Apresentação
Gisèle Sapiro é diretora de pesquisa4 e medalhista de prata5 no Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) e diretora de estudos no Centro Europeu de Sociologia e Ciência Política (EHESS) desde 2011. Defendeu sua tese em 1994 sob a orientação de Pierre Bourdieu, mobilizando o conceito de campo para compreender a história estrutural da literatura. Desde então, seus trabalhos se interessam pela sociologia de intelectuais da literatura e da tradução, analisando a circulação (no tempo e no espaço) de ideias e saberes em uma escala transnacional. Sua parceria com Bourdieu, assim como sua mais recente publicação, o Dictionnaire international Bourdieu (2020), não poderiam ficar de fora desta seção temática em homenagem aos vinte anos da partida de Bourdieu.
Com quase seiscentos verbetes, o Dictionnaire reúne quatro gerações dos melhores especialistas em Pierre Bourdieu (sociólogos, cientistas políticos, filósofos, historiadores, antropólogos, estudiosos da literatura) e renova em profundidade o estado do conhecimento sobre o sociólogo mais citado no mundo. Por meio de sua dimensão coletiva, internacional e interdisciplinar, esta obra dialoga com outros dicionários já publicados sobre o autor, inclusive no Brasil (CATANI et al., 2017), o qual, evidentemente, contou com a colaboração de Gisèle Sapiro. O objetivo dos verbetes é identificar as diferentes bases e motivações que compuseram a construção do pensamento “intelectual coletivo”, apontando seus parceiros, inimigos, interesses e trajetória física e intelectual. Esta obra mostra que os vinte anos da partida de Bourdieu permitiram o amadurecimento e aprofundamento de sua obra por pesquisadores de diferentes disciplinas em grande parte do mundo.
Contudo, essa não é a única obra recente da especialista Sapiro sobre o engajamento dos intelectuais e das relações entre literatura e política. Contando com uma abundante produção intelectual, destacamos alguns de seus livros publicados em português, espanhol e inglês: Peut-on dissocier l’oeuvre de l’auteur?, Paris, Seuil, 2020 (no prelo em português – editora Moinhos, Brasil); Los Intelectuales: profesionalización, politización, internacionalización, Córdoba, Eduvim, 2017; La Condiciones de producción y circulación des los bienes simbólicos, México, Institut Mora, 2017; Sociologia da literatura em português (Moinhos, Brasil, 2019); e The French Writers’ War 1940-1953, Duke UP, 2014.
Além disso, essa não é a primeira vez que pesquisadores(as) brasileiro(as) dão voz a Gisèle Sapiro. Em 2013, Afrânio Garcia Jr. e Eliana Pessanha publicaram uma entrevista (GARCIA JR.; PESSANHA, 2013) com a socióloga para marcar os dez anos da morte de Pierre Bourdieu. Uma década depois, o objetivo desta entrevista é colocar em perspectiva as diferentes maneiras de ler e interpretar a obra de Bourdieu, consequência das distinções de tradução e de apropriação, no Brasil e no mundo, a partir do ponto de vista de uma especialista que muito contribuiu para a difusão das ideias bourdieusianas.
Após breve apresentação de sua trajetória intelectual e das aproximações com o trabalho de Bourdieu, Gisèle Sapiro compartilha sua reflexão sobre a recepção dos saberes por meio da tradução na perspectiva da sociologia crítica. Atualmente, ela tem se interessado pela recepção do programa de pesquisa de Bourdieu nos Estados Unidos e nos traz algumas pistas desse estudo durante a entrevista.
Sua visão sobre o papel social e político dos intelectuais revela a complexidade do trabalho intelectual moderno que, apesar de resistências, se conforma com o modelo esmagador do neoliberalismo. Essa não só é uma justificativa para o abandono de temas de pesquisa (como a educação para Bourdieu), mas também para a indisponibilidade de engajamento político dos intelectuais franceses.
O Brasil ganha destaque na fala da socióloga por, diferentemente de outros países, ter recebido a obra de Pierre Bourdieu como um programa de pesquisa. Isso se deu graças a intelectuais brasileiros que se interessaram pelos trabalhos do sociólogo, importaram esses estudos para o Brasil e organizaram parcerias entre instituições de pesquisa francesas e brasileiras. Desta forma, Sapiro deixa a entender que os indivíduos agem como polinizadores ou motores da difusão e da circulação dos conhecimentos.
