1 INTRODUÇÃO
Cartografia. Nos estudos e práticas na interface da Educação e da Geografia, esse termo tem apresentado crescente polissemia. Polissemias podem atuar como potentes ativadores de pensamentos, deslocando os significados de seus sentidos habituais e abrindo possibilidades para novos olhares. No entanto, no âmbito em questão, tem causado confusões de variadas ordens. Isso nos estimulou a produzir esse texto, que objetiva abordar, ainda de modo bastante introdutório, sentidos de cartografia e mapa na filosofia da diferença, na expectativa de contribuir com as pesquisas na interface entre Educação e Geografia.
Em escritos acadêmicos que tocam os campos de Geografia e Educação é possível identificar, pelo menos, três usos correntes para o termo “Cartografia” e seus correlatos “Mapa” e “Mapeamento”: como ciência, como metáfora ou máscara conceitual, como analítica de processos. Exploraremos brevemente cada um dos usos.
O mais comum deles atribui à Cartografia o significado de “ciência do estudo dos mapas”, sendo mapeamento o conjunto de procedimentos e técnicas de sua produção. Ainda que essa afirmação pareça singela, abarca um vasto conjunto de conhecimentos, que vão desde as geotecnologias (Sistemas de Informações Geográficas, Sensoriamento Remoto, plataformas de mapeamento online, Sistemas de Posicionamento Global) até as conexões com a arte, passando pela cartografia escolar e por mapeamentos participativos e colaborativos, somente para mencionar alguns dos ramos mais produtivos nessa área. Dada a estreita vinculação epistemológica que a ciência geográfica possui com a produção e uso de mapas, e sendo a Geografia escolarizada a principal responsável pela disseminação desse conteúdo, a Cartografia é, sem dúvida, um dos elementos da vulgata da Geografia, daí ser muito comum a associação entre ambos. Acrescente-se, ainda, que nesse campo em particular, com muita frequência, utiliza-se os termos cartografia e mapeamento como sinônimos.
Tem sido cada vez mais comum, também, encontrar os termos citados utilizados como metáforas (SEEMANN, 2003) ou como máscaras conceituais. Em geral, tais usos reportam à apresentação de fenômenos complexos e não lineares, como é o caso dos mapas conceituais (TAVARES, 2007);, como “representações ordenadoras” (MASSEY, 2008, p. 159), que é o caso dos mapeamentos genéticos, mas também como estratégia de exploração conceitual. Cita-se como exemplar desse último caso o texto de Boaventura de Souza Santos, que toma elementos de mapas como agentes problematizadores da sociologia do direito, ao que denomina “cartografia simbólica do direito” (SANTOS, 1988).
Para desempenharem adequadamente suas funções, [os mapas] têm inevitavelmente de distorcer a realidade. [...] No entanto, a distorção da realidade não significa automaticamente distorção da verdade, se os mecanismos de distorção da realidade forem conhecidos e puderem ser controlados (SANTOS, 1988, p. 142 e 143).
Partindo dessa virtuosidade do mapa em ter que distorcer a realidade para funcionar, o autor toma os elementos de escala, projeção e simbolização como mecanismos de distorção reconhecíveis e controláveis, e com eles propõe olhares diferenciados ao direito: a escala permitiria maiores ou menores âmbitos do exercício do poder, a projeção permitiria compreender o que é enfatizado como centro e o que não é (onde haveria maiores distorções) e a simbolização permitira compreender os graus de generalização.
Ainda neste campo de uso metafórico ou como máscaras conceituais cita-se a cartografia social de Rolland Paulston (1996), que objetiva dar visibilidade, a partir da exegese textual, de distintos posicionamentos, ideias, argumentos ou grupos em torno de uma determinada temática. A produção do mapa, neste caso, refere-se à distribuição, agrupamentos e conexões dos diferentes posicionamentos, criando um recurso gráfico para dar visibilidade de conjunto às proposições e comunidades discursivas.
