tem de ser ensinado: o currículo. Os currículos orientados para os exames despromovem os professores de acadêmicos e intelectuais a técnicos ao serviço do Estado. A cultura da autorreflexão, da erudição interdisciplinar e da intelectualidade desaparece. Racionalizada como “prestação de contas”, a socialização política substitui a educação. ( PINAR, 2007 , p. 19).
O fenômeno das avaliações externas parece ser universal e a sua naturalização tende a se concretizar. Cada vez mais essas avaliações tornam-se elementos do cotidiano das nossas salas de aulas e a impressão que se tem é a de que pouca ou quase nenhuma reflexão “crítica” sobre elas são realizadas nos interiores das escolas. Professores e alunos passam a ser apenas reféns delas.
Concordamos com Pinar (2007 , p. 19) sobre o fato de que o tempo presente é “um pesadelo para os professores das escolas públicas”.
A escola tornou-se uma fábrica (ou empresa) de competência e de conhecimento; o professorado é reduzido ao estatuto de supervisor. Enquanto nas escolas, todos os dias, milhões vivem o pesadelo, muito poucos parecem perceber que estão a dormir. ( PINAR, 2007 , p. 19).
A partir das considerações feitas, justifica-se a necessidade de visibilizar, aos professores que ensinarão matemática, que a neutralidade do conhecimento científico, em particular do conhecimento matemático e a excessiva preocupação com a dimensão normativa do currículo precisam ser ressignificadas, revisitadas e reconceitualizadas. “Como ensinar isso ou aquilo?” ainda é uma pergunta comum em momentos de formações de professores, principalmente, continuadas. Perguntas do tipo “O que almejamos ao ensinar isso ou aquilo?”, “Por que estes conteúdos e não outros?” raramente surgem quando de cursos de formação de professores (sejam eles na fase inicial ou continuada). Todavia, comentários, muitas vezes feitos por professores que ocupam determinados cargos nas Secretarias de Educação (SEs), “ah, os professores não querem cursos teóricos”, “o professor precisa conhecer mais matemática”, são mais comuns do que se possa imaginar.
Na contramão de tais discursos, a professora doutora Célia Maria Carolino Pires, numa entrevista concedida a Britis (2017) , no final do ano de 2016, considerou que:
[…] nos descuidamos da formação teórica do professor. Às vezes, pensávamos assim, “o professor não precisa saber teoria, ele não precisa conhecer a pesquisa que deu origem a esse tipo de trabalho com a Álgebra ou com a Geometria, ele só precisa ser o reprodutor”. Esse foi o grande equívoco da formação!
O professor precisa ter conhecimentos teóricos, não aquela teoria que ele não sabe o que fazer com ela, mas uma teoria que dialogue com a prática dele, que explique que o aluno tem esse ou aquele tipo de dificuldade, indicando o que os professores podem fazer para favorecer a aprendizagem e, consequentemente, para torná-la significativa. O embasamento teórico melhora a prática docente.[…].
Mas, como sempre, falta discussão teórica na Universidade e nos cursos de Licenciatura, nos próprios mestrados e doutorados. A falta de discussão nos deixa vulneráveis e, às vezes, superficiais nos debates sobre as questões educacionais. (PIRES, 2017 apud BRITIS, 2017 , p. 110 e 111).
Concordamos com a professora Célia M. C. Pires (2017 apudBRITIS, 2017 ) e acrescentamos que a ausência de discussões ou de uma disciplina que discuta teorias de currículo deixa ainda mais vulneráveis os professores, neste caso, de matemática da educação básica. Mais naturalizados ficam os discursos sobre as avaliações externas e a excessiva preocupação com a dimensão normativa do currículo de matemática.
