Introdução
E aprendi que se depende sempre/ De tanta, muita, diferente gente/ Toda pessoa sempre é as marcas/ Das lições diárias de outras tantas pessoas.
Gonzaguinha (Caminhos do coração).
Quando se pensa em metodologias de ensino-aprendizagem caracterizadas por possibilitar um papel ativo ao educando, logo se pensa na imagem desses agentes sociais como agentes diretos e efetivos da e na construção de seu próprio conhecimento. Entretanto, os educadores têm – para aplicar tais tipos de metodologias – como tarefa modelar a aplicação dessas, tendo em vista a multiplicidade de público proposta a eles, buscando fazer a inserção dos estudantes, em suas condições materiais sócio-históricas, como colaboradores engajados.
A outra parte desse desafio é tornar o processo de aprender ensinando não só ativo como significativo, a fim de trabalhar os conhecimentos prévios somados a uma perspectiva interpretativa, crítica, reflexiva e autônoma ou, mais profundamente, emancipadora. Isso para que os aprendentes saiam de uma posição de objeto passivo do processo educacional para um lugar em que possam se dispor a manejar as informações, anteriores e novas, de modo a ampliar, avaliar, atualizar, reconfigurar e continuamente significar e ressignificar o processo de ensino-aprendizagem em que estão inseridos (FERNANDES, E., 2011).
Para tanto, nesse trabalho busca-se conectar os dois polos desse desafio – de tornar a atividade em sala de aula, escolar e educacional ativa, no sentido objetivo, e significativa, no sentido social e subjetivo – com apenas uma resposta. Esta se materializa nas possibilidades que a abordagem biográfico-narrativa de vidas – perspectiva ampla do campo de pesquisas das ciências sociais – encerra. Ou seja, aqui busca-se mostrar o potencial fundante que a aplicação desse constructo epistemológico e metodológico tem a apresentar ao ensino-aprendizagem, ao considerar tanto a história pessoal do agente quanto a situação dessa no escopo geral da realidade social e no contexto das disciplinas.
A especificidade dessa abordagem aplicada ao ensino está em: (1) tornar a ativação da aprendizagem uma prática inserida na vida dos educandos e daqueles que cercam a vida educacional específica deste, distanciando-se da construção abstrata que se aplica tradicionalmente ao estudante; (2) tratar interpretativa, reflexiva e criticamente os sentidos e significados apresentados pelos textos narrativos e, também, pelos contextos experienciais e vividos pelos personagens abordados por essas narrativas da escola, sejam educandos, educadores, servidores escolares, direção, familiares etc., a fim de extrair a mobilização significativa e significante tanto do aprendizado quanto das vidas dos educandos e educadores; e, (3) realizar a assimilação entre o entendimento objetivo e material das atividades educacionais com a subjetividade significante e cognitiva dos participantes da situação educativa, constituindo uma relação de interdependência forte entre um e outro desafio, entre uma e outra tarefa e perspectiva. De modo a constituir, assim, um cenário de parceria entre professores e estudantes, entre instituição de ensino e aprendentes, que contraria a tradição passiva de ensino ao mesmo tempo que se propõe a motivar processos de autoanálise continuado e multifacetado.
Para tanto, neste artigo, primeiro, são analisados os fundamentos do que se entende por abordagem biográfico-narrativa de vidas, e o porquê esse método é trazido ao debate. Em seguida, reflete-se sobre as possibilidades de execução da tarefa e do desafio que essa abordagem pode oferecer, além de todo o escopo metodológico de aplicação dessa. Posteriormente, pretende-se discutir o papel que pode cumprir a operacionalização desta experiência metodológica. Por fim, é pensado como a abordagem biográfico-narrativa, tomada como metodologia ativa e significativa, pode se constituir em uma ecologia de saberes crítica e formuladora de emancipação (LECHNER, 2011).
