Notas introdutórias
As tecnologias digitais estão cada dia mais presentes no cotidiano e, de forma direta ou indireta, influenciam nossas vidas. Por conta disso, atualmente se constroem cenários nos quais os indivíduos tornam-se tão dependentes delas – citando, por exemplo, o smartphone – que podemos dizer que são extensões de seus próprios corpos ( BAIRRAL, 2018 ). Nesse sentido, fazer uso desse movimento de avanço tecnológico no ensino foi uma consequência necessária.
Todavia, essa possibilidade de inovação apresentada por esse novo contexto também trouxe preocupações de cunho pedagógico, no tocante a não serem postas de qualquer maneira ou sob uma orientação tecnocêntrica2, e sim a partir de um planejamento adequado à prática docente com possibilidades de tornar-se uma inovação pedagógica. É importante salientarmos que, “quando falamos em inovação pedagógica, nos referimos justamente a inovações que tragam melhorias e gerem valor para o processo de aprendizagem em si” ( ALMEIDA, 2017 , p. 1).
Contudo, não se pode pensar apenas na inovação através das tecnologias digitais por si só, mas também é importante contextualizar o cenário escolar e seus instrumentos utilizados cotidianamente para o ensino, intencionando pensar na possibilidade de uma interface3 de integração entre esses instrumentos e a própria tecnologia digital. Nesse esteio, conceitos tecnológicos mais recentes como a robótica, a inteligência artificial, a internet das coisas, a realidade virtual e a realidade aumentada, dentre outras, são vistas como possibilidades amadurecidas ao longo do tempo e vêm se estabelecendo como diretrizes para o século XXI.
De outro ponto, quando se trata do contexto escolar atual, temos o livro didático como um dos principais instrumentos utilizados tanto pelos alunos para o estudo quanto pelos professores para o planejamento de suas aulas. Dessa forma, pesquisar o livro didático torna-se relevante, pois é necessário compreender aspectos que sinalizem as possibilidades de inovação a partir desse material didático e, assim, trazer à luz discussões que contribuam tanto em termos de pesquisa quanto no âmbito didático.
Em relação ao percurso metodológico desta pesquisa, pautamo-nos em uma perspectiva bibliográfica e documental para o delineamento da investigação. Segundo Gil (2017) , esses dois tipos de pesquisa se assemelham, muito embora também se diferenciem por conta da natureza de suas fontes, pois, se de um lado a pesquisa documental não traz um olhar avaliativo quanto ao tratamento dos conteúdos relativos às informações que dele advém, por exemplo, em cartas pessoais, ofícios, blogs, diários etc., de outro, a pesquisa bibliográfica está pautada em material que já passou por um crivo em relação ao seu conteúdo, nesse caso podemos citar os livros com corpo editorial e os artigos científicos nos quais houve a revisão por pares. Por fim, a pesquisa apresenta abordagem qualitativa, tendo em vista que seus resultados e conclusões são considerados de forma analítica, por meio dos dados coletados.
Acerca da coleta, análise e discussão dos dados, inicialmente ponderamos sobre os modelos de multimídias digitais que já constam nos editais do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), a partir da pesquisa de Chinaglia (2017) no que tange aos editais de 2014 a 2017, como também da análise feita em nossa pesquisa sobre os editais de 2019 a 2023. Após isso, apresentamos e discutimos perspectivas diversas que apontariam possibilidades viáveis ao uso das tecnologias digitais integradas ao livro didático, sob a ótica das novas tecnologias do século XXI e da inovação pedagógica. Enfim, esse contexto apresentado está imbricado com a pergunta balizadora desta investigação: como poderíamos integrar diretamente tecnologias digitais com o livro didático de forma viável? Tal questão se estabelece a fim de alcançarmos o objetivo desta pesquisa, que é apresentar as possibilidades de uso de tecnologias digitais integradas ao livro didático.
A partir do objetivo posto, damos enfoque ao movimento hodierno que indica a inserção das tecnologias digitais nos campos da atividade humana e, nesse caso, também na educação. Tal movimento é corroborado por pesquisas como a de Chinaglia (2017) e a de Cardoso, Cabellero e Rubinho (2020), que destacam esse direcionamento no campo da educação, no Brasil, nas últimas décadas.