Para reforçar e delinear um pouco mais o cenário que estamos construindo está o fato de que outras dimensões, envolvendo a organização curricular da matemática escolar, são desnaturalizadas e muitas vezes tratadas como alegoria nas aulas de matemática. O que se espera do professor de matemática é que ele apenas ensine e discuta conteúdos associados à transposição didática da matemática acadêmica e nada além disso. Tal comentário (muitas vezes discursados de maneira não tão academicizada assim) reflete uma visão oblíqua sobre o papel do professor de matemática. Discussões associadas às dimensões social, cultural, política são, simplesmente, silenciadas a partir disso.
Os estudos curriculares também se debruçam sobre a questão do poder, pois quando se seleciona e privilegia certo tipo de conhecimento em detrimento de outro, bem como ao se destacar uma determinada identidade ou subjetividade, se exercita o poder.
Acreditamos que seja, justamente, a questão do poder que permitirá estabelecer importante e necessária aproximação com as diferentes dimensões que atuam no processo de ensino e aprendizagem da disciplina escolar matemática, pois ao colocar a ênfase na dimensão formativa, poder-se-á inculcar, na mente daqueles que estão em processo de formação, que o conhecimento matemático escolarizado é neutro, logo não se articula com as relações de poder presentes na sociedade contemporânea.
Consideramos que, ao privilegiar a dimensão formativa dos processos de ensino e aprendizagem da matemática institucionalizada pela educação escolar, contribui-se para que o saber matemático continue sendo visto como descontextualizado, despersonificado e despersonalizado. Ao privilegiar tal dimensão há, naturalmente, o silenciamento das dimensões que evidenciam o conhecimento matemático como uma prática social, carregada de significados, portanto, uma prática de significação discursiva.
Pensando no currículo escolar a partir de Pinar (2007 , p. 290), ele será “o que as gerações mais velhas escolhem dizer às gerações mais novas. Qualquer que seja a disciplina escolar, o currículo é histórico, político, racial, genderizado, fenomenológico, autobiográfico, estético, teológico e institucional”, ou seja, o currículo é uma conversa complicada.
Em vez de usar o conhecimento escolar para complicar a compreensão de nós mesmos e da sociedade em que vivemos, os professores são forçados a “instruir” os alunos a imitarem as conversações dos outros (isto é, os autores de manuais), assegurando que imensas salas de aula estão cheias de formas de ventriloquismo, em vez de exploração intelectual, admiração e temor (HUEBNER, 1999 apudPINAR, 2007 , p. 290).
A citação acima permite refletir e questionar o quanto se tem contribuído para a compreensão dos professores em formação a respeito do entendimento de que o currículo não é uma lista de conteúdos matemáticos, muito menos simbolizado pela dimensão normativa. O currículo como uma conversa complicada está muito distante do cotidiano da vida escolar e (ousamos afirmar) de muitas salas de cursos de formação (inicial ou continuada) dos professores, neste caso, dos professores que ensinam matemática.
Por isso, acreditamos ser importante a discussão sobre os estudos curriculares em disciplinas de graduação (licenciaturas e pedagogia, por exemplo), bem como de mestrados, doutorados e cursos de especialização. Possivelmente, apenas assim será possível potencializar a conversação complexa acerca do currículo e apresentar caminhos plausíveis para se responder perguntas como as formuladas por Pinar (2007) .
Por que não são os professores autorizados, encorajados, mesmo, a mostrar aos alunos que o conhecimento acadêmico não é auto-suficiente, que frequentemente, interage em relação e de volta à vida como os seres humanos vivem? Por que não é o currículo escolar uma provocação para os alunos reflectirem sobre ela e pensarem criticamente sobre eles mesmos e o mundo que vão herdar? ( PINAR, 2007 , p. 291).
Objetivos, hipóteses e questões norteadoras
A proposta de aproximar os estudos curriculares, a formação de professores que ensinam matemática e os saberes escolares, mais especificamente, o saber escolar matemático nos é cara, pois aceitamos que o conhecimento e aprofundamento das diferentes teorias do currículo, pelos professores, pode contribuir para que o docente perceba e entenda o papel desempenhado por ele e pelo saber escolar matemático, independentemente, da época. Neste sentido, o presente artigo teve como objetivo investigar quais são os sentidos, atribuídos por um grupo de professores de matemática da educação básica a respeito: i) dos saberes escolares, das disciplinas escolares, das escolas e da educação; ii) do que é ser professor de matemática da educação básica no Brasil; iii) do papel desempenhado pela matemática escolar na formação dos estudantes na sociedade contemporânea.
