Introdução
A Organização Mundial da Saúde (OMS) reportou, em 31 de dezembro de 2019, um quadro clínico respiratório grave identificado inicialmente em Wuhan (China), cujo agente, o novo coronavírus (SARS-CoV-2), acarretava a doença Covid-19 (Zhou et al ., 2020 ). Em 30 de janeiro de 2020, o órgão declarou emergência de saúde pública de importância internacional. No Brasil, em 6 de fevereiro do mesmo ano, foi sancionada a Lei nº 13.979 (BRASIL, 2020a ) que declarou emergência sanitária e instituiu o isolamento/quarentena como forma de evitar o contágio em massa. Em 11 de março, foram identificados casos em todos os continentes, a OMS declarou a pandemia.
Isso aconteceu quando o Brasil vivia sob a égide de um governo de orientação político-ideológico que vinha sendo identificada como neofascista, posto que: deslegitimava as instituições democráticas e o Estado de direito; adotava uma cosmovisão religiosa de mundo e política de natureza higienista, moral e salvacionista; atacava a ciência e as instituições educacionais; defendia valores individualistas relacionados à meritocracia e empreendedorismo; e era desfavorável às políticas sociais (Filgueiras; Druck, 2018 ).
A partir de posturas negacionistas em relação à pandemia e à ciência, o governo federal protagonizou ações que coadunaram com movimentos anticientíficos e anti-intelectuais que contrariavam as recomendações da OMS. A principal consequência foi o aumento expressivo do número de mortes e intensificação das desigualdades sociais. Nesse cenário, como ficou a educação no período de isolamento social?
O Ministério da Educação (MEC) publicou, em 17 de março, a Portaria nº 343 (BRASIL, 2020c ), autorizando, excepcionalmente, a substituição das aulas presenciais por aulas que utilizassem meios e tecnologias de informação e comunicação (TICs), no sistema federal de ensino. As “aulas não presenciais” passaram a ser adotadas em todos os níveis de ensino. O Parecer CNE/CP nº 5 (BRASIL, 2020b ), homologado em 29 de maio, tratou da “reorganização do calendário escolar e da possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual” (BRASIL, 2020b , p. 1). Ressalva-se que o ensino remoto adotado não é sinônimo da modalidade de educação a distância (EaD), prevista na Lei nº 9.394 – Lei de Diretrizes e Bases – LDB (BRASIL, 1996 ) e regulamentada pelo Decreto nº 9.057 (BRASIL, 2017 ).
No que tange às críticas à EaD e ao uso das TICs na educação, pesquisas demonstram: sua interferência nas relações entre alunas(os) e professoras(es), desconsideração da complexidade da relação pedagógica, prejuízos na qualidade do ensino, violação do direito à educação e intensificação da exclusão (Patto, 2013 ); mercantilização do ensino (Santos, 2019 ); desafios encontrados por professoras(es) no uso das TICs e precarização do trabalho delas(es) (Cabral; Lima; Albert, 2019 ; Lopes; Fürkotter, 2016 ; Zaidan; Galvão, 2020 ); déficit e/ou inviabilização do acompanhamento das atividades remotas (Oliveira, 2020 ).
A despeito do ensino remoto ter sido uma estratégia para a continuidade das atividades escolares em boa parte da pandemia, há carência de discussões acadêmicas sobre sua efetividade, ainda mais quando o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) identifica que existem 4,8 milhões de crianças e adolescentes (9 a 17 anos) brasileiras(os) sem acesso à internet – 17% da população dessa faixa etária (Tokarnia, 2020 ). Também uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019 ) revelou que 98,6% das(os) brasileiras(os) acessam a internet pelo celular.
Diante dessa realidade e da diversidade de experiências do sistema educacional, somos convocados à produção de conhecimento que dimensione os efeitos da pandemia sobre as práticas pedagógicas num país marcado por violências e iniquidades. Nessa esteira, a psicologia escolar crítica (Patto, 1984 , 1990 ) fornece elementos para pensarmos as dificuldades e desigualdades engendradas pelo ensino remoto, pois inclui fatores institucionais, sociais e as relações intersubjetivas em suas análises. Pelo materialismo histórico, “uma concepção ou teoria é crítica à medida que transforma o imediato em mediato; nega as aparências ideológicas; apreende a totalidade do concreto em suas múltiplas determinações e compreende a sociedade como um movimento de vir-a-ser” (Meira, 2003 , p. 17).
