Introdução
Neste artigo, será apresentado um estudo exploratório, descritivo e qualitativo (Bogdan; Biklen, 1994), realizado com o propósito de discutir a formação continuada para professores alfabetizadores promovida pelo Ministério da Educação em 2020. Trata-se do Programa “Tempo de Aprender”, instituído pela Portaria nº 280, de 19 de fevereiro de 2020 (Brasil, 2020a), idealizado pela Secretaria de Alfabetização do Ministério da Educação (MEC).
O referido programa segue o direcionamento da Política Nacional de Alfabetização (PNA), que prevê a aplicação de práticas baseadas em evidências científicas nacionais e internacionais, com ênfase na ciência cognitiva da leitura e na neurociência. O “Tempo de Aprender” está organizado em versões online e presencial e destina-se a professores, coordenadores pedagógicos, diretores escolares e assistentes de alfabetização, sendo indicado para o último ano da Educação Infantil e para o primeiro e segundo anos do Ensino Fundamental.
A modalidade online teve início no primeiro semestre de 2020 no Ambiente Virtual de Aprendizagem do MEC, e a modalidade presencial tinha a previsão para o segundo semestre do referido ano e seria operacionalizada por meio de um modelo de multiplicadores. Em virtude da pandemia da Covid-19, esta etapa ainda não se efetivou.
O programa na versão online está organizado em oito módulos, sendo que, neste trabalho, centrou-se a análise nos vídeos dos módulos 1, 2 e 3, observando aspectos como o tempo de duração dos vídeos, os ambientes filmados, os sujeitos envolvidos, a dinâmica das aulas e as orientações direcionadas ao professor, bem como a concepção de ensino, de aprendizagem, de alfabetização e de metodologia indicada para o ensino da leitura e da escrita das crianças. Além disso, foram analisados os textos explicativos de cada vídeo e os recursos disponibilizados para download.
O “Tempo de Aprender” fundamenta-se em evidências científicas e, embora algumas pesquisas nacionais sejam citadas no programa, o que se identifica, na verdade, é uma desconsideração dos estudos e das pesquisas brasileiras e uma majoritária referência a estudos internacionais. Ao que tudo indica, há um intencional apagamento dos estudos nacionais sobre alfabetização, negando, inclusive, a discussão sobre letramento. Esse conjunto de negações visa, segundo Mortatti (2019, p. 45), “a destruição simbólica do extenso corpo de conhecimento sobre alfabetização (e sua complexa multifacetação)” já consolidado no Brasil.
Diante dessa opção do MEC, a Associação Brasileira de Alfabetização (2020) emitiu um posicionamento frente ao programa de alfabetização “Tempo de Aprender”. Dentre os aspectos ressaltados, há críticas quanto ao fato de o programa ter sido proposto de forma unilateral, desconsiderando o diálogo e o debate com os diferentes grupos de pesquisa, com universidades brasileiras e com entidades interessadas na construção de políticas públicas para a qualificação da alfabetização no país. Considera-se pertinente destacar que existem 95 grupos de pesquisa em alfabetização espalhados por diversas universidades brasileiras (Schwartz; Frade; Macedo, 2019).
Assim, entende-se que a ínfima referência dada à produção brasileira pela Política Nacional de Alfabetização e pelo “Tempo de Aprender” demonstra um desconhecimento do que acontece no país há mais de 40 anos ou trata-se de um afrontamento para com a comunidade científica do campo da alfabetização. É válido ressaltar, como coloca Macedo (2019, p. 63), que, desse modo, o governo atual, ao assinar o decreto que institui a PNA, “assume a condição de subalternidade ao se negar a reconhecer o avanço que a pesquisa sobre alfabetização no Brasil alcançou nas últimas quatro décadas”.
Os princípios do referido programa seguem a PNA, cuja didática pode “levar a uma homogeneização” de um ensino “mecânico e padronizado” em todo o país, com uma supremacia associacionista em práticas alfabetizadoras, as quais, segundo Mortatti (2019), infringem princípios como os da pluralidade de ideias e da relatividade de conceitos científicos.
Tendo em vista todas essas questões que vêm sendo problematizadas em torno do Programa “Tempo de Aprender” e da PNA, considera-se importante apresentar, na sequência do texto, as discussões do campo da alfabetização, destacando os trabalhos dos seguintes autores: Ferreiro e Teberosky (1985); Frade (2003; 2019); Soares (2004a; 2004b; 2004c; 2006); Morais (2005; 2019a; 2019b); Albuquerque e Leite (2010); Brandão e Leal (2010).
Em seguida, discorre-se sobre o programa de formação de professores “Tempo de Aprender”, buscando contextualizar o curso como um todo. Posteriormente, trata-se especificamente sobre a formação continuada em práticas de alfabetização, evidenciando o foco dado à audição como período preparatório para alfabetização e ao conhecimento alfabético.
Nas considerações finais, problematiza-se a concepção reducionista do curso, indicada como uma instrução programada a ser seguida em etapas com materiais previamente determinados. Além disso, discute-se o modo como a sala de aula foi organizada para as vídeo/aulas, evidenciando que os contextos foram forjados e não correspondem à realidade das escolas brasileiras. Por fim, questionam-se as concepções teóricas e metodológicas do “Tempo de Aprender”, uma vez que o processo de alfabetização compreende muito mais do que repetir sons, combinar letras e seguir instruções.