A abordagem biográfico-narrativa
Por entender que a abordagem biográfico-narrativa se conjuga com uma perspectiva que visa a construção de relatos multidimensionais da vida social, coletiva e institucional por meio da dimensão individual e singular (DURHAM, 1986), acredito que as leituras que se coadunam com esta são, por um lado, a interpretativa (GEERTZ, 1978; WEBER, 2003) e, por outro, a reflexiva (ARCHER, 2011; BOURDIEU, 1989). Ademais, cabe analisar, antes de iniciar o debate da abordagem propriamente, as ideias de biografia, individualidade e experiência.
Desse modo, a biografia, segundo Burke (1997) e Miranda (2015), funciona como lugar de lembrança, educação, contemplação e desejo, mas principalmente abre possibilidades para uma reflexão que promove conjuntamente uma autoanálise. Entretanto, a biografia traz consigo as ideias de indivíduo, individualização e individualismo, que, por sua agência, tende a modelar as narrativas pela manipulação da identidade (GOFFMAN, 1988), pelo monitoramento reflexivo do eu (GIDDENS, 2002) ou pelo ato contínuo de criação do eu e do mundo da ação (WAGNER, 2010). Mas tanto biografia quanto individualidade se produzem por meio das experiências, e essas se elaboram tanto por meio da cultura (THOMPSON, 1991) quanto por meio da produção de sentidos (BONDÍA, 2002).
Assim, se para Wright Mills (1982) biografia se conjuga com a processualidade histórico-política das estruturas sociais, já que capacita “a compreender o cenário histórico mais amplo, em termos de seu significado para a vida íntima e para a carreira exterior de numerosos indivíduos” (MILLS, 1982, p. 11); para Herbet Baldus (1937), Florestan Fernandes (2007) e Darcy Ribeiro (1974) as trajetórias individuais se encadeiam nos destinos coletivos. Desse modo, as expressões abarcadas pela abordagem biográfico-narrativa se propõem a um âmbito microssociológico ou de médio alcance, enquanto se compõem por uma multiplicidade de apropriações, que se dedicam a adentrar tanto no processo de subjetivação dos regramentos estruturais quanto no duplo movimento de objetivar a subjetividade e subjetivar a objetividade. Dessa maneira, analisam-se três dessas apropriações: as histórias de vida, a (auto)biografia formativa e a noção de trajetória (DOSSE, 2009; BOURDIEU, 2011; GUSSI, 2004, 2008a, 2008b; MONTAGNER, 2007, 2009; KOFES, 2004; THÉ, 2017; THÉ; SANTOS, 2019).
A história de vida oferece uma alternativa quase experimental às ciências sociais. Uma vez que compartilha com o Outro um processo seletivo da multiplicidade de “vidas” de uma pessoa na história, captando suas interações, processos, situações, acontecimentos e ações, ultrapassando: o caráter individual e singular; a linha entre o indivíduo e o socioestrutural; e a oposição ação e estrutura, no plano das relações intersubjetivas. Ao darem significados próprios para si mesmos e para seus contextos, os narradores propõem a formulação de entendimentos sobre “como nos fazemos” e “o que fazemos aqui”, apontando a possibilidade da construção emancipatória do relato no contexto do encontro intersubjetivo, com a potência de exprimir toda uma gramática social e cultural, imiscuída da objetividade das questões sociais que o cercam. A história de vida destaca, dessa forma, o processo dialético permanente de o indivíduo constituir a e ser constituído pela sociedade. Carrega em si, portanto, tanto conotações epistemológicas quanto políticas, uma vez que o contexto institucional interage com os significados subjetivos de seus processos, visto que, como entende Becker (1994, p. 109), a história de vida “mais do que qualquer outra técnica, exceto, talvez a observação participante, pode dar um sentido à super explorada noção de processo” (BERTAUX, 2005; BORN, 2001; DEBERT, 1986; GIBBS, 2009; GUSSI, 2004; GONÇALVES, 2008; MENDES, 2004; MARTINS, 1996, 2011; RIGOTTO, 1999; RIVAS FLORES, 2011; VELHO, 1989).