Como uma das suas fontes, a psicologia sócio-histórica e/ou histórico-cultural postula que a relação entre o ser humano e a sociedade é de mediação recíproca, “[…] o que significa que os fenômenos psicológicos só podem ser devidamente compreendidos em seu caráter fundamentalmente histórico e social” (Meira, 2003 , p. 19), isto é, a relação sujeito/sociedade é raciocinada dialeticamente e o sujeito consciente exerce papel ativo na transformação social. Essa teoria faz interlocução com a pedagogia histórico-crítica, cuja perspectiva dialética pensa a articulação entre educação e sociedade, reconhecendo o caráter contraditório dessa relação e a possibilidade de transformações da realidade educacional e social (Saviani, 2008 ). Ademais, as informações construídas nesta pesquisa demandaram o diálogo com outros referenciais no sentido de produzir discussões pertinentes ao fenômeno estudado.
Foi realizada uma pesquisa junto a entidades da educação e psicologia brasileiras (tomadas como instituições/organizações relevantes deste setor), investigando os posicionamentos que adotam em relação ao ensino remoto: como o definem; elogios; críticas; indicações para alunas(os), professoras(es) e suas famílias; reivindicações de melhorias; e implicações na estrutura e funcionamento das escolas (Tondin et al ., 2021 ). Nos posicionamentos, preponderam dificuldades e problematizações e, por isso, este artigo objetiva analisar as críticas destas entidades acerca do ensino remoto na Educação Básica.
Método
Este estudo constituiu-se em uma pesquisa qualitativa e documental (Gil, 2008 ). A análise documental permite a compreensão de objetos cuja análise demanda contextualização histórica e sociocultural (Figueiredo, 2007 ).
A produção de dados se deu através de busca e sistematização de fontes primárias, ou seja, documentos que não receberam nenhum tratamento científico, são públicos e disponibilizados na internet. O conceito de documento inclui escritos, filmes, vídeos, fotografias etc. (Figueiredo, 2007 ), que são construções humanas que evidenciam ações, opiniões e modos de ser.
Foram pesquisados os endereços eletrônicos de treze entidades, selecionadas por sua relevância e amplitude de características e finalidades, sendo dez da área de educação: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), Campanha Nacional pelo Direito à Educação (Campanha), Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Conselho Nacional de Educação (CNE), Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), Conviva Educação, Fórum Nacional Popular de Educação (FNPE), Ministério da Educação (MEC), Todos pela Educação e União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime); e três de psicologia: Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (Abrapee), Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (Anpepp) e Conselho Federal de Psicologia (CFP).
Na busca pelos documentos (n=86), utilizaram-se os descritores “educação a distância”, “ensino a distância”, “ensino remoto”, “educação e TIC”, especificamente “na educação básica”. A seleção recaiu sobre aqueles de autoria da própria entidade ou assinados por ela, e que foram publicados entre 11 de março de 2020 (quando foi declarada a pandemia) e 11 de maio de 2020 (quando se encerrou o levantamento). O corpus documental deste artigo inclui 34 documentos, sendo 25 escritos e nove audiovisuais, de seis entidades, todas da educação: Anped (n=7), Campanha (n=12), CNTE (n=4), FNPE (n=1), Todos pela Educação (n=6) e Undime (n=4).
Tabela 1 – Documentos agrupados por entidade
Fonte: Dados das(os) autoras(es).
O tratamento dos dados fundamentou-se na análise de conteúdo (Bardin, 2010 ) como ferramenta que possibilita a compreensão de significados a partir da criação de categorias analíticas que auxiliam a interpretação dos achados, sem se perder na heterogeneidade de seu objeto. Dos 34 documentos, foram extraídos 143 trechos (recortes), organizados em cinco categorias: infraestrutura física, instrumental e desigualdades no acesso; precarização do trabalho das(os) profissionais da educação; direito à educação; mercantilização da educação; e esvaziamento da função social da escola.
Resultados e discussão
Infraestrutura física, instrumental e desigualdades no acesso
O contexto da pandemia intensificou as desigualdades existentes no país (Santos, 2020 ). Nesta categoria, tal realidade está explicitada nas críticas acerca do acesso limitado ou inexistente à internet e demais meios tecnológicos, realidade de grande número de famílias, demarcando desigualdades socioeconômicas, raciais e culturais. À exclusão digital somam-se na vida das famílias em situação de vulnerabilidade: precariedade da infraestrutura das residências para estudos, ausência de saneamento básico e falta de alimentação. O material analisado reúne 44 trechos de 28 documentos: 1, 3, 4, 5 e 6 (Anped); 8 ao 13, 15, 16, 18 e 19 (Campanha); 24 (FNPE); 20 ao 22 (CNTE); 26 ao 30 (Todos pela Educação); e 31 ao 34 (Undime).