Outra seara em que se identifica o uso dos termos Cartografia e Mapa são os escritos de Gilles Deleuze e Félix Guattari, com diferentes proliferações, em várias áreas do saber, que implicam considerar a cartografia como uma analítica de processos ou acompanhamento de linhas esquizo, e os mapas como conjunto dessas linhas, ou “o que se passa entre” dois corpos de qualquer natureza. Essa abordagem é significativamente presente na literatura em Educação, mas é ainda incipiente na Geografia. Atribui-se isso ao fato de que na filosofia da diferença de Deleuze e Guattari são utilizados termos usuais do “vocabulário geográfico”, tais como terra, território, mapa, cartografia, latitude, longitude. Não se trata, contudo, de metáforas, mas de intercessores, aquilo que mobiliza o pensamento. O exercício consiste na captura de códigos de algo para fazer funcionar outra coisa. Assim, quando Deleuze e Guattari falam, por exemplo, de território (que sustenta os conceitos derivados de desterritorialização e reterritorialização) não reportam a qualquer território etológico ou político, mas ao modo como estes funcionam - a estabilidade de um conjunto de modo que se possa reconhecer seus limites (o dentro e o fora). Dão assim consistência ao território existencial (conjunto complexo de forças de subjetivação com conteúdos éticos, políticos, históricos, etc.), sempre em desterritorialização e em reterritorialização, reconfigurando-se. Nesse exemplo é possível perceber as distinções entre uma e outra abordagem, ainda que sejam utilizadas as mesmas palavras: na filosofia da diferença são construídos como conceitos filosóficos e, como tal, dobram-se no pensamento, enquanto que na Geografia são conceitos e/ou objetos científicos, dobrados na produção de conhecimentos por essa ciência. Quando se opera na articulação entre a filosofia da diferença e a “constelação de conceitos” da Geografia (HAESBAERT, 2011), torna-se necessário situar, o tempo todo, se se está referindo a uma ou outra abordagem, sob pena de ininteligibilidade do texto.
Habitar esse campo de problemas tem nos permitido experienciar toda sorte de potencialidades e de limitações advindos da polissemia dos termos mapa e cartografia, até aqui esboçados. Nesse escrito, visando minimizar os ruídos apontados, utilizaremos a expressão mapeamento quando nos referirmos à produção do objeto mapa e à ciência cartográfica. A partir disso, esboçaremos algumas pistas de trabalho com os referenciais da filosofia da diferença. Para tanto, tomaremos como parâmetro uma experiência com uso de linguagens, em aulas de Geografia, com jovens estudantes de curso técnico-profissionalizante integrado ao Ensino Médio.
2 CARTOGRAFIA E MAPA NA FILOSOFIA DA DIFERENÇA
Em seus escritos, Gilles Deleuze e Félix Guattari recorrentemente tomam termos de campos diversos para a criação de conceitos. Que elementos ou características ou códigos da ciência cartográfica e dos mapas produziram mobilizações no pensamento dos autores para funcionarem como conceitos na filosofia da diferença? A despeito da cartografia francesa em muitos processos técnicos, e por muitos períodos, ter tido a marca da vanguarda, não localizamos na literatura elementos que aludam a um possível encontro produtivo e criativo dos autores com imagens cartográficas que circulavam na cultura em que Gilles Deleuze e Félix Guattari se inseriam.
Sibertin-Blanc (2010) corrobora essa proposição ao afirmar que, quando da apresentação do conceito de cartografia, publicado no texto “Rizoma”, em 1976, Deleuze e Guattari não fizeram referências à prática comumente associada ao mapeamento. Young, Genosko e Watson (2013), ao descreverem o verbete Cartografia na obra The Deleuze and Guattari Dictionary afirmam que a versão de Guattari, embora tivesse se inspirado pela matemática envolvida no mapeamento, sua versão “pertence ao seu paradigma estético e não faz qualquer reivindicação ao rigor matemático ou científico” do mapeamento.
Referências mais consistentes são encontradas no que se refere à utilização que Deleuze e Guattari fazem da cartografia como contraponto ao modelo topográfico da psicanálise, que se aplica ao estudo das estruturas do psiquismo. O modelo topográfico se originou na primeira e na segunda tópicas de Freud. A primeira tópica, datada de 1900, visava dar visibilidade aos diferentes lugares (topos) do psiquismo. Inspirou-se numa imagem de iceberg e se dividia em consciente, que corresponderia à parte emersa do iceberg, constituído por imagens, ideias, lembranças, pensamentos; pré-consciente, faixa do iceberg ora emersa, ora imersa, onde ficariam os elementos que podem ou não vir a se tornar conscientes; e inconsciente, onde residiria o que já esteve no consciente ou no pré-consciente, mas que foi “expulso” (foi recalcado) por causar angústia.
