Introdução
A indiferença é a maneira mais polida de desprezar alguém.
(Mario Quintana).
Há um quadro onde meninos e meninas que, aparentemente, não percebem a gravidade do desprezo, da zombaria, da diminuição do outro, que insiste em se replicar, diariamente, na escola e naturaliza aquilo que jamais poderia se naturalizar na instituição educativa: a violência que tem no bullying uma de suas formas de manifestação. É sobre este fenômeno que tratará o presente artigo, deslocando, a priori, o olhar para aqueles que estão diretamente envolvidos nos atos de agressão que nele se enquadram. Nesse espectro, há um personagem, a vítima, cujo sofrimento é objeto de deleite para um autor (o agressor) que não parece ver à sua frente um ser humano igual e, com isso, não é capaz de se sensibilizar com sua dor. Desengajado moralmente, o agressor sente-se à vontade para agredir, maltratar e menosprezar (Olweus, 1993; Del Barrio et al., 2003; Menesini et al., 2003; Avilés, 2013; Tognetta; Avilés; Elvira, 2014).
Soma-se a esse sofrimento o fato de que o personagem em questão não consegue encontrar alternativas para se livrar de seu estado de vitimização. Com o passar do tempo, esse estado tende a se consolidar na representação que tem de si e, com isso, nessa dimensão ser alvo das intimidações de seus pares torna-se uma condição. Naturaliza-se, portanto, o seu papel e, como é recorrente em alvos de bullying, seus comportamentos tornam-se indicativos de uma certa concordância, inconsciente ou não, com aquilo que é apontado pelo autor (Ciucci; Fonzi, 1999), além da incapacidade de se desvencilhar das ofensas.
Ainda que a cena possa parecer fortemente envolvida por esses dois personagens, falta um terceiro elemento, capaz de instituir ou destituir o sentido dado pelo autor às agressões: a plateia que, aparentemente inerte, distante ou indiferente, está testemunhando tudo acontecer diante das cenas que acontecem à sua frente. Quando se tenta compreender o que está em jogo nessa abstenção, questiona-se: olhares opacos, indiferentes à angústia e ao sofrimento de outrem, têm como fim inevitável a omissão? Ou é a experiência do medo que, de tão intensa, se sobrepõe à ousadia necessária à ação?
É na tentativa de resolução desse dilema que se situa o objetivo deste artigo: investigar as possíveis diferenças na frequência das intimidações entre estudantes do Ensino Fundamental II em escolas onde foram implantados sistemas de apoio entre pares na percepção dos alunos. A literatura mundial tem indicado a diagnose precisa da participação de meninos e meninas em situações de violência: são muitos, em quantidade e qualidade (do ponto de vista moral), aqueles que mais assistem às cenas em relação àqueles que se envolvem na trama da intimidação como sofredores ou agressores (Craig; Pepler, 1997; Sutton; Smith, 1999; Juvonen; Salmivalli, 2012).
Sendo assim, especifica-se, intencionalmente, o foco que será recorrente neste estudo, visto que é importante olhar para aqueles que nada fazem em prol da vítima na maioria das ocasiões em que presenciam as agressões, seja por indiferença, seja por medo, seja por falta de instrumentos (Craig, Pepler, 1997; Hawkins; Pepler; Craig, 2001; Tognetta et al., 2010; Pöyhönen, Juvonen; Salmivalli, 2012). Serão verificadas, portanto, quais são as consequências subjacentes ao silêncio dos que, caso renunciassem a essa atitude de passividade, seriam efetivamente capazes de erradicar o bullying: as testemunhas.
Da plateia que assiste e permanece inerte
Ao redor, os risos e aplausos são os elementos que representam a materialização do desejo que perpassa as ações daquele que, à custa da dignidade ou do bem-estar do eleito para ser agredido, o faz necessariamente diante de uma plateia, já que, na tentativa de obter êxito social diante de seus pares (Olweus, 1993; Del Barrio et al., 2003; Avilés, 2013), carece de formas mais evoluídas de se situar em suas relações (Bentley, 1995).