Pressupostos da alfabetização
Estudos no campo da História da Alfabetização no Brasil indicam que houve, na década de 80, dois marcos importantes: a tradução para o português da obra Psicogênese da Língua Escrita, de Ferreiro e Teberosky (1985), e o aparecimento do termo letramento, apresentado e discutido por Soares (2004b; 2006). Esses dois marcos trouxeram consideráveis mudanças nas práticas alfabetizadoras.
A Psicogênese da Língua Escrita é uma teoria de aprendizagem que concebe a criança como um sujeito ativo que pensa sobre a língua escrita, a qual, por sua vez, é vista como um objeto de conhecimento. Portanto, independentemente do método de alfabetização adotado (sintético ou analítico) a criança cria hipóteses sobre a escrita, passando por níveis conceituais até chegar na escrita alfabética. Soares identifica uma incompatibilidade entre “[...] paradigma conceitual psicogenético e a proposta de métodos de alfabetização” (Soares, 2004c, p. 11).
O letramento é, segundo Soares (2006), um neologismo, e versa sobre práticas sociais de leitura e escrita, ou seja, para as crianças entenderem a função social da língua escrita precisam estar imersas em diferentes práticas que a utilizam. Ao distinguir e nomear de forma diferente a aquisição e o uso da língua escrita, Soares (2004c, p. 11) adverte que “[...] defender a especificidade do processo de alfabetização não significa dissociá-lo do processo de letramento” ao contrário, o processo de “[...] entrada no mundo da escrita” ocorre “pela aquisição do sistema convencional de escrita” juntamente com o “[...] uso desse sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua escrita” (Soares, 2004a, p. 25). De acordo com a referida autora, o esperado é que a alfabetização se realize associada às práticas de letramento.
Contudo, o que se observa é que, em muitos casos, a Psicogênese da Língua Escrita e o letramento foram indevidamente interpretados como uma proposta na qual bastaria levar livros para a sala de aula, ler histórias para as crianças e organizar um ambiente alfabetizador que, naturalmente, elas aprenderiam a ler e escrever. O confronto epistemológico que ocorreu nos anos 80 e 90 sucedeu-se na passagem de uma perspectiva empirista para uma inatista, em que a aprendizagem da leitura e da escrita foi naturalizada, assim como um conhecimento acontece com o tempo.
Nessa perspectiva Nogueira (2011) destaca que Frade (2003) e Morais (2006) entendem que é:
[...] importante retomar a discussão também no âmbito acadêmico sobre a especificidade da alfabetização e sobre metodologias do ensino da leitura e da escrita, uma vez que, no afã de seguir as tendências das ciências linguísticas e da Psicogênese da Língua Escrita, o abandono dos métodos ficou evidente
(Nogueira, 2011, p. 91).
Além disso, de acordo com Frade (2003, p. 19) “[...] as soluções para nossos problemas metodológicos são de natureza complexa e a discussão da relação entre os métodos e a aprendizagem precisa entrar novamente na pauta das pesquisas [...]”.
Sendo assim:
[...] é imprescindível que o ensino da língua escrita ocorra por meio de uma metodologia que reconheça a criança como um sujeito capaz de realizar práticas envolvendo a leitura e a escrita antes mesmo de estar alfabetizada e, ao mesmo tempo, reconheça as especificidades da alfabetização
(Nogueira, 2011, p. 91).
De acordo com Morais e Silva (2010), desde a Educação Infantil, as crianças apreciam brincar com as palavras e com as rimas por meio de cantigas populares, de parlendas e de adivinhações que circulam em seu contexto social, por meio de propostas pedagógicas que privilegiam a consciência fonológica. Contudo, os autores advertem que não se trata de defender o retorno dos métodos fônicos para alfabetização e esclarecem que consciência fonológica é diferente de consciência fônica, pois contempla unidades sonoras como sílabas e rimas.
Nesta seção, foram citados apenas alguns pesquisadores que têm contribuído para a reflexão sobre a alfabetização no Brasil, os quais defendem que a língua escrita precisa ser ensinada e que suas especificidades devem ser compreendidas pelas crianças em um processo interativo e de construção. Na seção seguinte, será apresentado o que vem sendo proposto pelo governo federal para formação de professores alfabetizadores a partir de 2020.
O programa “Tempo de Aprender”
O programa “Tempo de Aprender” foi estabelecido com a finalidade de “melhorar a qualidade da alfabetização em todas as escolas públicas do Brasil” (Brasil, 2020a, online) e de “enfrentar as principais causas das deficiências na leitura e na escrita” (Brasil, 2020a; 2020b, online). Entre elas, destacam-se: déficit na formação pedagógica e gerencial de docentes e gestores; falta de materiais e de recursos estruturados para alunos e professores; deficiências no acompanhamento da evolução dos alunos; e baixo incentivo ao desempenho de professores alfabetizadores e de gestores educacionais (Brasil, 2020b).
Seguindo as diretrizes da Política Nacional de Alfabetização, o “Tempo de Aprender” propõe ações estruturadas em quatro eixos: (1) formação continuada de profissionais da alfabetização; (2) apoio pedagógico para a alfabetização; (3) aprimoramento das avaliações da alfabetização; e (4) valorização dos profissionais da alfabetização.