Estes fatores produzem sofrimento ético-político num processo de inclusão-excludente (SAWAIA, 2012 ), pois, mesmo que o ensino remoto tenha se pautado num discurso de continuidade da aprendizagem, o acesso às TICs não é igualitário e as violações de direitos contra crianças e adolescentes se intensificaram durante a pandemia.
Nesse sentido, a Campanha (15) indica: “As pessoas em maior situação de vulnerabilidade tendem a ser as mais prejudicadas e a EaD [ensino remoto] tem desafios análogos aos do fracasso escolar”. Por isso, é essencial construir movimentos críticos às medidas adotadas, afinal, se o fracasso escolar é uma produção contingenciada historicamente, isto é, atravessada por determinantes políticos, econômicos, sociais, culturais, pedagógicos etc. (Patto, 1990 ), os prejuízos ao desenvolvimento e à aprendizagem, tangíveis em todas as camadas sociais, são muito mais intensos nos setores populares.
Diante disso, a organização Todos pela Educação afirmou: “[…] há necessidade de se flexibilizar a disponibilização de internet às comunidades mais vulneráveis […] para tentar elevar o acesso de estudantes à rede e buscar reduzir potenciais efeitos na desigualdade educacional” (28). Questiona-se: o acesso à internet seria uma medida efetivamente inclusiva, visto serem múltiplos os fatores produtores das desigualdades? Sawaia ( 2012 ) alerta sobre os processos de inclusão-excludente, e, nessa perspectiva, entende-se ser esta uma medida relevante, porém paliativa, um arremedo de inclusão (que mesmo assim foi negado pelo governo federal).
A ausência ou insuficiência da mediação e do acompanhamento pedagógico das atividades não presenciais produziu efeitos prejudiciais não apenas na aprendizagem de alunas(os), mas em sua saúde mental e de suas famílias e professoras(es). É relevante mencionar também as desigualdades acentuadas entre escolas privadas e públicas: “[…] quem estuda em escola privada, quem tem acesso à internet, quem tem computador em casa pode ter aula, ensino remoto, mas quem não tem, que é uma parte grande da população brasileira, fica sem acesso ao ensino” (FNPE, 24). A Anped acrescenta: “[…] nas escolas privadas, tem tido muita tarefa. Nas escolas pobres, tem o contrário: tem uma certa renúncia” (3). Enquanto nas escolas particulares o ensino remoto produziu sobrecarga de atividades e desgaste emocional para alunas(os) e famílias; nas públicas, especialmente aquelas localizadas em contextos de vulnerabilidade social, as disparidades já existentes se intensificaram e novas formas de exclusão foram produzidas, inclusive digitais e tecnológicas.
As desigualdades de classe socioeconômica foram mais mencionadas do que as raciais. Segundo Costa ( 2020 ), o recorte de cor e raça pode indicar, no caso da saúde, os impactos da pandemia sobre a população negra, que acessa menos os sistemas sanitários e exatamente os procedimentos curativos, enquanto a população branca acessa mais os procedimentos preventivos e os tratamentos.
Os marcadores raciais também implicam a educação. O ensino remoto não considerou a heterogeneidade social, econômica e cultural da população, em especial das(os) indígenas, quilombolas, ribeirinhas(os) e pescadoras(es), agricultoras(es) familiares, acampadas(os) e assentadas(os), sendo que as desigualdades “são atravessadas pela profunda desigualdade racial” (Campanha, 10) no acesso, permanência e conclusão nas diferentes etapas do ensino. Desse modo, na pandemia, a questão “para quê e para quem a escola se direciona” é atualizada e só pode ser respondida a partir da contextualização da educação no âmbito da sociedade capitalista e de suas contingências históricas (Freire, 1967 ; Frigotto, 2000 ; Gadotti, 2006 ; Saviani, 2008 ).
Enfim, os processos produtores de desigualdades incidiram mais sobre alunas(os) negras(os) e pobres nas escolas públicas, espaços que tendem a silenciar a (re)produção de estereótipos e discriminações raciais e sociais. Patto ( 1990 ) discute que a escola legitima a lógica da meritocracia, individualizando o fracasso escolar e eximindo o sistema educacional; e na pandemia não foi diferente. Em que condições as(os) professoras(es) enfrentaram essa atualização do fracasso escolar compreendido como processo individual das(os) estudantes?