O comportamento das testemunhas, portanto, é essencial aos sentidos aspirados pelo autor. Embora não estejam implicadas diretamente nas agressões, são elas que vão, ou não, atribuir a condição necessária à sua continuidade. De fato, estudos revelam que muitos espectadores podem reforçar, de forma significativa, os atos de agressão (Salmivalli et al., 1996; Craig; Pepler, 1997; Sutton; Smith, 1999) através de exibições de aprovação (por exemplo, sorrindo) ou incitações verbais diretas (Salmivalli; Voeten, 2004), atitudes representadas como um feedback positivo pelos autores de bullying. Estes são extremamente eficazes não apenas na escolha de seus alvos, mas também na percepção da hora e do local “adequados” para os ataques de forma que possam maximizar suas chances de demonstrar poder diante de seus pares.
Cientes de que o bullying é um problema grupal enquanto fenômeno, Salmivalli et al. (1996) identificaram três funções que podem ser assumidas por aqueles que presenciam essa forma de violência: assistentes dos autores e reforçadores das intimidações, espectadores ou defensores do alvo. Os primeiros correspondem àqueles que se unem aos autores (idealizadores dos maus tratos), fornecendo um feedback positivo para as intimidações (por exemplo, rindo, aplaudindo, ou apenas dando audiência); os espectadores, diferentemente, são os que preferem se distanciar das situações de bullying, não explicitando o seu posicionamento em relação ao problema; e, por fim, os defensores são aqueles que se colocam a favor dos alvos, apoiando-os e assumindo uma postura de reprovação em relação aos autores.
O’Connell, Pepler e Craig (1999) observaram o comportamento dos alunos em situações de bullying ocorridas no pátio de uma escola e identificaram uma correlação positiva entre o consentimento eventualmente demonstrado pelas testemunhas e a manutenção das agressões. Em contrapartida, os autores constataram que, quando elas manifestaram atitudes de reprovação, as agressões foram interrompidas em 75% dos casos. Na mesma linha, Mercer, McMillen, DeRosier (2009) verificaram, ao observarem as agressões ocorridas em grupos de brincadeiras experimentais envolvendo crianças situadas em uma faixa etária de 7 a 9 anos, que os comportamentos aversivos dos pares em relação aos agressores cresceram na proporção em que as testemunhas dos maltratos se posicionaram de forma favorável às vítimas.
Se, por um lado, a censura dos espectadores é um fator indispensável ao enfrentamento do bullying, por outro esse comportamento não parece ser muito recorrente (Craig; Pepler, 1997; Hawkins; Pepler; Craig, 2001; Pöyhönen; Juvonen; Salmivalli, 2012). Hawkins, Pepler e Craig (2001) constataram que os espectadores manifestaram apoio aos alvos em apenas 19% dos casos. Entretanto, em 57% das ocasiões em que essa atitude foi tomada, o bullying cessou em menos de 10 segundos.
Mais do que simplesmente revelar a relação existente entre a censura por parte das testemunhas e a diminuição dos atos de agressão que são empreendidos pelos autores de bullying, os estudos supracitados consolidam uma premissa que é, ao mesmo tempo, indicadora de perspectivas em prol da superação dessa forma de violência e reveladora de uma necessidade: meninos e meninas precisam se sentir encorajados e, consequentemente, motivados para agir. Esses sentimentos, imprescindíveis à ação, relacionam-se principalmente com a forma com que eles avaliam o cenário e com a percepção que têm dos efeitos de suas ações para os alvos (Gini et al., 2008; Thornberg; Jungert, 2012).
Assim, aqueles que acreditam ser a “maioria” dos que assistem aos atos, indiferentes ao problema do ponto de vista da análise e da proposição de ajuda, mostraram-se engajados moralmente para a resolução do problema, de acordo com uma pesquisa (Tognetta; Avilés; Rosário, 2014) em que foram analisados os engajamentos e desengajamentos morais de 1600 sujeitos diante de situações hipotéticas de bullying. Essa diferença é estatisticamente significativa quando há uma comparação quanto aos demais grupos – autores e vítimas. Schulman (2002), antes desses estudos, destacou uma importante conclusão sobre a maioria dos espectadores: estes, ao contrário do que se pode pensar, não apoiam os atos de agressão. Contudo, pelo medo e desconhecimento acerca das possibilidades de ajuda, a omissão corresponde à atitude mais comum (Salmivalli; Peets, 2009).