Para fins deste trabalho, será discutido o eixo que trata da formação continuada de profissionais da alfabetização, analisando especialmente o conjunto de vinte e um vídeos disponibilizados na modalidade online que contemplam as dimensões pedagógicas do processo de alfabetização. A versão online da formação continuada em práticas de alfabetização do programa “Tempo de Aprender” é realizada com o suporte do Sistema On-line de Recursos para Alfabetização, desenvolvido pelo Laboratório de Tecnologia da Informação e Mídias Educacionais, da Universidade Federal de Goiás. A arte, diagramação, edição e manutenção da plataforma também ficam a cargo do Laboratório de Tecnologia da Informação e Mídias Educacionais. O Sistema On-line de Recursos para Alfabetização é uma ferramenta que dispõe de recursos pedagógicos como estratégias de ensino, cartazes, fichas e outros recursos adicionais baseados em evidências científicas e em práticas exitosas em alfabetização, validado por uma equipe de mais de vinte especialistas da Secretaria de Alfabetização do MEC. Os elementos dessa formação inspiram-se em recursos pedagógicos elaborados pela Florida Center for Reading Research, centro ligado à Florida State University.
O público-alvo prioritário dessa formação continuada são, conforme documentos oficiais do MEC (Brasil, 2020a; 2020b), professores da Educação Infantil (último ano da pré-escola) e alfabetizadores (1º e 2º ano), instituído a partir da PNA para colocar o Brasil no rol de países que adotam evidências científicas como balizas para suas políticas públicas, buscando atender as metas 5 e 9 do Plano Nacional de Alfabetização (Brasil, 2020c; 2020d).
Com relação à formação dos professores, o “Tempo de Aprender” indica que pretende proporcionar aos docentes conhecimentos e estratégias relacionados à aprendizagem da leitura e da escrita de forma sistêmica e orgânica, com o intuito de melhorar o desempenho dos alunos no ciclo de alfabetização. Sendo assim, os professores “poderão não só se aprofundar no processo preparatório e efetivo de alfabetização de outros anos e etapas, mas também beneficiar a sua própria regência de sala de aula” (Brasil, 2020c, p.1).
Colocações como essas são reiteradas diversas vezes, ao longo do curso veiculado nos vídeos analisados. Ao refletir sobre a perspectiva indicada, questiona-se qual a concepção de sujeito dessa proposta.
Entende-se que a criança não é um sujeito passivo no processo de aprendizagem; ao contrário, ela pensa, reflete, analisa, cria hipóteses, constrói e reconstrói conhecimentos. Além disso, a criança vive em um contexto multifacetado (histórico, geográfico, social, cultural, etc.) que precisa ser considerado nas relações entre ensino e aprendizado. Conforme ressalta Maciel (2019, p. 58) “O alfabetizador tem diante dele um grupo de alfabetizandos com histórias, conhecimentos, condições socioeconômicas culturais distintas e cabe ao alfabetizador saber lidar com esse aluno no seu todo e não apenas em uma fatia do que é necessário ao aprendizado da leitura e da escrita”.
Nesse cenário da PNA, constata-se que o último ano da Educação Infantil é considerado no programa “Tempo de Aprender” como “período preparatório”, e que o ciclo de alfabetização passa a ser os dois primeiros anos do Ensino Fundamental. Essa premissa traz à tona algo que parecia estar superado no campo da Educação Infantil, isto é, a visão preparatória dessa etapa da Educação Básica.
Em um de seus trabalhos, Morais (2005) discorre sobre a ineficácia de práticas que visam preparar as crianças para se alfabetizarem com treinos e repetições. Segundo o autor:
Para alcançar a “prontidão”, treinava-se o aluno, na educação infantil ou no começo da primeira série, nas já mencionadas habilidades de memória e perceptivo-motoras. Diariamente os alunos eram submetidos a atividades como cobrir pontinhos ou copiar linhas sinuosas, cobrir vogais com feijões, etc. Na verdade a escola não permitia que o aluno convivesse com a linguagem escrita – não se liam textos dos diversos gêneros que circulam socialmente – nem criava situações para o aluno refletir sobre como a escrita alfabética funciona. Não havia uma reflexão sobre as palavras em si
(Morais, 2005, p. 40).
A proposta que prevê a preparação da criança na pré-escola configura um retorno ao que ocorreu na década de 90, momento em que os órgãos internacionais, como Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional, condicionavam os empréstimos às políticas educacionais no país. O Banco Mundial foi um dos grandes indutores de programas de Educação Infantil em uma perspectiva que “[...] apoia-se no modelo formal de educação pré-escolar e está diretamente ligada ao ensino fundamental, pois concebe esta etapa uma prolongação antecipada da escolarização, com o objetivo de prevenir o fracasso escolar e, consequentemente, economizar recursos” (Lucas, 2008, p. 54).
Obviamente, não se desconsidera o importante papel pedagógico realizado no cotidiano da Educação Infantil, tampouco negligencia-se o direito das crianças às práticas que privilegiem as diversas linguagens, entre elas, a escrita. Haja vista a “Coleção Leitura e Escrita na Educação Infantil”, publicada em 2016, conhecida nacionalmente por ter sido indicada pelo MEC como um dos documentos orientadores para formação continuada dos professores da Educação Infantil no Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa de 2017 e 2018.
Desse modo, entende-se que o que está sendo proposto pela PNA e reiterado na formação do “Tempo de Aprender” rompe com a perspectiva de leitura e de escrita defendida para a Educação Infantil no momento do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, o qual se ancora nas Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil (Brasil, 2009).