A segunda tópica ou segunda topografia de Freud, de 1923, admitia a incompleteza da primeira tópica, em especial a imprecisão do termo inconsciente e as relações dinâmicas entre os diferentes topos. Foi composta por três instâncias psíquicas: o id, o ego e o superego. O id seria a maior zona do psiquismo humano, zona primitiva constituída por pulsões, instintos e desejos. É o reservatório da libido, energia das pulsões sexuais. Uma parte do id ao se contatar com a realidade e o meio, iria constituindo outra instância psíquica, o ego. Assim, o ego faria a mediação entre as pulsões e desejos do id e o mundo real, o fora, que conforma o superego, que corresponderia à interiorização das normas, dos valores morais e sociais e, sendo a componente ética e moral do psiquismo, pressionaria o ego a controlar o id.
Na explicação psicanalítica com esta matriz, a relação entre indivíduo, pai e mãe estaria na origem de todos os conflitos psíquicos vividos pelo sujeito, e foi sistematizada no Complexo de Édipo, para explicar a fase em que a criança (o menino) disputa a mãe com o pai. É neste embate que se constituiriam as neuroses, se produziria a sexuação e se reconheceria o outro. O superego, instância psíquica dos valores sociais, seria então o herdeiro do complexo de Édipo, uma vez que na fase edipiana é que ocorreria a primeira censura, a primeira castração (a da condenação social do incesto).
No combate a esta pretensão universal do Complexo de Édipo, modelo nuclear ao qual - com todas as variações possíveis - toda a explicação psicanalítica se reportaria, escrevem:
fazendo das relações familiares a mediação universal da infância, estaremos condenados a desconhecer a produção do próprio inconsciente e os mecanismos coletivos que incidem diretamente no inconsciente, em especial todo o jogo do recalcamento originário, das máquinas desejantes e do corpo sem órgãos. Porque o inconsciente é órfão, e produz-se a si próprio no seio da identidade da natureza e do homem (DELEUZE e GUATTARI, 2010, p. 69).
O modelo topográfico, que justifica sempre a existência de uma estrutura profunda e anterior (e, por esta razão, também pode ser pensado como arqueológico), funciona como visibilização de um campo de combate, para o qual o mapa é convocado, como escreve Deleuze em Crítica e Clínica:
uma concepção cartográfica é muito distinta da concepção arqueológica da psicanálise. Esta última vincula profundamente o inconsciente à memória; e uma concepção memorial, comemorativa ou monumental, que incide sobre as pessoas e objetos, sendo os meios apenas terrenos capazes de conservá-los, identificá-los, autenticá-los. Desse ponto de vista, a superposição de camadas é necessariamente atravessada por uma flecha que vai de cima para baixo, e trata-se sempre de afundar-se. Os mapas, ao contrário, se superpõem de tal maneira que cada um encontra no seguinte um remanejamento, em vez de encontrar nos precedentes uma origem: de um mapa a outro, não se trata da busca de uma origem, mas de uma avaliação dos deslocamentos (DELEUZE, 1997, p.85/86, destaques do autor).
Assim, na filosofia da diferença, a cartografia nega a explicação das coisas nas origens e nas estruturas profundas universais - como se fossem naturais - recorrendo a uma ideia-imagem de um objeto que é plano (portanto sem profundidade), composto de linhas de naturezas diversas todas ali ao mesmo tempo. Mas as linhas são móveis, e o mapa também o é. Ou seja, não há um pré-estabelecido a se reportar, o que seria a decalcomania (a cópia), logo não há representação. Conforme aponta Sibertin-Blanc (2010):
O esquema cartográfico propõe a Deleuze a imagem do conhecimento não-representacional imanente às nossas práticas espaciais. Quer se trate de práticas sociais, estéticas, políticas ou psíquicas, simbólicas ou imaginárias, o mapa não é simplesmente “sobre” movimentos, como o conhecimento que permaneceria externo ao seu objeto; ele faz o movimento e ajuda a fazê-lo. É ele próprio um movimento[...] (SIBERTIN-BLANC, 2010, p. 226-227. Tradução nossa).
Se o mapa é “um conjunto de linhas diversas funcionando ao mesmo tempo” (DELEUZE, 1992, p.47), a cartografia consiste “no estudo dessas linhas, em grupos ou indivíduos.” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 145/146). Estas linhas são as linhas de vida, linhas abstratas que o desejo vai traçando. É importante aqui destacar que desejo, nesse registro, se refere à produção de vida. Há a linha que faz fugir um mundo, faz com que este se desmanche e vai traçando um devir: linha de fuga. Há a linha de segmentaridade flexível ou molecular, variante, que ora opera pela estabilização, ora pela fuga. Finalmente a linha de segmentaridade dura ou molar, linha organizadora e visível (ROLNIK, 2007).