Quanto à contribuição da obra de Bourdieu para a educação e, mais especificamente, para a sociologia da educação, Sapiro indica a existência de um conhecimento parcial da obra do sociólogo, resultado de um processo de tradução seletivo, marcado e que possibilita diferentes interpretações. Nesse sentido, os campos disciplinares se tornam parte dos campos nacionais, e a recepção da sociologia da educação de Bourdieu passa a depender não apenas do campo acadêmico, mas também do campo nacional que o acolhe.
Em 2002, Angela Xavier de Brito (2002) indicava o nome de Gisèle Sapiro como uma das potenciais sucessoras dos trabalhos de Bourdieu, capaz de ultrapassar, aprimorar e contribuir com a obra do sociólogo. De fato, os estudos de Sapiro revelam, por um lado, a intersecção entre os campos e, por outro, a interação entre autonomia e heteronomia existente nos campos, tudo isso a partir de uma análise estrutural. Assim, os trabalhos de Gisèle Sapiro representam evidente e notável continuidade à produção de Pierre Bourdieu, mobilizando igualmente o recurso de uma “intelectual coletiva”. Ao longo desta entrevista, Sapiro cita seus trabalhos e os de outros pesquisadores que pensaram ou pensam com e sem Bourdieu, incentivando a continuação do diálogo e revelando a importância da construção de um campo disciplinar que vai além das fronteiras nacionais e que estabelece bases para uma história transnacional da sociologia.
Terminamos esta apresentação agradecendo Gisèle Sapiro pelo aceite imediato de participar desta entrevista e pela generosidade no compartilhamento de seu conhecimento. Além disso, seguindo as aprendizagens da entrevistada e de Bourdieu, sublinhamos que o encontro realizado por e-mail foi traduzido levando em consideração o contexto francês. Assim, a grande quantidade de notas neste documento tem o objetivo de evitar possíveis mal-entendidos.
Você poderia apresentar sua trajetória intelectual e as razões que a levaram a seguir o trabalho de Bourdieu, até dirigir recentemente o Dictionnaire Bourdieu publicado pela CNRS?
Eu me formei em teoria da literatura e em filosofia pela Universidade de Tel-Aviv e descobri os trabalhos de Pierre Bourdieu graças ao meu professor, Itamar Even-Zohar, que os introduzia em Israel e coordenava as traduções de alguns artigos (como “Mercado de bens simbólicos” e o capítulo 3 de Senso prático), dos quais ele me fez participar por conta da minha nacionalidade francesa. Durante meu mestrado, Even Zohar me enviou para conhecer Bourdieu, com quem ele tinha laços de amizade. Minha pesquisa era sobre a reconstrução da imagem de si – conceito de Iuri Lotman – na França a partir dos semanais político-literários; eu tinha interesse em particular sobre o papel dos escritores nessa reconstrução. Um capítulo [do mestrado] foi dedicado à construção do campo intelectual durante o período da Liberação6, o que veio a ser meu projeto de doutorado, que Bourdieu aceitou orientar. Eu então voltei para a França e me transformei em socióloga. Eu comecei também a ensinar sociologia na Université d’Evry. Eu defendi minha tese na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) em dezembro de 1994 e fui contratada em 1995 pelo (CNRS) Centre National de la Recherche Scientifique. Fui designada para o Centro de sociologia da educação e da cultura (CSEC), fundado por Bourdieu, onde estou desde então. Mas ele mudou bastante: se transformou no Centro de sociologia europeia (CSE) e fusionou com o Centro de pesquisas políticas e sociais da Sorbonne (CRPS) em 2010, eu então estive na direção por quatro anos nessa grande unidade que se transformou no Centro europeu de sociologia e de ciência política (CESSP).