As possibilidades de uso de tecnologias digitais contemporâneas como interface de integração com o livro didático
Conforme Zacheu e Castro (2015) , o livro didático se originou dos manuais escolares eurocêntricos do século XIX sob influência majoritária da linha francesa. A partir de meados do século XIX, um novo olhar foi paulatinamente inserido no livro didático, conforme um movimento nacionalista, permitindo, assim, que autores brasileiros passassem a participar mais efetivamente de sua elaboração e, com isso, o conteúdo pudesse refletir aspectos do país. Segundo Michel (2020) , a partir do século XX, principalmente com a criação do Instituto Nacional do Livro em 1929, e na década seguinte, houve a implementação de diretrizes para maior controle da distribuição e do desenvolvimento do livro didático pelo Estado. De acordo com Filgueiras (2015 , p. 101), nos tempos do Regime Militar de 1964, essa política do livro didático foi expandida, e um dos seus reflexos foi “o surgimento de novas editoras que, a partir de 1985, se fortaleceriam com o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD”. Com a redemocratização, o livro didático recebeu um olhar que passou do quantitativo para o qualitativo, além disso, o orçamento destinado ao PNLD, segundo o site do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação ( FNDE, 2013 ), aumentou exponencialmente, principalmente a partir da década de 2000.
Ao visualizarmos o contexto escolar, ressaltamos que o livro didático tem relevância nos processos de ensino e aprendizagem, pois se configura como elemento presente na ação pedagógica que tem o estudante como partícipe. Essa relevância pode ser evidenciada a partir de três aspectos: valores expressivos aplicados no PNLD; a presença na casa e na escola com os alunos; e, por fim, o apoio conferido ao professor em seus planejamentos e práticas cotidianas.
Em relação aos valores expressivos aplicados no PNLD, podemos destacar o orçamento desse programa que, de 2019 a 2022, apenas para aquisição de material, segundo o FNDE (2013) , alcançou o valor total de R$ 5.485.512.338,70 (cinco bilhões, quatrocentos e oitenta e cinco milhões, quinhentos e doze mil, trezentos e trinta e oito reais e setenta centavos), valor este substancialmente relevante.
Além do dado econômico, a presença do livro didático na casa e na escola com o aluno, como é destacado por Chaves (2019 , p. 160), nos leva a compreender que o “livro ainda ocupa um papel central na escolarização de crianças e jovens”. Ademais, o livro didático está presente no cotidiano do professor, tanto para a escolha das coleções como para apoio na construção de seus planos de aula e, de certo modo, influenciando sua prática pedagógica ( VERCEZE; SILVINO, 2008 ).
Para sermos mais assertivos ao vislumbrar as possibilidades de inovação na forma como o leitor interage com o livro didático, é necessário apresentarmos os modelos de multimídias digitais indicados nos editais do PNLD para uso em seus respectivos livros didáticos. Como forma de delimitarmos um recorte temporal mais atual, utilizaremos a pesquisa de Chinaglia (2017) , que analisou as políticas públicas brasileiras para a criação e distribuição dos conteúdos digitais. A partir desse olhar, o autor selecionou como foco do estudo os objetos educacionais digitais (OEDs), que foram observados nos editais do PNLD 2014 até o PNLD 2018. Após a apresentação desse recorte, introduzimos a análise feita em nossa pesquisa sobre os editais referentes aos PNLD 2019, 2020, 2021, 2022 e 2023, a fim de historicizarmos os editais mais atuais em relação às questões tecnológicas que permeiam os referidos documentos.
A pesquisa de Chinaglia (2017) apresentou por resultado – em síntese – que, por meio do PNLD 2014, se possibilitou o uso desses OEDs em DVD, desde que fossem inéditos, tanto para o aluno quanto para o professor. Além disso, esses OEDs poderiam ser de quatro tipos: audiovisual, jogo eletrônico educativo, simulador e infográfico animado. Destacamos que os demais editais – PNLD 2015, 2016 e 2017 – seguiram os pressupostos do que era OED estabelecido no edital de 2014, como também inseriram outros tipos de objetos que antes não estavam contemplados.