Formação continuada em práticas de alfabetização
A formação continuada em práticas de alfabetização do programa “Tempo de Aprender”, também denominada Curso On-line de Formação de Professores, possui uma carga horária de 30 horas, organizadas nos seguintes módulos: (1) Introdução; (2) Aprendendo a ouvir; (3) Conhecimento alfabético; (4) Fluência; (5) Vocabulário; (6) Compreensão; (7) Produção de escrita; e (8) Avaliação.
Considerando os limites deste artigo, será dado foco à análise dos vinte e um vídeos que compõem os módulos 1, 2 e 3, buscando apreender, como anunciado na introdução, o tempo de duração dos vídeos, os ambientes filmados, os sujeitos envolvidos, a dinâmica da sala de aula, as orientações direcionadas ao professor, a concepção de ensino e de aprendizagem, o processo de alfabetização e a metodologia indicada para o ensino da leitura e da escrita das crianças.
O módulo 1 apresenta a organização geral do curso, o Sistema On-line de Recursos para Alfabetização e os oito módulos que compõem a formação. Dentre estes, destacam-se seis módulos essenciais para o sucesso na alfabetização; cada ícone representa um módulo do curso com a seguinte caracterização: Módulo 2: Aprendendo a ouvir – trata da consciência dos sons da linguagem; Módulo 3: Conhecimento Alfabético –, apresenta práticas de ensino sobre as relações entre as letras e seus sons.
Logo no início do curso, e em diversos outros momentos, é explicado que as escolhas pelas temáticas dos módulos estão pautadas no relatório internacional National Reading Panel, publicado em 2000, o qual é anunciado como o maior estudo sistemático a respeito da leitura, tendo por base estudos de caráter experimental validados cientificamente que “comprovam” o sucesso na alfabetização. Assim como Mortatti (2019, p. 27, grifo do autor), interpreta-se que estas são:
[…] estratégias de persuasão a respeito da cientificidade exclusivamente das “evidências científicas” das ciências cognitivas, especialmente a da leitura, e a correlação direta entre desejo de alinhamento ao “progresso científico e metodológico” “no mundo” e melhoria da qualidade e a eficácia da alfabetização no Brasil.
Nos vídeos analisados, constatou-se uma forte “didatização” do “Tempo de Aprender”, buscando facilitar a aplicação, por parte do professor, das atividades indicadas passo a passo. Os conteúdos e as imagens veiculados são apresentados em infográficos, com textos sintéticos visando à retomada de conceitos e/ou de informações, e as etapas da aula são repetidamente anunciadas, evidenciando o caráter prescritivo da referida formação, conforme é possível observar nos seguintes excertos: “Este vídeo apresenta o principal recurso que disponibilizamos para você aplicar diretamente na sua sala de aula: a estratégia de ensino” (Brasil, 2020c, p. 3)3 e ainda “Utilize a estratégia a seguir para ensinar seus alunos a reconhecer diferentes sons e orientá-los no desenvolvimento da orientação espacial a partir dos estímulos sonoros” (Brasil, 2020c, 0min 26seg)4.
Nos vinte e um vídeos que compõem os três módulos analisados, as situações de sala de aula apresentadas evidenciam os sujeitos que estão diretamente envolvidos no processo de alfabetização, um professor ou uma professora (sempre os mesmos) e uma turma composta em média por vinte alunos. Em todos os vídeos, os professores vestem um jaleco branco e os alunos, em sua maioria, estão de uniforme. Chama a atenção que em uma mesma sala de aula há crianças com diferentes uniformes, alguns referentes à Educação Infantil e outros ao Ensino Fundamental, sendo que todos os uniformes são de escolas de Brasília5. Esses dados indicam que não se trata de uma turma real e sim simulada para fins de filmagem do curso. Segundo orientações do programa, as turmas podem ser do último ano da Educação Infantil ou do 1º e 2º ano do Ensino Fundamental. Contudo, verificou-se que alguns alunos se repetem em diferentes turmas, inclusive quando o professor é trocado, o que também indica que as turmas foram organizadas para as filmagens, tendo em vista os objetivos de cada aula e/ou módulo. Os ambientes filmados correspondem exclusivamente à sala de aula, com mesas e cadeiras enfileiradas, não havendo diversificação na organização dos tempos e dos espaços escolares.
A rotina da aula segue um planejamento rígido direcionado pelo professor ou pela professora, sem interação e troca de ideias entre os alunos. Nos vídeos analisados, também não se observam os docentes circulando pela sala e acompanhando o desenvolvimento dos alunos em suas atividades, as quais demandariam observação sistemática, registro e intervenções, visando à qualificação do processo de aprendizagem.
No conjunto de vídeos examinados, as estratégias de ensino foram apresentadas como principal recurso para colaborar no processo de alfabetização. Para tanto, sugerem aos professores que utilizem essa ferramenta no ensino de novos conteúdos. As estratégias são disponibilizadas por meio de vídeos demonstrativos que seguem sempre os seguintes passos: (1º) professor explica e demonstra; (2º) professor e alunos praticam juntos; (3º) alunos praticam em conjunto; (4º) prática individual. Além disso, há duas seções que indicam sugestões de suporte para erros e dificuldades esperadas, variações e adaptações. Essas orientações também são sistematizadas e disponibilizadas para download em fichas, com descrição completa sobre como proceder em sala de aula e com indicação de recursos pedagógicos específicos.