Além de me inspirar na sociologia de Bourdieu em relação às minhas pesquisas empíricas sobre os campos literário, intelectual e de tradução, eu também fiz pesquisas sobre a gênese dos conceitos: escrevi um primeiro artigo sobre a gênese do conceito de habitus, texto solicitado pelos sartrianos – Bourdieu leu essa versão –, e no contexto do colóquio de homenagem que eu organizei em 2003, depois de sua morte, que resultou em dois volumes (HEILBRON; LENOIR; SAPIRO, 2004; SAPIRO, 2004). Incluí depois no meu capítulo uma entrevista que eu fiz com ele sobre esse assunto. Eu também trabalhei o conceito de autonomia que é central nos meus trabalhos (SAPIRO, 2003). Escrevi onze verbetes do Vocabulário Bourdieu (CATANI et al., 2017), e os verbetes “Pierre Bourdieu”, “Campo” e “Habitus” da International encyclopedia of social and behavioral science publicada em 2015, além de “Campo” e “Habitus” para a enciclopédia de ciências sociais do Politika7. Nós também organizamos um colóquio quando seu curso Sur l’État foi publicado, o que resultou em um número na revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales (n.°101-102, 2014)8.
Em paralelo, eu comecei uma pesquisa sobre a circulação/difusão internacional da obra de Bourdieu, em particular sobre a tradução (SAPIRO, 2012, 2013; SAPIRO; BUSTAMANTE, 2009). Além da análise quantitativa das traduções efetuadas com Mauricio Bustamante, eu trabalhei com os dossiês de imprensa e realizei entrevistas nos Estados Unidos, principalmente. Um artigo sobre a recepção de suas obras nos EUA vai ser publicado em um número especial da revista IdeAs, Revue de l’Institut des Amériques9 (esse número contará com artigos sobre o Brasil).
Então, quando o editor com quem eu trabalhava para a coleção Culture & Societé na CNRS Editions, Grégoire Kauffmann, propôs-me que coordenasse um Dictionnaire international Bourdieu, eu aceitei imediatamente: eu já tinha tido a experiência de fazer um dicionário (Le dictionnaire des intellectuels français, do qual fui membro da equipe de coordenação); eu tinha uma rede internacional e pude formar uma equipe editorial com os melhores especialistas de sua obra. Com o editor, nós concordamos desde o começo que não nos limitaríamos aos conceitos, mas que incluiríamos as instituições, as pessoas, as disciplinas, os países… O dicionário reuniu quatro gerações de pesquisadores(as) de vinte países.
Você escreveu sobre a circulação/difusão (no tempo e no espaço) de ideias e conceitos, sobre sua tradução e internacionalização. Vinte anos após a morte de Bourdieu, qual é a recepção de seu trabalho hoje? Como podemos compreender seu legado intelectual na França e no mundo?
Os trabalhos de Bourdieu foram primeiramente recebidos, desde os anos 1970, de forma fragmentada, em algumas disciplinas específicas: a sociologia da educação (o conceito de capital cultural); a antropologia (o conceito de habitus); a sociologia da cultura, que eles contribuíram na sua constituição, principalmente nos Estado Unidos. Foi apenas em um segundo momento, depois da aparição de A distinção, em inglês em 1984, que essa recepção se unificou em torno de uma teoria. Mas isto não é suficiente para torná-lo um programa de pesquisa, e só tem sido realmente um programa de pesquisa em alguns países, como no Brasil. Desde a sua morte, a sua obra atingiu o status de clássico; é o sociólogo mais citado do mundo (e o segundo pensador mais citado depois de Foucault), e sua sociologia continua sendo objeto de traduções e de apropriações parciais. Ela funciona cada vez mais como um programa de pesquisa: houve tentativas de comparação por país e de atualização dos resultados de A distinção10 e dos trabalhos sobre os campos literário, intelectual, jornalístico ou outros nos diferentes países (o mais recente sendo a China). A sociologia bourdieusiana renovou seus trabalhos sobre o colonialismo (com Julian Go e George Steinmetz) e as abordagens em relações internacionais e em sociologia das profissões. Na França, existe ainda uma hostilidade contra a sociologia da dominação: embora haja uma alta demanda por parte dos estudantes, esse legado é fortemente localizado para o CESSP, os(as) doutores(as) do laboratório têm dificuldade para encontrar uma vaga ou um cargo em sociologia. No entanto, os trabalhos de Bourdieu continuam a inspirar estudos importantes em sociologia, em ciência política, em estudos literários e em história.
