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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.50  São Paulo  2024  Epub 31-Dez-2024

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202450274022por 

SEÇÃO TEMÁTICA: Juventudes, itinerários e reflexividades

A escuta de imagens na pesquisa narrativa com jovens

Ana Karina Brenner1 

Ana Karina Brenner é doutora em educação e professora associada da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação (ProPEd) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).


http://orcid.org/0000-0002-0778-3525

Paulo Cesar Rodrigues Carrano2 

Paulo Cesar Rodrigues Carrano é doutor em educação e professor associado da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). É bolsista Produtividade do CNPq, nível 2.


http://orcid.org/0000-0003-3312-1362

1Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil

2Universidade Federal Fluminense. Niterói, RJ, Brasil


Resumo

Neste artigo apresentamos um conjunto de ferramentas metodológicas qualitativas utilizadas em pesquisa desenvolvida realizando escuta de jovens estudantes de ensino médio na cidade do Rio de Janeiro. Realizamos entrevistas narrativas utilizando dispositivos fotográficos com estilo dialógico e reflexivo de interação entre entrevistadores e jovens entrevistados. Foi realizado um grupo de discussão para sondar representações coletivas sobre temas-chave da pesquisa para o qual utilizou-se de um varal de fotos para animar a discussão. Três jovens receberam máquina fotográfica digital para a produção de fotografias expressivas sobre seus percursos de vida. Também produziram vídeos que compuseram o filme de pesquisa lançado em 2018. As fotografias produzidas e interpretadas pelos jovens permitiram a compreensão sobre processos de subjetivação e interações realizadas em seus contextos sociais de referência, tais como aqueles relacionados com a vida familiar, o trabalho e a escola.

Palavras-chave Juventude; Fotografia; Reflexividade; Narrativas; Itinerários

Abstract

This article presents a set of qualitative methodological tools utilized in a research conducted by listening to young high school students in the city of Rio de Janeiro. Narrative interviews were conducted using photographic devices with a dialogical and reflexive style for the interaction between the interviewers and young interviewees. A discussion group was set up to prospect collective representations of the research´s key topics for which a line of photos was used to cheer the discussion up. Three youths were given a digital photographic camera to take pictures expressing their paths of life. They also made videos which were included in the research movie released in 2018. The photographs taken and interpreted by the young participants allowed to understand processes of subjectivation and interactions taking place in the social contexts of reference, such as those associated with their family life, work, and the school.

Keywords Youth; Photography; Reflexivity; Narratives; Itineraries

A pesquisa na qual se baseia este trabalho insere-se no campo dos estudos de juventude e quer compreender processos de individuação de jovens cujas vidas estão marcadas, em especial, por percursos escolares acidentados – abandonos e reprovações. Buscou-se, a partir da associação de abordagens quantitativas e qualitativas, inventariar criticamente percursos de vida juvenis e seus processos singulares de constituírem-se como indivíduos (Carrano; Marinho; Oliveira, 2015 ; Brenner; Carrano, 2019 , 2023 ) 3 .

A pesquisa com jovens tem demandado imaginação sociológica (Mills, 1972 ) e criatividade no sentido de combinar abordagens metodológicas que permitam reconhecer as diversidades e desigualdades da experiência juvenil, assim como extrapolar os limites das entrevistas que tenham a narrativa oral como único recurso. Sujeitos inseridos em contextos de reiteradas entrevistas institucionais ou temas controversos ou ainda difíceis de expressar no processo de desenvolvimento juvenil podem ficar inadequadamente tratados com o uso exclusivo da oralidade na entrevista. A combinação de abordagens e técnicas de pesquisa alcançaria, de modo mais consistente, as múltiplas formas de interação dos jovens na sociedade contemporânea. Tal procura impulsiona a construção de dispositivos de uso e produção de imagens na pesquisa que serão o eixo central de análise neste trabalho.

A pesquisa que dá origem a este artigo desenvolveu-se entre os anos de 2012 e 2016, entre uma etapa quantitativa e duas etapas qualitativas. As etapas qualitativas resultaram em um filme de pesquisa. Neste artigo abordaremos alguns conceitos centrais que fundamentam a pesquisa dando relevo ao desenho e às ferramentas metodológicas adotadas ao longo de seu desenvolvimento. Chamamos de “dispositivos” algumas das estratégias adotadas que contemplaram uso e produção de fotos e vídeos pela equipe de pesquisa e também pelos jovens participantes dela. Alguns desses dispositivos foram inspirados em experiências de trabalho anteriores com jovens que também serão mencionadas.

A pesquisa

O desenho metodológico da pesquisa contemplou a realização de survey, aplicado em 14 escolas de ensino médio da rede pública estadual da capital do Rio de Janeiro. Foram aplicados 593 questionários a jovens, numa amostra não probabilística, selecionada a partir de critérios pessoais a respeito dos elementos que são mais representativos na população.

A partir das tabulações e análises do survey foram elencados alguns perfis recorrentes de estudantes e a partir destes foram selecionados – entre os jovens que ao final do questionário responderam positivamente ao convite a participar de uma nova etapa com entrevistas – 19 jovens para a segunda fase, qualitativa, da pesquisa. As entrevistas foram gravadas em qualidade de áudio e imagem para, além da análise de conteúdos, ser produzido o vídeo-documentário de pesquisa lançado no primeiro semestre de 2018. 4 Ao longo da realização das entrevistas e da decupagem do material registrado, bem como a partir das reuniões de trabalho da equipe de investigação sobre o material coletado, levantou-se a possibilidade de realização de uma terceira etapa de pesquisa que permitisse acompanhar um grupo menor de jovens em seus percursos cotidianos. Interessava conhecer e registrar aqueles aspectos significativos de suas vidas narrados nas entrevistas. Neste sentido, novas estratégias e instrumentos de pesquisa foram integrados ao processo em curso, extrapolando, assim, os planos inicialmente traçados no projeto de investigação.