Dessa maneira, para que essa inércia possa ser suplantada pela ação – que, na ajuda ao alvo, encontra a sua maior expressão –, é necessário que a escola cumpra o seu papel e proporcione o apoio institucional adequado de forma que meninos e meninas se sintam mais à vontade em exercer seus papéis de defensores e intervir a favor dos alvos de bullying. “Cumprir o seu papel”, aliás, é tarefa que requer o desenvolvimento de estratégias para que os alunos possam ser efetivamente implicados na tarefa de superação do bullying, sendo capazes de observar as situações de intimidação e desempenhar um papel ativo na prevenção ao problema, conforme demonstram diversos trabalhos (Van Schoiack-Edstrom; Frey; Beland, 2002; Cowie et al., 2004).
Uma das maneiras que a escola tem de alcançar esses objetivos é implementar sistemas de apoio entre pares, ou seja, proporcionar formas de protagonismo infanto-juvenil nas quais os alunos são motivados a, voluntariamente, participar de ações visando o desenvolvimento da convivência ética nas instituições em que estudam. Estudos como os de Cowie e Wallace (2000) e Cowie e Fernández (2006) apontam para a eficácia dos sistemas de apoio entre pares na melhoria da convivência escolar e, por consequência, na diminuição do bullying (Avilés, 2006, 2013). Em comum a esses programas, há o fato de que, através deles, os alunos se tornam responsáveis por determinadas ações entre seus iguais, com o intuito de promover uma convivência que seja moralmente desejável. Os professores, por sua vez, assumem o papel de formadores, acompanhadores e tutores.
Implicar os alunos na tarefa de superar o bullying e na formação de um ambiente em que a cooperação adjetive as relações interpessoais parece ser um dos caminhos mais promissores para que a escola cumpra o seu papel diante do enfrentamento não só do bullying, mas de outros problemas que, em comum, revelam a necessidade de que as teias a serem tecidas pelos valores morais na instituição educacional sejam mais fortes. Para isso, urge às instituições educativas elaborar formas para que os estudantes possam participar da superação dessas questões, atentando-se a ocasiões de intimidação e exercendo uma função ativa nas estratégias de prevenção. Afinal, numerosas pesquisas atestam os ganhos para o clima escolar quando meninos e meninas se sentem pertencentes e participantes de formas de protagonismo infanto-juvenil (Van Schoiack-Edstrom; Frey; Beland, 2002; Cowie et al., 2004). Uma dessas formas de protagonismo são as chamadas “equipes de ajuda” (Avilés, 2013), que serão abordadas a seguir.
Essas equipes correspondem a grupos de referência na escola para que crianças e jovens, vítimas de bullying ou de outras formas de violência, possam buscar suporte e constituir estratégias para a solução de seus problemas. Seu principal fundamento se dá pela constatação de que, em grupos, trabalhando de forma colaborativa e unidos por uma mesma atividade, meninos e meninas se fortalecem e, a partir dessa condição, podem se ajudar mutuamente em momentos determinados, independente de suas idades. Desse modo, além de desenvolverem o protagonismo e a cooperação, não se sentem sozinhos diante da tarefa de ajudar (Avilés, 2013).
De acordo com Avilés (2013), na escola os membros das equipes de ajuda são responsáveis por ações diversas, tais como: acolher os colegas que apresentam dificuldades de socialização; auxiliar os alunos novos em sua adaptação junto aos demais de forma a ajudá-los na aproximação e no estabelecimento de novas amizades; auxiliar aqueles que estão envolvidos em situações de bullying, como vitimizados, a encontrar formas de superação dessas situações; e, por fim, reiterar, entre os próprios colegas, valores morais que possam ser eleitos principalmente por agressores que hierarquizam outros valores, em que a soberba, a intolerância, o poder sobre o outro, manifestados como desrespeito, estão presentes.
É possível comprovar esses avanços acionados pela inserção de tais propostas no interior de escolas? Em outras palavras: há diferenças na frequência de problemas de intimidação em escolas que implantam um sistema de apoio entre iguais na percepção de estudantes quando é analisado o que ocorria “antes” e o que ocorre “agora”, com as equipes de ajuda? Para responder a essa indagação, será apresentada a atual investigação.
Procedimentos Metodológicos
A presente investigação de caráter exploratório teve como objetivo investigar as possíveis diferenças na frequência das intimidações entre estudantes do Ensino Fundamental II em escolas onde foram implantados sistemas de apoio entre pares na percepção dos alunos. Participaram da amostra, escolhida por conveniência, um total de 270 adolescentes, estudantes do sexto ao nono ano de escolas públicas municipais da região metropolitana de Campinas, no interior de São Paulo, durante o ano de 2017. Nessas escolas, implantou-se, para tanto, uma proposta de formação para a convivência ética junto a professores, equipe gestora e alunos do colégio. Essa pesquisa foi aprovada junto ao Comitê de Ética sob número de processo CAAE: 660866.17.6.0000.5400.