Após apresentarmos a pesquisa de Chinaglia (2017) , que contemplou os editais do PNLD referentes ao período de 2014 a 2018, passaremos à nossa análise, que compreendeu os editais do PNLD 2019 ao 2023. Em relação aos editais de 2019 ( BRASIL, 2019 ) e 2020 ( BRASIL, 2020 )(FNDE, 2018), nota-se ainda que os materiais digitais continuam disponíveis apenas para o professor através do Manual do Professor. No que tange ao PNLD 2021 ( BRASIL, 2021 )(FNDE, 2019), vemos um pequeno avanço no que se refere à inserção de material digital para o estudante, receber uma coletânea de áudios, mas somente aqueles referentes à área de linguagens e suas tecnologias. O edital PNLD 2022 (BRASIL, 2022) é voltado – pela primeira vez – exclusivamente ao público da educação infantil. Dessa forma, ao observarmos o edital, não notamos uma tendência à inserção desses estudantes para o uso das tecnologias digitais, uma vez que apenas aos professores é disponibilizado o Material Digital do Professor em forma de tutorial em vídeo. Em seguida, temos o edital de 2023 ( BRASIL, 2023 ). Nesse edital, já vemos um novo avanço no que tange ao uso das multimídias pelos estudantes, pois é a primeira vez que se põe, além do livro impresso, um livro digital análogo para o aluno, como também se mantêm os tutoriais em vídeo para as obras literárias.
Enfim, percebe-se uma inconstância na implementação das políticas públicas para o uso de multimídias digitais integradas ao livro didático, pois, no decorrer dos editais do PNLD 2014 até 2017, houve uma redução na disponibilização de OEDs para o aluno, estando restritos ao professorado, e tal direcionamento se aprofundou no edital de 2018. A partir do edital do PNLD 2020, aos poucos, os alunos passaram a ter maior acesso aos materiais digitais, a depender do edital ao qual se refere. Tal pensamento é corroborado por Chinaglia (2017 , p.140) quando expressou que “é possível perceber que essas políticas são instáveis e ainda não definiram claramente quais são seus objetivos de incorporação da tecnologia na educação”.
Após traçarmos o que os editais do PNLD já indicam para uso em seus livros didáticos, investigamos possibilidades hodiernas de uso das tecnologias digitais integradas ao livro didático. Assim, quando mencionamos o termo “integrado” nesta pesquisa, referimo-nos a elementos que sejam utilizados concomitantemente com livro didático. Dessa forma, o uso de uma tecnologia digital de forma assíncrona ao livro não é o objetivo deste trabalho, pois vislumbramos seu uso síncrono. Nesse panorama, o leitor precisa, de alguma forma, portar a tecnologia digital e dela fazer uso ao mesmo tempo que manipula o livro didático.
Visando delimitar as possibilidades de uso de tecnologias contemporâneas integradas ao livro didático, trazemos dois direcionamentos:
Identificação de um aparato que o leitor do livro didático deve portar; e
Identificação de uma tecnologia digital que pode servir como instrumento de interface entre o usuário e o próprio livro didático.
Então, acerca do primeiro direcionamento, que visa à identificação do aparato portado pelo leitor do livro didático, indicamos que este aponta o smartphone, pois é o equipamento que os alunos mais utilizam para o estudo e está presente na maioria dos lares brasileiros ( CETIC.BR, 2020 ). Além disso, as tecnologias de conexão de telefonia celular de banda larga 3G estão presentes na quase totalidade dos municípios do Brasil, possibilitando seu uso, em tese ( ANATEL, 2019 ).
Assim, com o primeiro item já definido, buscamos identificar uma tecnologia digital que possa servir como instrumento para essa integração ou ponte direta de interface entre o leitor e o livro didático. Nesse sentido, Hickson (2018) nos apresenta nove tecnologias do século XXI que evidenciam os alcances possíveis e reais desse novo milênio, a saber: biotecnologia; inteligência artificial; blockchain; impressoras 3D; carros autônomos; robótica; realidade virtual; realidade aumentada; e internet das coisas. Logo, a partir das opções, organizamos no Quadro 1 as possibilidades de uso de tecnologias digitais alinhadas ao objetivo da pesquisa.
Tecnologia | Pode ser uma inovação pedagógica? | Pode ser utilizada através do smartphone? | Pode interagir com o livro didático? | Atende a todas os itens anteriores e, assim, vislumbra tornar-se uma perspectiva inovadora de interação entre o leitor e o livro didático? |
---|---|---|---|---|
Biotecnologia | Sim | Sim | Não | Não |
Inteligência artificial | Sim | Sim | Não | Não |
Blockchain | Sim | Sim | Não | Não |
Impressora 3D | Sim | Sim | Não | Não |
Carros autônomos | Sim | Não | Não | Não |
Robótica | Sim | Sim | Não | Não |
Realidade virtual | Sim | Sim | Não | Não |
Realidade aumentada | Sim | Sim | Sim | Sim |
Internet das coisas | Sim | Sim | Não | Não |
Fonte: Dados da própria pesquisa.