As três linhas são indissociáveis, imanentes umas às outras. As linhas se compõem sempre no encontro entre dois corpos e um mapa será, portanto, a composição de forças do encontro entre estes dois, sempre entre. Daí cada mapa ser, necessariamente,
aberto, conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política ou como uma meditação. (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p.22).
Assim, mapa, como conceito da filosofia da diferença, não é feito, como na prática de mapeamento, por algum elemento externo. Ele é a própria relação. O cartógrafo não faz mapas, mas acompanha processualidades no movimento das linhas dos mapas. As considerações sobre o “ser cartógrafo” no campo na análise psicossocial apontam que o cartógrafo também faz mapa com o analisado, daí uma pesquisa ser, sempre, pesquisa-intervenção (ROLNIK, 2007; PASSOS, KASTRUP e ESCÓSSIA, 2010). Pela natureza dessa relação entre o cartógrafo e os mapas, cuja dinâmica acompanha, é mais apropriado trabalhar com hódós-metá do que com metá-hódos ou metodologia:
O desafio é o de realizar uma reversão do sentido tradicional de método - não mais um caminhar para alcançar metas prefixadas (metá-hódos), mas o primado do caminhar que traça, no percurso, suas metas. A reversão, então, afirma um hódos-metá. A diretriz cartográfica se faz por pistas que orientam o percurso da pesquisa sempre considerando os efeitos do processo do pesquisar sobre o objeto da pesquisa, o pesquisador e seus resultados (PASSOS e BARROS, 2010, p. 17).
Isso não significa, no campo da pesquisa, ausência de rigor ou de critérios, mas aberturas para outras possíveis visões e critérios que vão emergindo no processo cartográfico.
3 CARTOGRAFIA E MAPA NA EDUCAÇÃO EM GEOGRAFIA
Utilizamos o termo “educação em geografia” (minúsculas) nesse texto para delimitar o campo problemático com o qual lidamos. Embora reconheçamos as limitações do termo, ainda nos parece preferível ao “Ensino de Geografia” (maiúsculas), por este último indicar um campo já estável e consolidado, com papéis definidos e fortemente referenciado aos cânones da produção acadêmica. Mesmo considerando legítimo o campo do Ensino de Geografia, a educação em geografia tem maior abrangência e permite estabelecer diálogos entre aquele e o registro conceitual da filosofia da diferença, que estamos tomando como referencial. Entendemos o campo do “Ensino de Geografia” como força de maioridade e o da “educação em geografia” como força de minoridade.
Esta composição maior-menor parte dos escritos de Deleuze e Guattari sobre as obras de Franz Kafka (1883-1924), tratadas como literaturas menores constituídas dentro de uma literatura maior. A literatura menor tem o potencial de desterritorializar a língua oficial, provocando implosões, resistências e subversões dentro de uma macroestrutura que é fruto de sucessivos processos de subjetivação e homogeneização do pensamento (DELEUZE; GUATTARI, 2014). Não se trata, no entanto, de antagonismos ou disputas de hegemonias, mas, antes, do menor como uma força capaz de fazer mover e expandir o campo maior.
Deslocando o conceito de literatura menor de Deleuze e Guattari para a educação, Sílvio Gallo situa a educação maior como “aquela dos planos decenais e das políticas públicas de educação, dos parâmetros e das diretrizes, aquela da constituição e da LDB, pensada e produzida pelas cabeças bem-pensantes a serviço do poder” (GALLO, 2013, p. 64). Para a educação menor, traça três forças ou características: desterritorialização, que implica em “fazer emergir possibilidades que escapem de qualquer controle” (p. 67); ramificação política, criando “trincheiras a partir das quais se promove uma política do cotidiano, das relações diretas entre os indivíduos, que por sua vez exercem efeitos sobre as macro-relações sociais” (p. 67) e valor coletivo, posto que “na educação menor, não há a possibilidade de atos solitários, isolados; toda ação implicará em muitos indivíduos” (p. 68).
