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Revista de Educação PUC-Campinas

versão impressa ISSN 1519-3993versão On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.29  Campinas  2024

https://doi.org/10.24220/2318-0870v29a2024e12776 

DOSSIÊ A construção de âncoras narrativas em tempos de plataformização digital

Narrativas Digitais no contexto amazônico: experiências de formação docente em grupos de WhatsApp

Digital Narratives on the Amazon context: teacher training experiences on WhatsApp groups

Whasgthon Aguiar de Almeida, Conceituação, Metodologia, Escrita – rascunho original, Escrita – revisão e edição1 
http://orcid.org/0000-0001-5950-6442

Raimundo de Jesus Teixeira Barradas, Escrita – rascunho original2 
http://orcid.org/0009-0007-6921-3732

William Costa da Silva, Escrita – rascunho original3 
http://orcid.org/0009-0001-4135-0993

1Universidade do Estado do Amazonas, Escola Normal Superior, Programa de Pós-Graduação em Educação. Manaus, AM, Brasil.

2Universidade do Estado do Amazonas, Escola Superior de Artes e Turismo. Manaus, AM, Brasil.

3Universidade do Estado do Amazonas, Centro de Estudos Superiores de Tefé. Tefé, AM, Brasil.


Resumo

O texto em questão retrata uma experiência formativa ocorrida no ápice da pandemia da COVID-19, no componente curricular Estágio II, durante um semestre letivo em uma turma do Curso de Pedagogia, do Centro de Estudos Superiores de Tefé da Universidade do Estado do Amazonas. No Centro de Estudos as aulas foram interrompidas por cinco meses e retornaram no formato remoto em agosto de 2020. Entretanto, nas cidades do interior do Amazonas, dentre elas Tefé, não foi possível utilizarmos plataformas como AVA (Ambiente Virtual de Aprendizagem), Google Meet, Zoom etc., restou-nos como única alternativa viável ministrar as aulas usando o aplicativo WhatsApp. Ao longo deste trabalho evidenciaremos o processo didático-pedagógico desenvolvido, apontando as impressões dos acadêmicos abrangidos nas atividades relacionadas às reflexões do professor da disciplina, à luz de teorias que sustentam o Método Narrativo. Por fim, apresentamos os resultados das atividades teóricas e práticas realizadas nesse período, destacando suas limitações e fortalezas, além de indicar possibilidades para o trabalho remoto no pós-pandemia.

Palavras-chave Ensino remoto; Estágio docente; Formação de professores

Abstract

The present text portrays a teacher training experience that took place at the COVID-19 pandemic outbreak’s peak in the Internship II classes of the Pedagogy Undergraduate program at the Center for Higher Studies of Tefé, at the State University of Amazonas. At Center for Higher Studies of Tefé/State University of Amazonas, classes were interrupted for five months and returned in remote format in August 2020. However, in some cities in the interior of the Amazonas State, including Tefé, we couldn’t use platforms such as AVA (Virtual Learning Environment), Google Meet, Zoom, etc., so WhatsApp was the only viable alternative to keep teaching classes. Throughout this text, we will highlight how the didactic-pedagogical process was developed, pointing out the students’ perspectives on behalf of the teacher’s reflections, based on the theories that support the Narrative Method. Finally, we present the results of the theoretical and practical activities carried out during this period, highlighting their limitations and strengths, and indicating possibilities for remote work in the post-pandemic.

Keywords Remote teaching; Teaching internship; Teacher training

Para início de conversa

Aparentemente o planeta seguia sua rotina normal para mais um ciclo anual que ainda se iniciava; porém, o ano de 2019 finalizou com a confirmação de um novo vírus que surgia na China e deixava, primeiramente, a cidade chinesa de Wuhan e suas cercanias em alerta; depois, o continente asiático inteiro e, por fim, a Europa e o restante do planeta. No Brasil, principalmente nas cidades do interior da Amazônia, a população considerava o noticiário televisivo e das mídias digitais uma narrativa baseada na ficção científica de padrões hollywoodianos; mas, infelizmente, a notícia se confirmou da pior maneira possível a partir de março do ano de 2020, deixando um rastro de mortes e sofrimento em todo o estado do Amazonas, inclusive na cidade de Tefé.