Podemos visualizar e destacar que apenas a realidade aumentada (RA) atendeu a todos os itens de forma positiva. A partir disso, elegemos essa tecnologia digital para nos guiar na discussão sobre as possibilidades que associem, em contexto escolar, a inovação pedagógica e a interação entre o leitor (aluno) e o livro didático.
Para conhecermos melhor a tecnologia de RA, vamos discorrer um pouco sobre ela quanto a questões como origem, conceituação e aplicação na prática, a partir da visão dos autores Souza et al . (2016), Ferreira (2014) , Tori, Kirner e Siscoutto (2006), Santin (2008) , dentre outros.
Historicamente, segundo Souza et al . (2016), a RA vem desde o início da computação gráfica, mas somente a partir da década de 1990 passa a ter mais presença no mundo científico, incentivada pela evolução dos sistemas de renderização e apresentação gráfica.
Em relação ao conceito de RA, Tori, Kirner e Siscoutto(2006) (2006) e Azuma et al . (2001) sinalizam que a RA se caracteriza por trazer elementos do mundo virtual para o mundo real. Muito embora Santin (2008 , p. 13-14) pondere que a “imersão na visualização do mundo real conjugado com objetos computacionais virtuais, depende da utilização de alguns dispositivos tecnológicos”. Nesse sentido, acerca da utilização e do funcionamento da RA na prática, Hautsch (2009) discorre didaticamente da seguinte maneira:
Como funciona? Três componentes básicos são necessários para a existência da Realidade Aumentada: 1. Objeto real com algum tipo de marca de referência, que possibilite a interpretação e criação do objeto virtual; 2. Câmera ou dispositivo capaz de transmitir a imagem do objeto real; 3. Software capaz de interpretar o sinal transmitido pela câmera ou dispositivo. O processo de formação do objeto virtual é o seguinte: 1. Coloca-se o objeto real em frente à câmera, para que ela capte a imagem e transmita ao equipamento que fará a interpretação. 2. A câmera “enxerga” o objeto e manda as imagens, em tempo real, para o software que gerará o objeto virtual. 3. O software já estará programado para retornar determinado objeto virtual, dependendo do objeto real que for mostrado à câmera. 4. O dispositivo de saída (que pode ser uma televisão, [celular] ou monitor de computador) exibe o objeto virtual em sobreposição ao real, como se ambos fossem uma coisa só. ( HAUTSCH, 2009 , p. 1).
Podemos representar esse funcionamento a partir da Figura 1 , que ilustra a utilização da RA na prática.
A RA é fortemente baseada em visualização. Para que ela seja utilizada com o dispositivo móvel, deve ser colocada entre o usuário e o objeto observado, ou seja, na direção em que o marcador está localizado, para que, dessa forma, se observe o resultado esperado. Sem adentrar no âmbito da teoria sobre tais marcadores e suas tecnologias embarcadas, destacamos que esses marcadores, mediante o uso de smartphones, podem ser simplificadamente caracterizados de três formas:
Com isso, podemos vislumbrar as perspectivas de uso da RA sob diferentes contextos, ampliando sua possibilidade de utilização prática em diversos campos da atividade humana. Nessa perspectiva, alguns exemplos de uso prático hodierno da RA são destacados por Costa (2019) e Ferreira (2014) , como o uso no campo da publicidade, da engenharia, da medicina, da educação, das mídias, da arquitetura, dentre outros.
Temos então que a RA se mostra como tecnologia digital possibilitadora da congruência entre virtual e real. E, dessa forma, passamos pelo seu surgimento, conceituação, formas de visualização e algumas de suas utilidades práticas no cenário atual. Isto posto, considerando as possibilidades de ampliação de uso da RA em uma diversidade de contextos como ferramenta de inovação tecnológica, vislumbramos a oportunidade de associar essa tecnologia digital como elemento de interação entre o leitor e o livro didático.
Alternativas possíveis de estratégias práticas a partir do uso da realidade aumentada como interface de integração com o livro didático
Por ser uma tecnologia relativamente nova, a RA se apresenta como uma tendência para uso no século XXI sob variados aspectos, incluindo o da educação ( HICKSON, 2018 ). Dessa forma, pesquisar como a RA pode ser utilizada para o ensino é relevante. E, no caso desta pesquisa, a RA como interface de integração com o livro didático mostra-se inovadora no campo da educação.
Ao observar a Figura 1 , podemos considerar estratégias que poderiam ser aplicadas no ensino por meio da RA. No que tange ao estudo em questão, a partir do qual se propõe uma perspectiva de uso integrado ao livro didático, consideramos que a utilização a partir da Figura 1a é a mais adequada. Essa percepção se dá pois, ao recorrer a uma imagem/ilustração como marcador, poderíamos fazer uso de imagens já existentes nos próprios livros didáticos e, a partir disso, empregar a RA.