Em relação aos referidos passos, destaca-se que, no segundo e no terceiro momento da aula, à medida que o professor ou a professora apresentam orientações ou perguntas à turma, são esperadas as respostas dos alunos. Caso as crianças não compreendam bem a atividade ou respondam de forma diferente do esperado, devem realizá-la de forma individual; se persistirem os erros, o professor deve retroceder e refazer as mesmas etapas usando outros recursos. Nessa concepção, o aprendizado ocorre por meio da repetição, baseado no estímulo (perguntas do professor e respostas com uma única possibilidade esperada), o que configura um ensino diretivo, centrado na memorização, na repetição e na reprodução.
Na maioria das vezes, o professor elabora perguntas bem específicas, as quais ele mesmo responde. Cabe destacar que, nos vinte e um vídeos analisados, não foram identificadas diferentes possibilidades de respostas ou reflexão sobre o que está sendo ensinado, como pode ser observado no excerto 16, disposto a seguir:
Pra.: Muito bem! Então agora nós vamos aprender a identificar palavras que rimam. As rimas acontecem quando duas palavras têm os sons finais parecidos.
Prestem atenção! gato – pato.
Olha só essa outra rima aqui! pé – chulé.
Outra ainda: farinha – madrinha.
Agora, João e melancia. São palavras que rimam?
Professora responde imediatamente:
Pra.: Não! Não são palavras que rimam! Mas limão e botão rimam, porque elas terminam com sons parecidos
(Brasil, 2020c, aula 2.6, 0min 20seg).
Além disso, constatou-se que os vídeos e as fichas possuem informações equivalentes em relação ao conteúdo ensinado, às etapas de aplicação, aos recursos utilizados, aos turnos de fala do professor ou da professora e dos alunos, sendo que a fala do docente é a que prevalece, entre outras. Essa dinâmica repete-se em todos os vídeos que demonstram práticas de sala de aula, ou seja, sugerem que o professor siga exatamente o que é apresentado, embora em alguns momentos seja ressaltado que o educador pode fazer adaptações conforme a sua realidade. Contudo, a ênfase dada na sequência das aulas indica que o professor deve seguir minuciosamente as etapas do programa, para que assim possa garantir a sua efetividade. A seguir, está a análise do módulo 2: Aprendendo a ouvir.
A audição como foco no período preparatório
Em relação ao processo de alfabetização, a ênfase na consciência dos sons da linguagem, desenvolvida no módulo 2, é destacada como essencial para o aprendizado da leitura e da escrita. O trabalho que envolve a percepção de rimas, de sílabas, de aliterações, de palavras e de fonemas é indicado para o último ano da Educação Infantil.
O referido módulo é organizado em dez vídeos, contando com a introdução, os quais possuem média de 2 a 6 minutos. Para cada aula, são recomendados o ano escolar e a indicação dos objetivos correlatos da Base Nacional Comum Curricular, apresentando a seguinte sequência: discriminação dos sons (aula 2.2); consciência de palavras (aula 2.3); consciência de sílabas (aula 2.4); consciência de aliterações (aula 2.5); consciência de rimas (aula 2.6); isolamento de sons (aula 2.7), síntese de sons (2.8) segmentação de sons (2.9); substituições de sons (2.10).
De acordo com as orientações que constam nos vídeos do programa, a consciência fonêmica é primordial para o sucesso na alfabetização. Para tanto, citam estudos nacionais e internacionais, entre eles o National Reading Panel, que aponta que a consciência fonêmica pode ser ensinada aos alunos por meio de síntese, do isolamento, da segmentação e da substituição de sons em palavras. As referidas pesquisas também destacam a importância do ensino explícito desde a Educação Infantil, e seus resultados apontam benefícios nas áreas de leitura, da soletração e da consciência fonêmica das crianças. Morais (2019a, p. 15, grifos do autor) faz uma crítica em relação a essa questão, ressaltando que:
Em todos os países, a maioria dos estudiosos da consciência fonológica diz, frequentemente, que para alfabetizar a criança precisa compreender o princípio alfabético, o que para eles, significaria, compreender que as letras substituem fonemas. Por trás dessa formulação aparentemente simples – e que para muitos não deveria suscitar controvérsias – encontra-se subjacente uma concepção associacionista de aprendizagem que revela duas limitações: simplifica a análise do complexo trabalho conceitual construído/ licenciado pelo aprendiz e adota uma visão adultocêntrica sobre como a criança aprende o alfabeto.
Essa perspectiva demonstrou ser ineficaz no tocante à alfabetização das crianças nas décadas de 60 e 70 no Brasil, aspecto debatido e demonstrado por Morais (2005, p. 39):
Até pouco tempo atrás, acreditou-se que, para aprender a ler e a escrever os aprendizes precisariam desenvolver uma série de habilidades “psiconeurológica” ou “perceptivo-motoras”. Como a escrita alfabética era concebida como um código, para memorizar e associar as letras aos sons, os alunos deveriam alcançar um estado de “prontidão”, no tocante a habilidades como: “coordenação motora final e grossa”, “discriminação visual”, “discriminação auditiva”, “memória visual”, “memória auditiva”, “equilibro”, “lateralidade” etc.