Quanto ao Centro de Estudos Superiores de Tefé (CEST), integra a Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e está localizado na cidade de Tefé-AM, pertencente a mesorregião do Médio Solimões. Tefé é um município do estado do Amazonas com cerca de setenta e cinco mil habitantes, sendo considerada uma cidade polo da região do Médio Solimões, por ser referência em economia, saúde e, principalmente, em educação, pois recebe inúmeros universitários oriundos de outros municípios menores ali localizados. O acesso a cidade só ocorre por via fluvial ou aérea e, assim como as demais cidades do Amazonas, possui uma grande dificuldade com internet banda larga e sinal de celular 4 ou 5G.

O CEST/UEA possui sete cursos de Licenciaturas, sendo eles: Pedagogia, Letras Língua Portuguesa, Matemática, História, Geografia, Química e Física com cerca de 1.500 acadêmicos(as) matriculado(as) em mais de 30 turmas dos diversos cursos ofertados. No contexto que o novo vírus se fez presente no Brasil, as aulas presenciais na UEA foram interrompidas em março de 2020, após a confirmação dos primeiros casos do novo coronavírus no estado do Amazonas, e só retornaram de maneira remota no mês de agosto de 2020.

A cidade de Tefé-AM não ofereceu condições de acessibilidade à Plataforma AVA (Ambiente Virtual de Aprendizagem), da UEA; ou ainda, o Google Meet, Google Classroom ou Zoom, pois a internet não possibilitou uma conexão satisfatória para o desenvolvimento das atividades didático-pedagógicas no formato remoto, daí a necessidade dos docentes que ministravam aula no CEST/UEA para que desenvolvessem atividades nos Grupos de WhatsApp, criados para cada um dos componentes curriculares de cada curso, ofertados no semestre letivo 2020/1.

Premissas teóricas-metodológicas do processo formativo

Narra-se neste texto as vivências e experiências de um professor-pesquisador do Curso de Pedagogia do CEST/UEA que ministrou o componente curricular: “Estágio II”, de maneira remota via plataforma WhatsApp, no auge da pandemia da COVID-19, na cidade de Tefé-AM. Benjamin (1985) afirma que, ao escrever sobre a vida, o contador de histórias legitima na modernidade um eu partilhado que está presente dentro e fora do texto, visto que, quando relata seus casos, o narrador está presente no tempo e espaço com uma percepção única de realidade, sobretudo ao compartilhar experiências passadas com percepções do presente que influenciam o futuro. Dessa forma, intencionamos narrar o processo vivido nesse período, relacionando as ações formativas no espaço virtual ao contexto sócio-histórico-cultural vigente.

Desde o primeiro momento do processo, eu, enquanto professor-pesquisador narrativo, descrevi cada uma das percepções vivenciadas no grupo de WhatsApp, sejam mensagens de texto, áudio ou vídeo. Tudo que consideramos significativo foi registrado num bloco de notas virtuais, o qual se constituiu num relevante diário de campo capaz de possibilitar a reflexão sobre as impressões percebidas e possíveis de serem transformadas em significados, ou seja, aquelas que deram sentido à realidade na qual estávamos inseridos. Dividiu-se os escritos em eixos, denominados: “falas dos acadêmicos, conteúdos trabalhados e reflexões pessoais”. Para Bogdan e Biklen (2008), o diário de campo permite ao pesquisador o registro de evidências com detalhes possíveis de serem organizadas em notas descritivas e reflexivas repletas de elementos subjetivos.

A esse respeito, Merleau Ponty (2006, p. 279) afirma que a percepção “[...] não se apresenta como um acontecimento no mundo ao qual se possa aplicar, por exemplo, a categoria de causalidade, mas a cada momento como uma re-criação ou re-constituição do mundo”. Assim, utilizamos a transcrição dos áudios, fotografias e pequenos vídeos que os estagiários disponibilizavam durante as aulas como uma importante fonte de dados. Nesse sentido, ao optar por uma abordagem narrativa na pesquisa com professores ainda em formação inicial, possibilitamos o entendimento de seus anseios, necessidades e interesses num momento de construção de sua identidade docente. Para Souza, Vicentini, e Lopes (2018, p. 18): “Narrar a vida inscreve-se como uma disposição que remete o sujeito para processos diversos de resistência e empoderamento, o que implica compreender as diferentes formas de narrativas na contemporaneidade, sejam elas orais, escritas, imagéticas e virtuais”.

