Introdução
A organização dos espaços-tempos3 na Educação Infantil é, muitas vezes, constituída a partir de uma sequência linear de atividades que tendem a se repetir diariamente, com eventuais variações. Apesar de a estruturação da rotina pedagógica ser geralmente determinada por adultos, as constantes interações entre as crianças e dessas com o meio (pessoas, materiais, espaços) criam rupturas não previstas. Dessa forma, o cotidiano se mostra inédito, sendo impossível antecipar significações elaboradas pelas crianças frente às situações que lhes ocorrem (Alves; Brandão, 2017; Carvalho; Fochi, 2017).
Em certa medida, os adultos têm dificuldades em acolher e compreender as diferentes formas das crianças atuarem no mundo. Essa dificuldade pode estar associada a um comportamento classificado como adultocêntrico, que tende a marginalizar as contribuições das crianças, que acontecem por meio de múltiplas linguagens e formas de expressão. Corsaro (2011) explica que o adultocentrismo tende a projetar nas crianças expectativas relacionadas ao adulto que elas se tornarão no futuro, subestimando, dessa forma, o que elas são, seus desejos, sua identidade e maneiras de contribuição na sociedade. Além disso, pressupõe-se a criança como ser passivo que, no processo de socialização, internaliza os conhecimentos e saberes supostamente importantes para sua futura atuação no mundo.
O tensionamento entre rotina e cotidiano foi uma das situações observadas ao longo da realização de um projeto de extensão e pesquisa durante o ano de 20194 com uma turma de Educação Infantil de uma escola municipal de Ensino Fundamental Incompleto, que, nesse caso, significa a oferta de turmas até o 4º ano da referida etapa. A experiência possibilitou acompanhar o cotidiano dessa turma e as interações protagonizadas pelas crianças na dinâmica dos tempos e espaços organizados pela escola. Ao longo dos meses de convivência com as crianças e adultos responsáveis, foi possível apreender o cotidiano que se manifesta nas rotinas escolares. A escuta sensível (Cancian; Goelzer, 2016; Carvalho; Fochi, 2017; Itália, 2015; Oliveira-Formosinho; Formosinho, 2017) foi se refinando e orientando um percurso com as crianças a partir de um lugar talvez privilegiado por estar livre de algumas amarras e responsabilidades que se colocam à professora. De acordo com os autores referenciados, a escuta sensível está além da capacidade auditiva, envolvendo a disponibilidade de todos os sentidos corporais. Também implica oportunizar que as crianças se expressem de múltiplas formas, demonstrando interesse e curiosidade em aprender as maneiras como os pequenos e pequenas interagem e ressignificam o mundo.
Este artigo apresenta, portanto, um recorte desse processo e destaca a intensidade do brincar no cotidiano da Educação Infantil, irrompendo nos diferentes tempos e espaços da rotina da turma de diferentes formas, previstas ou não.
Inicialmente, o projeto teve como foco descrever e analisar as relações entre os binômios brincadeiras-interações e corpo-movimento por meio de ações colaborativas na Educação Infantil, articulando as ações de extensão e pesquisa. Entretanto, ao longo do período de observação, a dinâmica cotidiana revelou algumas dificuldades para a materialização da proposta preliminar, fazendo com que a pesquisa tomasse um rumo diferente daquele inicialmente planejado, conforme descrito na metodologia.
Durante a convivência com as crianças, com os adultos responsáveis pelas turmas e com a organização das rotinas escolares, constatou-se de forma cada vez mais intensa a emergência do cotidiano nas rotinas das turmas, evidenciada nas notas do diário de campo. O processo de registro foi acompanhado pela escrita de interpretações iniciais da pesquisadora, dialogando com a bibliografia levantada até então. Posteriormente, aprofundando a análise, buscou-se atribuir centralidade às transformações protagonizadas pelas crianças nos tempos e espaços do cotidiano da Educação Infantil, resultando neste artigo. Desse modo, o objetivo da pesquisa tornou-se compreender o processo pelo qual as crianças irrompem os tempos pedagógicos preestabelecidos, dando vida ao cotidiano.