A realização desses acompanhamentos exigiria escolhas pois seria impossível, à equipe, acompanhar todos os 19 jovens entrevistados na primeira etapa qualitativa. Seria necessário explicar a proposta, saber sobre a disponibilidade dos jovens a esse tipo de acompanhamento de suas vidas. Já havia se passado cerca de um ano ou pouco mais desde que as entrevistas haviam sido realizadas. Era preciso, portanto, produzir alguma estratégia de reaproximação entre equipe de pesquisa e jovens, inclusive para obter deles concordância, a partir de informação de qualidade, em participar. Um e-mail ou uma chamada telefônica não pareciam suficientes para esse tipo de esclarecimento. A realização de um grupo de discussão (Weller, 2006 ) pareceu a melhor forma de produzir encontro, diálogo, informação e possibilidade de selecionar “personagens” para esta nova etapa de pesquisa que também estaria contemplada no filme de pesquisa. A realização de um grupo de discussão foi importante também para que a equipe apresentasse questões relacionadas com o problema de investigação numa perspectiva de sondagem das representações coletivas desses jovens sobre aspectos relevantes de suas trajetórias em comum de jovens populares e estudantes na EJA de Ensino Médio, tais como questões relacionadas com aprendizagens escolares e extra-escolares, experiências de trabalho, expectativas de futuro etc. Foram convidados oito dos 20 entrevistados na primeira etapa qualitativa, sendo que cinco compareceram. Para animar o grupo de discussão, entre jovens que não se conheciam, mas que já eram conhecidos da equipe de pesquisa, decidiu-se pela adoção de um elemento metodológico que permitisse interações e trocas entre os jovens introduzindo a dinâmica própria de um grupo de discussão. Chamamos de varal de fotos e será apresentado posteriormente.

O que se pretendia era aprofundar as possibilidades reflexivas dos sujeitos participantes da pesquisa em torno de suas trajetórias de vida, das provas enfrentadas e dos suportes (Martuccelli, 2007 ) acionados por estes jovens no sentido da superação dessas provas. Com este intuito lançou-se mão de dispositivos metodológicos que permitiram que os jovens produzissem narrativas a partir das imagens apresentadas e também que produzissem imagens sobre si, ou seja, registros deles próprios em suas ações cotidianas e de representações sobre suas experiências e projeções para o futuro. Compreendemos projetos na chave conceitual de Alfred Schutz ( 1979 ), como um campo dinâmico alimentado por um estoque de conhecimentos que se alarga constantemente.

Um conjunto de ações buscou assegurar os princípios da ética na pesquisa na área das Ciências Humanas. Além da apresentação do termo de consentimento livre e esclarecido assinado por todos os jovens entrevistados e, posteriormente, dos acompanhamentos a seus cotidianos - descritos adiante -, cada etapa da pesquisa realizou ações complementares que visam assegurar os princípios da ética na pesquisa. Todos os 19 jovens entrevistados receberam, por correio, em suas residências, uma cópia integral de sua entrevista, filmada para a produção do filme de pesquisa. Todos os jovens foram convidados a assistir ao corte final do filme de pesquisa em horários diversos para buscar atender a todas as disponibilidades de horários. Aos que não puderam comparecer foi disponibilizado link para assistir ao filme - com possibilidade de comentá-lo e, em caso de alguma discordância significativa, ter partes do filme alteradas antes de sua disponibilização ao público em geral. Nenhum dos jovens expressou qualquer discordância com a edição - corte final - do filme. Para os dois jovens e a jovem que tiveram seus cotidianos acompanhados e que, portanto, aparecem mais no filme, e se expuseram mais, a assistência ao corte final foi realizada individualmente.

Neste processo de retorno aos participantes dos usos feitos de suas narrativas, um dos participantes expressou que sentiu temor do que pudesse vir a ser retratado no filme, uma vez que revelou aspectos sensíveis de sua vida que poderiam ser traumáticos se expostos publicamente. Nosso interlocutor revelou ter sentido alívio ao constatar que a edição final do filme não se utilizou das passagens que considera sensíveis. Esta revelação confirmou a percepção da equipe de pesquisa que nem tudo aquilo que um narrador revela numa relação de confiança e diálogo de pesquisa deve ser usado para atingir os fins de expressão pública dos resultados da pesquisa. Este cuidado ético não impediu, contudo, que a pesquisa revelasse a complexidade e os pontos de tensão da narrativa que nos foi confiada. É preciso considerar que ter um filme de pesquisa como um dos produtos acadêmicos da investigação confere elementos adicionais de cuidados nessa busca constante de produzir conhecimento sobre os indivíduos sem que isso os exponha a riscos a partir de suas revelações provocadas pela investigação.

A singularização da análise sociológica

Podemos destacar três grandes momentos no debate sobre a socialização dos indivíduos. De um lado temos a tradição sociológica que numa perspectiva holística compreende a socialização como um princípio unitário. A socialização levaria ao ajustamento dos indivíduos às regras sociais - o habitus se faz corpo. Em outras palavras, os indivíduos podem ser deduzidos a partir de sua posição na estrutura social. O individualismo metodológico, por sua vez, assume o ponto de partida da sociedade como sendo os indivíduos. As formas coletivas nada mais seriam do que o resultado de uma agregação de ações individuais. Por outro lado, num terceiro momento e numa orientação relacionalista e construtivista que procura reconhecer a pluridimensionalidade da individualidade (Corcuff, 2008 ), pode-se pensar a socialização em contextos de diferenciação social. Nesta orientação teórico-metodológica, não se desconhece a função integradora da socialização, mas investe-se na busca por reconhecer a socialização na chave das sociedades complexas. O indivíduo não apenas é deduzido de sua posição social, mas assume papel chave na fabricação de si e na elaboração de seus próprios caminhos biográficos.