De fato, o trabalho de Bourdieu fornece ferramentas para pensar e construir objetos que não têm equivalentes, uma vez que essa teoria foi construída através de questionamentos que tinham uma base empírica, assim como um quadro multidisciplinar de referência, alimentado por uma vasta cultura filosófica, antropológica, sociológica e histórica. É impressionante observar quantos de seus conceitos, como o de habitus e capital simbólico, nasceram de investigações sobre sociedades pré-capitalistas na Argélia e Bearn. Além disso, já no Travail et travailleurs en Algérie, publicado em 1963 – acaba de ser republicado em francês – foi realizada uma reflexão sobre a situação da investigação num contexto colonial, e uma utilização cruzada de métodos qualitativos e quantitativos, o que permitiu considerar o que ainda não era chamado de interseccionalidade, em particular ao analisar o trabalho das mulheres argelinas (SAPIRO, 2021). É por isso que, apesar das tentativas de desqualificar a sociologia crítica, tanto pelos professores quanto pelo governo, essa abordagem continua a ganhar novos seguidores, como observei tanto entre meus alunos na França quanto entre aqueles que encontro no exterior.
Bourdieu (2002) fala de “importação-exportação intelectual”; ele menciona que as leituras de textos estrangeiros podem gerar mal-entendidos, pois suas interpretações acontecem fora do contexto da produção do conhecimento (a seleção dos textos traduzidos, o capital simbólico do autor, a editora etc.) e sem necessariamente levar em consideração as lutas que estruturam o campo de recepção.
O que a tradução e a internacionalização de conceitos como “distinção” e “reprodução” fazem à sociologia bourdieusiana? Podemos falar das sociologias bourdieusianas no plural, de acordo com as traduções e os contextos nacionais, ou existe uma forma de continuidade internacional, uma homologia estrutural entre os campos intelectuais internacionais, particularmente no campo da pesquisa em educação?
Como Bourdieu (2002) bem mostrou no artigo programático11 sobre a circulação internacional das ideias, as ideias e as teorias circulam sem seu contexto, o que favorece os mal-entendidos. Ele explica também que as apropriações dependem dos desafios de luta próprios dos campos locais, por meio de três operações cruciais: seleção, marcação e interpretação. E, evidentemente, essa análise se aplica muito bem à circulação de sua própria obra: por exemplo, nos Estados Unidos, a primeira recepção de sua sociologia da educação nos anos 1970 foi seletiva, centrada sobre o conceito de “capital cultural”, a partir de alguns textos isolados. Entretanto, sua abordagem foi apropriada como um programa de pesquisa, em uma conjuntura de contestação do paradigma funcionalista dominante de Talcott Parsons, que prevaleceria sobre a costa Leste, e de crítica da meritocracia escolar, sobretudo pelos economistas raciais Sam Bowles e Herbert Gintis, autores de Schooling in capitalist America, publicado em 197612. A abordagem sociolinguística do britânico Basil Bernstein em Class, Codes and Control (1971) contribuía igualmente para renovar as abordagens em sociologia da educação. Bourdieu em seguida foi “traduzido” em termos quantitativos por Paul DiMaggio, como foi explicado por Annette Lareau e Elliot Weininger em um colóquio organizado em 2021 por Bertrand Geay sobre a recepção de A distinção (no prelo). Eles explicam que o conceito de reprodução foi interpretado como perpetuação, sem levar em consideração o processo de incorporação e as contradições estruturais. Isso é muito interessante, pois a teoria da prática de Bourdieu foi, em paralelo, importada na mesma época pelos teóricos (L’Esquisse d’une théorie de la pratique, publicado em inglês em 1977). O estudo dessa recepção permite reconstituir os estados anteriores dos campos. Quanto a Michel Grenfell, ele mostrou que a crítica do papel da escola para Bourdieu foi importada ao Reino Unido omitindo seu programa por uma pedagogia racional, e a crítica do papel do capitalismo cultural levou a querer eliminar o elitismo e, portanto, a referência privilegiada da cultura legítima na escola.