Já a (auto)biografia formativa se apresenta como uma apropriação interessada em compreender a processualidade da construção pessoal e a valorização da experiência vivida contada. Entende, desse modo, os narradores como “autores”, capazes de pensar a ascendência dos contextos à sua volta sobre suas interioridades e discernindo conscientemente a divisão tênue entre passado e presente. Promove, portanto, não só a palavra dos narradores, como também a voz desses, denotando um processo de circulação simbólica e conotando o estímulo à dimensão sociopolítica dessa adaptação (BATISTA, 2010; GARNICA, 2010; LECHNER, 2010; BERKENBROCK-ROSITO, 2010).
A noção de trajetória pode ser sintetizada por meio das ideias de inconstância, fragmentação e sinuosidade das vidas e contextos em que elas estão inseridas. Assim, a noção amplia seus contornos a cada campo e área social em que é empregada, e a cada formulação que a tem como norte discursivo. Dessa forma, não se pretende falar da trajetória, como noção e como ideia, como algo parado, fixo ou um fato estanque no tempo, mas sob a perspectiva de como estas narrativas são reconstruídas frequentemente e adquirem novos significados (BORN, 2001; BOURDIEU, 1996; GUSSI; THÉ; PEREIRA, 2019; KOFES, 2001).
De modo geral, a abordagem biográfico-narrativa privilegia falas e ações êmicas, abrindo-se para as alteridades, as possibilidades e o reconhecimento das contradições, e observando as configurações das relações intersubjetivas sendo elas vividas ou, mesmos, vivíveis. Na busca por ultrapassar o caráter individual e singular, adentra nas oposições e conflitos entre as necessidades próprias do indivíduo e as condições socioculturais. Apresenta os movimentos de circulação simbólica e a proposição sociopolítica no interesse pelo desvendamento de assimetrias de poder e pelos processos de mudança social. Esta abordagem não só é metódica ou epistêmica, mas também ressalta a dimensão cognitiva dos agentes e resguarda uma relevante dimensão política (DEL CONT, 2004; KOFES, 2004; VINCENT, 1987).
Em uma palavra, o motivo de mobilizar essa perspectiva de metodologia de pesquisa para se constituir como metodologia de ensino-aprendizagem está relacionado a dois aspectos. O primeiro se encontra em uma lacuna observada na própria dinâmica do ensinar, os componentes do encontro intersubjetivo educacional, educadores e educandos, revelam-se superficialmente de modo que o engajamento é relativo e dado a aprofundamentos multifacetados. Já o segundo aspecto se encontra nas potencialidades socio-pedagógicas que a abordagem biográfico-narrativa encerra ao ser colocada em operação. Tais aspectos serão, de algum modo, observados a seguir.
Pensando-a como metodologia ativa e significativa
O que permanece sempre ao se abordar metodologias de ensino-aprendizagem, ainda mais sendo elas ativas e significativas, é a questão do como. Ou seja, como pôr em prática tal conjunto de noções e como transformá-las em operativas. Mas não só isso, existe um elemento importante a ser considerado: para que tenha sucesso a metodologia precisa apontar uma mudança concernente na atmosfera e no processo de trabalho no espaço educacional.
Desse modo, para que se alcance educacionalmente os objetivos multidimensionais – ensino-aprendizagem, criticidade, reflexividade, autonomia e emancipação, na dimensão (micro)política – propostos pela abordagem biográfico-narrativa nesse âmbito, faz-se necessário a observação de pelo menos um de quatro eixos de sua aplicação que indico a seguir. Antes devo ressaltar que a apropriação, a mescla, o bricole, as interpretações e reinterpretações, e as conjugações entre esses eixos estão dados e abertos ao aplicador da metodologia; em outras palavras, cabe ao centro de ensino e, em primeira e última instância, aos professores escolherem o melhor modo de operar com esta metodologia diante da realidade em que o conjunto da instituição está incluído.