No campo da Geografia, Oliveira Jr. (2009) apresenta uma proposição em relação às geografias maiores e às geografias menores, fundamentado na discussão de maioridade e minoridade de Deleuze e Guattari e inspirado nas ecologias menores de Ana Godoy:
a menor das ecologias [geografias] não corresponde a uma "boa" forma que se contraporia a uma "má" forma. Antes, ela remete a esta agitação molecular, subsistente na forma sem se adequar a ela, a uma potência de devir, que abala a forma, investindo força sobre a matéria que ela circunscreve. Toma-se a ecologia [geografia] como material de invenção, fazendo-a bifurcar e variar continuamente [...] [numa] deriva generalizada. (GODOY, 2008 apud OLIVEIRA JR., 2009, p. 26, com inserções, entre chaves, do autor).
É, portanto, na educação em geografia que buscamos trabalhar com as potências minoritárias, ou geografias menores, acompanhando as linhas dos mapas que vão se compondo nos encontros possíveis que se dão em uma aula de Geografia, em uma sala de aula, em uma instituição educacional
De modo a fazer emergir essas linhas, apostamos em experimentações em e com linguagens. A experimentação educacional é algo que treme, vibra, que acontece que faz pensar além de apenas conhecer, medir, descrever e relatar (LAROSSA, 2014). O trabalho com linguagens permite o agenciamento entre dois modos de pensamento, a arte e a ciência, como intercessoras umas das outras. Intercessores, na filosofia da diferença, referem-se a corpos (humanos, não humanos, materiais, imateriais) em evolução a-paralela que, agenciados, entram em conexão. Intercessores andam ao lado, pois nunca seguem ou são seguidos, funcionam como aliados do estranhar-se e assim é que produzem um “entre” no qual se dá a criação.
No trabalho com linguagens no âmbito da Geografia identificamos pelo menos duas proposições principais. Uma delas enfatiza a necessidade do trabalho com conceitos e com desenvolvimento de raciocínios geográficos. A atividade com linguagem, nessa abordagem, baseia-se em seus usos criativos (OLIVEIRA JR. e GIRARDI, 2011), ou seja, no desenvolvimento de modos de melhor transmitir um determinado conhecimento sobre o espaço (muitas vezes chamado de transposição didática). Estando os conceitos já fixados pela ciência e o desenvolvimento de raciocínios já fixado pela cognição formal e suas metodologias, a linguagem se restringe a ficar a serviço dos itens anteriores. A outra abordagem considera que são potentes os usos criadores das linguagens (OLIVEIRA JR. e GIRARDI, 2011), que implica no trabalho com e na própria linguagem, ela mesma condição para o pensamento. Nesta última abordagem, a finalidade do trabalho não é o retorno ao conceito ou conhecimento pré-estabelecido como meta, mas as potências de proliferação de pensamentos.
A partir do acima delineado, temos investido no desenvolvimento de pesquisa com linguagens, em aulas de Geografia, com jovens do ensino técnico-profissionalizante integrado ao ensino médio. Que mapas fazem esses alunos com o componente curricular de Geografia, com o lugar em que se inserem, com o ensino profissionalizante, com seus professores, com a sala de aula? Que poder de afetação o uso criador das linguagens, na perspectiva das geografias menores, apresenta nesse contexto? Como enfrentar, na escola, o desafio de lidar com o pensamento sobre o espaço, constituído com o conhecimento. E como cartografar esses processos?
4 CARTOGRAFIA E MAPA EM UMA EXPERIMENTAÇÃO COM ARTE E COM LINGUAGENS EM AULAS DE GEOGRAFIA
Cartografar, como já apontado, é aqui tomado como acompanhamento de processos de fazimento e desfazimento de mapas, sendo estes o conjunto de linhas - duras, flexíveis e de fuga, que vão sendo constituídos entre. Alguns referenciais de contexto são necessários para situar o campo problemático. O primeiro deles se refere ao próprio local em que se insere a escola onde a experimentação foi realizada: as “montanhas” capixabas. A chamada “região das montanhas” abarca um conjunto de municípios do Espírito Santo que, no imaginário geral da população, são caracterizados por paisagens idílicas, pelo clima frio e pela imigração europeia. Trata-se de áreas bastante íngremes, que já foram habitadas pelos índios Puris e pelos escravos africanos e afrodescendentes durante o Brasil Colônia.