Esse imperativo da elaboração de si é característica das sociedades modernas ou da chamada alta modernidade da quarta revolução industrial e tecnológica. O que se denominou chamar de processo de singularização tem como marcas, no âmbito da economia, a desestandardização da linha de produção fordista e a personalização da atividade econômica que gerou práticas de consumo e singularidades em substituição aos vetores de padronização da chamada sociedade do consumo de massa. Neste registro, os mercados empenham-se por capturar informações individualizadas para conhecer o máximo possível do consumidor para fidelizá-lo. O capitalismo de dados e a chamada economia da atenção, regida pelos algoritmos, são exemplos dessa singularização. Para Eugênio Bucci ( 2021 ), vivemos em uma superindústria do imaginário. O capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que é visível. A economia é agora uma economia da atenção. O indivíduo habita um mundo cuja destradicionalização é um de seus princípios organizadores e com complexidades das redes de relações sociais que exigem que este desempenhe uma multiplicidade de papéis ao longo de seu percurso biográfico. A diferenciação é uma marca distintiva dos processos de socialização das sociedades complexas contemporâneas em comparação às sociedades simples do passado. Não é incomum que lógicas socializadoras, contraditórias e conflitantes entrem em choque no diálogo intergeracional. É neste sentido que a ordem social se torna mais contingente - menos determinante - e a sociologia passa a tomar mais conhecimento sobre a necessidade de inventariar na análise a complexidade da vida de cada indivíduo. Este é um processo histórico de longa duração e que está relacionado com a perda da centralidade da tradição, da complexificação da vida e da diferenciação social. Anthony Giddens ( 2002 ) chama de destradicionalização o processo em que os indivíduos nas sociedades urbanas não estão mais submetidos às regras das comunidades e da tradição. Constituir-se como indivíduo significa estabelecer soberania sobre si e uma gestão da separação frente aos outros. Alberto Melucci ( 2004 ) dirá que a autonomia é o outro nome da individuação. Neste sentido, a busca da interpretação da experiência é chave na investigação numa sociologia que se processa a escala dos indivíduos.

Danilo Martuccelli ( 2010 ) chama atenção para as evidências dos processos de singularização do social que se manifestam em diferentes âmbitos, para além da citada economia. A própria sociedade vê declinar a força de suas instituições (Dubet, 2006 ) no estabelecimento de vínculos e a mesma passa a ser percebida como relação entre indivíduos. O conflito de interesse se percebe como relação entre pessoas. O líder político, neste contexto, se afirma em formas de representação por identificação com o indivíduo carismático. No âmbito da justiça vive-se também processos de singularização na busca da equidade. Adolescentes em escolas reagem às regras gerais que não consideram as distintas personalidades que habitam a instituição. O reconhecimento das experiências individuais torna-se, hoje, de fundamental importância para a produção dos sentidos de presença na escola para adolescentes e jovens. No âmbito familiar percebe-se também processos de singularização da sociabilidade. Netos interagem com avós sem a mediação dos pais através de tecnologias de comunicação que autonomizam as relações intergeracionais.

São muitos os exemplos que podem ser elencados para destacar as marcas da singularidade nas relações sociais e processos institucionais. De toda forma, o que se quer evidenciar é a necessidade de se enfrentar os desafios sociológicos implicados pelos processos de singularização do social. Assim, faz sentido afirmar que o centro de gravidade da análise sociológica direciona-se da sociedade, em geral, para o indivíduo e suas experiências concretas. Ou, dito de outra forma, trata-se do desafio de buscar compreender os fenômenos sociais à escala dos indivíduos superando a lógica do “personagem social” na análise sociológica para encontrar a experiência singular vivida como posição social em seus múltiplos atravessamentos de classe, raça, gênero, geração e vivência de um território.

É preciso cuidar, contudo, para o risco de que a análise sociológica não se reduza ao nível dos indivíduos, mas que se realize como macrossociologia que se desenvolve à escala desses indivíduos singularizados. O desafio é explicar processos sociais a partir de experiências individuais. Esta seria, então, uma forma de descrever a sociedade que, em última instância, é a forma estrutural de fabricação dos indivíduos.

Danilo Martuccelli ( 2010 ) alerta, então, para o cuidado de se evitar dois desequilíbrios analíticos que podem comprometer as interpretações sociológicas. O primeiro encontra-se relacionado com enxergar a individualização perdendo de vista os processos históricos; e o segundo desequilíbrio seria inversamente o de só tratar da história, como plano de fundo central, levando a se perder as experiências singulares. Assim, três expressivas indicações emergem para a análise dos processos sociais na chave de uma macrossociologia singularista. A primeira indicação é a que busca conservar os vínculos entre o indivíduo e as dimensões estruturais; a segunda atenta para o caráter situado social e historicamente de todo indivíduo e, por fim, a terceira que assinala o cuidado que se deve ter para inventariar o trabalho que os indivíduos realizam sobre si mesmo para se fazer sujeito.

Nesta última indicação reside a imaginação sociológica (Mills, 1972 ) que pode produzir arranjos metodológicos necessários para que os indivíduos que buscamos conhecer possam narrar suas próprias experiências. Destaque especial é conferido à narração das provas existenciais que enfrentam e aos suportes que conseguem articular em seus meios sociais. Concordamos com Castel ( 2010 ) quando este assinala que os suportes são as condições necessárias para que o indivíduo possa conduzir-se como um ator social. E é nesta perspectiva que devemos atentar para a dimensão histórica da produção do indivíduo que tem, em grande medida, a sua genealogia atravessada pela história de transformação de seus suportes existenciais.