Ao narrar nossas vivências coletivas de maneira textual, a partir de experiências únicas e vivenciadas num momento histórico tão doloroso para a humanidade, pretende-se demonstrar que conseguimos desenvolver de maneira satisfatória processos formativos de maneira não-presencial, em um formato remoto, mesmo com todas as dificuldades tecnológicas características de cidades do interior da Amazônia brasileira.

As narrativas docentes dão sentido às experiências relatadas para si e para o outro, permitindo ao sujeito-professor se tornar o ator principal de seu processo formativo, ou melhor, ao apropriar-se com propriedade e consciência de seu percurso de vida numa perspectiva de produtor de conhecimentos individual e coletivo. Narrar nos permite compreender e recontar o mundo a partir dos vividos daqueles com quem partilhamos e assim ressignificarmos nossas crenças e visões de mundo, possibilitando mudar a nós, ao outro e a sociedade. Souza (2008, p. 38) indica que:

A investigação formação por meio das narrativas de profissionais que estão em formação inicial/continuada, ao compreender a abordagem autobiográfica, expressa através das narrativas, como uma metodologia de trabalho que possibilita tanto ao formador, quanto aos sujeitos em processo de formação significar suas histórias de vida, através das marcas e dispositivos experiência dos nos contextos de sua formação.

O Método Narrativo na pesquisa em Educação permite ao investigador coletar e analisar dados oriundos das vivências e experiências dos sujeitos envolvidos no processo investigativo, dando voz aos professores, estudantes e demais participantes do contexto escolar. O ato de narrar está relacionado a sentimentos e percepções de histórias vividas e registradas em memórias, muitas vezes perdidas, recuperadas a partir das técnicas de pesquisa utilizadas pelo investigador narrativo. Galvão (2005, p. 328) afirma que: “A realidade cotidiana é percebida por cada um de nós de um modo muito particular, damos sentido às situações por meio do nosso universo de crenças, elaborado a partir das vivências, valores e papéis culturais inerentes ao grupo social a que pertencemos”.

Essas narrativas ganham significados a partir da sua confrontação com o olhar do pesquisador, baseado nas teorias que sustentam esse método, pois, como diz Larrosa (2002), narrar é construir sentidos para as experiências vivenciadas, é aquilo que nos toca, inquieta-nos e nos transforma fazendo com que reconstruamos nossos olhares sobre a realidade.

Ao buscar estratégias inovadoras de ensino, tais como: o ensino remoto via grupos de WhatsApp, alimento a minha condição de autor e fortaleço o meu trabalho docente, tal como propõe Bragança (2011, p. 159), ao afirmar que: “são as experiências formadoras, na força do que nos atinge, que nos sobrevêm, nos derrubam e transformam, inscritas na memória, que retornam pela narrativa não como descrição, mas como recriação, reconstrução”.

As experiências pessoais e formativas dos indivíduos são organizadas de maneira mais significativas a partir de narrativas, pois, é possível perceber como é dado importância diferente à realidade e às experiências criadas nas várias esferas da sociedade em que ele interage. A narrativa é mais do que um relato da realidade; é a aceitação dessa realidade, que sofre fortes influências culturais, religiosas, sexuais etc. É desse caldeirão de fatores concretos e subjetivos que emerge a autoria do sujeito, no caso o docente, o qual usa de sua autonomia para construir seu próprio caminho formativo. Quando se trata de professores em formação inicial, mais especificamente estagiários, concordamos com Ghedin, Oliveira e Almeida (2015, p. 88), ao afirmarem que:

O desenvolvimento profissional do docente depende, de certa forma, do discernimento que este possui para conduzir sua ação, assim como, da compreensão profunda de cada situação vivenciada no contexto o ensino. Um professor, por mais que tenha vivido uma situação favorável em sala de aula, não pode generalizar esta ação porque as situações vindouras podem ser parecidas, mas nunca são as mesmas. Apoiar-se nas experiências é possível e acertado, porém sempre de forma renovada.