Dito isso, a ideia de narrativa no escopo da educação pode ser extraída de várias formas, mas, como disse anteriormente, quatro eixos me parecem os mais promissores. São eles: (1) a formulação de diários, sejam de registro narrativo sobre as atividades realizadas sejam de cunho pessoal; (2) a busca aprofundada de histórias de vida, em que um personagem do espaço de aprendizagem é escolhido e convidado a contar sobre si; (3) a exploração de (auto)biografias formativas, que possibilita de interação e conhecimento dos caminhos formativo-educacionais (formal e informal) trilhados por todo o conjunto de participantes da vida educacional: docentes, discentes, coordenação/diretoria e servidores em âmbito geral, sem esquecer dos familiares dos estudantes; e (4) a construção de trajetórias, em que o escopo narrativo se amplia para pensar as várias formas de contar os meandros de uma vida.
No intuito de explicar cada um dos eixos de forma pormenorizada, inicia-se pelos diários. O diário é uma forma de expressar-se em toda a profundidade da subjetividade ao tempo que dá atenção aos padrões típicos do cotidiano, aos trajetos circulares durante o dia e a sua semelhança com todos os outros (FOUCAULT, 2004). No diário, segundo Lejeune (2008), a pessoa que se narra o utiliza para conservar a memória, “sobreviver”, desabafar, conhecer-se, deliberar intimamente, resistir, pensar e simplesmente escrever. A pessoa que escreve e o tempo, segundo o mesmo autor, são os pontos chave deste instrumento, uma vez que, de um lado, a “aventura do diário é muitas vezes vivida como uma viagem de exploração, ainda mais que esse conhecimento de si não é simples curiosidade, mas condiciona a continuação da viagem” (LEJEUNE, 2008, p. 263), de outro, o “diário será ao mesmo tempo arquivo e ação, ‘disco rígido’ e memória viva.” (LEJEUNE, 2008, p. 262). Por isso, ele é vestigial, mesmo sem ser “memorial”, já que é um vestígio que se realiza em
[...] quase sempre uma escritura manuscrita, pela própria pessoa, com tudo o que a grafia tem de individualizante. [...]. Às vezes, o vestígio escrito vem acompanhado de outros vestígios, flores, objetos, sinais diversos arrancados à vida cotidiana e transformados em relíquias, ou desenhos e grafismos. (LEJEUNE, 2008, p. 262).
No intuito de utilizar o diário metodologicamente deve-se entender que ele se apresenta tanto como uma narrativa pessoal com um fio condutor e, por vezes, uma finalidade quanto como uma autobiografia “interminável”. Por ser aberto sempre pode receber novas entradas, novas escritas e reinterpretações futuras. Por isso se apresenta como um elemento potente dessa metodologia (LEJEUNE, 2008).
Sua potência se dá na sua própria operatividade, que pode se realizar propondo que os educandos escrevam diários que serão lidos somente por eles mesmos ou, quando estiverem à vontade, por professores. Esses diários atuam com o propósito de que os estudantes se conheçam e se façam conhecer e, mediante esses conhecimentos e os vestígios apresentados, os educadores possam pinçar ideias que fundamentam os entendimentos e as leituras do mundo do conjunto dos aprendentes. É fundamental para proporcionar dinâmicas e acolhimento dar abertura para que os educandos verbalizem narrativas de seus diários em sala de aula, com: teor amoroso (GORZ, 2008), confessional (FREYRE, 2010), cotidiano (BAUMAN, 2012) ou de luto (BARTHES, 2011). Ao mediador dessa ferramenta metodológica cabe paciência operativa e cuidado curador, para se apropriar do que é narrado, ensejar debates saudáveis com o coletivo e retirar, em parceria com os estudantes, pontos que podem ser situados, localizados e contextualizados para o aprofundamento de questões próprias do currículo. Nesses processos os educandos podem tornar os conhecimentos disciplinares pessoais, inseridos em suas vidas e significados a partir dessa vivência de escrever-se e narrar-se, constituindo uma ativação contínua no escopo vivencial próprio.