Precarização do trabalho das(os) profissionais da educação
Nesta categoria, são apresentadas ferramentas para a efetividade do processo pedagógico que foram negligenciadas pelo Estado, contribuindo para a fragilização das políticas educacionais. São reunidos posicionamentos que evidenciam: falta de familiaridade e de capacitação das(os) professoras(es) para o uso das TICs, suas funções e ferramentas; insuficiência de instrumentos para materialização das atividades; e relações de trabalho decorrentes desses arranjos, que produzem dificuldades de adaptação profissional. Estão agrupados 26 trechos de 18 documentos que retratam aspectos do ensino remoto que precarizam o trabalho docente: 2, 3, 4 e 6 (Anped); 11 ao 15, 18, 21 e 24 (Campanha); 24 (FNPE); 20 (CNTE); 26 e 27 (Todos pela Educação); 32 e 33 (Undime).
Evidenciam-se solicitações para que professoras(es) produzissem conteúdos e materiais, improvisassem na mediação tecnológica, controlassem presenças e respondessem dúvidas das(os) alunas(os) por meio de plataformas ou redes sociais. Das diretoras(es) e supervisoras(es) foi cobrado que controlassem as(os) professoras(es). Isso causou “pressão na saúde mental” e desgaste das(os) profissionais, e prejuízos ao seu trabalho (Anped, 2), que decorreram também da “sobreposição de funções em casa” (Campanha, 11), em que as(os) trabalhadoras(es) realizavam atividades profissionais e domésticas e se ocupavam com os cuidados das(os) filhas(os) e convívio familiar. Como percebe Moronte ( 2020 ), são novas exigências sem os recursos condizentes, sendo lhes exigido que sustentassem uma performance de trabalho.
Abonízio ( 2012 ) assinala que a precarização do trabalho docente se acentuou a partir dos anos 1990 no Brasil, com a efetivação de políticas neoliberais no cômputo da reorganização do capitalismo mundial. Na atualidade, Silva ( 2019 ) indica que o alto índice de desemprego resulta em vínculos empregatícios regidos por contratos ainda mais precários. A autora utiliza o termo uberização do trabalho para referir uma forma de terceirização em que as(os) trabalhadoras(es) se subordinam às empresas sem garantias mínimas, o que também afetou as(os) professoras(es) no ensino remoto. Tal fenômeno aumentou a alienação e exploração do trabalho na medida em que foi decidido sem a participação delas(es), de forma fragmentada, em condições inadequadas (as melhorias foram providenciadas individualmente por cada profissional), resultando num trabalho sem sentido.
Segundo Moronte ( 2020 ), a uberização ocorre da seguinte maneira: as(o) empregadoras(es) controlam absolutamente o trabalho – exatamente os seus produtos – proporcionado pelas tecnologias, e, quando não se atingem os resultados esperados, todo o esforço despendido é desconsiderado e é solicitada maior dedicação das(os) trabalhadoras(es), havendo o aumento de suas tarefas e horas de trabalho. Tal processo escancara a superexploração do trabalho contemporâneo, que retira seu sentido de fonte de humanização e constitutivo do ser social, e assevera os aspectos de degradação e alienação; perde-se a dimensão da produção de coisas socialmente úteis – que satisfazem necessidades humanas – para atender estritamente às demandas do capital (Navarro; Padilha, 2007 ).
Dados da Campanha, do FNPE, da Anped, da Todos pela Educação e da Undime indicam que essa nova forma de violência estrutural se acentuou na pandemia. Muitas(os) professoras(es) não tinham formação nem instrumentos para realização do trabalho remoto, mas suas(eus) empregadoras(es) exigiram que elas(es) os providenciassem. Isso confirma a constatação de Moronte ( 2020 ): em home office, as(os) trabalhadoras(es) arcam com os custos de equipamentos, energia elétrica e internet.
Assis ( 2020 ) denuncia que o home office possa ser um legado da pandemia; frisa que as(os) defensoras(os) deste apregoam que ele representa uma oportunidade para as(os) trabalhadoras(es) se familiarizarem com o “mundo do trabalho do futuro”, que é móvel. Afinal, se as ferramentas digitais, que permitem conexão sem necessidade de presença física, são estratégias para manutenção das atividades intelectuais ou técnicas, por que não as manter no pós-pandemia? Seria o caso do trabalho docente?