As vivências dos professores em formação inicial, enquanto estagiários do Curso de Pedagogia do CEST/UEA, no período das aulas remotas, contribuíram para o fortalecimento de seu desenvolvimento profissional, pois os colocou frente a situações complexas que poderiam influenciar negativamente o processo de ensino-aprendizagem; mas, pelo contrário, evidenciou a eles novas possibilidades para superar obstáculos aparentemente intransponíveis.

Vivências formativas de Estágio via WhatsApp: momentos teóricos

A Universidade do Estado do Amazonas estava a 90 dias sem aulas presenciais, híbridas ou remotas quando foi publicada a Nota Técnica 001/2020-UEA, de 15 de junho de 2020, fundamentada no Parecer 05/2020, do Conselho Nacional de Educação (CNE), que normatizou as atividades de ensino não-presenciais no período da pandemia da COVID-19. A nota técnica estabeleceu o retorno das aulas para o mês de agosto quando completariam 138 dias desde a paralização das aulas (Universidade do Estado do Amazonas, 2020).

Neste sentido, vale ressaltar as diferenciações entre tais modelos de ensino, sendo o híbrido uma mescla entre o presencial e o virtual, o qual não foi possível devido os índices de contágio da COVID-19 em Tefé e pela impossibilidade da utilização da plataforma AVA. Enquanto isso, o modelo remoto consistiu numa alternativa emergencial de ensino caracterizada pela utilização de plataformas de comunicação virtuais síncronas, no caso do CEST/UEA, viabilizou-se o desenvolvimento das aulas via WhatsApp.

As dúvidas foram muitas, os desafios enormes, mas era necessário seguir em frente, mesmo que fosse no formato não-presencial. De acordo com a nota técnica 001/2020-UEA, os docentes da UEA poderiam ministrar suas aulas em plataformas virtuais; porém, de maneira síncrona (Universidade do Estado do Amazonas, 2020). Nas cidades do interior do estado do Amazonas não existia conectividade suficiente para Google Meet, Zoom, Google Class etc., nos restando o WhatsApp como única alternativa viável.

Lucena, Oliveira e Júnior (2017) evidenciam que o sucesso e a adoção do WhatsApp se devem a portabilidade em relação aos aparelhos móveis, gratuidade dos serviços, a usabilidade e a simplicidade que oferece de interface. Esse aplicativo, utilizado em atividades escolares, poderá permitir comunicação síncrona e assíncrona entre o professor e estudantes, como a troca de texto, áudio, imagem e vídeo, documentos e ligações gratuitas por meio de conexão com a internet.

O início das atividades remotas foi repleto de empecilhos técnicos na capital e no interior do estado do Amazonas. Na capital, Manaus, a conexão funcionava, mas os créditos dos smartphones dos acadêmicos não duravam o suficiente para finalizarem a primeira aula remota pelo Google Meet. Nas cidades do interior, a maioria dos acadêmicos não possuíam pacote de dados, o que os impossibilitava de acessar o WhatsApp de suas residências e, quando acessavam, não conseguiam baixar fotos, textos ou áudios. Tal situação obrigou a universidade a adquirir smartphones e chips para todos os acadêmicos da capital e do interior para poderem participar das aulas virtuais.

Neste semestre 2020/1, eu fui o docente responsável pelo Estágio II, no Curso de Pedagogia, do 7º período vespertino do CEST/UEA. Antes de ser anunciado o primeiro caso de COVID-19 no Amazonas que levou à interrupção das aulas, essa turma de Estágio teve 8h de aulas presenciais, nas quais foram apresentadas as propostas da disciplina e os procedimentos avaliativos e metodológicos de todo o processo. Exatamente 138 dias depois as aulas retornaram no formato virtual, no dia 3 de agosto de 2020.