Para tanto, trabalhamos com duas hipóteses, quais sejam: 1) o professor, particularmente, de matemática, conhece pouco sobre quais são e o que dizem as teorias do currículo. Ponderamos que o professor conheça apenas a dimensão normativa do currículo, ou melhor, que considere o currículo um plano de formação constituído por objetivo, conteúdo a ser ensinado, metodologia e avaliação; 2) o mito da neutralidade, tanto da educação quanto das disciplinas escolares, ainda sobrevive nas mentes docentes da educação básica.
A partir do nosso objetivo e das nossas hipóteses, construímos as seguintes questões norteadoras: 1. Quais são as crenças e concepções dos professores de matemática, da educação básica, a respeito da educação, da escola e do saber matemático? 2. O que é ser professor de matemática da educação básica no Brasil? 3. Qual é o papel desempenhado pela disciplina escolar matemática na formação dos estudantes na sociedade contemporânea?
O percurso metodológico do estudo
Para a consecução do objetivo proposto realizamos uma pesquisa de campo junto aos professores em exercício da rede pública do estado de São Paulo, por meio de uma parceria com a Escola de Formação e Aperfeiçoamento dos Professores - “Paulo Renato Costa Souza” (EFAP) da Secretaria Estadual de Educação (SEESP). O questionário foi disponibilizado aos professores, pela EFAP, no endereço https://goo.gl/forms/SoBbsmeE0ise9xv2 e respondido por 192 professores (1% da população de professores de matemática da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo), no período de 23/8/2017 a 23/11/2017 4 .
O questionário composto de 28 perguntas (abertas e fechadas), sendo 12 em escala de Likert, 2 abertas, 8 métricas e 6 categóricas (2 nominais e 4 ordinárias), foi dividido em quatro partes – Parte 1: Concepções docentes (Q1 a Q12); Parte 2: Sobre o ser professor (Q13 e Q14); Parte 3: Caracterização do perfil docente (Q15 a Q21); e Parte 4: O trabalho docente (Q22 a Q28).
Metodologia de análise estatística
As análises estatísticas foram realizadas com o auxílio do software estatístico SPSS (IBM SPSS Statistics v.19). Da análise estatística realizada, neste artigo, nos debruçaremos sobre os resultados associados à análise descritiva das questões em variáveis Likert, Ordinal e Métrica. A análise descritiva permitiu, principalmente, para as questões Likert, mediante a análise dos parâmetros de posição, dispersão e forma das suas distribuições de frequência, verificar o comportamento global de respostas para as questões.
A análise descritiva
A caracterização do perfil docente dos participantes da pesquisa
A caracterização do perfil docente está associada à Parte 3 do questionário. A questão 15 refere-se à idade; a 16 ao gênero; a 17 à Diretoria de Ensino; e as questões 18, 19, 20 e 21 à formação acadêmica. Neste sentido, a idade média dos professores participantes foi de 44,9 anos, com um desvio-padrão de 8,9 anos. Em relação ao gênero, 50% se declarou do gênero feminino, 48,4% do gênero masculino e 1,6% de outro gênero. No que diz respeito à Diretoria de Ensino, 19,3% são da Grande São Paulo, 54,2% do Interior, 2,6% do Litoral e 24% do município de São Paulo. Por fim, as questões associadas à formação acadêmica indicaram que 50,5% possuem apenas graduação, 41,7% especialização, 5,7% mestrado, 1,6% doutorado e 0,5% não respondeu.