É recente, no Brasil, a promulgação da lei antibullying, datada de fevereiro de 2016. Também é bastante atual a Lei nº13.663, de 14 de maio de 2018, que modificou o artigo XII da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a qual dispõe sobre a necessidade de desenvolver, em ambiente escolar, medidas preventivas, de diagnose e intervenção a formas de intimidação sistemática (bullying). Contudo, em termos de políticas públicas que sejam instauradas nas instituições de ensino, pouco se tem de exequível quando há uma comparação do Brasil com outras nações cuja essência da convivência escolar tem sido pensada e instituída como parte do currículo a ser trabalhado nos estabelecimentos de ensino. Dado o ineditismo de propostas dessa natureza no Brasil, a implantação de sistemas de apoio entre iguais sob a forma de “equipes de ajuda” tem sido realizada pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem), em parceria com o autor dessa proposta na Espanha, o professor José Maria Avilés Martínez.
A proposta de formação: prerrogativa para o funcionamento dos sistemas de apoio entre pares
Participaram do programa de implantação dessa proposta duas escolas do interior paulista que se propuseram a desenhar, coletivamente, um programa de implementação de convivência ética na comunidade educativa. Essas instituições educacionais atendem um total de 540 alunos de Ensino Fundamental I e II. Imbuídos da necessidade de repensar o clima da escola, os professores se dispuseram a, semanalmente, discutir os problemas que se apresentam no cotidiano da instituição e buscar, junto à literatura e às pesquisas, formas de solução que pudessem superar as dificuldades enfrentadas.
Segundo Moro et al. (2015), o clima escolar é compreendido como conjunto de percepções e expectativas compartilhadas pelos integrantes da comunidade escolar, decorrente das experiências vividas nesse contexto com relação aos seguintes fatores inter-relacionados: normas, objetivos, valores, relações humanas, organização e estruturas física, pedagógica e administrativa que estão presentes na instituição educativa.
A primeira ação foi ao encontro do que recomenda Lévy-Bruhl (1927): só se modifica uma realidade que se conhece. Nesse sentido, o projeto foi desenhado para se construir um instrumento de investigação que pudesse mensurar a qualidade do clima da escola. São conhecidas inúmeras pesquisas que constatam a importância de um clima positivo para que o desempenho escolar e as situações de violência na escola sejam superadas (Gaziel, 1987; Janosz et al., 1998; Gomes, 2005; Thiébaud, 2005; Cunha; Costa, 2009). O desenho desse instrumento foi construído e validado por Moro et al. (2015). Os dados foram discutidos com os educadores de cada escola e, a partir deles, foram definidos, com base na literatura mundial, os conteúdos que seriam discutidos: Formação da Personalidade Ética, o Autoconhecimento e o Conhecimento de Grupo, a Comunicação Construtiva e a Linguagem do Educador, as Regras na Escola, as Assembleias Escolares, os Valores da Escola, Conflitos e Construtivismo e os Problemas de Convivência.
Foram 40 educadores dessas duas escolas campineiras que passaram, assim, por 180 horas de formação e implementaram propostas de trabalho coletivo em suas escolas. Consolidaram-se importantes modificações já instauradas nessas instituições, como, por exemplo, a organização na grade curricular de um horário para que se pudessem trabalhar aspectos da convivência. Dessa forma, pensou-se na participação democrática a fim de elencar e buscar soluções coletivas para os problemas da escola em forma de assembleias 2 ou rodas de diálogo, bem como na inserção de procedimentos de educação moral que possam legitimar e reiterar a necessidade da aprendizagem e sedimentação dos valores morais eleitos.
Certamente, dentre outros feitos, o cotidiano da escola se modifica quando os educadores passam a utilizar outro paradigma para educar, como, por exemplo, a possibilidade de que os alunos tenham voz. Ao mesmo tempo, os estudantes são instrumentalizados para poder planejar, organizar e sistematizar os conteúdos para uma convivência pacífica. Não se resolve um problema de convivência pautado na violência sem a construção de outros instrumentos de resolução de conflitos que sejam assertivos. Da mesma forma, as sanções expiatórias não se extinguirão se não houver a compreensão de formas mais equilibradas de exercer a autoridade assegurando princípios aos quais não se pode renunciar.