Os jovens do ensino médio (ao todo 120 estudantes) que participaram da experimentação são oriundos dessa localidade, muitos de áreas rurais, ainda que não do município sede da escola. E a escola em questão é o Instituto Federal de Educação, campus de Venda Nova do Imigrante, que tem os cursos técnicos integrados ao ensino médio nas áreas de agroindústria e administração. Sua instalação, realizada em 2010, visava à qualificação desses jovens para atuação nos arranjos produtivos locais.
Estas informações fornecem algumas pistas sobre os mapas que os jovens estudantes fazem com seu lugar de origem (com a marca do pensamento hegemônico sobre as montanhas capixabas), com seu lugar de estudo (nem todos têm condições de retorno diário para as moradias originais, residindo em repúblicas), com sua formação técnica para atuação futura na própria região. Fazem mapas com o espaço, vivem a multiplicidade dele, e ao mesmo tempo trazem pré-concepções do que seriam as disciplinas não técnicas em sua formação. Inclui-se, nesse grupo, a Geografia.
Esse contexto dá, também, sentido à pergunta anteriormente apontada: Como enfrentar, na escola, o desafio de lidar com o pensamento sobre o espaço, constituído com o conhecimento geográfico? A aposta inicial, que derivou para a experimentação que ora é apresentada, foi a de que o trabalho com linguagens pouco habituais na Geografia provocaria desestabilizações nas linhas dos mapas que os alunos fazem com a disciplina escolar e isso poderia provocar, por seu turno, a emergência de pensamentos que pudessem lhes dar algum parâmetro para compreender o sentido político de ser das montanhas, e de nelas/com elas viver. Em outras palavras, provocar-lhes experiências tal como apontado por Larossa (2014): um acontecimento que afeta os sentidos, que nos faz tremer, nos mover, nos faz vibrar e pensar com. Isso, claro, está no campo dos desejos do professor. A experimentação é também uma negociação de coexistência entre este e seus alunos.
O desenvolvimento da experimentação, portanto, importa. Ao todo foram seis horas/aulas (cada uma de 50 minutos) de duração do experimento, distribuído em cinco etapas: 1) apresentação da biografia e obra poética de Carlos Drummond de Andrade, 2) localização dos referenciais geográficos no poema “Mundo Grande”, 3) elaboração de poemas em grupo, 4) desenvolvimento de desenhos a partir dos próprios poemas dos estudantes e exposição dos trabalhos.
Era o início do ano letivo de 2016. Os estudantes haviam sido informados de que essas aulas de Geografia não seriam nas salas de aulas habituais, mas sim no Laboratório de Ensino e Pesquisa em Cartografia Geográfica e Gestão Socioambiental da escola (LABGEO-IFES). Com olhares em constante movimento tentavam captar todos os detalhes daquele novo espaço. As carteiras não formavam as habituais fileiras, como estavam acostumados, mas organizadas em grupos de quatro ou cinco, cada um com numeração que variava de 01 a 09. Na medida em que os alunos entravam no laboratório recebiam, de forma aleatória, uma numeração correspondente a um grupo de carteiras.
Tudo que está no mundo material (pessoas, objetos, matérias...) é emissor de signos, dos mais variados tipos (DELEUZE, 1987). Os materiais didáticos do laboratório, como mapas, globos terrestres, maquetes, amostras de rochas, emitiam uma miríade de signos a serem decifrados e interpretados por eles. Após o estranhamento inicial com o deslocamento do lugar habitual de aulas, os gestos e signos dos estudantes já começavam a insinuar alguma acomodação, alguma estabilização ao fato de que aqueles materiais seriam usados como fontes de consulta de conhecimento científico, e que a aula era mesmo de Geografia.
A experiência que os estudantes vivenciariam naquele espaço havia sido mobilizada a partir do contato do professor com um pequeno trecho do conto “Um escritor nasce e morre”, do livro “Contos de Aprendiz”, de Carlos Drummond de Andrade.
A aula era de geografia, e a professora traçava no quadro-negro nomes de países distantes. As cidades vinham surgindo na ponta dos nomes, e Paris era uma torre ao lado de uma ponte e de um rio; a Inglaterra, não se enxergava bem no nevoeiro, um esquimó, um condor surgiam misteriosamente, trazendo países inteiros. Então nasci, de repente nasci, isto é, senti necessidade de escrever (ANDRADE, 2012a, p. 118).