Num cenário de guarida da gestão do MEC em relação aos interesses mercadológicos em torno da EaD, em que medida as(os) profissionais da educação serão atingidas(os)? Para Zaidan e Galvão ( 2020 ), o trabalho docente dificilmente retornará no pós-pandemia às condições anteriores, dada a redução de custos para as(os) patroas(ões) que as(os) trabalhadoras(es) absorveram. Apontam ainda para uma inserção insidiosa do trabalho em todos os tempos e espaços do cotidiano das(os) professoras(es) em casa, sem a garantia das(os) empregadoras(es) de estrutura para tal, problema evidenciado pela Anped: “[…] os sistemas e instituições de ensino não dispõem das condições necessárias para a materialização da EaD [ensino remoto]” (6); tampouco as(os) docentes podem ser responsabilizadas(os) ou submetidas(os) a formas improvisadas de mediação tecnológica.
Por isso, a precariedade gerada por uma implementação descuidada do ensino remoto, com argumentos do senso comum e de uma racionalidade meramente instrumental, acaba por fragilizar o trabalho pedagógico. Como isso afeta o direito à educação?
Direito à educação
Este direito perpassa pela construção de sistemas educacionais que viabilizem o acesso e a permanência de todas(os) as(os) estudantes no contexto de uma escola pública cidadã (Gadotti, 2006 ), com o uso de ferramentas pedagógicas que potencializam a reflexão crítica e científica, com vistas à emancipação humana (CFP, 2019 ).
Estão englobados 37 trechos de 19 documentos (1, 4, 5 e 6 – Anped; 8, 9, 10, 13, 17 e 19 – Campanha; 24 – FNPE; 20, 22 e 23 – CNTE; 25, 26 e 28 – Todos pela Educação; 32 e 34 – Undime) que referem a violação do direito à educação, pois o ensino remoto tende a anular o acesso, a permanência e a qualidade do processo de ensino-aprendizagem. Os dados apontam que a reorganização do calendário escolar deveria ser redimensionada somente após o período de isolamento social, priorizando a vida e a saúde e considerando este ensino como complementar (e não dia letivo).
Em situações excepcionais, a LDB possibilita a realização de atividades remotas para os níveis fundamental e médio, exceto para a educação infantil. A Anped atenta a esta etapa do ensino: “sua utilização não está prevista na legislação educacional por ser, sobretudo, inadequada” (5). A Campanha contesta a legitimidade desse tipo de ensino para toda a educação básica pela inexistência de “base legal para esse uso irrestrito da EaD”; atesta a não existência de “normas, regras e condicionalidades para que a modalidade aconteça” (13). Quanto ao ensino médio, acredita que a “EaD não é uma realidade” (19), demarcando as problemáticas sociais produtoras de desigualdades somadas às questões de (re)organização de infraestrutura capaz de garantir condições efetivas de adequação pedagógica, inclusão e apoio ao ensino-aprendizagem.
Embora ferramentas de minimização dos prejuízos ocasionados pela pandemia, as TICs deveriam ser pensadas cautelosamente, afinal, podem acentuar as disparidades entre as camadas sociais privilegiadas e as mais pobres. A Campanha refere o posicionamento do Supremo Tribunal Federal: o ensino remoto contribui para a intensificação da “[…] situação de violação dos direitos das crianças e adolescentes” (8), e isso piora no caso de alunas(os) em situação de alta vulnerabilidade social.
Com base em Patto ( 2013 ), afirma-se que os posicionamentos em defesa do ensino remoto são visivelmente evolucionistas, pois concebem o processo histórico como uma sucessão linear, natural, de estágios sucessivos. Por isso, quem o defende de forma arbitrária o faz sob a égide de que estamos inscritos no estágio científico da racionalidade humana e, portanto, do progresso. Tal supervalorização da racionalidade instrumental mascara as relações de poder em sociedades injustas e desconsidera a produção histórica das desigualdades que impactam a qualidade do ensino e a vida de alunas(os), corroborando a manutenção do status quo.
Nessa perspectiva, para o Fórum de Gestores de Educação Especial do Espírito Santo, referido pela Campanha, não é possível ver “[…] no ensino a distância uma forma respeitosa e harmoniosa de garantia à educação” (10), pois não constitui espaço de pluralidades de experiências e diferenças. Para a Campanha, quando o CNE adotou esta medida de forma acrítica, desprezando as contribuições da sociedade civil, o Estado se posicionou através de “[…] um parecer raso e deslocado da realidade, que indica o uso de aulas e atividades remotas sem considerar as condições necessárias para isso” (9).