O trabalho docente
O trabalho docente está associado à Parte 4 do questionário. As questões 22 e 23, associadas à carga horária de trabalho semanal dos docentes, indicaram que a carga horária média semanal é de 36 horas, com um desvio padrão de 14 horas. Em relação ao tempo de magistério dos docentes, nos diferentes níveis de ensino, os professores participantes da pesquisa possuem maior experiência nos ensinos fundamental e médio, e menor experiência na Educação de Jovens e Adultos (EJA) e no Ensino Superior.
A análise nos permitiu concluir que em relação ao gênero há equilíbrio entre masculino e feminino, bem como entre a formação acadêmica, ou seja, o percentual de professores graduados está bem próximo do percentual de professores que possui pós-graduação. Por fim, em relação ao trabalho docente, há pouca diferença entre a distribuição de carga horária envolvendo os ensinos fundamental e médio. Os professores possuem pouca experiência com a EJA e com o Ensino Superior.
Análise das questões em escala de Likert
Concepções docentes: o saber escolar
As questões em escala de Likert foram construídas a partir de cinco pontos, sendo: 1 (Concordo plenamente); 2 (Concordo); 3 (Não concordo, nem discordo); 4 (Discordo) e 5 (Discordo plenamente), ou seja, para cada uma das questões (Q1 a Q12) apresentava-se a assertiva e, na sequência, os cinco descritores.
A parte 1 refere-se às concepções docentes acerca dos saberes escolares, da escola, da educação e das disciplinas escolares. Inicialmente, faremos uma análise descritiva das questões Q1, Q2 e Q3 que estão associadas aos saberes escolares e que foram construídas a partir das ideias de um conjunto de teóricos ( CHEVALLARD, 1991 ; CHERVEL, 1990 ; VALENTE, 2003 ; PRESTE, 1996 ), conforme apresentado no Quadro 1 .
Fonte: Elaborado pelos autores (2019).
A Tabela 1 apresenta a análise descritiva das questões associadas aos saberes escolares (SAE).
Amostra | Média | Erro Padrão da Média | Mediana | Moda | Desvio Padrão | Variância | |
---|---|---|---|---|---|---|---|
SAE_Q1 | 192 | 3,12 | 0,086 | 3 | 4 | 1,189 | 1,415 |
SAE_Q2 | 192 | 2,95 | 0,086 | 3 | 2 | 1,186 | 1,406 |
SAE_Q3 | 192 | 3,01 | 0,088 | 3 | 4 | 1,219 | 1,487 |
Fonte: Elaborada pelos autores (2019).
A análise indicou que os professores participantes da pesquisa não concordam, nem discordam com as assertivas associadas aos saberes escolares, ou seja, o respondente não concorda, nem discorda que o saber escolar é a transposição didática de um saber de referência, muito menos um saber produzido na escola e para a escola. Da mesma forma, ao responder que não concorda, nem discorda, o professor, sujeito da pesquisa, não se posiciona a respeito de como ele compreende os saberes institucionalizados pela matemática escolar.
Concepções docentes: as disciplinas escolares, as escolas e a educação escolar
As assertivas das questões (Q4 a Q12) foram construídas a partir das teorias tradicionais (Q4, Q7 e Q10), críticas (Q5, Q8 e Q11) e pós-críticas (Q6, Q9 e Q12).
Análise descritiva das questões (Q4 a Q12)
Os Quadros 2 , 3 e 4 apresentam as respectivas assertivas associadas às disciplinas, escolares (DIE), às escolas (ESC) e à educação (EDE).
Fonte: Elaborado pelos autores (2019).
Fonte: Elaborado pelos autores (2019).
Fonte: Elaborado pelos autores (2019).
A Tabela 2 apresenta a estatística descritiva das questões associadas às concepções dos professores a respeito das disciplinas escolares, das escolas e da educação escolar.