As demais possibilidades de uso de marcadores de RA, que são sem marcação visível, mas ocorrem por meio de algoritmo de rastreamento ( Figura 1b ) e uso de marcadores fiduciais ( Figura 1c ), não se adequariam ao nosso propósito, uma vez que, no primeiro caso, temos marcações que vão além das imagens diminutas e mais específicas de um livro e que são configuradas com base em contextos aplicados a ambientes abertos, por geolocalização ou tipologia de superfície pré-estabelecida. Em relação à Figura 1c , centra-se em marcadores que apresentam traços que não condizem com a realidade das imagens presentes nos livros didáticos e, dessa forma, também não se adequaria ao propósito desta pesquisa, por não serem efetivamente integradas ao livro. Esse marcador até poderia ser considerado, se fosse impresso no livro didático, porém, isso não é praticado e não se vê atualmente de fato.
A partir dessa premissa, ao considerarmos os dados da Figura 1a e a sua viabilidade enquanto marcador para a interface de integração entre a RA e o livro didático, podemos vislumbrar algumas estratégias para seu uso prático. Conquanto, não devemos esquecer dos sujeitos que dela farão uso, e, nesse caso, faz-se necessário um olhar sobre o lugar do aluno e do professor no contexto de uso das ferramentas de tecnologia digital.
Nos dois casos, sendo aluno ou professor, notam-se duas vertentes complementares. De um lado, esse livro didático é distribuído para todo o público da educação básica – com destaque para o ensino fundamental e médio. De modo geral, os alunos terão idades entre 6 e 18 anos, levando-se em conta a idade-série adequada ( UNICEF, 2018 ), e a essa questão etária deve ser dada importância para se pensar em estratégias que estimulem e instiguem esses alunos. De outro lado, os professores também deverão fazer uso das tecnologias, assim as especificidades quanto à presença ou ausência de limitações para o seu uso também devem ser postas em evidência em relação a esse grupo.
Ao se observar a faixa etária dos alunos que estão na educação básica hoje, observa-se que esse grupo é composto pelos indivíduos que nasceram em meados da década de 1990, a chamada geração Z ( MCCRINDLE, 2014 ). Essa geração foi concebida rodeada de aparatos e tecnologias digitais que poderiam ser acessadas através da rede mundial de computadores por meio de notebooks, smartphones, computadores pessoais, dentre outros.
No que tange à idade dos professores, temos basicamente a geração Baby Boomer, a geração X e a geração Y. Baby Boomer abrange os nascidos entre meados da década de 1940 e meados da década de 1960 ( SANTOS, 2012 ). A geração X refere-se àqueles nascidos após a Baby Boomer até o limiar da década de 1980 ( OLIVEIRA, 2010 ). E, por fim, a geração Y ( millennial ) é composta dos que se foram concebidos após a geração X e até o ano de 2000 (VELOSO; DUTRA; NAKATA, 2016). Na questão quantitativa de professores da educação básica em atividade no Brasil, temos, em ordem decrescente, geração X, geração Y e Baby Boomer ( CARVALHO, 2018 ), e, dessa forma, consideramos que há mais professores imigrantes digitais do que nativos digitais.
Em relação ao uso de tecnologias, é perceptível que as duas primeiras gerações dos professores – a Baby Boomer e a geração X –, a priori , não seriam tão familiarizadas com o uso das tecnologias digitais, enquanto a geração Y está dentro do conceito de nativo digital concebido por Prensky (2001) , isto é, jovens que nasceram nos tempos em que a informação estava presente de forma rápida e acessível através da web. Dessa forma, ao se pensar de forma agregada acerca da idade dos alunos e dos professores, temos que as gerações Y e Z podem ser considerados nativos digitais, e a Baby Boomer e a geração X são imigrantes digitais, ou seja, nasceram na era analógica, no entanto, por necessidade, migraram posteriormente para o mundo digital ( MATTAR, 2014 ).
Essa adequação ao contexto digital é necessária para que o docente possa se ambientar aos novos tempos, em que o ensino e a tecnologia digital estão cada vez mais relacionados. Pois, para o estudante o uso da web é habitual, e isso não deve ser algo taxativamente proibido, e sim o professor deve ser mediador nessa busca por informações, por isso, conhecer e utilizar-se das tecnologias digitais é muito importante, já que um dos grandes desafios atuais é envolver os alunos nativos digitais em um ensino mais atual, flexível e dinâmico, tal qual eles são envolvidos por intermédio dos recursos tecnológicos e sua cultura característica.