Se na seção passada apresentei teoricamente os demais eixos, incorro, aqui, em explicar os modos de uso destes no contexto educativo. Portanto, o próximo eixo indicado são as histórias de vida. Esta é uma metodologia que se caracteriza pelo aprofundamento uma vida específica, no âmbito do ensino pode ser operada mediante a escolha de uma ou poucas pessoas – paradigmáticas para o centro educacional – convidadas a ter sua vida registrada a fundo, de modo que sua existência, suas afetividades, sua vida profissional, seus gostos e frustrações etc., estejam todos postos e expostos para a compreensão e a contextualização. A forma de fazê-lo perpassa por um conjunto de modos de registro a serem feitos nesta abordagem biográfico-narrativa, ou seja, sendo realizados em várias seções, matizando entre vários ou um único interlocutor, por vários meios (vídeo, áudio, fotos e anotações) e com diversas abordagens, todas primando pela construção de um cenário vivencial desse personagem. Para tanto, professores e estudantes em parceria devem elaborar roteiros de entrevista que sejam abertos para o improviso, criando aberturas para a emersão da idiossincrasia dessas pessoas. Isso, para, ao fim e ao cabo, refletirem não só sobre o debate entre narrar e viver, mas, sobretudo, acerca do conjunto de questões de: lugar e estratificação social; processos históricos; mobilidade socioespacial; afetividades; gêneros de registro e linguagens; e quadros de opções e escolhas disponíveis nessa travessia pessoal (BAUMAN, 2012).
No que concerne à (auto)biografia formativa, esta concorda com o eixo anterior em ferramenta, entrevista aprofundada com roteiro pré-estabelecido; enquanto vai diferir no olhar. Se na história de vida o que se quer é a experiência aprofundada de uma vida paradigmática, aqui se espera pegar um amplo panorama das maneiras de se formar e apreender os conhecimentos. Sendo assim, esse eixo se mostra aberto aos relatos próprios dos aprendentes apresentando suas vivências educacionais e a evocação de seus mestres em qualquer âmbito (família, esporte, religião, política, vizinhança e contexto educativo), mas também à pesquisa por parte do corpo discente dos caminhos formativos dos demais setores que compõem o centro educacional (coordenação, servidores em geral e o corpo docente), sem desconsiderar a participação familiar. Nesses dois caminhos não se colocam hierarquia nos saberes nem maior importância, caso determinada formação tenha transcorrido na educação formal ou informal. Portanto, encontram-se os caminhos mais recorrentes de formação e, por meio de um olhar retrospectivo e perspectivo, apresenta-se um conjunto de escolhas e possibilidades de vida. Para além disso, esse eixo enseja significações e ressignificações ao ato de aprender e ensinar e dá aos estudantes uma perspectiva ativa, engajada e crítica sobre suas próprias jornadas de aprendizagem. Ademais, propõe material tanto para pensar o lugar dado à educação no contexto sociopolítico quanto para extrair relações objetivas, subjetivas e objetivo-subjetivas com os conteúdos programáticos do currículo.
Finalmente, o quarto eixo, o de construção de trajetórias, é caracterizado por reconsiderar o olhar sobre o biográfico e entender a vida como errante, elaborando-se por meio de subidas e descidas, mudanças de rota, marches e démarches, e pelo devir, enquanto discute a linearidade do narrar a vida. Por isso, apesar de também utilizar da entrevista em profundidade com roteiro, essa se abre tanto para o vivido quanto paro o vivível e entende que a fatualidade tem tanta importância quanto a imaginação. Em sua ferramentaria se encontra a construção de redes por meio do encontro de narrativas semelhantes e com proximidades, e a possibilidade de se interconectar com a estética e a imagética para compor o quadro geral de uma trajetória. O que nos obriga a lembrar que, por aceitar o narrar fugidio, as trajetórias devem ser construídas para permitir a formulação de entendimentos e interpretações mais diretas, mas não sem o aprofundamento necessário, e permitir a expressão da inconstância que esse eixo quer captar. Dessa forma, esse eixo busca dar a possibilidade aos estudantes envolvidos em tal atividade de enxergar nos processos microscópicos da vida particular de pessoas (ou de uma pessoa) os movimentos macroscópicos da vida econômica, política e social, como ocorrem os processos de subjetivação da objetividade, objetivação da subjetividade e o diálogo entre indivíduo e sociedade, e reconstituir, assim, o significado e a materialidade a um conjunto de conteúdos que se lhes apresentam no processo de ensino-aprendizagem (BOURDIEU, 2011; ELIAS, 2001).