Com o Parecer nº 5 (BRASIL, 2020b ), o CNE atestou que a reposição da carga horária exclusivamente de forma presencial, no pós-pandemia, poderia acarretar diversos prejuízos, tornando o ensino remoto uma estratégia para o cumprimento do ano letivo. Contrapondo-se a isso, a Anped declarou: “[…] cumprimento de carga horária não pode ser prioritário, nem uniformizado” (5), haja vista que o ano escolar não precisa, necessariamente, coincidir com o ano civil; que a implementação dessa estratégia se deu de modo descontextualizado; e que “O estado de calamidade pública não pode ser utilizado como pretexto para ferir os direitos constitucionais e, em especial, o direito à educação de qualidade” (6).
A construção de um discurso ideológico perpassa a regra da competência, a partir da qual normas prévias “[…] decidem a respeito de quem pode falar e ouvir, o que pode ser dito e ouvido, onde e quando isso pode ser feito” (Chaui, 2016 , p. 249). O MEC e as secretarias da educação – lugares legitimados de construção dos discursos educacionais – legislam, regulamentam e controlam o trabalho pedagógico. Entretanto, com a implementação esfacelada do ensino remoto, questiona-se acerca dos rearranjos nesses espaços institucionais de poder – onde valores neoliberais de construção de pseudoformações têm sido enunciados –, e sobre quais formações esses silêncios dissimulam.
Nessa circunstância, o MEC foi quase omisso quanto à coordenação das políticas educacionais. Limitou-se a homologar apenas em 29 de maio de 2020 o parecer supracitado; e essa demora levou a um quadro de “[…] ausência de parâmetros mínimos nacionais sobre que tipos de atividades devem ou não contar para fins de equivalência” (Todos pela Educação, 26), bem como de diretrizes desarticuladas e ambíguas. Ou seja, os órgãos educacionais não cumpriram a contento seu papel e excluíram aquelas(es) que poderiam falar com propriedade, como é o caso das entidades cujas contribuições constam neste e noutro trabalho (Tondin et al ., 2021 ). Todavia, este lugar de poder nunca permanecerá vazio; quem o está ocupando?
Mercantilização da educação
O questionamento anterior remete a aspectos que enunciam a relação entre ensino remoto e mercantilização da educação, fenômeno compreendido como transformação desta de direito em serviço/mercadoria que visa ao lucro, o que reduz a escola a uma questão técnico-administrativa, relegando aspectos pedagógicos, éticos e sociais a um segundo plano (Avelar, 2019 ). São desdobramentos dessa relação: parcerias público-privadas, comprometimento dos princípios pedagógicos e controle de acesso aos dados de navegação, pontos que compõem redes de disputas que visam fortalecer o projeto de sociedade neoliberal. Nesse sentido, foram identificados treze trechos de onze documentos: 3 e 4 (Anped); 12 a 16 e 19 (Campanha); 24 (FNPE); 20 (CNTE); e 29 (Todos pela Educação).
A Campanha denuncia a atuação de organizações privadas, “mercadores de ilusão” (13), que vendem plataformas e conteúdos digitais e lucram com recursos públicos. Esse “paradigma mercadológico” (Anped, 4) transforma a educação em mercadoria (FNPE), configurando disparidades entre o ensino público e privado, com reflexos negativos sobre as camadas populares (CFP, 2019 ). A CNTE pontua que a contratação em massa de ferramentas virtuais revela o “[…] perigoso apetite empresarial em disputar o ‘mercado educacional’ e as concepções pedagógicas das escolas públicas” (20). A Todos pela Educação apresenta críticas, mas em outro tom: as atividades remotas poderiam ser apenas “para cumprir tabela” (29). Zaidan e Galvão ( 2020 ) são elucidativas para compreendermos esse tom menos crítico aos interesses mercadológicos na educação, visto que a organização Todos Pela Educação se consolida como gestor de parcerias entre institutos/fundações empresariais e MEC.
A Undime, associação dos secretários municipais da educação, é omissa na discussão sobre a mercantilização; enquanto a CNTE, a Campanha, o FNPE e a Anped evidenciam o avanço drástico da relação público-privado. Essas “parcerias”, que reduzem a educação a insumo econômico quantificável por índices de desempenho (Cara, 2019 ) e fomentam a EaD como política de redução de custos (Santos, 2019 ), adquirem, na pandemia, caráter de legitimidade que prepara para possível naturalização desse ensino no pós-pandemia (Zaidan; Galvão, 2020 ). Ainda, a Campanha critica as privatizações e como seus impactos afetam a figura de professoras(es), transformadas(os) em “youtubers” (14), o que escancara ainda mais a educação como prestação de serviço (Zaidan; Galvão, 2020 ).