Este é o exato contexto em que se torna possível a constituição de uma nova aprendizagem para as escolas brasileiras: as formas de protagonismo. Organizadas também em seções de formação de professores, foram discutidos e introduzidos os conteúdos acerca dos problemas de intimidação seguidos da implementação das equipes de ajuda. Escolhidos 3 pelos próprios alunos, os integrantes das equipes de ajuda passam por uma formação 4 para que sejam instrumentalizados a agir e, necessariamente, ajudar aqueles que mais precisam, colocando-se à disposição para acolhê-los, ouvi-los e, de forma assertiva, apoiá-los nas soluções dos problemas apresentados.
O instrumento de investigação
Optou-se por avaliar, junto aos 270 alunos do Ensino Fundamental II em que as equipes de ajuda atuavam, após um ano de trabalho, como seria a percepção dos alunos quanto a diferentes situações de intimidação antes e depois da implantação das equipes de ajuda. O questionário trazia, assim, 20 situações nas quais os alunos, das equipes de ajuda ou não, apontariam “O quanto você presenciou, viu ou soube de um colega na escola [...]” segundo as alternativas “Antes de ter as equipes de ajuda na escola”: nunca; uma ou duas vezes; muitas vezes e “Agora, com as equipes de ajuda na escola”: nunca; uma ou duas vezes; muitas vezes. Nesse questionário, os alunos não necessitavam se identificar, mas precisariam apontar se eram ou não membros das equipes de ajuda, constituindo-se, assim, uma variável importante no desígnio de possíveis mudanças que poderiam ser encontradas. A seguir, é apresentado o Quadro 1 que reúne as vinte situações de intimidação a serem identificadas pelos participantes.
Quanto você presenciou, viu ou soube de algum colega na Escola [...] |
---|
S1: [...] que recebeu mensagens pelo celular ou internet em que foi insultado, ameaçado, ofendido ou amedrontado. |
S2: [...] que foi filmado e utilizaram este vídeo para ameaçar ou chantagear o colega. |
S3: [...] que teve suas fotos ou imagens espalhadas na internet ou celular. |
S4: [...] que teve imagens ou fotos íntimas divulgadas na internet ou no celular. |
S5: [...] que teve seus pertences quebrados, roubados ou escondidos. |
S6: [...] que foi ameaçado e está com medo de permanecer na escola. |
S7: [...] que apanhou de um ou mais colegas. |
S8: [...] que foi insultado ou ofendido. |
S9: [...] de quem falaram mal, comentaram ou mostraram algo pessoal que ele não queria que os outros vissem ou soubessem. |
S10: [...] que foi forçado a fazer algo que ele não queria (trazer dinheiro, fazer tarefas, pagar lanches etc.) |
S11: [...] que foi discriminado, zoado, tirado sarro por usar óculos, ser pequeno, ser alto, ser magro, ser gordo, ser negro, ser branco, ser ruivo etc. |
S12: [...] que foi acusado de algo que não fez. |
S13: [...] que foi vítima de chantagens dos colegas. |
S14: [...] que foi excluído de um grupo, brincadeira, festa ou outra atividade. |
S15: [...] que foi ignorado pelos colegas que fingiram que ele não existia. |
S16: [...] que foi impedido de participar de atividades e jogos na escola |
S17: [...] com que fizeram brincadeiras ou gozações que o aborreceram ou o deixaram constrangido. |
S18: [...] que foi apelidado com algo que não gosta. |
S19: [...] de quem inventaram mentiras a respeito dele. |
S20: [...] de quem falaram mal aos outros. |
Fonte: Elaborado pelos autores (2018).
Resultados e Discussão
Haveria diferenças na frequência das intimidações distinguidas pelos participantes da pesquisa quanto à sua percepção entre “antes” e “depois” da implantação do sistema de apoio? A resposta a essa pergunta distingue-se em duas comparações: para as variáveis categóricas entre os dois momentos, foi utilizado o teste de McNemar; para variáveis numéricas, foi utilizado o teste de Wilcoxon para amostras relacionadas. Com os testes descritos, foi possível indicar as mudanças significativas no escore total das frequências de intimidação entre os momentos “antes” e “depois”. Com auxílio da Figura 1, é possível destacar os resultados encontrados. Nota-se que, no gráfico, as situações marcadas com asterisco demonstram a mudança significativa, entre os momentos, no escore total.