DIE_ Q4 | DIE_ Q5 | DIE_ Q6 | ESC_ Q7 | ESC_ Q8 | ESC_ Q9 | EDE_ Q10 | EDE_ Q11 | EDE_ Q12 | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Amostra | 192 | 192 | 192 | 192 | 192 | 192 | 192 | 192 | 192 |
Média | 2,46 | 2,93 | 2,85 | 3,22 | 2,15 | 2,22 | 2,24 | 2,81 | 3,31 |
Erro Padrão da Média | 0,067 | 0,080 | 0,078 | 0,086 | 0,060 | 0,060 | 0,062 | 0,073 | 0,078 |
Mediana | 2 | 3 | 3 | 3 | 2 | 2 | 2 | 3 | 4 |
Moda | 2 | 4 | 2 | 4 | 2 | 2 | 2 | 2 | 4 |
Desvio Padrão | 0,932 | 1,107 | 1,080 | 1,196 | 0,833 | 0,836 | 0,859 | 1,018 | 1,076 |
Variância | 0,868 | 1,226 | 1,166 | 1,431 | 0,694 | 0,698 | 0,738 | 1,036 | 1,158 |
Fonte: Elaborada pelos autores (2019).
A Tabela 2 nos indicou, a grosso modo, que em relação às disciplinas escolares, os professores concordam com o fato de que as disciplinas escolares transmitem a herança cultural, auxiliam nas metas propostas à educação, servem para o amadurecimento cognitivo do aluno, suas finalidades apresentam fortemente objetivos per se , e possuem caráter de neutralidade. No que diz respeito às escolas, os professores concordam que a escola não é uma instituição neutra pois: i) embora elas sirvam, de fato, aos interesses de muitos indivíduos, elas também atuam empiricamente como agentes poderosos na reprodução social e cultural; ii) é por meio dela que o Estado educa e sanciona os conhecimentos os quais devem ser aprendidos pelos estudantes, para que estes possam ter uma visão de si e do mundo. Por fim, em relação à educação escolar, os professores concordam com o fato de que a educação escolar deve fornecer a inteligência e aspirações necessárias ao desenvolvimento, promovendo a estabilidade e consistência dos resultados. A educação deve enveredar por um caminho certo, não por si própria, mas pelo progresso social.
A análise das questões abertas (Q13 e Q14)
Em relação à análise das questões abertas (Q13 e Q14) do questionário respondido pelos professores, cabe destacar que não nos filiamos a nenhuma metodologia de análise, contudo o processo de análise foi constituído a partir da identificação das palavras-chaves que apareceram com maior frequência e, neste sentido, a unidade de registro utilizada foi o tema.
Questão 13- O que é ser professor, em especial de matemática, da educação básica no Brasil?
Após algumas leituras das respostas realizamos uma primeira categorização, conforme apresentado na Tabela 3 . Considerando-se que os temas apresentados na Tabela 3 possuíam semelhanças por grupos, construímos uma segunda categorização, conforme a Tabela 4 .
Tema | Percentual |
---|---|
Agente transformador/preparar para a cidadania | 13,1% |
Desafiador | 11,5% |
Mediador do processo de ensino-aprendizagem | 11% |
Tarefa árdua e difícil | 8,1% |
Batalhador, herói | 7,7% |
Transmissor de conhecimentos | 7,5% |
Frustrante e sofrido | 6,5% |
Ter muito preparo e capacidade | 5,5% |
Educador | 4,6% |
Construir competências e desenvolver habilidades (raciocínio) | 4,6% |
Persistente, sonhador e otimista | 4% |
Ter muita responsabilidade e comprometimento | 3,6% |
Artista, intérprete | 3,1% |
Vocação, dom | 2% |
Outras respostas | 7,2% |
TOTAL | 100% |
Fonte: Elaborada pelos autores (2019).
Categorias | Percentual |
---|---|
Ofício/Vocação | 23,3% |
Transição | 27,1% |
Profissionalização | 42,4% |
Outras respostas | 7,2% |
TOTAL | 100% |
Fonte: Elaborada pelos autores (2019).