A Reflexividade no encontro de pesquisa

Bauman e May ( 2010 ) assinalam que pensar sociologicamente pode nos tornar mais sensíveis à diversidade e nos provocar a olhar além dos nossos mundos de vida imediatos. Uma forma, então, de explorar condições humanas até então relativamente invisíveis. O poder anti fixação do pensamento sociológico ampliaria o alcance da prática de liberdade. A condição para ser um ator social é compreender as conexões entre as suas ações e as condições sociais que delimitam nosso campo de ação. Podemos mesmo dizer, seguindo o pensamento dos autores, que a autoconsciência de si no mundo, das coisas que nos determinam, pode se constituir como base para articular projetos de vida. Nessa perspectiva, entendemos que o movimento de investigação pode se constituir também como oportunidade de produção de processos reflexivos com os indivíduos jovens com os quais nos relacionamos no campo de pesquisa.

A reflexividade é uma característica fundamental da modernidade (Giddens, 2002 ; Melucci, 2004 ). Ela se intensifica à medida que as sociedades se tornam mais complexas e heterogêneas. A reflexividade assume caráter decisivo no processo de individuação de jovens pois permite que esses pensem sobre si mesmos e sobre suas relações com os outros. Este duplo movimento permite que experimentem diferentes identidades e elaborem seus próprios processos identitários.

Dispositivos de foto e vídeo

O processo de entrevista numa perspectiva dialógica busca produzir “espaço biográfico” (Arfuch, 2010 ) para a emergência do discurso do outro. A mediação do dispositivo imagético faz com que o narrador se constitua como um co-produtor reflexivo diante da “provocação” daquele que quer vir a conhecer percursos biográficos e cotidianos. Um filme documentário é, em síntese, o processo de produção de uma nova realidade, ou seja, a relação entre quem filma e quem narra. Produção de filmes e utilização de dispositivos reflexivos fizeram parte do mesmo processo de pesquisa e diálogo. A produção de imagens e sons para a montagem do filme da pesquisa foi também suporte ao processo dialógico de entrevistas que buscava superar limites metodológicos. Lins ( 2008 , p. 56), analisando o documentário brasileiro contemporâneo aponta que a noção de dispositivo remete à criação, pelo realizador, de um artifício ou protocolo produtor de situações a serem filmadas. Consideramos que os dispositivos são também artifícios ou protocolos produtores de diálogos e reflexividade sobre si dos sujeitos da pesquisa.

Em nossa investigação, a utilização de imagens como suportes da narração biográfica e representação de cotidianos foi resultado do dispositivo de fotos e vídeos que introduzimos na relação de entrevista e que teve como objetivo provocar reflexividade no processo de produção e narração de imagem. Desta forma, o que nos chegou foram imagens (fotografias e vídeos) produzidas em contexto de reflexividade provocada. As imagens produzidas pelos jovens foram representações de si e de um cotidiano intencionalmente alterado pelo processo de pesquisa. Não foram, então, as imagens que Martins ( 2008 , p. 53) denominou como “fotografias ingênuas do senso comum popular” que não retratam ou representam o cotidiano, mas que pelo contrário nos falam de uma ingênua contestação do cotidiano, sua recusa, a recusa do cotidiano como momento do trabalho.

Muito daquilo que se vê em uma imagem expressa, além das intenções e os acasos significativos de seu produtor, também as experiências, sentimentos, conhecimentos e pré-noções de quem olha.

Objetos de memória para entrevistas narrativas

O convite para que os jovens da pesquisa trouxessem objetos de memória para ancorar suas narrativas no processo de entrevista se inscreve em nossa orientação metodológica de produção de dispositivos reflexivos para o diálogo. Ao adotarmos o uso de dispositivos em processos de pesquisa, quaisquer que sejam eles, assumimos que a investigação interfere na realidade que se quer compreender. O dispositivo é, então, um laboratório criativo onde pesquisador e pesquisado interagem e se permitem lançar mão de trocas subjetivas e objetivas, em especial pelo uso de objetos, para formular e responder questões de investigação. Nesta perspectiva, a intervenção sobre o real é assumida como provocação que contribui para que o trabalho de narração e diálogo se constituam como elementos chave do processo de investigação.

O valor biográfico de um objeto encontra-se em nossa capacidade de restituir a vida das relações sociais que com ele se enredam. A elaboração de uma memória sobre o objeto passa, então, por uma redefinição do passado através da produção de novas imagens e representações sobre o objeto e suas redes de relações. Neste sentido, concordamos com Bruno Latour ( 2015 ) que considera o objeto como um ator e mediador de toda a ação social, ou seja, o objeto é um ator social legítimo; um atuante numa perspectiva que explicita a passagem de uma intersubjetividade a uma interobjetividade que, segundo ele, estaria mais bem adaptada às ciências humanas.

Os objetos de memória foram propostos aos jovens para a realização das entrevistas narrativas que ocorreram nas escolas onde cada jovem participante estudava. Buscava-se compreender, através das entrevistas, percursos biográficos juvenis dando especial atenção às dinâmicas territoriais e sua incidência sobre as trajetórias escolares, assim como a outros aspectos que a literatura científica demonstra serem decisivos aos cursos de vida e escolarização, tais como as estratégias familiares para a conquista da longevidade escolar, a inserção no mundo do trabalho e a própria qualidade da vida escolar que pode significar fator de atração ou repulsão frente ao prosseguimento dos estudos. Com o intuito de facilitar o diálogo em torno dessas questões, solicitou-se aos entrevistados, no momento do agendamento, que trouxessem para a entrevista algum objeto que ajudasse a contar sua história, algo que fosse expressivo daquilo que se considerava importante ser dito sobre si.

Todos os entrevistados assim o fizeram e o que chamou atenção da equipe de pesquisa, para além da diversidade de histórias contadas a partir desses objetos, é que a maioria trouxe fotografias, algumas impressas, mas a maior parte em seus aparelhos de celular.