Procedimento Metodológico
Diante das dificuldades encontradas para a materialização da proposta inicial de pesquisa-ação colaborativa (Desgagné, 2007; Ibiapina; Bandeira, 2017), destaca-se a baixa disponibilidade de recursos humanos em relação ao número de crianças nas diferentes turmas da Educação Infantil, conforme observado desde as primeiras inserções no campo, mantendo, dessa forma, as docentes quase integralmente ocupadas. Em muitas situações, a própria coordenadora pedagógica assumia turmas, substituindo professoras ausentes por motivo de saúde. Essas condições impediam que houvesse momentos oportunos para os diálogos entre equipe pedagógica e pesquisadora, conforme previsto inicialmente. Além disso, o tempo destinado ao planejamento das professoras era atravessado por demandas pessoais, acadêmicas ou por carga horária em outras escolas, também dificultando um espaço de diálogo frequente previsto pela metodologia colaborativa inicialmente pensada. Considerando os entraves encontrados, optou-se por acompanhar uma única turma (Pré A), que se tornou o foco das observações e dos registros da pesquisa. A investigação configurou-se em um estudo de caso de inspiração etnográfica, com uso de instrumentos próprios dessa modalidade – notadamente a observação participante e notas de campo.
A natureza etnográfica se propõe a “observar os modos como os grupos sociais ou pessoas conduzem suas vidas com o objetivo de revelar o significado cotidiano nos quais as pessoas agem” (Mattos, 2011, p. 51). Por sua vez, o estudo de caso delimita a pesquisa a uma realidade específica – neste caso, escolar –, em que se pretende investigar e compreender “estruturas, regras, interações e processos de ação, as dimensões existenciais, simbólicas e culturais” (Sarmento, 2011, p. 139) de uma turma específica de uma instituição em particular, revelando, dessa maneira, singularidades daquela realidade e dos atores sociais nela envolvidos.
Cabe ressaltar que a escolha metodológica estabeleceu uma relação de interação entre a pesquisadora e os sujeitos, aproximando-se de situações relatadas por Corsaro (2002, 2005), que denominam a figura do pesquisador como um “adulto atípico”. Para o autor, essa expressão corresponde a uma atuação distinta daquela exercida por professores(as) na condição de adultos que ordenam e organizam. Nesse caso, o(a) pesquisador(a) também é adulto(a); entretanto, não se comporta conforme aquela imagem construída a partir das ações desempenhadas pelo(a) professor(a). A posição assumida pela pesquisadora teve como objetivo estabelecer uma relação horizontal com as crianças, desprovida de autoridade e visando uma aproximação maior com a cultura do grupo.
A escola onde a pesquisa foi realizada está inserida em um bairro periférico da cidade de Santa Maria (RS). No total foram realizadas 20 inserções no campo de pesquisa, distribuídas semanalmente entre os meses de agosto e dezembro de 2019, com duração de, aproximadamente, três horas cada, totalizando 60 horas junto à turma observada. As observações aconteceram em uma turma de Educação Infantil com cerca de 15 crianças (5 meninas e 10 meninos) com idades entre 4 e 5 anos. O quantitativo de observações pode ser avaliado como insuficiente para caracterizar este trabalho como um estudo etnográfico; no entanto, a qualidade das observações, instrumentos utilizados e, principalmente, a atitude adotada pela pesquisadora, correspondem a essa modalidade de investigação.
A produção dos dados foi balizada por notas em diário de campo e observações participantes que, juntas, mostraram-se potentes para registrar a espontaneidade que está inscrita em um cotidiano diariamente reinventado pelas crianças. A análise dos dados produzidos se deu a partir da construção de categorias dos episódios mais recorrentes e notáveis durante o período de acompanhamento da turma. Dentre os eventos mais relevantes, destaca-se como o tensionamento entre os tempos adultos e infantis baliza as transformações dos espaços institucionais previamente planejados.
Transversão da rotina
“O olho vê, lembrança revê e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo”
(Barros, 1996).
É pertinente refletir sobre a pluralidade de sentidos atribuídos à rotina por adultos e crianças. Se, por um lado, a rotina para adultos deduz algo previsível e repetitivo, de algum modo as crianças, nos detalhes que fogem à percepção do adulto e nas minuciosidades, transformam as rotinas em aventuras inéditas (Staccioli; Ritscher, 2017). Conforme Carvalho e Fochi (2017, p. 16), “[...] por meio do cotidiano, temos a possibilidade de encontrar o extraordinário no ordinário vivido diariamente pelas crianças”. Mesmo que na percepção adulta estruturalmente um dia pareça idêntico ou muito similar ao dia anterior, para as crianças sempre será diferente, pois elas atribuirão significações distintas a situações e momentos semelhantes, nas implicidades que passam despercebidas ao olhar adulto (Alves; Brandão, 2017).