A análise da questão (Q13) nos revelou, do ponto de vista dos professores entrevistados, que ser professor de matemática, da educação básica, ainda é percebido, para 23,3% dos entrevistados, “[...] como um ofício/vocação, pois é frustrante e muitas vezes sofrido. É preciso ser persistente, sonhador, otimista, mas também batalhador e herói”. A categoria transição revela que 27,1% dos participantes da pesquisa percebem o ser professor de matemática mais do que um ofício, contudo, ainda não avaliam o trabalho docente como profissionalização, pois para eles o ser professor de matemática é desafiador, tarefa árdua-difícil, é ser um transmissor de conhecimentos. Por fim, 42,4% dos professores entrevistados posicionam o trabalho docente na categoria profissionalização, pois o ser professor de matemática precisa ter responsabilidade e comprometimento, preparo e capacidade, mediar o processo de ensino-aprendizagem, ser agente de transformação social e preparar para a cidadania, ser um educador, bem como construir competências e desenvolver habilidades.
Questão 14- Qual é o papel desempenhado pela disciplina escolar matemática na formação dos estudantes na sociedade contemporânea?
Diferentemente da questão anterior (Q13), em que as categorias foram construídas a posteriori, nesta questão, decidimos construí-las a priori e inspiradas em pesquisas produzidas por Godoy (2010 , 2015 ) e Godoy e Santos (2012) . As categorias, inicialmente, construídas foram: interação entre conhecimentos (matemático e cotidiano); objetivo ( per se e não per se ); finalidade (propedêutica, para o trabalho e cidadania); e outras.
A categoria interação entre conhecimentos tinha como objetivo investigar se o professor, sujeito da pesquisa, explicitava a relação entre o conhecimento matemático escolarizado e os saberes não escolarizados. Contudo, tal explicitação apareceu em uma única resposta, ou seja, mesmo quando o participante declarava que o papel desempenhado pela matemática escolar tinha finalidade para a vida cotidiana, por exemplo, do aluno, ele não mencionava outro conhecimento que não o próprio conhecimento matemático escolarizado.
A categoria objetivo tinha como intenção analisar se para o professor, sujeito da pesquisa, considerava que a matemática escolar tinha ‘um fim em si mesma ( per se )’ ou se era ‘um meio (não per se )’ para se alcançar outros objetivos. Nesta categoria, 27% dos entrevistados consideram que o papel da matemática escolar possui um fim em si mesmo, enquanto que 73% consideram que ela, a matemática escolar, é um meio (ferramenta) para se alçar outros voos. Neste caso, algumas respostas indicaram que o conhecimento matemático era um meio para se construir competências e desenvolver habilidades, conforme mencionado nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio – PCNEM ( BRASIL, 1999 ).
A categoria finalidade, por meio dos temas ‘vida cotidiana’, ‘aplicação prática’, ‘propedêutica’, ‘mercador de trabalho’ e ‘cidadania’ foi construída para dar mais subsídios à categoria objetivo. Em 100% das respostas associadas à categoria objetivo ‘ per se ’ a finalidade se relacionou ao prosseguimento dos estudos (finalidade ‘propedêutica’), contudo, a finalidade ‘propedêutica’ também apareceu na categoria objetivo, ‘não per se ’, conforme mostra a Tabela 5 . Os temas utilizados para a construção da categoria finalidade são expressões comumente encontradas nos documentos oficiais curriculares (Propostas Curriculares, Parâmetros Curriculares Nacionais, entre outros).
Tema | Percentual |
---|---|
Vida Cotidiana | 31% |
Aplicação Prática | 22,5% |
Propedêutica | 9% |
Mercado de trabalho | 13% |
Cidadania | 24,5% |
TOTAL | 100% |
Fonte: Elaborada pelos autores (2019).
Para os professores participantes da pesquisa, o conhecimento matemático, por si só (uma vez que na categoria interação entre conhecimentos 99,9% não fez menção alguma a outros conhecimentos que não o matemático) é capaz de preparar para a vida cotidiana e para o exercício da cidadania.