O processo iniciava com a secretária do Curso de Pedagogia criando um grupo de WhatsApp e inserindo todos os acadêmicos matriculados no componente curricular Estágio II e, após todos inseridos, adicionava-me como administrador, saindo, logo em seguida, do grupo. As aulas aconteceram exatamente no dia e horário do formato presencial, ou seja, toda terça-feira das 13h às 16h40, com 20 minutos de intervalo, ou seja, das 14h40 às 15h. Denominei de Interação Formativa Virtual cada uma de nossas aulas de Estágio II via WhatsApp. O primeiro desses encontros foi dedicado a apresentação da proposta de trabalho das aulas não-presenciais, assim estabelecidos em comum acordo com os acadêmicos, a saber:

  • Obrigatoriedade dos participantes do grupo colocarem a visualização de mensagens ativas no aplicativo para o professor acompanhar a interação dos acadêmicos;

  • Os textos, slides e áudios seriam anexados pelo professor 24 horas antes das interações Formativas Virtuais;

  • Nas discussões teóricas seriam anexadas fotografias dos slides com seus respectivos comentários;

  • Os áudios disponibilizados no grupo teriam no máximo 2 minutos de duração;

  • Os textos trabalhados no grupo seriam em pdf e zipados;

  • O representante de sala seria encarregado de organizar a lista de inscrição para tirar dúvidas e no debate dos textos.

O componente curricular Estágio II, no Curso de Pedagogia do CEST/UEA, é direcionado para práticas de observação e participação em turmas do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental, sendo 30h teóricas e 90h práticas. A primeira Interação Formativa Virtual aconteceu na tarde de uma terça-feira, dia 4 de agosto de 2020. Iniciamos com apenas 12 dos 35 acadêmicos(as) matriculados em Estágio II, pois nesse dia um forte temporal acometeu a cidade de Tefé-AM momentos antes da interação no grupo de WhatsApp. Com o passar das horas, os demais acadêmicos(as) foram entrando no grupo, conforme a conexão de internet na cidade se reestabelecia. Naquele dia, fizemos a apresentação da proposta de trabalho, com apresentação do Plano de Ensino, Cronograma das Interações Formativas, portfólio de avaliações e estrutura dos Relatório Analíticos.

As atividades remotas duraram do mês de agosto ao mês de outubro de 2020, período em que o estado do Amazonas se recuperava da primeira onda da COVID-19, que ceifou centenas de vidas durante os meses de março, abril e maio. Com a queda na incidência de casos, internações e mortes pelo novo coronavírus, vivíamos um momento de calmaria e esperávamos que o pior tivesse passado; ledo engano, pois a segunda onda que se instaurou nos meses de janeiro, fevereiro e março de 2021 foi muito pior que a primeira.

As Interações Formativas Virtuais continuaram semanalmente, a partir da apresentação de slides, discussão de textos e debates. As dificuldades foram surgindo pelos mais variados motivos: conexão de internet, travamento dos celulares e a dificuldade de entendimento das aulas não-presenciais. Tais situações me levaram a procurar outras saídas além dos textos relacionados ao componente curricular de Estágio II. Ao final de cada interação eu lia todos os comentários do grupo e ouvia todos os áudios disponibilizados com dúvidas para, em seguida, preparar pequenos vídeos de 30 segundos, pequenos áudios de, no máximo um minuto, explicando as principais partes dos textos e, postando no grupo pelo menos 72 horas antes da próxima interação. Ao refletir sobre meus vividos naquele momento histórico que influenciava diretamente a ciência, a vida social e, principalmente, o contexto educativo, fui tecendo uma rede de memórias que ganharam sentido, conforme o meu olhar profissional foi se misturando com a minha própria história de vida. Dessa forma, corroboro com Souza, Vicentini e Lopes (2018, p. 18) quando dizem que:

As narrativas expressam experiências que são redimensionadas pelo ato de narrar, implicando processos de constituição e reconstituição de histórias pessoais e sociais, construção de identidade do narrador face aos desafios que se colocam entre o vivido, a memória e o narrado, em plena articulação com as experiências, a temporalidade biográfica e as aprendizagens que são propiciadas pelas narrativas.

Ao narrar vivências tão significativas na formação de professores, no contexto amazônico, e em um momento histórico tão crítico para a humanidade como a pandemia do novo coronavírus, aponto novas possibilidades de propagação do conhecimento científico, ao mesmo tempo em que contribuo na formação inicial de docentes para a Educação Infantil, Anos Iniciais do Ensino Fundamental e Educação de Jovens e Adultos na Amazônia brasileira.