Considerando o módulo 2 do curso, o primeiro vídeo da aula intitulado 2.2. Discriminação auditiva trata especificamente dessa habilidade. O excerto 2, apresentado a seguir, é a transcrição de uma parte do vídeo que exemplifica o modo como o trabalho com a discriminação é indicado:
Pr.: Crianças nós vamos descobrir de onde vem o som e que objeto produziu esse som. Prestem atenção. Eu vou fechar os olhos e em seguida vou apontar para o local de onde veio o som e dizer o que produziu esse som. Atenção!
Uma criança na sala bate palmas, o professor com os olhos tapados com uma das mãos aponta em direção da criança que bateu palma e diz:
Pr.: Eu ouvi uma palma, então foram mãos batendo palmas.
Desvenda os olhos e pergunta para as crianças:
Pr.: O som veio de lá?
Elas respondem em coro: Siimmm. Pr.: E foi uma palma?
Crs.: Simmm
Pr.: Muito bem!
(Brasil, 2020c. aula 2.6, 0min 28seg).
No trecho acima, observa-se que a ação é direcionada pelo professor, anunciando o que vai acontecer e basicamente toma conta do turno de fala. O objetivo é seguir as etapas, sendo que o excerto corresponde à etapa “professor explica e demonstra”. Na sequência do vídeo, são apresentadas as etapas “professor e alunos praticam juntos”, depois “alunos praticam juntos”, e por fim “prática individual”.
Após o vídeo, há um texto direcionado ao professor, explicando o conteúdo tratado na referida aula, como por exemplo: “A discriminação auditiva pode ser aprimorada por meio da prática, isto é, pela localização, diferenciação, caracterização e sequência temporal de diferentes sons. Isso favorece a habilidade de discriminar corretamente os sons da fala” (Brasil, 2020c, p. 6)7.
De acordo com as orientações dos vídeos analisados, o curso busca prover o que considera necessário para o dia a dia da aula, por meio de sugestões e recursos para que o professor não precise pensar, pesquisar e criar sua própria dinâmica de trabalho, embora seja anunciado que ele pode fazer como desejar. Isso pressupõe uma visão de professor repetidor, não de um profissional capacitado a exercer sua profissão de forma autônoma e reflexiva. Ao indicar, na estrutura da aula, os passos a serem seguidos, os exemplos de como realizar as atividades, o modo de perguntar, de agir e de se colocar na sala, a posição de subordinação a um script é reiterada. Além disso, os vinte e um vídeos analisados demonstram uma sala de aula montada especificamente para o curso, pois em uma sala de aula real as crianças se levantam, perguntam, falam entre si, emitem diferentes respostas, ou seja, professor e alunos agem com espontaneidade, uma sequência de passos rígidos dificilmente é seguida de forma linear.
Outro aspecto importante a destacar, conforme anunciado na segunda seção, é que todas as aulas do módulo 2 são direcionadas ao último ano da pré-escola, mesmo as indicadas também para o 1º e 2º ano do Ensino Fundamental. Ao propor discriminação de sons, consciência de palavras (aulas exclusivamente para o último ano da pré-escola), consciência de sílabas, isolamento de sons, síntese de sons, segmentação de sons (aulas para o último ano da pré-escola e 1º ano), consciência de aliterações, consciência de rimas e substituição de sons (aulas para o último ano da pré-escola e 1º e 2º anos), fica evidente que a perspectiva é de preparação para alfabetização e de uma concepção de necessidade de prontidão.
Propostas como essas correm o risco de tornarem as rotinas, conforme destaca Barbosa (2006, p. 39) “[…] uma tecnologia de alienação quando não consideram o ritmo, a participação, a relação com o mundo, a realização, a fruição, a liberdade, a consciência, a imaginação e as diversas formas de sociabilidade dos sujeitos nela envolvidos”.
De acordo com Brandão e Leal (2010, p. 16), essa ideia de prontidão foi questionada por profissionais da área da educação, por se tratar de exercícios “[...] muito repetitivos e vazios de significado para as crianças, além de obrigarem que elas [as crianças] ficassem presas durante muito tempo a atividades com papel e lápis”.
Como afirmado anteriormente, o que se questiona não é o trabalho com a leitura e com a escrita desde a Educação Infantil, a questão é a abordagem proposta. A coleção Leitura e escrita na Educação Infantil publicada propõe que “A participação ativa das crianças em práticas de leitura é um importante objetivo da Educação Infantil” (Corsino et al. 2016, p. 25).
Ao que tudo indica, a proposta do “Tempo de Aprender” não contempla a dimensão da escrita como linguagem, nem valoriza a participação das crianças em outras práticas culturais diferentes das focadas no contexto da aula que visa ao desenvolvimento de habilidades. A seguir, serão apresentadas e analisadas as aulas do módulo 3.
A centralidade do trabalho no conhecimento alfabético
O módulo 3 é composto por 8 vídeos, um de introdução e os demais com duração média de 3 a 7 min, que sistematizam o trabalho sobre o conhecimento alfabético.
A primeira aula desse módulo, “Nomeação de letras e relação letra som”, está subdividida em dois vídeos: “Nomeação de letras”, recomendada ao último ano da Educação Infantil, e “Relação letra som”, dedicada ao primeiro do Ensino Fundamental. Seguindo a logística do módulo 2, de acordo com orientações do programa, no último ano da Educação Infantil a criança deve “aprender o nome das letras e seus sons mais característicos”. Contudo, considera-se que as atividades propostas nos vídeos são extremamente mecânicas e nada reflexivas, como se pode acompanhar no excerto 3, disposto abaixo:
Pra.: Turma, o alfabeto tem 26 letras! Hoje nós vamos aprender uma letra do alfabeto!