Como visto, a grande promessa dessa metodologia é dar importância, voz e lugar social a todos os agentes que compõem os espaços de ensino, fazendo com que os estudantes sejam protagonistas do conhecimento – desde a elaboração, escolhas e pesquisa até os processos de formulação de interpretações, debates e usos –, sem deixar de lado todo um conjunto de possibilidades de exposição dos resultados dessa implementação. E é exatamente aqui que se encontra a latência pedagógica dessa experiência metodológica, na interconexão sedimentar entre pesquisa, aprendizagem e ensino formando um continuum ensino-aprendizagem-pesquisa.
Entretanto, não é uma metodologia que tem os seus melhores frutos pelo ativismo e “inovação” de um professor solitário, mesmo podendo apresentar bons resultados ao ser aplicado em uma só disciplina. Deve-se considerar, junto a isso, que não se incorpora de uma visão de curto prazo e sim de uma implementação mais longa, precisando de uma paciência envolvida e participativa da parte dos parceiros desse empreendimento, educandos e educadores. Feitas essas considerações, fica evidente que a operacionalização de tal metodologia exige participações amplas das unidades de ensino-aprendizagem que incentivem o diálogo, a controvérsia e o debate inter, multi e transdisciplinar, uma vez que narrativas biográficas transitam por todos os campos de saber e são apresentadas nas mais diversas linguagens (grafismos, colagem, desenho, escalas numéricas e, também, por meio da palavra falada e escrita), além de revelar as subjetividades e intimidades mascaradas e sublimadas no contexto do processo de ensino, mas que o influenciam de forma fulcral.
Discutindo a proposta: potencial, atuação e resultante
Como apresentado, a abordagem biográfico-narrativa das ciências sociais, além da possibilidade de ser tomada como uma metodologia ativa e significativa, encarna em si um continuum entre o binômio ensino-aprendizagem e pesquisa científica. E nessa constatação se encontra sua primeira potencialidade tornada prática no momento de sua operacionalidade, que é a aproximação dos educandos, em qualquer nível de formação, das lógicas da cientificidade. Por outro lado, se tomarmos as caracterizações que Berbel (2011) faz das metodologias ativas e significativas, em geral e em específico, a abordagem mais que se adequa às ideias de “aprender fazendo”, de construção de conhecimento pela vivência, de ensejo ao pensamento criativo e aprendizados sociais e políticos, as aprofunda.
Isso porque, leva as práticas de pesquisar, aprender e ensinar para o pensamento diário, para as vidas, para a reflexão sobre a formação e para as trajetórias, ao mesmo tempo que dá corpo e sangue, nome e vida, às questões, sejam elas curriculares, sejam existenciais. Em uma outra camada tenciona a anima das instituições educacionais de modo a mudar o ambiente e ativar não só o corpo discente, mas também todos os saberes e vivências que fazem o ecossistema educativo funcionar. Oferece, assim, a possibilidade de vez e voz aos preteridos, bem como aos excluídos, ou seja, aos aprendentes, de um lado, e aos servidores vistos como não detentores de saberes (acadêmicos) “úteis” (pessoal de limpeza, alimentação e segurança, por exemplo), de outro. Além disso, o corpo docente pode, desse modo, revelar-se mais que por máscaras caricatas e se oferecer completamente na prática de ensino-aprendizagem.