Para Certeau (1998, p. 41), o cotidiano é composto por pequenas transgressões, formas de fazer que trazem em si “[...] operações quase microbianas” ou ações que se articulam nas minúcias da vida cotidiana. As “táticas” sobre as quais discorre o autor escondem a capacidade de uso do tempo por aqueles que não detêm poder5, de modo a transgredir as regras impostas, revelando formas astutas de burlar o poder imposto. Isso mostra que a rotina é constantemente desconstruída e reconstruída pelas crianças. O cotidiano escolar é um terreno fértil para encontrar essas transgressões, e, quando se trata de crianças pequenas, há ainda que se considerar que, de fato, elas percebem e experienciam o tempo de forma distinta dos adultos. Neste artigo, portanto, tratar-se-á do cotidiano como resultado dessas “reapropriações” (Certeau, 1998) realizadas taticamente pelas crianças em oposição à rotina preestabelecida pelos adultos.
Uma possibilidade para explicar as formas de viver as rotinas pode estar nas diferentes percepções sobre o tempo. Stavinski e Kunz (2017) sinalizam para o frenesi do rendimento que acompanha a vida adulta, em que, por meio do uso de tecnologias, pode-se realizar um grande número de tarefas em pouco tempo. Essa otimização do tempo do relógio (chrónos), contínuo e mensurável, comanda a rotina adulta e, aliada à crescente orientação cultural voltada para a produtividade e para a preocupação com o(s) resultado(s), acaba por insensibilizar gradativamente o adulto para o presente (Kohan, 2004; Stavinski; Kunz, 2017).
Por sua vez, a criança está em sintonia com um tempo interno e descontínuo, relacionado às emoções, às experiências e aos sentimentos (Salva, 2016). Está, portanto, atenta e imersa no presente e nas possibilidades que ele oferece. Esse tempo, aión, em contrapartida ao tempo chrónos, mede a intensidade da experiência e não pode ser quantificado de forma numérica (Kohan, 2004). Para López (2008), inspirado em Deleuze, esse presente do tempo aión não é o presente cronológico, mas onde se constroem os significados e valores.
Esses dois tempos – o tempo social, da máquina (chrónos), e o tempo interno, dos sentimentos (aión) –, se confrontam diariamente nas múltiplas ocasiões quando adultos e crianças interagem, sobretudo na Educação Infantil. As rotinas, com os recortes de tempos preestabelecidos, e a estruturação dos espaços protagonizada por adultos, favorecem uma estratégia de controle dos corpos que direciona o comportamento e o classifica como adequado ou inadequado (Buss-Simão, 2012; Salva, 2016).
O constante tensionamento entre o tempo chrónos e o tempo aión denuncia uma dicotomia semelhante à apresentada por Prout (2010), ao conceber a infância como ser versus a infância como devir. Assim como o autor defende que não há como compreender a infância exclusivamente a partir de um dos polos (ser e devir), visto que “[...] tanto crianças como adultos deveriam ser vistos através de uma multiplicidade de devires, nos quais todos são incompletos e dependentes” (Prout, 2010, p. 737), o comportamento adultocêntrico tende a analisar a infância a partir da perspectiva inacabada, consequentemente, exaltando as habilidades e conhecimentos que as crianças ainda não possuem, utilizando o mundo adulto como parâmetro para o que se almeja, sem considerar a potência infantil que emerge a partir das descobertas, transformações, elaborações e criações protagonizadas pelas crianças.
Apesar de o tempo chrónos e tempo aión coexistirem no cotidiano da Educação Infantil, novamente a lógica adultocêntrica tende a marginalizar o tempo da experiência praticado pelas crianças em nome de interesses aliados à produtividade e ao apressamento do tempo social/da máquina. Essa tentativa de imposição diária do tempo chrónos é resistida pelas crianças através das suas múltiplas formas de transver6, que desafiam a linearidade do tempo do relógio.
Nas entrelinhas do lanche: um espaço-tempo de transformações
Ao longo das observações realizadas com a turma, um espaço-tempo que se revelou muito importante e potente foi o período destinado ao lanche, ultrapassando o ato de se alimentar e tornando-se o cenário de negociações e expressões brincantes inusitadas, mediante pequenos acontecimentos imprevistos e pouco perceptíveis ao olhar adulto. Não somente o ato de se alimentar, mas também os acordos estabelecidos entre as crianças ainda na sala de aula e os deslocamentos para o refeitório e de volta à sala de aula expressavam as inúmeras possibilidades de transversão de acontecimentos lineares e rotineiros.