Nesse cenário no qual vemos os alunos em idade escolar como um grupo de nativos digitais e o professor mais presente como um imigrante nessa seara, são apresentadas situações como a relatada por Quintanilha (2017 , p. 252), que “em atividades realizadas em sala de aula, mesmo com a oferta de livros didáticos, é extremamente comum notar que a maioria dos alunos buscam as informações necessárias por meio desses itens [os aparatos de tecnologia digital]”. Assim, é importante destacarmos que não estamos conjecturando o fim do livro, e sim que se gere e agregue valor a ele e, por consequência, ao ensino e à aprendizagem através dessa integração entre a RA e o livro didático.
Após explanarmos a relação entre os alunos e os professores mediada pela tecnologia no que tange às diferentes faixas etárias e suas apropriações dos recursos tecnológicos, passaremos a considerar algumas variáveis. Nesse direcionamento, temos que um dos motivadores para o uso, por parte dos alunos, desses instrumentos tecnológicos como o smartphone se dá por meio dos jogos de entretenimento, em virtude do prazer e da diversão que tais recursos propiciam. Os jovens nativos digitais, de modo geral, são seduzidos pelos jogos e, por vezes, ficam longos períodos empenhados nesse mundo virtual, situação que pode causar desconforto em pais/responsáveis e um possível comprometimento de suas atividades escolares ( LEMOS, 2016 ). Assim, essa conjuntura faz com que cada vez mais pesquisas se voltem para o uso dos jogos digitais associado à ação educativa. Tendo em vista essa possibilidade de unir o lúdico à aprendizagem por meio de práticas atrativas e inovadoras, esta pode se configurar como importante estratégia no processo de ensino e aprendizagem ( SAVI; ULBRICHT, 2008 ).
Porém, não se deve esquecer de alinhar a estratégia traçada ao planejamento docente, evitando uma inserção do jogo exclusivamente pelo fato de ser atrativo e divertido para os estudantes. Pois, esse jogar apenas por entretenimento pode trazer prejuízos ao aprendizado quando somente a diversão é o foco. Por outro lado, também temos o aprendizado comprometido quando unicamente o conteúdo educativo é aplicado ao jogo, sem a preocupação com a diversão do aluno. Dessa forma, deve haver um equilíbrio entre o conteúdo educativo aplicado no jogo e a diversão presente nele, a fim de majorar os benefícios advindos dessa inter-relação ( SOARES, 2013 ).
Tendo em vista os argumentos expostos, que concebem um modelo de implementação do conceito de uso da RA como interface de integração com o livro didático, é salutar aproximarmos nossa perspectiva de outros trabalhos, aos quais poderemos compará-la e diferenciá-la, visando apresentar uma contribuição para os estudos que versam acerca da utilização de tecnologias digitais para o ensino, mais precisamente da RA integrada ao livro didático.
Para isso, foram selecionados alguns trabalhos de forma a historicizar a evolução do uso da RA integrado a materiais impressos que se apresentaram mais próximos de nossa pesquisa, são eles: Kirner et al . (2006), com o livro interativo com realidade aumentada (Lira); Forte et al . (2006), com o livro didático com realidade aumentada (Lidra); Galvão e Zorzal (2012) ; Brum, Souza e Ferreira (2017); Andrade (2017) ; e Barbosa, Petsch e Batista (2020).
Em relação aos trabalhos já realizados, temos a destacar que, de forma geral, os mais antigos tendem a utilizar marcadores do tipo fiducial, o que não representa uma integração de fato com o material impresso, exceto se o marcador estiver impresso junto ao livro didático ou paradidático. De outro modo, percebe-se também que, mesmo o marcador sendo utilizado por meio da imagem presente no material impresso, a estratégia de uso da RA integrada se baseia em representações e demonstrações ou apenas permite um acesso via link direto a uma página da web na qual será apresentado um vídeo ou exercício.
Sobre esse contexto, temos claro que tais trabalhos se baseavam predominantemente em um intento unidirecional de aprendizagem, no qual o leitor é contemplador desse conteúdo. Dessa forma, em relação ao leitor, não visualizamos nas pesquisas elencadas uma ação mais ativa ou direta em relação ao que lhe é mostrado, pois ele apenas responde ao que lhe é apresentado, em um modelo de ação-resposta-ação.