Por fim, em relação à categoria outras, que representou 18% do total das respostas dadas, os temas associados foram: ‘importante/fundamental’, ‘Desinteressante, Obsoleto e Inútil (DOI5 )’, ‘conhecimento libertador’ e ‘não se aplica’, e estão organizados na Tabela 6 .
Tema | Percentual |
---|---|
Importante/Fundamental | 31,5% |
DOI | 29% |
Conhecimento Libertador | 8% |
Não se aplica | 31,5% |
TOTAL | 100% |
Fonte: Elaborada pelos autores (2019).
Cabe destacar que o tema “não se aplica” foi utilizado para respostas em branco ou respostas que não tinham relação alguma com a pergunta. Apesar de representar apenas 5% do total de respostas dadas pelos professores entrevistados, ter a disciplina escolar matemática um papel desinteressante, obsoleto e inútil na formação dos estudantes na sociedade contemporânea é algo que deve nos preocupar, principalmente, se pensarmos nos alunos que estão sendo formados por estes professores que consideram o papel da matemática escolar DOI.
Algumas considerações finais
Nas considerações finais, a partir das análises realizadas, retomaremos os nossos objetivos, hipóteses e questões norteadoras com a intenção não de apresentar respostas fechadas, definitivas, mas sim de apontar caminhos que possam contribuir para o alargamento do debate envolvendo a formação (inicial ou continuada) do professor de matemática, as teorias de currículo e o saber matemático escolarizado.
Para tanto, destacaremos alguns resultados encontrados nas análises das questões associadas aos saberes escolares, às disciplinas escolares, às escolas, à educação escolar, ao ser professor de matemática e ao papel desempenhado pela matemática escolar.
Em relação aos saberes docentes
A análise das questões associadas aos saberes escolares indicou que os professores colaboradores (participantes da pesquisa), não concordam, nem discordam que o saber escolar é a transposição didática de um saber de referência, muito menos um saber produzido na escola e para a escola. Da mesma forma, ao responder que não concordam, nem discordam, os professores colaboradores não se posicionaram a respeito de como eles compreendem os saberes institucionalizados pela matemática escolar. Neste sentido, se torna tangível considerar que o professor de matemática, durante a sua formação (inicial e/ou continuada), raramente, discutiu sobre a história e a didática das disciplinas escolares, contudo, caberia, numa outra etapa, entrevistar os professores para se ter mais elementos a respeito de suas percepções e entendimentos sobre os saberes matemáticos escolarizados.
Em relação às disciplinas escolares, às escolas e à educação escolar
A análise das questões associadas às disciplinas escolares indicou que os professores entrevistados concordam com o fato de que as disciplinas escolares transmitem a herança cultural, auxiliam nas metas propostas à educação, servem para o amadurecimento cognitivo do aluno, suas finalidades apresentam fortemente objetivos per se , e possuem caráter de neutralidade.
Já a análise das questões associadas às escolas indicou que os professores entrevistados concordam que a escola não é uma instituição neutra pois: i) embora elas sirvam, de fato, aos interesses de muitos indivíduos, elas também atuam empiricamente como agentes poderosos na reprodução social e cultural”; e ii) é por meio dela que o Estado educa e sanciona os conhecimentos os quais devem ser aprendidos pelos estudantes, para que estes possam ter uma visão de si e do mundo.
Por fim, a análise das questões associadas à educação escolar mostrou que os professores entrevistados concordam com o fato de que a educação escolar deve fornecer a inteligência e aspirações necessárias ao desenvolvimento, promovendo a estabilidade e consistência dos resultados. A educação deve enveredar por um caminho certo, não por si própria, mas pelo progresso social.
Em síntese, a percepção-entendimento dos professores colaboradores em relação à disciplina escolar se aproxima das teorias tradicionais do currículo; em relação à escola das teorias críticas e pós-críticas do currículo; e em relação à educação escolar das teorias tradicionais do campo do currículo.