Os procedimentos avaliativos que compuseram as avaliações parciais 1 e 2 do Estágio II, conforme o regimento da UEA, foram: Avaliação Parcial 1, elaboração de um Mapa Conceitual, e sua devida apresentação, dos capítulos do livro Estágio e Docência, das professoras Selma Garrido Pimenta e Maria do Socorro Lucena e Lima, além da ativa participação nos debates semanais durante as Interações. A Avaliação Parcial 2 foi a elaboração e execução do Projeto de Intervenção desenvolvido pelos acadêmicos(as) estagiários(as) no próprio contexto familiar, pois as escolas de Tefé-AM também estavam atuando remotamente com aulas pela televisão, além do Relatório Analítico exigido no Estágio. Vale ressaltar que todos os documentos obrigatórios, característicos do Estágio, foram adaptados e cobrados normalmente ao final do processo.

As discussões teóricas ocorreram semanalmente durante as Interações Virtuais, nas quais apresentei as teorias relacionadas ao Estágio, numa perspectiva diacrônica que relacionava as várias correntes teórico-epistemológica adotadas no Brasil e no exterior à formação de professores na Amazônia.

Foram formadas seis equipes, com quatro ou cinco membros para estudo dos textos selecionados, e construção de Mapas Conceituais. Cada uma das equipes criou um grupo de WhatsApp para debate dos textos e me inseriam conforme surgiam as dúvidas. No dia das apresentações, as equipes postavam no grupo de WhatsApp da disciplina o Mapa Conceitual em pdf e, em mensagens de texto e áudio, faziam as devidas apresentações, culminando com um debate final sobre a temática.

Vivências formativas de Estágio via WhatsApp: momentos práticos

Semanas depois do início das Interações Formativas Virtuais contemplamos a parte teórica da disciplina com aulas expositivas, leitura dos textos, apresentação dos mapas conceituais e debates nos grupos de WhatsApp, daí partimos para o segundo momento do componente curricular Estágio II, com as atividades práticas de observação; porém, devido a pandemia, os estagiários realizaram entrevistas via Google Forms com docentes que atuam do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental em escolas públicas da cidade de Tefé-AM, para, em seguida, desenvolverem o projeto de ensino-aprendizagem e as regências nas série indicadas.

Em Tefé-AM continuávamos com o Ensino Remoto nas escolas da rede pública, o que inviabilizava a realização de atividades práticas de Estágio, restando como única alternativa o formato não-presencial. Conforme a Nota Técnica 001/2020-UEA, fundamentada no Parecer 05/2020, do Conselho Nacional de Educação (CNE), as atividades de ensino não-presenciais estavam autorizadas no período da pandemia da COVID-19, então, em comum acordo com a turma, decidimos que as práticas seriam no próprio contexto dos estagiários.

Após o cumprimento das 30h teóricas do Estágio II, através das interações no grupo de WhatsApp, orientamos que os estagiários pertencentes as equipes formadas para o estudo dos Mapas Conceituais construíssem projetos de ensino-aprendizagem, baseados em situações-problemas reais que perceberam nas atividades práticas da disciplina: “Teoria e Prática da Educação Infantil”, além dos conhecimentos teóricos adquiridos nos componentes de “Didática e Planejamento e Avaliação”, cursados no período anterior. Foram formados grupos de WhatsApp também para cada uma das equipes envolvidas na atividade, como as orientações semanais no dia e horário das interações, além de um plantão tira-dúvidas diário no período da manhã.

A primeira fase do processo prático do Estágio II se deu com a elaboração das questões do Google Forms, aplicadas aos docentes das escolas públicas. As equipes discutiram no “grupão” de WhatsApp e, com a minha ajuda, decidiram dividir as perguntas em dois blocos, assim denominados: “formação inicial” e “continuada”, quando conheceram se a formação e as capacitações dos professores refletiam na sua prática docente. Além disso, houve a denominação: “experiência docente”, que evidenciou como a metodologia dos professores se desenvolveu ao longo dos seus anos de experiências em sala de aula.