Nesse sentido, avaliamos que nossa argumentação percorre, até certo ponto, um caminho análogo a algumas das pesquisas anteriores em diversos aspectos que visam à integração do RA com o livro didático, como a indicação do uso de marcadores a partir das imagens contidas no livro impresso e o uso de smartphones. Todavia, quanto à proposta de estratégias para uso nessa interface, a partir das discussões advindas dessa pesquisa, consideramos que o uso de um jogo educativo digital pelo leitor lançará outro olhar sobre o ensino e a aprendizagem, superando demonstrações, representações, exercícios prontos, vídeos ou outros links diretos que remetem a uma página da web. Levantamos tal hipótese tendo em mente que os estudantes da educação básica são nativos digitais e que os jogos, sejam eles em computadores, video games, tablets ou celulares, são um atrativo a mais e têm a habilidade de prender a atenção desse público através de um viés mais lúdico e prazeroso do aprendizado.
Logo, a partir de uma abordagem lúdica do jogo educativo digital, evidencia-se a possibilidade do protagonismo dos jovens, os quais agem mais ativamente nas ações desse recurso que precisa ser mediado pelo professor. Ou seja, a informação não deve percorrer apenas um sentindo do jogo para o leitor, e sim, por se tratar de algo inerente ao referido instrumento, o leitor também é construtor e participante ativo do seu aprendizado, através da reflexão e da criticidade que o jogo pode lhe propor. Porém é necessário deixar claro que o jogo não é o elemento cerne do aprendizado do aluno, e sim uma ferramenta de suporte e de auxílio complementar ao estudante, como também ao professor enquanto mediador.
No sentido de compilar alguns elementos identificados por intermédio das análises realizadas, trazemos alguns aspectos importantes para entrelaçarmos nossas argumentações:
O principal equipamento utilizado pelos alunos para estudo é o smartphone;
A tecnologia de conexão de telefonia móvel 3G é presente no país;
A RA mostra-se viável como interface de integração com o livro didático;
A estratégia lúdica viabilizada por um jogo educativo digital pode ser usada nesta interface.
Temos então a considerar que se utilizar da RA como interface de integração com o livro didático, a partir de uma estratégia lúdica através do jogo educativo digital em forma de aplicativo de smartphone, pode ser uma estratégia contemporânea adequada a propiciar benefícios que gerem e agreguem valor ao ensino e à aprendizagem.
Entretanto, é relevante destacarmos que, muito embora diversos fatores favoreçam a implementação do uso da RA integrada ao livro didático, como o fato de que os estudantes da educação básica estão contidos no grupo dos nativos digitais ou a cobertura da tecnologia móvel e o quantitativo de smartphones disponíveis à população do país, mesmo nas classes de menor poder aquisitivo, entendemos que essa realidade ainda não é plena nem factível em nível real. Não obstante, consideramos que não devemos relegar essa temática por conta disso, pois deve-se cobrar que os gestores públicos se empenhem para que as condições de desigualdade e exclusão tecnológica, que refletem as próprias condições sociais, sejam minimizadas na sociedade e nos contextos escolares e que seja possibilitado, assim, o acesso e a alfabetização digital aos estudantes brasileiros.
Conquanto, ponderamos que apenas o desenvolvimento do jogo relacionando RA e livro didático deixaria uma lacuna em todo o movimento, uma vez que os professores também precisam estar preparados para a usabilidade de tais ferramentas. Nesse sentido, os estudos de Brum, Souza e Ferreira (2017, p. 8-9) enfatizam a necessidade de “realização de cursos e/ou minicursos para professores que queiram aprender a usar a ferramenta e criar grupos de desenvolvedores de ambientes em RA personalizados de diferentes áreas do conhecimento”. Tais atividades formativas podem ser realizadas em formatos diversos, como palestras, rodas de conversa ou grupos focais, pois, não sendo uma temática tão próxima do professor, um grupo mais reduzido poderia trazer melhores resultados à apropriação do conteúdo, que permeia a utilização das tecnologias digitais pelos imigrantes digitais. Entendemos que há possibilidades de que esse processo formativo exista em esferas estaduais e municipais, capitaneados pelos gestores a partir de encaminhamentos do governo federal considerando que outras formações nessa perspectiva têm sido realizadas, principalmente no formato da educação à distância, conforme apontam Cardoso, Almeida e Silveira (2021).