Pra.: Nós vamos aprender a letra A.
Pra.: Cada letra do alfabeto tem um som. Olhem essa imagem!
Professora mostra um cartão com o desenho de uma abelha. De forma, sobreposta ao desenho da abelha o traçado da letra A de imprensa minúscula, na cor vermelha.
Pra.: Esta é a letra A. O som dessa letra é [a]. Com essa letra, escrevemos [a]... belha.
Pra.: Esta é a Abelha Amarela! Professora mostra um outro cartão (tamanho ofício) com a imagem de uma abelha, o traçado da letra A (cursiva e imprensa – maiúscula e minúscula) e o trecho de uma brincadeira que mostra o movimento das asas da abelha.
Pra.: O nome da Abelha Amarela começa com a letra A. Observem. Vou escrever a letra A no ar!
Pra.: Agora eu vou escrever a letra A no quadro.
Pra.: Vamos conhecer mais sobre a Abelha Amarela! Eu vou ler um poema para vocês. Ao final vocês vão fazer assim: [a] [a] [a] e balança os braços para cada som da letra A, evidenciando o movimento da abelha batendo suas asas.
Pra.: Vocês!
Toda a turma, balança os braços e as crianças repetem [a] [a] [a]
Pra.: Ah, abelha, abelhinha, amada amiga amarela, até as árvores acham que você é a mais bela! [a] [a] [a]
Professora continua lendo o poema até o final e ao final de cada estrofe, as crianças movimento os braços imitando uma abelha e dizendo em coro [a] [a] [a]
(Brasil, 2020c, aula, 3.2, 0min 20seg).
Nessa aula, indicada para a Educação Infantil, além de reconhecer a letra e seu som, os alunos devem realizar o seu traçado, iniciando com a letra maiúscula. Para a continuidade do trabalho de nomeação das letras (último ano da pré-escola) e de relação letra/som (primeiro do Ensino Fundamental), o programa anuncia a disponibilização de vinte e seis fichas de personagens, correspondentes às vinte e seis letras do alfabeto, e de dezesseis fichas de personagens referentes às relações letra/som mais complexas.
Ao investigarem sobre a importância do trabalho pedagógico com letras na Educação Infantil, Albuquerque e Leite (2010, p. 97) consideram que:
[...] o conhecimento das letras se não é um fator determinante no processo de apropriação da escrita, com certeza pode contribuir na medida em que os alunos, ao interagirem em diferentes situações de escrita e uso das letras, começam a perceber as propriedades do nosso sistema de escrita alfabético no que se refere ao uso das letras para representar a sequência sonora das palavras com as quais convivem.
As autoras estão corretas ao afirmarem que conhecer as letras pode auxiliar no processo de alfabetização. Contudo, o modo como o trabalho é proposto, conforme observado no excerto 3, parte do pressuposto de que a explicação por si só bastaria para que a criança aprendesse a letra A. Aprender a ler e a escrever requer muito mais do que saber que existe um alfabeto composto por 26 letras, que cada letra representa pelo menos um som e que a combinação de letras forma as palavras. Conforme destaca Morais (2005, p. 44, grifos do autor):
[…] dispomos hoje de uma explicação extremamente diferente – e a nosso ver mais adequada – para o que é a tarefa de aprender uma escrita alfabética. Ao concebê-la como um sistema notacional, passamos a ver que habilidades como a memória e a destreza motora, necessários ao ato físico de notar (registrar palavras com letras no papel, ou noutro suporte) estão subordinadas à compreensão, ou seja, às representações mentais que o indivíduo elabora sobre as propriedades do sistema.
De acordo com os vídeos analisados, o módulo 3 trata especificamente da apresentação das letras e dos seus respectivos sons. Por meio da explicação de como ocorre a relação entre as letras e seus sons e da leitura das primeiras palavras e frases, é esperado que a criança aprenda. Entende-se, contudo, que esse processo não ocorre simplesmente pela substituição de grafemas em fonemas. A apropriação do sistema de escrita alfabético demanda um trabalho sistemático através de práticas de leitura e produção de gêneros textuais diversificados, propiciando às crianças oportunidades de pensarem e de refletirem sobre as especificidades da língua escrita.
As vídeo/aulas 3.4 e 3.6 são destinadas respectivamente à leitura de palavras e de frases. Para tanto, o programa defende um trabalho de repetição sistemática com as letras e seus sons, para que os alunos consigam ler palavras cada vez mais complexas de forma proficiente. O excerto 4, apresentado a seguir, é a transcrição de um fragmento do vídeo “Leitura de frases”:
Introdução do vídeo: Você já ensinou os seus alunos a ler palavras. Vamos além! Utilize a estratégia a seguir para estimulá-los a ler frases com velocidade adequada segmentando e sintetizando os sons das palavras mais difíceis.
Pra.: Agora nós vamos ler frases! Prestem atenção!
Pra.: Eu vou ler as palavras conhecidas rapidamente, vou ler o som de cada letra das palavras mais difíceis que estão sublinhadas.
Na continuidade da aula, nas etapas “professor e alunos praticam juntos” e “alunos praticam em conjunto”, a professora repete a mesma sequência, utilizando como suporte as frases: “O galo é belo”, “A vaca come feno” e “A bola é roxa”. Para todas essas frases, as palavras consideradas mais difíceis estão sublinhadas.