Nota: As situações de intimidações apontadas aqui como “S1”; “S2”; “S3” etc. estão descritas, cada uma delas, no Quadro 1. As situações apontadas com asterisco se referem as formas intimidação que tiveram diminuição estatisticamente significativa. Fonte: Elaborada pelos autores (2018)
Destaca-se que, em 9 das 20 das possíveis formas de intimidação apresentadas, conforme a percepção dos alunos, houve uma diminuição das situações de intimidação. Além disso, com a aplicação dos testes já destacados, essa diferença é estatisticamente significativa (p<0,01) para esses resultados. Nas demais formas de intimidação, contudo, constata-se que não houve aumento da frequência depois da implantação das equipes de ajuda. Assim, na percepção dos alunos houve diminuição da frequência das seguintes formas de intimidação: 1* mensagens de insulto pelo celular (p<0,0143); 3* fotos na Internet/celular (p<0,0114); 6* ameaça e medo (p<0,0339); 7* apanhar dos colegas (p< 0,0339); 9* falar mal (p<0,0339); 11* que foi discriminado (p<0,0114); 12* acusações (p<0,0006); 17* brincadeiras/constrangimento (p<0,0339); e finalmente, 19* mentiras (p<0,0209).
Um fato a ser considerado para o cumprimento do objetivo proposto foi refutar a hipótese de que seriam os próprios alunos das equipes de ajuda quem teriam indicado em suas respostas a diminuição dessas formas de intimidação, conduzindo, portanto, os resultados para este fim. Para comprovar ou descartar essa hipótese, foi aplicado o teste das Equações de Estimação Generalizadas (EEG) com o objetivo de saber se a variável “pertencer às equipes de ajuda” interferiria nos resultados encontrados. Para atender ao objetivo de se destacar as possíveis diferenças entre os sexos, o referido teste também foi utilizado. Com o auxílio da Tabela 1, é possível constatar os resultados encontrados.
Situação de intimidação | Valor – p (Antes-Após) | Valor – p Equipes de Ajuda |
---|---|---|
S1 | 0,0143 | 0,1623 |
S2 | 1,0000 | - |
S3 | 0,0114 | 0,3484 |
S4 | 0,6547 | 0,2784 |
S5 | 0,3173 | 0,3140 |
S6 | 0,0339 | 0,2908 |
S7 | 0,0339 | 0,2374 |
S8 | 0,1317 | 0,2575 |
S9 | 0,0339 | 0,8201 |
S10 | 0,1797 | 0,5034 |
S11 | 0,0114 | 0,0012 equipe 2 🡣 |
S12 | 0,0006 | 0,4388 |
S13 | 0,7815 | 0,3188 |
S14 | 0,4795 | 0,1629 |
S15 | 0,1655 | 0,3181 |
S16 | 0,0588 | 0,5780 |
S17 | 0,0339 | 0,1014 |
S18 | 0,0833 | 0,5225 |
S19 | 0,0209 | 0,6027 |
S20 | 0,2568 | 0,7295 |
Soma Total | <0,0001 | 0,2693 |
Nota: Resultados das Equações de Estimação Generalizadas (EEG) para comparação das respostas entre tempos (antes-após), entre equipes de ajuda, modelando o percentual de respostas “uma ou mais vezes” nas questões individuais.
Fonte: Elaborada pelos autores (2018).
Nota-se que apenas um caso – S11 (zoação e discriminação) apresentou diferença significativa por fazer parte das equipes de ajuda, considerando-se que a diminuição dessa frequência foi mais sentida pelos últimos (p=0,0012). Logo, constata-se que a variável “ser da equipe de ajuda” não influenciou nesses resultados.
Considerações Finais
A complexidade com que se apresenta um fenômeno nada recente, mas notadamente tomado como objeto de investigações atuais, explica a urgência de ações pelas quais os “estrangeiros na própria terra” possam superar as condições e contradições que se apresentam no âmbito de onde se identificam: no “grupo” de pares. Desse modo, se o bullying é um fenômeno grupal, as iniciativas de prevenção e superação da violência nele contidas se voltam ao próprio núcleo das relações que se constituem na escola.