Quanto às contribuições que o uso da RA integrada ao livro didático pode trazer ao contexto da prática pedagógica, temos a destacar dois pontos. O primeiro denota a possibilidade de dinamizar as aulas de forma mais lúdica para o estudante através de um jogo que pode ser jogado tanto na escola quanto fora dela, pois estabelece relação entre a tecnologia (smartphone) e o livro didático a partir da mediação do professor. Como segundo ponto, destacamos que essa proposta traz o aluno para o centro do seu aprendizado, enquanto o professor é um mediador nesse contexto, esse é um olhar que diverge do ensino tradicionalista, no qual o professor é o detentor do conhecimento e o aluno o seu receptáculo.
Muito embora saibamos que ainda não há estrutura ou suporte governamental implementado nesse cenário em questão, consideramos que o docente pode recorrer a alguns softwares que podem realizar essa integração, por exemplo: Aurasma, Layar e Augment. Além desses, pode também fazer uso do Vuforia, que possui integração com o Unity. Não obstante, compreendemos que o uso dessas ferramentas exige um conhecimento prévio das tecnologias de informação e, por conta disso, é uma árdua tarefa para o imigrante digital. Nesse sentido, vemos como uma saída mais rápida à apropriação dessas ferramentas a pesquisa de tutoriais e vídeos explicativos para o seu uso na internet.
Ao tratarmos do desenvolvimento desses jogos educativos digitais em RA, indicamos para aqueles que tenham interesse nesse intento, sejam eles as secretarias municipais ou estaduais de ensino enquanto órgãos do poder público, como também as próprias escolas individualmente, que realizem parcerias com universidades e institutos federais que possuam cursos vinculados à área da computação, para que estudantes dessas instituições – através de bolsas ou programas de voluntariado – participem desses projetos de uso da RA como interface de integração entre o leitor e o livro didático, pois a criação desse tipo de material (jogos digitais em perspectiva de RA) demanda conhecimentos específicos que as instituições de ensino superior e técnico já dominam.
A consecução desses projetos se daria no contexto das instituições parceiras, considerando-se a necessidade da participação de profissionais tanto do campo da computação quanto das áreas pedagógicas de diferentes disciplinas. Cardoso, Almeida e Silveira (2021, p. 109) argumentam que propostas de formação continuada de professores na perspectiva do uso de tecnologias que envolvem as instituições promovem também o “desenvolvimento de outros aspectos da vida docente, como a formação de redes de relacionamento, a construção de conhecimentos disciplinares e a aprendizagem dos alunos”.
Entendemos, com isso, que o interesse de órgãos federais responsáveis pelos editais do PNLD nessa temática poderia impulsionar e promover o uso da RA como interface de integração entre o leitor e o livro didático, tendo em vista que as instâncias responsáveis pelo PNLD detêm o poder legal, o que possibilita fomentar um diálogo maior entre o ensino e as tecnologias digitais contemporâneas no que tange às diretrizes da educação nacional.
Considerações finais
Objetivou-se apresentar as possibilidades de uso de tecnologias digitais integradas ao livro didático. Dessa forma, a relevância da temática se sustenta, principalmente, por trazer à tona o movimento hodierno que indica a inserção das tecnologias digitais nos campos da atividade humana e, nesse caso, também na educação. Logo, por meio da pesquisa, identificamos que a utilização da RA como interface de integração com o livro didático a partir de um jogo educativo digital, em forma de aplicativo de smartphone, pode ser uma estratégia contemporânea adequada à construção de situações e oportunidades agregadoras de valor ao ensino-aprendizagem.
Destacamos, também, que o smartphone é o principal equipamento utilizado pelos alunos para estudar e, por isso, pode ser um aparato viável para ações no campo da educação, muito embora se possa afastar, em um primeiro momento, tal ideia, ao se pensar nas desigualdades existentes no país, já que muitos não poderiam fazer uso apropriado por conta de seu contexto social e econômico. Nesse sentido, defendemos que o acesso ao Estado Democrático de Direito perpassa pela criação de oportunidades voltadas para a justa distribuição dos recursos advindos da ciência e tecnologia. Ademais, no que tange à inovação pedagógica, realçamos que não se trata apenas do uso de um aparato ou mesmo de uma ação individual de determinado ator no contexto escolar, mas deve partir de um planejamento adequado à prática docente.
Logo, entendemos que nossos resultados corroboram as proposições de autores da literatura científica pertinente e/ou profissionais docentes que se propõem a trazer a tecnologia digital para o contexto educacional, de modo que esta seja um suporte, um auxílio, um complemento à aprendizagem que põe o aluno como protagonista e o professor como mediador da ação educativa.