Ter a fotografia no celular como suporte para a narração de si diz muito sobre a presença da fotografia digital na cultura visual contemporânea. A facilidade para produzir, editar, armazenar e compartilhar instantaneamente a fotografia digital explica como esta se transformou numa forma de comunicação visual extremamente popular e acessível. As redes sociais, como o Instagram e o Facebook, deram ainda mais destaque às imagens digitais, permitindo que as pessoas compartilhem suas vidas e criem narrativas visuais por meio de suas fotos. Não é exagero dizer que a fotografia digital mudou a nossa maneira de ver, compreender o mundo e criar novas formas de expressão e comunicação visual. Se por um lado a fotografia digital foi incorporada como um dos traços mais significativos da cultura em nossos dias, por outro lado, e no caso dos jovens especialmente, esta se apresenta como uma chave de compreensão dos modos de ser jovem individual e coletivamente.

Pesquisa do Pew Research Center ( 2018 ) evidencia a popularidade da fotografia entre os jovens americanos. Entre eles, 97% revelaram ter tirado fotos com seus celulares. Alguns usos comuns da fotografia pelos jovens incluem: a) Compartilhamento em mídias sociais: muitos jovens usam as redes sociais para compartilhar suas fotos com amigos e seguidores; b) Memórias pessoais: os jovens usam a fotografia para capturar momentos significativos em suas vidas e criar memórias pessoais; c) Comunicação visual: a fotografia é frequentemente usada pelos jovens como uma forma de se comunicar visualmente com outras pessoas; d) Arte e criatividade: alguns jovens usam a fotografia como uma forma de expressão artística e para explorar sua criatividade. Em geral, a pesquisa sugere que a fotografia é uma parte importante da vida dos jovens e que eles a usam de maneiras diversas e criativas.

Em nossa pesquisa, ao início da entrevista, os jovens participantes eram convidados a posicionar os objetos trazidos sobre o banquinho (imagem 1) junto à sua cadeira, e recebiam a indicação de que o apresentassem ao entrevistador quando lhe parecesse mais oportuno.

Fonte: Acervo da pesquisa.

Figura 1 Objetos de memória para entrevistas narrativas 

Alguns iniciaram a conversa mostrando os objetos trazidos, outros acionaram seus objetos ao longo da entrevista quando o caminho da conversa cruzava a referência de memória representada pelo objeto trazido. Uma das entrevistadas, diante da questão inicial que a instigou a falar sobre sua vida, contou seu nome e, quase sem interferências do entrevistador, falou por cerca de 12 minutos num encadeamento de ideias que foi do começo da adolescência àquele momento (21 anos de idade). Sua narrativa culmina manuseando os três objetos de memória que depositara sobre o banquinho: mostrou para a câmera a foto de seu filho, recolocou no dedo a aliança que tirara ao chegar e que dizia sobre o novo casamento e recolocou no pescoço o crachá do emprego que significava a superação do contexto de informalidade no trabalho. Os objetos sobre o banco representaram o fio condutor de sua narrativa, que desaguou no momento presente de sua vida em que a alegria expressa pelo filho representava a superação da violência doméstica sofrida (por parte do próprio pai e do pai de seu filho), a aliança uma nova possibilidade de constituição de vida familiar feliz e o crachá o momento de inflexão de sua vida representada pelo que o emprego significou em termos de estabilidade, novidade positiva e suporte para as transformações de vida que almejava.

As fotos de filhos trazidas por rapazes mostraram o sentido organizador dos percursos biográficos que a paternidade pode proporcionar.

A Pesquisa Nacional de Saúde, realizada em 2019, produziu suplemento especial sobre o ciclo de vida. A pesquisa evidencia que a paternidade é variável conforme o grupo etário do homem. Entre os jovens de 15 a 29 anos, 19% eram pais, enquanto na faixa de 30 a 39 anos esse percentual atingiu 68,9%. A analista da pesquisa, Marina Águas, ressalta que o ciclo reprodutivo de muitos homens, em especial dos mais jovens, pode estar se iniciando ou estar incompleto (IBGE, 2021 ).

As pesquisas sobre jovens ainda se concentram quase exclusivamente sobre a maternidade e os jovens mostraram que a pouca incidência do tema nas pesquisas é resultado da invisibilidade de um debate importante para se pensar os processos de individuação e as incidências destes nos percursos escolares.

As fotografias deram relevo àquilo que em palavras, talvez, não tivessem o mesmo peso emocional para demonstrar a importância da superação do desafio do “ser pai” na vida desses jovens.

Ainda sobre paternidade, mas no sentido da relação dos jovens entrevistados com seus pais, a sugestão de um jovem, no ato do agendamento da entrevista com o pedido de levar um objeto de memória, poderia ter criado situação difícil não fosse a mediação da bolsista de iniciação científica que havia feito o contato. O jovem perguntou se poderia levar uma arma como seu objeto de memória. Por óbvio, a reação da equipe de pesquisa foi a de que não seria possível utilizar o objeto sugerido, pois isso implicaria em portar arma no caminho de casa à escola e também entrar na escola com uma arma de fogo. Como alternativa, a bolsista perguntou ao jovem se ele não poderia levar alguma coisa que representasse a arma e que pudesse contar sobre as razões de desejar utilizá-la como expressão de sua história de vida. O jovem aceitou a proposta, acabou trazendo um objeto que não se relacionava com a história referida à arma, mas sabendo desta informação o entrevistador pode indagar porque ele tinha expressado o desejo de levar uma arma como objeto de memória. Assim foi possível saber que o pai do jovem havia sido assassinado quando ele ainda era gestado, nunca conhecera, portanto, o pai. Aos 14 anos soube quem era o assassino e obteve uma arma. Um dilema se fez, entre cumprir o desejo de vingança ou fugir para outro lugar e recomeçar a vida. Foi assim que abandonou a ideia de vingar a morte do pai e embarcou em um ônibus, rumo ao Rio de Janeiro, deixando sua cidade natal no nordeste brasileiro.