Nessa visão “adultocêntrica”, o programa “Tempo de Aprender” minimiza o trabalho complexo e multifacetado da alfabetização, pressupondo que a codificação e a decodificação dos sons promoveriam, por si só, o aprendizado da leitura e escrita de palavras e frases. Além disso, presume de forma antecipada o grau de dificuldade da atividade, transformando professores e os alunos em meros executores de atividades padronizadas.
Nos vídeos analisados, não se observou o trabalho com práticas reais de leitura e de escrita, nem mesmo a utilização de livros de literatura infantil. Os poemas e as histórias indicados para serem utilizados em sala de aula são artificiais e descontextualizados, conforme o fragmento do texto sugerido para o trabalho com a letra V.
A Vaca Voadora
A vaquinha vai voando
vai voando bem veloz.
Viva a vaca! Viva a vaca!
– gritamos a plena voz.
Viva a vaquinha que voa!
Viva a vaquinha Vivi!
Essa vaca vale muito,
vaca assim eu nunca vi
(Brasil, 2020c, aula 3.2)8.
Observa-se claramente nesse texto a intenção de trabalhar palavras com a letra “v”, sendo que, com esse propósito é colocado o máximo de palavras com a letra. As passagens “A vaquinha vai voando” e “Viva a vaquinha que voa” são exemplos de frases justapostas que não condizem com textos que circulam em um contexto real. São textos artificiais que se prestam a um único objetivo, fixar uma determinada letra. É o que Soares (2004b, p. 112) define como “[...] uma linguagem escrita com baixo grau de textualidade: listas artificiais de sentenças, em geral vinculadas a desenho, com falta de unidade temática, de coerência, ausência de marcadores de relações, repetição desnecessária do sujeito... um texto artificial […]”.
Esse tipo de texto, como “A Vaca Voadora”, propicia um modelo de escrita que possivelmente será reproduzido pela criança, uma vez que é esse tipo de repertório que está sendo apresentado a ela. Como afirmou-se anteriormente, a escrita não é um amontoado de letras que seguem uma ordem, mas tem outras diferentes dimensões que também são aprendidas concomitante ao aprendizado do sistema de escrita alfabético.
Entende-se que professor e os alunos estão implicados no processo de alfabetização e precisam ser percebidos como sujeitos que têm saberes, histórias e interesses diferentes; eles não devem ser apagados no processo de ensino aprendizagem. A proposta analisada no “Tempo de Aprender”, ao priorizar uma instrução diretiva e sequencial, nega as especificidades do sujeito e, desse modo, coloca em segundo plano o que deveria ser a centralidade do processo.
Considerações Finais
Neste trabalho, apresentou-se e analisou-se a formação continuada para professores alfabetizadores do programa “Tempo de Aprender”, promovida pelo Ministério da Educação em 2020. No curso, é proposta a aplicação de práticas baseadas em evidências científicas nacionais e internacionais, com ênfase na ciência cognitiva da leitura e na neurociência.
Focou-se a análise nos módulos 1, 2 e 3, considerando os 21 vídeos de aulas disponibilizados, observando o tempo de duração dos vídeos, os ambientes filmados, os sujeitos envolvidos, a dinâmica das aulas, as orientações direcionadas ao professor, a concepção de ensino, de aprendizagem e de alfabetização e a metodologia indicada para o ensino da leitura e da escrita para as crianças.
Identificou-se uma proposta focada em instrução diretiva para o professor, na qual é indicado passo a passo o modo como o ensino deve proceder. As aulas apresentadas nos vídeos são visivelmente organizadas para o curso, não correspondendo à realidade das escolas brasileiras, e as crianças só falam respostas esperadas, nunca conversam entre elas e basicamente não caminham pela sala. O professor segue sempre os seguintes passos: (1º) professor explica e demonstra; (2º) professor e alunos praticam juntos; (3º) alunos praticam em conjunto; (4º) prática individual. Além disso, há sugestões de suporte para erros e dificuldades esperadas, variações e adaptações.
O programa deixa bastante claro que, se o professor seguir os passos, a aprendizagem estará garantida. Nesse sentido, não há necessidade de reflexão sobre a prática nem preocupação com o contexto das crianças, pois elas são vistas como aprendizes que, se tiverem uma boa discriminação auditiva, memória, capacidade de repetição e obediência ao comando, alfabetizar-se-ão.
Embora seja explicado no vídeo que o trabalho proposto segue evidências científicas, o que se observa, de fato, é um apagamento do que foi produzido no Brasil nos últimos 40 anos por pesquisadores no campo da alfabetização. A perspectiva que concebe a criança como um sujeito que pensa sobre a escrita e de um professor capaz de planejar seu trabalho com autonomia não existe no programa “Tempo de Aprender”. Há um retrocesso em uma perspectiva que já se pensava superada no Brasil, em que o papel da Educação Infantil seria preparar a crianças para o Ensino Fundamental, com atividades de prontidão consideradas como pré-requisito para alfabetização.
Considera-se, por fim, que o programa “Tempo de Aprender”, assim como o conjunto de ações nele embutidas, precisam ser mais investigados e analisados, a fim de identificar se ele é de fato eficaz para as escolas brasileiras, com toda a especificidade do ensino público, gratuito, laico e democrático.