Carlos Drummond de Andrade e sua poesia passariam a atuar como intercessores da experimentação. As referências geográficas da vida do poeta apresentavam muitas semelhanças com as dos jovens estudantes, conforme o contexto apresentado: a vida interiorana, o deslocamento para cidades maiores para estudo, as “montanhas”. Como fazê-los “nascer” para a escrita de geografias menores? Tal como em Belleza (2014), a pergunta mobilizadora inicial foi “Em qual universo de criação embarcávamos quando nos dispúnhamos à relação entre linguagens distintas?” (BELLEZA, 2014, p. 123).
A vida e algumas obras de Carlos Drummond de Andrade foram apresentadas aos jovens estudantes, por meio de vídeos-documentários e de leituras partilhadas de seus poemas. Para o espanto dos jovens, a poesia de Carlos Drummond de Andrade acendeu um instante de problematização. Qual seria a relação da poesia com a Geografia? Houve uma espécie de estranhamento para os estudantes, assim como ocorre com os viajantes que ao serem deslocados para outros ambientes, se deparam com outras línguas, outros hábitos, que os obrigam a vivenciar sucessivas experiências de problematização com aquilo que sabiam antes (KASTRUP, 2001). Essa experiência de tensão entre o que se sabia e o que não se sabia claramente desestabilizou a zona de conforto dos jovens estudantes. A partir desse momento, o professor encontrou potência para outras aprendizagens. Os estudantes se dedicariam à tarefa de buscar sentidos.
No acompanhamento de processos, que marca o método da cartografia na perspectiva da filosofia da diferença, pode-se lançar mão de “dispositivos de fazer falar” (KASTRUP, 2001). Essa noção de “dispositivo” afasta-se da prática científica que remonta a Galileu Galilei (1564-1642) que separa sujeito do objeto de estudo de uma pesquisa e que atualmente caracteriza a ciência moderna (KASTRUP e BARROS 2010). Não se reduz a uma experimentação científica que apenas corrobora ou contradiz as hipóteses iniciais do pesquisador. O dispositivo é algo que possui linhas de forças, linhas de subjetivação que criam modos singulares de existir a partir das diversas linguagens artísticas, de conceitos filosóficos ou de proposições científicas que se associam às linhas de visibilidade que geram efeitos, cujos processos são acompanhados pelo cartógrafo (KASTRUP e BARROS 2010). Esses dispositivos podem ser operados, inicialmente, como uma interferência, seja para apaziguar, seja para desestabilizar algo. Mas eles podem ir além disso. Dispositivos podem por em movimento o pensamento. A poesia de Carlos Drummond de Andrade “Mundo Grande” foi tomada como dispositivo inicial. Seguem alguns trechos:
MUNDO GRANDE
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale. [...]
Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor. [...]
- Ó vida futura! Nós te criaremos.
(ANDRADE, 2012b, p.69-70)
Estando organizados em grupos de quatro ou cinco componentes, o professor pediu para que selecionassem desse poema palavras e/ou expressões que considerassem “ligadas à geografia”. A escolha e as possíveis associações foram livres. Palavras como mundo, rua, navios, petróleo, cidades, países e ilhas, por exemplo, são signos que, no olhar dos jovens, carregavam consigo traços de espacialidade, cuja escolha parece se justificar a partir das imagens de seus repertórios cognitivos. Mas, ao mesmo tempo, emergiam dúvidas entre eles, sobre se estas expressões significavam realmente o que o poeta pensava. Por exemplo: qual o significado da rua para o poeta? A que países imaginários Drummond estava se referindo?
Os jovens iam concluindo que a poesia permitia as interpretações mais variadas, que cada um entendia à sua maneira, que havia outras maneiras de pensar e de criar. Iam percebendo que tais palavras e frases não pertenciam apenas ao domínio exclusivo da ciência geográfica. Refaziam seus mapas.
Ao manipularem palavras e expressões com livre associação com a ciência geográfica, traços de outras geografias começaram a surgir, para além da Geografia formal dos currículos e livros didáticos. Essa estratégia faz parte do campo da educação menor (praticada no âmbito da sala de aula na relação professor e aluno) que subverte a educação maior (das políticas educacionais, dos documentos oficiais, das leis, etc.) que padroniza os modos de pensar (GALLO, 2013). Dobrando essa perspectiva para a Geografia, podemos dizer que os estudantes foram mobilizados a fazer geografias menores a partir da arte. Puderam criar fissuras na Geografia maior, ensinada na escola, que faz parte de uma grande máquina de ensino obrigatório que “nunca comunicou informações, mas sempre impôs as coordenadas semióticas, com todas as bases duais da gramática” (DELEUZE e GUATTARI, 2011, p.12).