Tal configuração remete ao que Catini ( 2019 ) pontua como captura da forma e da função da educação pelo capital, e o que Sibilia ( 2012 ) nomeia como transformação da subjetividade pedagógica em midiática. Esta autora explicita uma divisão do saber-poder entre professoras(es) e alunas(os), em que as(os) primeiras(os) passam de mediadoras(es) do conhecimento para meras(os) transmissoras(es); e as(os) estudantes-clientes, consumidoras(es) do material postado na plataforma.
A Campanha refere que recursos e plataformas oferecidos às escolas “sem custo” escondem interesses mercantis de “[…] coleta, tratamento, utilização e venda de dados sobre comportamentos de usuários para gerar lucro” (16); o que é dito como gratuito constitui “oportunismo” (Campanha, 19), financiado pelos dados de quem utiliza o serviço. A Campanha e a Anped ressaltam que a ausência de uma legislação que resguarde o acesso à internet faz com que os dados privados se tornem públicos. Isso caracteriza uma falha nos direitos fundamentais na navegação online: a privacidade (Boff; Fortes, 2014 ).
O possível acesso aos dados pelas empresas parece atualizar o panóptico como dispositivo disciplinar (Foucault, 2016 ; Sibilia, 2012 ) capaz de regular e tornar visível aquilo que deveria ficar apenas entre estudantes e professoras(es). A Anped recorre ao conceito foucaultiano para criticar esse movimento em que “tudo é visível e mensurável” (3), uma vez que as câmeras de computadores e celulares regulam o comportamento de estudantes e professoras(es).
Essa realidade coaduna com o fortalecimento da sociedade de controle, que, diferentemente da sociedade disciplinar, não deseja apenas regular os corpos e torná-los produtivos, e sim, em prol da mercantilização da vida, instituir novas práticas de si e de gestão de processos privados (Sibilia, 2012 ). Assim, invadem a privacidade e promovem efeitos nocivos às singularidades e ataques à liberdade, questões que remetem à função da escola.
Esvaziamento da função social da escola
Partindo da premissa de que “a escola é uma instituição cujo papel consiste na socialização do saber sistematizado” (Saviani, 2008 , p. 14), nesta categoria se analisa o esvaziamento da função social da escola com a substituição das aulas por atividades não presenciais. Pontuam-se: perda da singularidade durante o processo de aprendizagem; precarização dos processos cognitivos, limitação das relações interpessoais e impactos significativos, sobretudo para as crianças na educação inicial. Estão conjugados 25 trechos de 18 documentos: 1, 3, 4, 6 e 7 (Anped); 12, 15 e 18 (Campanha); 21 ao 23 (CNTE); 24 (FNPE); 26 e 27 (Todos pela Educação); e 31, 33, 34 e 36 (Undime).
O ensino remoto, segundo a Campanha, a Anped, a Undime e a CNTE, não possibilitou que a educação exercesse seu papel libertário, de promoção de autonomia, de respeito às diversas realidades e formas de aprender. Ao excluir educadoras(es) e estudantes do debate, feriu os princípios de gestão democrática (CNTE), tornou o diálogo inexiste e o “processo formativo aligeirado” (Anped, 4).
Para Frigotto ( 2000 ), a escola tem como função a formação de seres de transformação do mundo, o que acontece quando a educação é libertadora. Na contramão, os posicionamentos anteriores denotam que o ensino remoto mitigou ou até extinguiu as possibilidades de construção de autonomia e consciência das(os) estudantes e professoras(es) de seus papéis sociais na transformação da realidade.
A Campanha e a CNTE destacam a importância da mediação pedagógica na aprendizagem. Indicam que o ensino remoto não permitiu a apropriação da cultura, pois isso só é possível através da interrelação educadoras(es) e educandas(os), mediante construção coletiva no/do processo educativo, o que ultrapassa a oferta de conteúdos por meios virtuais. Quando a mediação, função docente primordial, foi reduzida no ensino remoto ao papel de tutoria que delega tarefas a alunas(os) e suas famílias, a possibilidade de uma educação problematizadora ficou obstaculizada, intensificando o que Facci ( 2004 ) aponta como esvaziamento da função docente.