Foi marcante para a equipe de pesquisa a necessidade de não estabelecer pré-julgamentos e buscar compreender a história por trás do desejo de portar e nos apresentar uma arma como objeto de memória. As representações dominantes em uma sociedade como a fluminense, atravessada pelas violências do crime organizado e da instituição policial, poderiam facilmente consolidar a ideia estereotipada de que um jovem com uma arma é alguém envolvido com o crime. Contudo, a referência à arma desejava contar a história de uma violência sofrida - a de não ter podido conhecer o pai, assassinado antes de seu nascimento -, o enfrentamento do dilema e a decisão de fuga para uma nova possibilidade de vida sem arma em punho. O episódio da sugestão da arma como objeto de memória se inscreve no contexto dos denominados crimes no “campo da honra”, presentes em sociedades onde os valores de vingança são justificados, e representam um código ético e cultural da virilidade, conforme estudos já demonstraram (Barreira, 2002 , 2008 ; Martins, 1994 ).

Os objetos de memória permitiram, portanto, revelar eventos significativos da vida dos jovens entrevistados aos quais roteiros de entrevista dificilmente conseguiriam, sozinhos, chegar.

Varal de fotos

Ao realizarmos o grupo de discussão já havia se passado mais de um ano desde a realização das entrevistas, ou seja, desde que a equipe de pesquisa se encontrara com cada um dos jovens. Colocou-se a questão de como se reencontrar depois de tanto tempo e iniciar uma conversa que não seria mais individual, mas com outros jovens participantes da mesma pesquisa. Foi pensando em formas de facilitar o encontro e a interação entre jovens que se criou um varal de fotos (imagem 2) para disparar o diálogo em grupo. As fotos utilizadas podem ser definidas como fotos-conceito, não remetiam a espaços e lugares facilmente identificáveis, mas imagens variadas e relativamente abstratas, representando caminhos, passagem do tempo, escombros, detalhes de objetos, luzes e sombras etc.

Fonte: Acervo da pesquisa.

Figura 2 Varal de fotos para animar grupo de discussão 

A foto de uma pista de pouso com marcações indicativas dos caminhos que devem seguir os passageiros no embarque/desembarque levou um dos jovens a dizer como aquelas linhas marcadas no chão com o céu azul ao fundo fazia-o pensar em seu passado-presente-futuro; as marcas do que ficou para trás e as possibilidades projetadas no horizonte. A foto de um antigo aqueduto de pedra remeteu outro jovem a pensar nas travessias que cada um enfrenta ao longo da vida. Sair de um lugar e ir para outro ou deixar um projeto de vida para trás em busca de um novo, mais possível ou necessário. A foto também inspirou um dos jovens, cujos cotidianos foram acompanhados pela equipe de pesquisa, a realizar sua própria versão - na realização do desafio fotográfico que será apresentado adiante neste artigo - fotografando uma passarela de metrô (imagem 3).

Fonte: Acervo da pesquisa.

Figura 3 Aqueduto e passarela, expressão de travessias 

O varal de fotos permitiu não apenas uma dinâmica de encontro, mas propriamente a evocação de narrativas de outro tipo em relação às produzidas nas entrevistas realizadas no ano anterior. E conduziram de maneira bastante fluida e orgânica o grupo de jovens à roda na qual se estabeleceu o grupo de discussão. Na imagem 4, jovens da pesquisa observam as fotografias dispostas no varal e, provocados pela equipe de pesquisa, buscam relacionar as fotografias com os seus próprios percursos biográficos. O exercício reflexivo criou campo de subjetivação para que pudessem produzir e narrar suas próprias imagens mentais em torno de elementos biográficos de suas experiências e projetos de vida.

Fonte: Acervo da pesquisa.

Figura 4 Jovens diante do varal de fotos 

Desafio fotográfico

Definidos os jovens participantes da segunda etapa qualitativa que realizaria acompanhamentos a atividades cotidianas apontadas pelos próprios jovens, novamente se interpôs a necessidade de suportes (transformados em dispositivos) à reflexividade. Os jovens narraram seus percursos de vida, desafios enfrentados e modos de superá-los. Neste sentido, elaborou-se um desafio fotográfico em torno de duas questões: a) sua vida poderia ser fotografada? b) O que você fotografaria? Cada um dos três jovens participantes desta etapa da pesquisa recebeu, sob empréstimo, uma máquina fotográfica digital. Na imagem 5, a pesquisadora apresenta à jovem participante da pesquisa a máquina fotográfica com a qual ela enfrentará o desafio de narrar fotograficamente o seu percurso biográfico. Ao fundo, a fotografia revela a equipe de filmagem que produziu imagens para o filme documentário da pesquisa.

Fonte: Acervo da pesquisa.

Figura 5 Câmera emprestada e diálogo sobre a produção de jovem participante da pesquisa 

Sugeriu-se, com estas questões, um exercício projetivo de fotografias em que poderiam registrar e descrever espaços-tempo de seus cotidianos, bem como imagens abstratas que poderiam representar experiências, acontecimentos, sentimentos, projeções, expectativas de futuro. Em tempos de máquinas digitais, é possível registrar um sem-número de fotografias, contudo, o principal da tarefa de reflexão sobre si recai sobre a escolha das fotos, daquelas que melhor representam aquilo que se pretende mostrar. Neste sentido, os jovens poderiam registrar quantas fotos quisessem, mas deveriam escolher e dar título a entre 15 e 18 fotos para serem apresentadas à equipe de pesquisa em novo encontro marcado com 2 a 4 semanas de intervalo após este primeiro encontro. Para a atividade foi produzida e apresentada aos jovens uma ficha de registro da produção fotográfica (imagem 6).

Fonte: Acervo da pesquisa.