Cabe ressaltar que na dinâmica da escola observada, em função do número de crianças e estudantes, as turmas eram direcionadas em horários diferentes para o refeitório, para fins de organização da cozinha e dos profissionais que nela atuavam. Isso sinaliza a existência de uma rotina paralela à rotina pedagógica, que atende a demandas funcionais. A dificuldade no estabelecimento de diálogo entre essas rotinas (funcional e pedagógica) pode se apresentar como limitadora para uma escuta sensível às crianças, visto que a dinâmica de recursos humanos, recursos físicos, espaços e materiais disponíveis se mostra pouco flexível às demandas infantis. O resultado dessa delicada relação é o predomínio de alguns aspectos administrativos ou operacionais sobre interesses pedagógicos. Concretamente, isso quer dizer que a organização da rotina escolar prioriza necessidades funcionais relacionadas ao gerenciamento de dimensões administrativas, evidenciando as tensões entre os tempos adultos e infantis; entre chrónos e aión.
As negociações entre as crianças para a partilha dos lanches ocorriam de acordo com as interações estabelecidas entre elas em momentos oportunos.
Na hora da brincadeira em sala de aula, presenciei dois meninos negociando a partilha do lanche a partir de um brinquedo. Um deles perguntou se poderia brincar com a arminha de brinquedo do outro, mas o dono do objeto negou. Momentos mais tarde, enquanto eles realizavam a higiene para ir lanchar, ouvi o seguinte diálogo entre eles:
Dono do brinquedo: Vi que tu trouxe bolachinhas de lanche... vai dividir comigo?
Menino que queria brincar com o brinquedo: Só se tu deixar eu brincar com tua arminha depois do lanche.
Dono do brinquedo (momento de silêncio e ponderação): Tá bem, empresto.
Observei a materialização do combinado no lanche e após o retorno para a sala, o dono do brinquedo dá a arminha para o colega brincar
(Nunes, 2019, p. 58).
Cabe sinalizar a importância desses espaços-tempos nas rotinas culturais (Corsaro, 2011), que criam experiências potencializadoras do protagonismo infantil, geralmente despercebidas aos olhos adultos. Além disso, a partir dos episódios observados e registrados, percebe-se que os pares envolvidos compartilham um código de ética, com direito a cobranças e advertências, contribuindo e ampliando o que Corsaro (2011) chama de cultura de pares, consistindo em “[...] valores e normas partilhados e internalizados que orientam o comportamento” (Corsaro, 2011, p. 127).
Ainda na sala de aula, um dos meninos me conta um segredo ao pé do ouvido: ‘Sabia que eu trouxe gominha? Tá bem aqui, ó’, na sequência ele tira do bolso um punhado de balas de goma, que estavam soltas no bolso de sua bermuda, ‘Mas não conta pra ninguém!’, ele pede. Eu digo que não contarei pra ninguém. Após alguns minutos vejo o mesmo menino falando a mesma coisa para uma colega, entretanto, desta vez, propondo uma troca com ela: ‘Te dou uma gominha e tu divide o bolo comigo no lanche, tá?’. A colega concorda. Na hora do lanche, o combinado não se concretiza, a colega se recusa a dividir o bolo com o menino
(Nunes, 2019, p. 59).
Na ocasião apresentada acima, o trato não se materializou, e, apesar da pesquisadora ter sido testemunha do acordo, o menino não se utiliza da hierarquia adulto versus criança para forçar a partilha. Ao contrário, ele reconhece que a negociação não foi bem sucedida e que a colega quebrou sua promessa, rompendo com o código de ética estabelecido na hora do acordo. É relevante apontar que a presença de adultos nos momentos de negociação apresentados não teve influência nos desfechos.
Passei a observar o menino das balas após ele me confidenciar seu segredo. Ainda faltava cerca de uma hora para o lanche e ele sabia que não era permitido comer na sala de aula. Para conseguir atingir seu objetivo (comer as balinhas na sala), observava os colegas e a professora e, nos momentos em que ninguém estava olhando para ele, colocava rapidamente a bala na boca e permanecia imóvel, sem mastigar a bala para não ser pego7.