Outro ponto relevante é que a abordagem biográfico-narrativa tem o papel de requalificar a ideia de ativação do ensino-aprendizagem: primeiro, por ampliar os agentes ativados, como dito antes, e, segundo, por ser uma crítica tácita a constructos que se apoiam em uma imagem abstrata de estudante, e faz isso ao oferecer ao aplicador da metodologia uma abertura que busca inserir todo o conjunto da comunidade educativa na experiência de narrar vidas, vivências e jornadas. Elabora-se, portanto, como uma forma de experimento micropolítico, como veremos a seguir. Por outro lado, sua potencialidade pedagógica não fica atrás, uma vez que o interesse dos estudantes tende a se ampliar e os processos de contextualização tornam os conteúdos propostos pelos currículos e calendários mais tangíveis e concretos, sem falar na complexificação dos aprendizados conjugando saberes acadêmicos, tradicionais e populares (SÁ, 2009).
Do mesmo modo, oferece a oportunidade de pensar e repensar a caracterização de significativo do aprendizado proposto por esse tipo de metodologia, uma vez que se em algumas experiências a compreensão do significado é ponto de chegada, aqui é de partida. Por um olhar interpretativo os sentidos e significados são buscados e cotejados a partir de três expressões: nas próprias narrativas, nos contextos situacionais indicados e nos agentes ativados. É mediante essa comparação que os aprendentes e educadores (ambos pensados no sentido ampliado e reflexo) têm a experiência de, confrontando-se como outros olhares e trajetórias, significar e ressignificar o aprendizado e os conteúdos, as afetividades e os pontos de vista sobre a vida, de modo a ampliar, assim, os processos cognitivos significativos e significantes (BERBEL, 2011; FERNANDES, E., 2011).
O aprofundamento encampado pela presente proposta se dá, também, pela dimensão reflexiva, uma vez que os estudantes são levados a pensarem a respeito de seus lugares no e de sua agência sobre o mundo. Assim, se de um lado ocorre uma crítica à individualização capitalista e consumista por meio do incentivo a uma individuação reflexiva, de outro há a inserção das pessoas em um contexto comum e comunitário de debate e narratividade. Nesse processo se consegue apreender que as problemáticas vivenciais não são únicas e individualizadas, mas recorrentes e espraiadas em todo o conjunto da comunidade, para não dizer da sociedade. Esta congruência ou continuidade entre indivíduo e sociedade gesta um ganho reflexivo e de compreensão contextual que oferecem ferramentas imprescindíveis para as dinâmicas do ensino-aprendizagem.
Na dimensão da criticidade, a abordagem propõe que os educandos e educadores não só sejam observadores passivos, mas que exerçam uma observação participativa e que sejam, junto a isso, elaboradores sobre a realidade. Ou seja, a abordagem biográfico-narrativa se relaciona intimamente com o que Berbel (2011, p. 29) aponta sobre os processos de problematização, uma vez que também “oferece meios para que possa desenvolver a capacidade de análise de situações com ênfase nas condições” e pode apresentar respostas fundamentalmente ligadas ao perfil social, político e econômico do conjunto da comunidade. Mas vai além, já que não petrifica os agentes abrangidos pelo escopo narrativo, os entendendo como uma categoria histórica e que, portanto, está em constante transformação no contexto multifacetado de linhas de força da sociedade. Por isso, tem como capacitação a propriedade de auxiliar na construção dos cenários complexos de interação social dos narradores levando em conta os outros indivíduos, as condicionalidades e os domínios de poder (GUSSI, 2008a).