Ao mesmo tempo, se a noção de circulação de ideias e de pessoas permite reconstituir espaços, ou mesmo campos transnacionais (BRAHIMI; LEPERLIER; SAPIRO, 2018; SAPIRO, 2019), ela oculta um aspecto importante da dinâmica entre o nível nacional e internacional: o fato de que no campo acadêmico, assim como em outras esferas, os campos nacionais se formam pela circulação internacional de modelos organizacionais ou disciplinares. Foi o que eu desenvolvi para lançar as bases de uma história transnacional da sociologia: em inúmeros países ela se estabelece como disciplina apenas depois da criação da International Sociological Association em 1949, por iniciativa da UNESCO (SAPIRO, 2018). Isso não significa que exista uma estreita homologia estrutural entre os campos nacionais, ou então que essa homologia deva ser construída em função dos desafios locais. Por exemplo, a clivagem entre teoria e empiria nos Estados Unidos, que foi um obstáculo para a recepção de Bourdieu, não teve equivalente na França.
E a formação do cânone sociológico também passa pela circulação. Por exemplo, Durkheim foi traduzido para o Brasil em 1937 (um ano antes da tradução inglesa), numa época em que seu legado estava sendo liquidado na França, e pode-se dizer que a adesão do autor ao cânone sociológico só surgiu novamente no país com sua reimportação nos anos 1960-1970 por meio de Talcott Parsons (seu introdutor nos EUA), por um lado, e do trabalho de Victor Karaky, por outro, que editou três volumes de sua obra na coleção “Le sens commun” de Bourdieu na Éditions de Minuit. Pode-se dizer também que a segunda fase da recepção de Bourdieu, desde a segunda metade dos anos 1980 até sua morte em 2002, foi (como a da French Theory) parcialmente mediada pelos Estados Unidos, um país que se tornou dominante no espaço internacional das ciências humanas e sociais e foi capaz de impor uma agenda intelectual. Mesmo na França, sua legitimação, após sua morte, foi em parte em razão dessa consagração americana.
A sociologia da educação é central para o trabalho de Bourdieu e tem sido uma alavanca para a internacionalização de suas ideias (na Inglaterra, Argentina, Espanha, Estados Unidos, Romênia, Rússia). No entanto, Bourdieu parece ter se distanciado da sociologia da educação no final de sua carreira. Esse distanciamento foi percebido da mesma forma internacionalmente ou ele continuou sendo principalmente um sociólogo da educação? Como isto pode ser explicado?
Se Bourdieu se distanciou, é porque a sociologia da educação passou por um momento decisivo sob o efeito das políticas neoliberais na educação, que tiveram um impacto na pesquisa por meio de licitações, em particular, como mostrou Franck Poupeau (2003): a noção de eficiência substituindo o objetivo de democratização. Internacionalmente isso varia, mas nos Estados Unidos o trabalho de Annette Lareau manteve essa tradição e a reflexão sobre as desigualdades na escola devido à origem social, enquanto Rick Fantasia mostrou que as universidades da Ivy League têm um papel equivalente às grandes écoles13 da França na reprodução das hierarquias sociais. Na França, além do trabalho anterior de Poupeau, que se concentrou especialmente na dimensão espacial, há o trabalho de Anne-Catherine Wagner no ensino superior e Muriel Darmon nas classes préparatoires14 – ambas as pesquisadoras são membros do CESSP (BEN AYED; POUPEAU, 2009; WAGNER, 2015; DARMON, 2012).
Na França, existe um vínculo, que sempre foi mais ou menos controverso, entre a postura acadêmica e a postura militante15. No Brasil, ainda que a pessoa que permitiu o conhecimento da obra de Bourdieu (Sérgio Micelli) estivesse trabalhando nessa mesma questão, esse vínculo entre a postura acadêmica e a política é fraco: os cientistas têm pouca legitimidade para se expressar em debates políticos. Na sua opinião, que papel desempenha o reconhecimento social e intelectual de um autor para que ele possa ter uma voz no debate público? Como podemos pensar sobre o papel social e político dos intelectuais, especialmente em questões relacionadas à educação?
O declínio do papel tradicional do intelectual crítico está ligado à ascensão dos especialistas a partir dos anos 1950. Na França, isto levou Foucault a redefinir a tarefa do tradicional intelectual crítico, que era um intelectual “total”, intervindo em todas as frentes, limitando-a ao seu campo de especialização, o que ele chamou de “intelectual específico”. Entretanto, assim como o intelectual universal, e ao contrário do especialista, o intelectual específico coloca seu conhecimento a serviço do dominado e não do dominante, e faz um julgamento crítico e não “neutro”. Bourdieu, por sua vez, cunhou a noção de “intelectual coletivo”, que leva em conta a divisão do trabalho científico, razão pela qual fundou a associação e a editora Raisons d’agir seguindo um modelo que existe na França desde a Ligue des droits de l’homme, fundada no final do século XIX – na época do caso Dreyfus – e desenvolvida nos anos 1970 com o Groupe d’information sur les prisons, do qual Foucault participou, e o Groupe d’information et de soutien des immigrés. Entretanto, esses grupos têm um perfil mediático baixo, uma vez que os meios de comunicação são orientados para atrair uma audiência e, portanto, se concentram em celebridades.