Convém mencionar a ação dissimulada do menino que tinha as balas, fazendo uso das oportunidades no espaço-tempo para que a professora não desconfiasse do que estava acontecendo. Ele agia disfarçadamente em suas negociações, falando baixo e mostrando com discrição as balas no bolso aos colegas, pois tinha ciência de que, caso fosse pego, teria os doces confiscados. Sua ação é marcada pela astúcia certeauniana8 (Certeau, 1998), esquivando-se dos riscos de ser flagrado pela professora.
Outra situação que mostra a disputa entre os tempos chrónos e aión no cotidiano observado é a interrupção das brincadeiras em andamento próximo ao horário do lanche para a higienização das mãos. Com frequência, duas ou mais crianças protestavam frente à suspensão de suas elaborações, alegando ausência de fome ou que gostariam de brincar um pouco mais. A dissociação da rotina funcional em relação ao cotidiano vivido geralmente acaba por interromper as explorações e produções infantis, impondo um novo compromisso (lanchar, por exemplo) que não foi planejado de forma conjunta. Um exemplo: de acordo com Ongaro et al. (2019), para a materialização dessa escuta sensível é necessária justamente a articulação e flexibilização dessas rotinas escolares – aquelas protagonizadas pelas crianças e o funcionamento estrutural da Instituição.
Os deslocamentos entre os ambientes, sobretudo no momento do lanche, também merecem destaque, pois colocam em conflito os tempos institucionais e da experiência. A organização em fila é a estratégia mais utilizada por adultos para ordenar os deslocamentos das crianças. Ao conduzir as filas, geralmente o adulto responsável faz orientações mandatórias como: “um atrás do outro”, “sem correr, “em silêncio”; entretanto, nem sempre as crianças correspondem a essas solicitações por uma razão bastante simples: elas estão exercitando sua capacidade de transver o mundo. Essa potência se dá a partir do potencial infantil de extrapolar o que está estabelecido, de ir além do planejado e estipulado, de experienciar o mundo a partir de um corpo que se expressa através da brincadeira e do movimento (Arenhart, 2016).
Se para um adulto a transição entre a sala de aula e o refeitório serve unicamente para deslocamento, para a criança é um universo de possibilidades, repleto de desafios. No caso da escola observada, o trajeto entre a sala de aula e o refeitório tinha desenhos pintados nas paredes, amarelinha no chão, desafios de degraus com diferentes alturas e gotas de água que pingavam dos aparelhos de ar-condicionado. Tudo isso se apresenta como tentadoras possibilidades brincantes que a percepção adulta não captura, mas que são provocações aos olhos infantis. Como resposta, as crianças resistem às estratégias de contenção dos corpos quando saem da fila, pulam a amarelinha, descem os degraus de inúmeras maneiras e se extasiam com as gotas de água vertentes dos aparelhos de ar-condicionado.
É interessante observar que, se em alguns momentos as crianças transgridem as normas de forma velada, astuciosamente, em outros, atuam explicitamente, respondendo a uma urgência de se movimentar diante das possibilidades que vislumbram. A necessidade de movimento está marcada pela expressividade que representa, segundo Arenhart (2016, p. 102), que as crianças “[...] vivenciam seus corpos estabelecendo uma relação marcada pelo grande potencial interativo e comunicativo do corpo”.
A capacidade das crianças de transver os espaços-tempos se aproxima do que Certeau (1998) denomina/conceitua como espaço; isto é, quando o lugar é modificado através de intencionalidades dos sujeitos que ali existem. Para o autor, enquanto o lugar indica estabilidade, o espaço é o resultado da produção de sentidos e significados atribuídos. O exemplo do parágrafo acima ilustra claramente essa transformação do lugar em espaço protagonizado pelas crianças. O pátio da escola, lugar pelo qual passam durante o deslocamento entre a sala de aula e o refeitório, após uma nova atribuição de sentido e significado das crianças passa a ser um espaço para brincadeiras não previsto pelos adultos.
Há que se destacar também que a ocorrência das brincadeiras nos lugares e tempos não previstos para isso podem ser lidas como formas astuciosas das crianças em relação às oportunidades breves de tempo que são por elas captadas e usadas para pequenas transgressões. Arrisca-se afirmar que as crianças assim o fazem por estarem movidas pela sua percepção do tempo na sua forma aión. O momento se apresenta a elas como oportunidade de viver o brincar; como uma necessidade nem sempre compreensível aos adultos ou compatível com a rotina escolar.