O compartilhamento de conteúdos esvaziados de reflexão e diálogo se baseia em processos de “informação”, e não de “formação” para a cidadania emancipada (Freire, 1967 ; Gadotti, 2006 ; Saviani, 2008 ). Esta carece da escola como espaço de “interação, troca de experiência, aprendizagem constante” (Undime, 34), realizada por meio do contato social, que, de acordo com Vigotski ( 1991 ), são fundamentais para o desenvolvimento das funções psíquicas superiores (linguagem, pensamento, memória, atenção, raciocínio lógico, emoções etc.). Estas, antes de serem internalizadas, precisam ser vivenciadas nas relações. O ensino remoto, portanto, comprometeu o desenvolvimento das crianças, sobretudo as da educação infantil, pela “passividade” e “isolamento” (Undime, 34), pelo excesso de exposição às telas e pela precária mediação do adulto. A CNTE afirma que a educação básica exige condições de tempo e espaço próprios, através da mediação “olho no olho” (21), do encontro, da interdisciplinaridade de conhecimentos, da relação família-escola e da formação estabelecida com base na experiência grupal, inviáveis à distância.
A Todos pela Educação entende que atividades totalmente remotas são menos eficazes do que a vivência presencial e reconhece a existência de condições desiguais no acesso e na aprendizagem entre o alunado. Porém, argumenta que as tecnologias educacionais podem ter efeitos positivos à medida que amenizam a ausência das aulas. Por isso, identifica o ensino remoto como “alternativa realista” (26). Já a Anped foi enfática: assinou documento de suspensão coletiva do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), reivindicando que o ensino presencial fosse o “mínimo” (7) a ser assegurado antes dele; que o ensino remoto não é “um mero substituto” (4) do presencial, destacando a redução de aprendizagem e desenvolvimento à mera transposição de conteúdos para ambientes virtuais, “[…] desconsiderando o conhecimento já sistematizado nas instituições de ensino, por profissionais da educação, e cientificamente validados” (6).
Tais críticas reforçam a importância do ensino presencial e a escola como espaço público de intensas negociações das diferenças (Seffner, 2013 ) e que propicia compartilhamento de experiências sociais e culturais, favorecendo o sentido de coletividade (Guzzo, 2006 ).
Considerações finais
Uma crise, como a causada pela Covid-19, pode acentuar outras preexistentes na educação. Na pandemia, criou-se um regime de exceção, com estratégias desenvolvidas de forma aligeirada e descontextualizada, desconsiderando marcadores socioeconômicos e raciais. Com isso, o ensino remoto precarizou ainda mais o trabalho docente e recrudesceu as desigualdades educacionais, que se mostram estratégias políticas e técnicas de governo na medida em que mantêm o status quo , como interessava ao governo federal, cuja premissa era a educação como privilégio das elites.
A educação e a escola estão em disputa. Numa conjuntura obscurantista de ultraliberalismo – conjecturado por esse governo cuja agenda mais do que liberal remonta à pré-modernidade –, são intensificados os ataques à escola pública, não sem resistência popular, democrática e libertária. Essa disputa – em curso mais intensamente após o impeachment da Presidenta Dilma (um exemplo é a Base Nacional Comum Curricular, ainda no governo Temer) – se estende e se atualiza no contexto pandêmico. As manifestações das instituições evidenciam isso. Apesar de todas elas apresentarem elementos críticos, estes não são homogêneos e pautados nos mesmos interesses, que se ocupam ou do mercado (Todos pela Educação) ou dos direitos constitucionais das(os) alunas(os), suas famílias e profissionais (Anped, Campanha, CNTE, FNPE e Undime, esta dentro dos limites de um órgão de gestão).
Advogar pela mera oferta de TICs a quem não dispõe delas pode significar uma inclusão-excludente, visto que iniciativas que pretendem incluir podem produzir uma inclusão perversa ou marginal, ocultando práticas de alienação, controle, disciplina e invisibilização, que geram exclusão. Se é inegável a importância das TICs como um dos mediadores das interações pedagógicas, não se pode aderir a elas de forma irrestrita e não reflexiva, sob pena de criarmos novas formas alienantes de educação e produção de modos de ser e de se relacionar com as tecnologias, que subjazem a subjetividades alienadas e consumistas. No contraponto, o pensamento crítico oferece elementos para a conscientização, que pressupõe compreender a relação ser humano/tecnologia como produto da sociedade capitalista, e com isso o debate acerca das TICs pode resultar em práticas pautadas nos direitos humanos.
Pelo exposto, na pandemia a escola esteve mais longe ainda de dispor das condições para cumprir seu papel na rede intersetorial de proteção social. Afinal, quanto mais se esvazia a função social da escola, mais o direito à educação se fragiliza e as desigualdades raciais, de classe e gênero se exacerbam. Por isso, somos convocadas(os) à insurgência e à resistência às adversidades que assolam o presente, cuidando para que não dominem o futuro.