Figura 6 Ficha de registro da produção fotográfica 

O senso comum diz que “uma imagem vale mais que mil palavras”, porém, muito daquilo que se vê em uma imagem expressa, além das intenções e os acasos significativos de seu produtor, também as experiências, sentimentos, conhecimentos e pré-noções de quem olha. As possíveis significações que podem emergir de uma fotografia são potencializadas pela sua articulação com o texto (escrito ou narrado), em especial, quando o objetivo é a construção de um discurso científico, tal como evidencia Milton Guran ( 2011 ). Neste sentido, o retorno das fotos para uma nova conversa sobre elas era fundamental para se compreender o que e porquê os jovens haviam feito e escolhido os registros fotográficos apresentados. Neste processo de retorno muitos temas já abordados nas entrevistas foram retomados com novos conteúdos e interpretações alternativas dos jovens sobre suas próprias experiências e percursos de vida.

A jovem Maria 5 apresentou um conjunto significativo de imagens de portas, janelas e fachadas: da casa de onde foi expulsa pelo pai com consentimento da mãe, da nova fachada da casa da tia - situada no mesmo terreno da antiga casa precária para onde se mudou depois de ser expulsa -, do quartinho onde morou com o pai do filho antes do nascimento do bebê (imagem 7), do trabalho que representou um ponto de inflexão em sua vida, do curso de inglês que iniciara havia pouco tempo e representava também uma conquista significativa.

Fonte: Acervo da pesquisa.

Figura 7 Portas e janelas conduzem narrativa de jovem 

O jovem Jhonata registrou alguns de seus medos: o morador de rua de quem se compadecia e que representa seu medo de, também ele, se tornar um morador de rua, o medo do abandono, da pobreza. Mas também registrou uma cena que, ao ser contada, registrada e reproduzida no filme da pesquisa, resulta em uma de suas passagens mais instigantes (Imagem 8). Fotografou o metrô de portas abertas com multidão de pessoas no fluxo de entrada e de saída do vagão. Ao ser perguntado sobre o que representava a foto, contou que ali eram todos recheio, recheio de bolo. O bolo era o vagão. E a hora dos “parabéns” era a chegada ao trabalho. Interessante observar que o “parabéns” - que representa alegria, comemoração - não era a chegada em casa, o descanso do dia de trabalho, mas sim a chegada ao trabalho. Para Jhonata, que desde criança trabalhava para ajudar no sustento da família, mas sempre em condições muito precárias de trabalho, a conquista de um emprego formal no comércio representava algo grandioso: “eu fui de um zero para um 10”, disse no momento em que mostrava a fotografia de seu lugar de trabalho e seus patrões. Parabéns para quem conquistou um trabalho e vai como recheio do transporte público superlotado até esta conquista.

Fonte: Acervo da pesquisa.

Figura 8 Recheio e medo 

Produção de vídeos

O último dispositivo utilizado nesta pesquisa foi o de vídeo, introduzido com o uso da mesma máquina digital entregue aos jovens. Com o dispositivo de vídeo esperava-se dar continuidade ao processo autorreflexivo dos jovens e, também, obter registros de imagens que poderiam ser usadas no vídeo documentário e que dificilmente poderiam ser registradas por uma equipe de filmagem sem que isto tivesse significativa interferência na situação registrada.

Maria registrou um começo de manhã. O filho se arruma para ir para a escola, ela faz o lanche do filho e se arruma para ir para o trabalho. Os dois saem juntos de casa despedindo-se do companheiro de Maria, padrasto de seu filho. Saindo de casa, em um dia chuvoso, registra em vídeo as dificuldades com transporte público que não funciona, as ladeiras que necessita descer e subir para sair de casa e chegar à escola do filho e termina em um longo plano sequência com a chegada ao trabalho. No trabalho, dá destaque à porta que representa a mobilidade social que conquistou com um emprego protegido, passa rapidamente pela recepcionista, a quem cumprimenta, entrando em seu espaço de trabalho ainda vazio. Aponta a mesa do chefe, das colegas e sua própria mesa, arrumada com foto do filho e demais objetos de trabalho.

Jhonata filmou momento caseiro, assistindo filme infantil e se divertindo com a filha enquanto sua namorada preparava enfeites para a festa de aniversário da enteada. Também registrou a saída de seu lugar de trabalho. Caminha pelas ruas do centro do Rio de Janeiro e conversa com a câmera antecipando o diálogo que viria a ter com os espectadores do filme de pesquisa, como se conversasse diretamente com um interlocutor presente. Aponta os trabalhadores que, como ele, se apressam no retorno para casa, os moradores de rua que vão se acomodando pelas calçadas ao cair da tarde, a chegada ao metrô e sua entrada no vagão suspirando aliviado por estar “vazio” - a olhos menos habituados ao metrô do Rio de Janeiro em horário de pico o vagão pode parecer cheio, mas, para ele, usuário frequente, efetivamente não está. O jovem, com câmera em punho, passa a comentar, com as pessoas do seu entorno, que está filmando seu caminho do trabalho para casa por estar fazendo parte de uma pesquisa e cita a universidade responsável por ela, e, em uma das paradas do metrô ao longo de seu caminho, encerra sua filmagem como que encerrando um diário filmado: “amanhã tem mais”, finaliza o jovem participante e produtor do filme de pesquisa. Sua produção audiovisual foi usada como encerramento do filme de pesquisa, ao se concluir a expressão das etapas de entrevista, grupo de discussão e acompanhamentos aos cotidianos dos jovens.

A produção fílmica de Alexandre registrou momentos de encontro cotidiano em família: a mãe, irmãos e sobrinhos, todos conversando animadamente, na sala da casa de um deles, enquanto chupavam picolés. Ele também filmou o bairro onde residia na infância, em região central da cidade e do qual sentia muita falta depois de ter se mudado para um bairro distante do centro no começo da juventude. De sua antiga casa avistava natureza exuberante e lugares turísticos muito valorizados da cidade. A paisagem descrita é filmada por Alexandre não como elemento da natureza, ele lhe confere dimensão simbólica e cultural do que perdeu ao se mudar para muito longe do centro da cidade. Se, no bairro central, tinha amplitude de horizonte com paisagem exuberante diante de seus olhos e espaços culturais ao alcance de uma caminhada morro abaixo, depois de se mudar percebia o horizonte encurtado: casas coladas umas às outras, paisagem degradada de um bairro periférico e muito distante do centro, com pouca infraestrutura urbana e ausente de espaços e equipamentos culturais.