No refeitório, além do lanche fornecido pela escola, era comum as crianças trazerem seus próprios alimentos e compartilhá-los com os colegas de maneira muito espontânea. Assim como as negociações mencionadas anteriormente, a partilha dos lanches ocorria independente da presença de um adulto. A condição privilegiada da pesquisadora de observar e interagir com as crianças nos momentos do lanche revelou os enfrentamentos entre os ajustamentos primários e secundários (Buss-Simão, 2012) que se aproximam do conceito certeauniano de espaço. Segundo a autora, inspirada em Goffman (1961), ajustamentos primários são as organizações e configurações criadas pelo adulto, enquanto os secundários são os usos atribuídos pelas crianças, a partir de suas transformações, a essas configurações preestabelecidas, que nem sempre estão alinhados com o planejado pelo(a) professor(a).
Frequentemente, o comportamento das crianças frente às transformações elaboradas por elas era coibido pelos adultos por não estarem de acordo com o estipulado.
Uma das crianças havia derramado um pouco do seu suco na mesa de lanche e a professora solicitou que não tocassem no suco para não o espalhar ainda mais. Com um pano bastante úmido, limpou o líquido, deixando a superfície molhada. Logo as crianças transformaram a mesa em uma pista de patinação, usando os dedos para deslizar na mesa escorregadia. A professora os repreende ao perceber a brincadeira
(Nunes, 2019, p. 59).
O trecho acima exemplifica de maneira muito clara a transversão elaborada pelas crianças naquele espaço-tempo. Por um lado, o tempo chrónos determinava aquele momento para a alimentação e o uso daquele lugar (ajustamento primário, pensado por adultos) para o lanche. Por outro lado, a subversão da linearidade nas rotinas protagonizadas pelas crianças a partir do tempo da experiência (aión) e da oportunidade transformou aquele momento em uma brincadeira e atribuiu um novo uso ao espaço. Portanto, a transversão do refeitório para além de um lugar destinado exclusivamente à nutrição é semelhante à noção de espaço como lugar praticado, proposto por Certeau (1998).
No refeitório, uma criança divide rapaduras com outra colega. A menina que recebeu o doce o saboreia lentamente, com prazer. Observo-a por longos minutos e ela, sem pressa e sem conversar com ninguém, entra em uma espécie de transe, consumindo a rapadura em pedaços bem pequenos. Em alguns momentos parece até dançar enquanto come, balançando a cabeça, num claro gesto de extrema satisfação e entrega ao momento. No meio dessa “viagem”, a professora a apressa, dizendo que precisam retornar para a sala. Nesse momento, a menina parece voltar para a realidade, coloca todo o doce na boca e levanta
(Nunes, 2019, p. 60).
Esse episódio, assim como o anterior, além de revelar as tensões entre os tempos institucionais e os tempos internos das crianças, também ilustra a capacidade infantil de ver o implícito não captado pelos olhos adultos e de se maravilhar com eventos ordinários. Dessa forma, o cotidiano pode ser apreendido como um lugar de descobertas onde as crianças experienciam o novo e o diferente em ações que se repetem diariamente (Staccioli; Ritscher, 2017). No entanto, a organização das tarefas no dia a dia das escolas e instituições de Educação Infantil é como uma engrenagem que interfere no funcionamento das demais estruturas. Uma rotina que está unicamente inclinada a cumprir demandas se converte em empecilho para que as crianças realizem essas abstrações e transversões, pois está em constante conflito com o tempo chrónos. O apressamento, muitas vezes imposto aos(às) professores(as) por meio de mecanismos administrativos, não permite o “desaceleramento” do cotidiano. Essa é mais uma amostra do descompasso entre os tempos institucionais e as suspensões do tempo chrónos protagonizadas pelas crianças, e da necessidade de articular as esferas administrativas e pedagógicas. Arenhart (2016), citando Vasconcelos (2009), defende o estímulo ao ócio na escola, a oportunidade de contemplar e respeitar as desimportâncias e a fruição do presente como “[...] a mais autêntica expressão de humanização” (Arenhart, 2016, p. 182).
Conclusão
Após o período de convívio com a turma do Pré A ficou evidente que o brincar atravessa todos os espaços-tempos da Educação Infantil. Além de ser um direito reconhecido em documentos orientadores como a Base Nacional Comum Curricular, é uma linguagem expressiva que não fica restrita a momentos específicos ou unicamente condicionada a estratégias metodológicas para o aprendizado cognitivo. O brincar extrapola qualquer planejamento adulto; irrompe a linearidade do tempo cronológico através de um olhar sensibilizado ao presente.