Após a fase da coleta de dados no questionário virtual, discutimos nos grupos de WhatsApp das equipes a maneira que analisaríamos as respostas. Uma das estagiárias, hoje professora, Katarina Feitosa4, fez um comentário no momento das orientações que, chamou-nos atenção, ao afirmar:

Uma das professoras entrevistadas relatou que nos primeiros meses de docência era muito inseguro, pois tinha muita teoria, mas nenhuma prática, o que dificultou seu trabalho. Acredito que nós estagiários devemos ter menos problemas porque além da teoria tivemos outras experiências práticas com PIBID e outras disciplinas mesmo com todas as dificuldades de se estudar no interior do estado. E esperamos que essa pandemia passe para voltarmos às escolas.

A fala da estagiária me inquietou bastante porque, ao mesmo tempo em que demonstrou otimismo com seu futuro profissional, indicou apreensão pelas consequências da pandemia no seu processo formativo. Ao narrar as histórias dos docentes entrevistados e cruzar como sua própria história de professora em formação inicial transpõe o nível de reflexão sobre si, percebeu-se melhor como tal processo abarca a profissionalização do docente amazônico como um todo. Dessa forma, corroboramos com Marquesin e Nacarato (2018, p. 94) quando afirmam que:

A narrativa não contribui apenas para o leitor, mas também para seu autor, uma vez que, no ato da escrita da narrativa, este precisa não apenas lembrar os fatos passados, como também construir um cenário, uma trama na qual a história se passa. Associa-se a esse aspecto o processo de reflexão sobre as experiências a serem narradas.

Uma das características principais do projeto de ensino-aprendizagem foi a utilização de materiais lúdicos e/ou reciclados na execução das atividades planejadas, sendo que o público-alvo foram os estudantes dos Anos Iniciais da família e os vizinhos dos estagiários envolvidos na atividade. Várias dessas crianças que participaram do projeto estavam sem estudar havia meses, pois muitos não se adaptaram às aulas pela TV que acontecia a partir da parceria entre SEDUC (Secretaria de Estado de Educação do Amazonas) e SEMED (Secretaria Municipal de Educação) e, preferiam receber semanalmente os cadernos com as atividades elaboradas pelos professores das turmas. Portanto, as ações didático-pedagógicas desenvolvidas contribuíram no fortalecimento do processo de alfabetização.

Finalizado o processo de construção dos recursos pedagógicos com materiais recicláveis, os estagiários partiram para a culminância do projeto, onde cada um deles ficou responsável por um objetivo específico e correspondia a uma das metas da metodologia. A primeira atividade foi a contação de histórias que retratava formas geométricas, numerais, palavras etc. A contação foi um momento muito interativo. No final da história, as crianças participantes conseguiram perceber a importância de ajudar os colegas e que tudo tem hora certa para se fazer. Por fim, pedimos que eles desenhassem numa folha de papel situações do seu cotidiano, utilizando elementos da floresta que disponibilizamos durante a atividade, tais como: flores, folhas, frutos, sementes, pedras, galhos etc. As crianças mostraram seus desenhos e debateram sobre os desenhos, cores e elementos da floresta, os que não conheciam passaram a conhecer, tornando assim a aula mais prazerosa e dinâmica.

Após as culminâncias dos projetos de ensino-aprendizagem em suas próprias residências, os estagiários partiram para a organização das regências. Decidimos que elas também aconteceriam em suas residências, tendo como público seus familiares e vizinhos e, sendo gravadas e a mim encaminhadas para análise e avaliação. A primeira etapa da atividade foi a elaboração do Plano de Aula, no qual era necessário se explorar a dimensão interdisciplinar.

Uma das temáticas exploradas na regência do 3º ano foi o “desmatamento na Amazônia”, visando sensibilizar os estudantes sobre as causas e consequências que o desmatamento vem causando no solo, no clima, na fauna e na flora. Foi identificado no mapa do Brasil as áreas em que mais ocorrem desmatamentos, com ênfase na Amazônia. Cada um dos participantes confeccionou um cartaz sobre a importância da preservação da floresta amazônica e, em seguida, gravou um vídeo para ser enviado no grupo de WhatsApp da turma.