Os registros em filme produzidos pelos três jovens mostraram momentos da vida privada que dificilmente conseguiriam ser registrados por equipe de pesquisa, seja por desconforto com a presença de estranhos dentro de casa seja por outros motivos que os levariam a não autorizar tal produção audiovisual com significativa carga invasiva dos cotidianos. A produção autoral pareceu, aos pesquisadores, uma alternativa que permitiu aos jovens, em processo de reflexividade sobre si e sobre suas relações familiares e de trabalho, escolher tanto o conteúdo quanto a forma de registrar aquilo que desejavam revelar à nossa pesquisa e a um público mais amplo.

Conclusões

A discussão sobre a escuta do outro em pesquisa social nos coloca frontalmente diante do desafio da objetividade. Vivemos num mundo de rápidas mudanças, complexidades e maior campo de possibilidades para que o sujeito que se quer escutar formule suas próprias representações sobre si e o mundo que o envolve. Neste contexto torna-se mais evidente a impossibilidade de observar com distanciamento e fora da relação com os outros. Pesquisar sob a égide da reflexividade nos desafia a pensar em noções múltiplas de interdependência e horizontalidade das relações. Deste ponto de vista, é preciso dizer que a realidade social que se quer investigar inclui aquele que a observa. O desafio é, em grande medida, o de decifração da linguagem que se revela no jogo de interações entre pesquisadores e pesquisados.

A linguagem é aqui compreendida em sua dimensão paradoxal de ser simultaneamente o fundamento constitutivo da palavra e o espaço para a sua expressão e redefinição. Ou seja, aquilo que é dito, é dito a partir de algum ponto de vista, mas só pode ser dito por estar situado na própria linguagem. Haveria, então, uma arbitrariedade dos limites entre “nós” e “eles”, isso porque os atores sociais se movem, falam, pensam, agem enquanto nós os observamos (Melucci, 2005 ).

Diante dessa impossibilidade de observar em ausência de interdependência, coloca-se o desafio de tensionar as fronteiras da relação entre observadores e observados para buscar compreender, além do material narrativo que emerge do contexto de pesquisa, aquilo que se produz no entrelugar.

A orientação teórico-metodológica que definimos como sociologia da individuação busca partir das experiências dos atores para descrever grandes desafios estruturais da sociedade. A mudança da pergunta, assim como a forma como se indaga, abre possibilidades para respostas surpreendentes. É a partir deste ponto de vista que lançamos mão de dispositivos de escuta reflexiva para provocar a narração situada de jovens populares sobre seus percursos de vida e itinerários formativos.

A utilização dos dispositivos acima referidos permitiu aprofundar as possibilidades reflexivas dos sujeitos participantes da pesquisa em torno de suas trajetórias de vida, das provas enfrentadas e dos suportes acionados por esses jovens no sentido da superação dessas provas.

A utilização das imagens no diálogo com os jovens da pesquisa demarcou duas entradas. A primeira apresentou imagens-conceito no dispositivo que denominamos de varal de fotos em que fotografias previamente selecionadas foram apresentadas aos jovens como provocação para que estes estabelecessem nexos com suas próprias experiências e expectativas de vida. Este dispositivo se mostrou significativo para reforçar a orientação da pesquisa que convidava a todo o instante os jovens a serem eles e elas também intérpretes de suas próprias vidas. A segunda entrada com dispositivos imagéticos se deu com o desafio fotográfico, um convite para que os jovens da pesquisa nos surpreendessem visualmente com a produção de fotografias e vídeos para narrar suas experiências, cotidianos e projeções de futuro.

Ao comparar as produções e retornos dos dois últimos dispositivos, foi possível observar o melhor resultado em termos de processo autorreflexivo expresso nas fotografias. Ainda assim, os vídeos efetivamente produziram imagens significativas para o filme de pesquisa, seja em função do olhar peculiar de cada jovem sobre suas realidades, seja pela preservação da cena vivida sem a interferência da equipe de pesquisa ou mesmo pela exclusiva interferência do jovem.

Os objetos de memória incluíram elementos de surpresa ao jogo da entrevista narrativa. Deram aos jovens narradores de si algo que fosse de conhecimento prévio apenas deles, jogando com o conhecido roteiro de entrevista portado pelos entrevistadores. O jogo da entrevista ficou mais equilibrado e as narrativas fluíram no compasso estabelecido também pelos jovens entrevistados.

O título deste artigo pode gerar a errônea impressão de que estamos realmente convencidos de que é possível escutar imagens que falariam por si só. O que buscamos afirmar é que as imagens falam através de seus narradores, quer sejam aqueles que a produziram, quer sejam aqueles que por elas foram afetados. No contexto de pesquisa, as imagens fotográficas permitiram que os jovens narradores se revelassem. No encontro com as imagens, puderam expressar o que pensam, sentem e imaginam, partindo do campo de reflexividade sobre as experiências que o encontro de pesquisa em bases dialógicas possibilitou.

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3 Disponibilidade de dados: Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi disponibilizado no drive institucional da Universidade Federal Fluminense e pode ser acessado em https://bit.ly/3xK468R

4O filme documentário da pesquisa intitula-se “Fora de Série” e pode ser assistido no seguinte endereço: www.filmeforadeserie.com

5Os nomes estão expressos neste artigo da mesma forma como aparecem no filme da pesquisa.

Recebido: 18 de Abril de 2023; Aceito: 11 de Julho de 2023

Contato: anakbrenner10@gmail.com

Contato: pc_carrano@id.uff.br

Editor:

Prof. Dr. Leandro R. Pinheiro

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