O conflito entre os tempos institucionais ligados à rotina linear da escola e os tempos vividos pelas crianças se manifestou nas transversões infantis. A suspensão do tempo do relógio protagonizada pelas crianças para a imersão no tempo presente da experiência e as transformações dos lugares em espaços com novo sentido e significado foram potentes exemplos trazidos ao longo do texto. O cotidiano vivido junto às crianças mostrou uma intencionalidade ativa e despreocupada ao resistir às imposições adultas de comportamento e movimento. Intencionalidade ativa, pois elas resistiam às ordens dos adultos para atingir seus objetivos e atribuir significados próprios e, ao mesmo tempo, intencionalidade despreocupada, pois suas intenções não se assemelhavam ao frenesi das cobranças pedagógicas por rendimentos e produtividade; de fato, estavam no campo das simplicidades: o brincar pelo prazer de brincar e o movimento pelo prazer de se movimentar. De modo geral, a escola tende a frisar habilidades necessárias para atingir o próximo nível ou ano, mas pouco se fala sobre as desnecessidades. Manoel de Barros, autor citado anteriormente, dizia que a beleza e a glória das coisas, o olho é que põe; bonito é o desnecessário. A transversão por trás dos olhos das crianças é a manifestação do desejo pelas desimportâncias que, muitas vezes, não têm espaço nos cotidianos escolares.
Cabe sinalizar algumas amarras impostas à condição de professores e professoras de escolas públicas que se mostram dificultadoras para uma escuta sensível às crianças. Aliada aos tensionamentos entre os tempos chrónos e aión está a cobrança de órgãos superiores voltada a uma preparação velada dos corpos para o longo processo de escolarização que se desdobra no decorrer da Educação Básica, seguida das exigências do mundo do trabalho. É na primeira etapa do Ensino Básico que se forja a base da produtividade nos moldes da nossa sociedade, conferindo, dessa forma, um caráter instrumental à Educação Infantil, elencando habilidades necessárias de acordo com parâmetros adultos e deixando pouco espaço para a poética das desimportâncias e das transversões infantis. No caso da escola observada neste trabalho, também há de se levar em consideração uma disputa por espaços existente entre as turmas da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, exigindo, dessa forma, mais organização e gestão das rotinas da instituição a fim de evitar conflitos.
A partir da reflexão proposta, não se pretende simplesmente condenar a existência de uma rotina, visto que as tarefas repetidas diariamente contribuem para a formação de hábitos de alimentação e higiene, auxiliando também na orientação temporal. Além disso, as escolas precisam da organização dos espaços-tempos para materializar seus planejamentos pedagógicos. A intenção, a partir da discussão estabelecida, é dar margem e oportunidade às colaborações infantis, compreendendo as brincadeiras como modo de interpretar e contribuir com a realidade em que as crianças estão inseridas.
Compreende-se o desafio de coordenar e organizar os espaços de uma instituição que conta com turmas de Educação Infantil e de Ensino Fundamental, sobretudo no que diz respeito às demandas referentes ao lanche das crianças e demais estudantes. O que se propõe aqui é o exercício diário de uma escuta sensível com os pequenos e pequenas, considerando os modos particulares como o cotidiano é reinventado e significado pelas crianças através das brincadeiras e interações. Junto a isso, propõe-se também uma reflexão sobre o apressamento que algumas vezes aparece de forma velada nos planejamentos pedagógicos e nas organizações das rotinas escolares.
A escuta sensível está além do sentido auditivo; pressupõe uma disponibilidade corporal que envolve todos os sentidos (visão, tato, olfato, audição e paladar). Implica também no interesse nos múltiplos enunciados, que estão além da oralidade, produzidos pelas crianças. Esse pode ser um caminho para conciliar a existência de uma rotina sem anular os sujeitos infantis.
Uma atitude atenta e sensível às manifestações infantis, até mesmo às mais sutis ou menos compreensíveis à racionalidade adulta, pode balizar a organização dos tempos-espaços na Educação Infantil, conferindo centralidade às crianças no processo de ensino-aprendizagem, conforme os documentos orientadores sugerem. De outra parte, os adultos têm a oportunidade de se sensibilizar para o extraordinário e experimentar um mundo transvisto pelos olhos infantis.