A regência virtual com conteúdos do 5º ano levou em consideração a dificuldade das crianças participantes no processo de leitura, escrita e interpretação de texto. Para tanto, os estagiários construíram os recursos didáticos com material reciclável que retratasse cores, letras e palavras. O brinquedo foi construído com características que potencializavam cores quentes na associação das letras, sílabas e palavras na relação com o cartaz.

Em geral, foram dezenas de horas discutindo teorias e experiências de Estágio Supervisionado voltadas ao Curso de Pedagogia no Grupo de WhatsApp. Cerca de trinta acadêmicos interagiram, aprenderam e ensinaram, consolidando o processo legítimo de retroalimentação de conhecimentos.

Reflexões finais de uma conversa que não termina aqui

Como um legítimo descendente de nordestinos, cujos avós eram retirantes do sertão e da serra do Ceará que foram explorar o Amazonas em meados da década de 1950, sempre fui um bom ouvinte das desventuras sertanejas narradas por meu avô de quando ainda era apenas um menino, e dos contos de minha avó que retratavam a vida no sertão de terra rachada, como ela sempre enfatizava. Assim, também me tornei um bom contador de histórias, principalmente aquelas que saem do contexto escolar e ganham forma nos textos que produzimos, mas não imaginava que um dia contaria histórias vividas numa pandemia.

Os dias foram dificílimos, daí a necessidade de medidas diferenciadas para o andamento do processo de ensino-aprendizagem não sucumbir àqueles momentos sombrios; pelo contrário, foram justamente as Interações Formativas Virtuais desenvolvidas semanalmente via WhatsApp que fortaleceram a autoestima dos acadêmicos-estagiários, e os motivaram a acreditar que o pior passaria e as luzes voltariam a nos iluminar.

Registrar esses acontecimentos nos remeteu a lembranças desse momento histórico que estavam adormecidas e, quando lidas nos arquivos do Grupo das aulas pelo WhatsApp, como também no bloco de notas virtual, despertou-nos sentimentos dolorosos, mas ao mesmo tempo esperançosos. Formar professores em cidades do interior do Amazonas de maneira presencial é um desafio que impõe aos docentes que atuam nas Instituições de Ensino Superior o desenvolvimento de estratégias diferenciadas de ensino que contextualizem conteúdos e valorizem os conhecimentos prévios dos estudantes.

Durante o ápice da pandemia da COVID-19 e a necessidade de atividades não-presenciais de ensino com o uso de tecnologias digitais via internet, as dificuldades foram potencializadas e os desafios ficaram ainda maiores devido a dificuldade de acesso à internet nas cidades do interior do estado do Amazonas. Como vimos no decorrer deste texto, as Interações Formativas Virtuais possibilitaram que dezenas de professores em formação inicial, do Curso de Pedagogia do CEST/UEA, não renunciassem ao sonho de se tornar professor e continuassem resistindo no período mais difícil de suas vidas.

Contar essas histórias é resistir a um período de negacionismo científico promovido pelo principal mandatário da nação daquele momento histórico. É demonstrar que a Ciência venceu a ignorância! A verdade superou as mentiras! As luzes venceram as trevas!

A união de professores e estudantes imbuídos do mesmo objetivo, como, por exemplo: continuar o processo de formação inicial docente num momento de pandemia, foram capazes de viabilizar um novo caminho metodológico de resistência aos obstáculos aparentemente intransponíveis para aquele processo de formação. Lutamos, vencemos e sobrevivemos.

4Nome fictício escolhido pela própria entrevistada durante a pesquisa.

Como citar este artigo: Almeida, W. A.; Barradas, R. J. T.; Silva, W. C. Narrativas Digitais no contexto amazônico: experiências de formação docente em grupos de WhatsApp. Revista de Educação PUC-Campinas, v. 29, e2412776, 2024. https://doi.org/10.24220/2318-0870v29a2024e12776

Referências

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Recebido: 13 de Maio de 2024; Revisado: 04 de Julho de 2024; Aceito: 26 de Julho de 2024

Correspondência para: W. A. ALMEIDA. E-mail: wdalmeida@uea.edu.br.

Editora

Luciana Haddad Ferreira

Conflito de interesse

Não há conflito de interesses.

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