Outro aspecto aprofundado pela abordagem biográfico-narrativa é a dimensão da promoção da autonomia. Isso porque as metodologias ativas indicam que a observação de certos preceitos – tais como nutrir os interesses pessoais do aprendente, ter paciência e racionalizar a explicação de determinados conteúdos – incentivariam a autonomia do educando. Desse modo, a abordagem mais que se propor a observar estes preceitos, os constitui como autônomos mediante uma linguagem que comporta a multiplicidade e a alteridade. Em uma palavra, mais que autonomia, o que a presente proposta conota é uma abertura para uma educação emancipadora, uma vez que comporta em si as ideias freirianas de que “ninguém se liberta sozinho” e de que “os homens se educam entre si”, transportando nessa toada a dialogicidade libertadora e conscientizadora. Isso faz com que a abordagem biográfico-narrativa concorde com a perspectiva de Freire (2018) quando diz que cabe realizar o diálogo entre as visões de mundo e compreender as situações dos participantes desse diálogo, ressaltando que o “que se pretende investigar realmente, não são os homens, [...] mas o seu pensamento-linguagem referido à realidade, os níveis de sua percepção desta realidade, a sua visão do mundo” (FREIRE, 2018, p. 121-122). Do mesmo modo, a abordagem carrega consigo as possibilidades e a potencialidade de produção de uma ecologia de saberes, já que se abre à alteridade e à escuta dos mais diversos saberes em busca de que, mediante a apreensão destes, se formule um conhecimento novo e emancipado (BERBEL, 2011; LECHNER, 2011; SANTOS, 2009).
Em suma, a abordagem biográfico-narrativa como metodologia ativa e significativa tem na parceria entre educadores e educandos e entre narradores sua característica mais evidente, deixando em segunda camada o seu papel de revelar o presente sócio-histórico, com suas contradições, reformulações e condicionalidades contextuais, enquanto motiva processos tanto de autoanálise quanto de conscientização. Efetiva, dessa maneira, o enlace sedimentar entre o desafio da prática educativa e o da prática significativa, apontando para cinco aprofundamentos que lhe asseguram, ao meu ver, o status de metodologia de ensino-aprendizagem ativa e significativa, quais sejam: abertura para múltiplos saberes; composição de recursos cognitivos significativos e significantes; paralelização entre reflexividade e contextualização; possibilidades de discussão sobre opressões, dominações e expressões do poder; e discurso de abertura emancipatória que relaciona dialogicidade e ecologia de saberes.
Considerações finais
Como discutido na seção anterior, a abordagem biográfico-narrativa tem todo o potencial para ser operacionalizada como uma metodologia ativa e significativa, porque, além de ativa, congrega interfaces interpretativa, reflexiva, crítica e promotora de emancipação. Desse modo, pode vir a auxiliar de forma multifacetada a relação de ensino-aprendizagem entre educadores e educandos, colocando ambos como agentes e formuladores dos próprios conhecimentos, sem esquecer de nesse intercurso ampliar as agências de todo o conjunto da comunidade educativa.
Assim, faz necessário lembrar que apesar de promissora, o emprego total dessa abordagem exige uma sensibilização de toda a comunidade educativa que busque levá-la a cabo. Entretanto, mesmo que pontual, pode vir a gerar bons resultados no sentido de que, refletidamente, educadores e educandos venham a se apresentar mais desarmados e mais abertos aos conhecimentos preexistentes que um e outro carregam. De algum modo auxilia, por um lado, a formulação de uma parceria mais coesa e integrada e, por outro, uma composição de conhecimentos e saberes validados pelo encontro intersubjetivo de maneira que componhõe, mesmo que no microcosmos, o referencial de uma ecologia de saberes.
Portanto, se viver e narrar a vida não diferem tanto quanto se pensa, trazer a concepção de narratividade de vidas para os processos educativos pode reformar multiformemente as instâncias do ensinar e do aprender. Ainda mais profundamente, porque amplia os espaços de ensino-aprendizagem no caminho contrário, para as vidas, uma vez que consciente e inconscientemente essas aberturas de narrar e dialogar sobre vidas permitem a outros que venham a fazer o mesmo, potencializando os resultados para uma educação emancipadora.