Hoje, a figura do intelectual tradicional é reivindicada principalmente por ensaístas altamente mediatizados, que são mais o que eu chamo de moralistas conservadores e guardiões da ordem social, enquanto a perícia é assumida principalmente por economistas e advogados, inclusive no campo da educação. Entretanto, ainda existem intelectuais críticos, como Judith Butler nos Estados Unidos, e intelectuais específicos, como Thomas Piketty na França, ambos com um capital simbólico significativo. Às vezes nos mobilizamos pontualmente, especialmente durante movimentos sociais e greves, como as do ano passado sobre a reforma da previdência. Mas muitos acadêmicos estão relutantes em falar publicamente, não por falta de coragem, mas por cepticismo e preocupação com o formato midiático, o que torna difícil expressar um pensamento sem que ele seja distorcido. No entanto, na França ainda há espaços onde essa palavra pode ser expressa. Deve-se dizer também que nossas tarefas se multiplicaram, especialmente as de gestão – tanto no ensino quanto na pesquisa –, próprio do modo de governança neoliberal. Como resultado, nos falta tempo para formas específicas de engajamento que também exigem um grande investimento. Algumas pessoas, no entanto, fazem isso em torno dos migrantes, por exemplo, ou em torno do clima e da produtividade.
Em seu trabalho sobre a circulação de ideias, qual é a posição do Brasil em relação às ideias bourdieusianas? O que você quer dizer com “semicentralidade” do Brasil com relação às traduções das obras de Bourdieu (SAPIRO; BUSTAMANTE, 2009)?
As noções de centro, periferia, semicentralidade ou semiperiferia são puramente descritivas de fluxos que os diferenciam de acordo com sua intensidade; nesse contexto, o número de traduções nada diz sobre apropriações qualitativas. No Brasil, os trabalhos de Moacir Palmeira, Sergio Miceli, Sergio Leite Lopes e alguns outros foram pioneiros e diretos, porque passaram por bolsas de estudo na França e participaram de seminários de Bourdieu, como Afrânio Garcia demonstrou em sua bela nota no Dictionnaire international Bourdieu, que é muito diferente das recepções puramente livrescas e a fortiori daquelas que passam por traduções ou, pior, por comentários em segunda mão. Foi também no Brasil que o trabalho sobre a Argélia foi realmente apropriado como um programa de pesquisa por Moacir Palmeira, assim como o trabalho sobre o campo intelectual, por Sergio Miceli, que também publicou a primeira coleção de textos de Bourdieu em português em 1974. Esses e outros pesquisadores, incluindo o próprio Afrânio Garcia, que foi um mediador crucial como palestrante no EHESS, estabeleceram intercâmbios com o CSEC, convidando para o Brasil pesquisadores do Centro (como Monique de Saint-Martin e Francine Muel-Dreyfus, e depois Odile Henry e eu). Treinamos uma geração jovem de pesquisadores, como Gustavo Sora, que voltou à Argentina e desenvolveu a sociologia da publicação e tradução na América Latina (colaboramos em várias pesquisas), e continuamos a receber jovens pesquisadores brasileiros no CESSP (doutorandos e pós-doutorandos) que estão forjando vínculos conosco.
Existe intenção de traduzir o dicionário Bourdieu para o português?
Eu gostaria. Atualmente temos uma proposta em espanhol, mas seria necessário reduzir pela metade…
Há algum outro ponto que você gostaria de acrescentar que não tenha sido abordado nesta entrevista?
Gostaria de agradecer a Sérgio Miceli e Afrânio Garcia que me apresentaram ao Brasil e a sua história. Gostaria também de agradecer a Nevio Campos e Marcello Stella que estão atualmente fazendo um grande trabalho traduzindo meus artigos para o português (um volume sobre intelectuais será publicado em breve).