Os estudos curriculares oportunizam conhecer como as disciplinas escolares, a escola e educação escolar são compreendidas nos diferentes espaços-tempos, logo o que podemos perceber é que pouco se tem discutido sobre a temática dos estudos curriculares nos espaços de formação (inicial e continuada) dos professores de matemática. Dentre os elementos que corroboram isso, temos que os professores colaboradores concordam com o fato de que as disciplinas escolares são neutras, mas as escolas não. As escolas são apenas instituições que promovem a educação escolarizada que, independentemente, da teoria do currículo, considera a disciplina escolar central ( GODOY, 2015 ).
Outro ponto a ser destacado e que corrobora a primeira das hipóteses deste artigo, qual seja, de que o professor, particularmente de matemática, conhece pouco sobre quais são e o que dizem as teorias do currículo, diz respeito ao fato de que, os professores participantes da pesquisa, concordam que as escolas são agentes poderosos na reprodução social e cultural enquanto a educação escolar age pelo progresso social.
Há um longo caminho a ser explorado acerca dos saberes docentes associados tanto ao campo do currículo como às dimensões que interferem na organização curricular da matemática escolar, objeto de nossa investigação, contudo, conjecturamos que os professores, particularmente de matemática, estão muito presos à dimensão normativa do currículo, priorizando sempre o que ensinar, como ensinar e como avaliar, sem se preocuparem com outras dimensões e componentes (cultural, social, política etc.) que interferem diretamente na organização curricular da matemática escolar.
Em relação ao ser professor de matemática
A percepção-entendimento dos professores colaboradores acerca do que é ser professor, em especial de matemática, da educação básica no Brasil, ainda indica que o trabalho docente é visto como ofício/vocação por 23% dos entrevistados, contudo, mais de 69% dos professores entrevistados consideraram que o trabalho docente não é mais um ofício/vocação. Tal constatação pode contribuir para que os professores dos tempos presente e futuro percebam a real necessidade de investir na sua formação, objetivando formar sujeitos que possam governar a si mesmos, que participem da construção de uma sociedade que possa incluir ao invés de excluir, e que respeitem e não apenas tolerem as diferenças.
A formação, seja ela inicial ou continuada, do professor de matemática, do nosso ponto de vista, deveria, para além de tratar dos conteúdos matemáticos, enculturar e empoderar o professor e futuro professor, objetivando, justamente, inculcar na mente dele a importância de, ao entrar e fechar a porta da sua sala de aula de matemática, socializar os diferentes conhecimentos pulsantes das experiências dos alunos e do professor (sejam eles matemáticos ou não), com vistas a formar um indivíduo que menos se sujeita e mais se governa.
Em relação ao papel desempenhado pela matemática escolar
Por fim, em relação à análise da questão associada ao papel desempenhado pela matemática escolar na formação dos estudantes na contemporaneidade, destacaremos apenas a categoria finalidades. Para os professores colaboradores, o conhecimento matemático por si só (uma vez que na categoria interação entre conhecimentos, 99,9% não fez menção alguma a outros conhecimentos que não o matemático) é capaz de preparar para a vida cotidiana e para o exercício da cidadania. Conjecturamos, com isso, que uma parcela significativa desses professores, ao responderem o questionário, procuraram dar as respostas que o pesquisador “esperava”, contudo, tal estratégia, do nosso ponto de vista, “maquia” os dados e também indica que as relações se transferem, ou seja, em sala de aula o aluno procura dar a resposta que o professor de matemática espera; e numa pesquisa em que o professor responde perguntas, ele também procura dar as respostas que o pesquisador espera. É um círculo vicioso e que não contribui de maneira positiva para os processos de ensino e aprendizagem, muito menos para uma pesquisa. São conjecturas que, para serem refutadas ou não, precisaríamos entrevistar os professores envolvidos, contudo, mesmo assim, poucos, do nosso ponto de vista, assumiriam que procuram dar as respostas que o pesquisador espera.