Nessa perspectiva, a “Ajuda entre Iguais” (Peer Support) apresenta-se como uma importante ferramenta de prevenção e combate ao bullying, visto que a ajuda vem exatamente daqueles que assistem ou mesmo participaram de ação violenta anteriormente. Essas estratégias de apoio entre iguais atuantes em escolas são resultadas de propostas realizadas desde os anos setenta, a partir de tradições educativas do Canadá e Estados Unidos e firmando-se, depois, na Inglaterra e nos países nórdicos. Assim, sem ineditismos, esses sistemas de apoio são já amplamente difundidos em outros países. Sem dúvida, as iniciativas dessa proposição no Brasil estão atrasadas, visto que não há, em termos de políticas públicas sistematizadas, ações de combate e prevenção dos fenômenos aqui tratados.
Assim, é atestado que a ajuda entre pares pode diminuir a frequência das intimidações na escola. Além disso, permite instituir na instituição educacional uma implicação por parte daqueles que pareciam indiferentes, mas que dispõem de formas mais equilibradas nas relações entre iguais devido à existência de um grupo de alunos que são escolhidos pelos próprios pares. Certamente, a preocupação do estudo e sistematização dos conteúdos de ajuda, assertividade, colaboração e a eminência de valores antes sobrepujados às disciplinas escolares e, agora, expressos nas falas, posturas e ações dos alunos de equipes de ajuda, são objetivos a serem atingidos por aqueles que desejam fazer, da escola, um espaço de convivência onde a solidariedade, a justiça, o respeito e o diálogo estejam presentes.
Os resultados desta investigação reverberam que a diminuição dos índices de formas de intimidação presentes nas escolas é uma possibilidade exequível. Salientam, também, a sensação de segurança e proteção frente aos pares que, notadamente, podem ser vistos não mais como estrangeiros, mas pertencentes a uma mesma coletividade que, em comum, compartilha a necessidade de aceitação e respeito. Tão importante quanto a atuação de um modelo de intervenção que proporciona a quem assiste à cena da violência ser ativo na ajuda a quem sofre e a quem age mal, é a constituição de um conjunto de espectadores que não se comportam mais de maneira passiva frente às situações de bullying.
Este estudo corrobora pesquisas citadas anteriormente que apontam para uma diminuição da frequência de situações de bullying após a implementação dos sistemas de apoio dado pelos próprios colegas no ambiente escolar. O formato de suporte permite que os adolescentes atuem como “promotores” da boa convivência e de uma melhora na qualidade das relações. O fato de que alguns tipos de intimidações tiveram uma melhora mais significativa que outros, pode ser explicado pelo trabalho específico desse grupo de alunos, dentro de uma possibilidade de que essa tipologia seja, dentre as vivenciadas pelos alunos, as que eles mais conseguiram identificar e atuar. As equipes de ajuda são responsáveis por algumas ações, como acolher os pares que têm dificuldades de fazer novas amizades e auxiliar aqueles que estão envolvidos em situações de bullying, como vitimizados, a encontrar formas de superação dessas situações.
Salienta-se que este estudo buscou evidenciar a percepção dos alunos para a frequência e a tipologia dos maus tratos. Assim, não foi possível mensurar a melhora na convivência entre os alunos, bem como seu aspecto qualitativo. Acredita-se que, em estudos futuros, esses fatores deverão ser analisados, pois, se o bullying não é o problema mais frequente vivenciado por crianças e jovens em ambiente escolar, atentar-se somente para os dados quantitativos não indica alguns aspectos embutidos na qualidade das relações que se estabelecem, todos os dias, nas escolas.
Ademais, a limitação deste estudo quanto à percepção temporal dos alunos também deve ser destacada. Não há garantias de que as respostas correspondam aos fatos presenciados com a distância entre o “antes e o depois”. Contudo, a análise das respostas dos alunos e a evidência de que não são somente aqueles participantes das equipes de ajuda que mostraram a diminuição da frequência dos maus-tratos, demonstra um indicativo de que a “função” desse sistema de apoio foi atingida: a convivência pacífica mais do que a violência, mesmo escondida, parece ter se “espalhado” pela escola.
Os referidos resultados permitem entender que o fervor das chamas pelas quais o bullying e os demais problemas de violência atingem os meninos e meninas em escolas brasileiras (e estrangeiras) não será resolvido com “bombeirismos”, ou com modelos pontuais de ações que apenas aparecem em momentos de crise. Pelo contrário, somente será dissipado quando esses fenômenos forem compreendidos em sua natureza moral e, como tal, reiterados pela participação coletiva de quem realmente convive e faz da convivência um valor.