O trabalho com a poesia de Drummond golpeou a ideia do pensamento único, da Geografia maior, como um martelo nietzschiano , estilhaçando-o em pequenos pedaços com formas, tamanhos e posições diferentes. Os jovens que estavam ali se engajaram na constituição de seus modos de interpretação, arrastando com isso os modos de entendimento da espacialidade. A conexão entre a arte e a ciência geográfica criou esta possibilidade.
As partilhas de experiências de seleção e reflexão, a partir dos versos de Drummond, manifestaram a multiplicidade e heterogeneidade com que o mundo se apresenta no cotidiano. Como a ciência geográfica ensinada nas escolas pode enfrentar tamanha multiplicidade? Abandonar os seus pressupostos conceituais, que foram arduamente cunhados no curso do desenvolvimento desse campo disciplinar? Ou fortalecer tais pressupostos, considerando-os como uma das forças atuantes nesse grande rizoma chamado Geografia?
Ainda nas primeiras aulas, quando os estudantes acreditavam que a experiência com a poesia havia terminado, outro movimento foi proposto: eles deveriam criar suas próprias poesias a partir do tema “O mundo que eu quero viver”. Esse tema articulava-se com o título da poesia de Drummond “Mundo grande” e buscava provocar nos jovens pensamentos sobre seus lugares de vivências. Nenhum outro parâmetro foi dado. Foram muitas as reações, entreolhares, agitações, cochichos, murmúrios. Alguns gritaram: “Professor não sei escrever poesia, pode ser um texto normal?” Outros, conformados com a impossibilidade de fugirem da atividade perguntaram: “Precisa ter rima?” Mas nenhuma resposta foi dada pelo professor, apenas o problema era reiterado. Como essa atividade foi proposta para ser feita em grupos, iniciou-se intensa negociação entre eles.
Percorrendo os grupos, foi possível ao professor perceber várias formas que os jovens buscavam para encaminhar o problema proposto. Alguns grupos optaram por escrever uma estrofe de cada vez, coletivamente. Outros elegeram alguém da equipe que já tivera experiência em escrever poemas como “o poeta do grupo”, como aquele que traduziria em versos os desejos dos demais componentes. Outros, ainda, dividiram a tarefa da criação de versos e estrofes entre si, para depois analisarem e juntarem, formando a obra poética.
Do mesmo modo que a Geografia inspirou a poesia de Carlos Drummond de Andrade, a experiência de criação da poesia pelos estudantes objetivava não a poesia em si mesma, mas a mobilização dessa linguagem para abrir possibilidades para a geografia. Ou seja, se elementos da Geografia funcionaram como intercessores para o poeta, por que não fazer o poeta (e sua poesia) funcionarem como intercessores para a Geografia?
Quando as coisas do mundo são demasiadamente separadas, em supostas hierarquias, de acordo com alguma ordem de valor, corre-se um grande risco de perder a chance de solucionar muitos problemas de forma criativa. Para Deleuze e Guattari (1992) a arte, ciência e filosofia podem ser intercessoras uma das outras, movimentando o pensamento na criação de novos problemas e na solução destes e no despertar de novos questionamentos, num constante devir.
E os primeiros versos foram surgindo. Assim como ocorreu com o poeta Carlos Drummond de Andrade, suas mentes e corações se expandiram além do local. Eram mundos sem guerras, sem preconceito, sem pobreza, sem qualquer tipo de violência, sem racismo, sem misoginia e homofobias. Um mundo onde as ideias de paz e fraternidade prevaleciam. A palavra “mundo” aflorou em múltiplos significados.
Finalizado o momento da produção dos poemas - e quando tudo parecia concluído - novo desafio foi anunciado: fazer um desenho à mão livre, que pudesse expressar, em outra linguagem, os conteúdos dos poemas que haviam criado. Novas reações: alguns perguntavam se poderiam consultar a internet a partir do celular (indício de uma “Googlização” na relação dos jovens com o conhecimento na atualidade), outros alegavam que não sabiam desenhar. Mas, como havia sido feito nos momentos anteriores, usaram a imaginação, negociaram entre si e criaram estratégias. Mais uma vez nenhuma restrição nem instrução específica foi dada. A maior parte deles se organizou das seguintes maneiras: alguns membros eram escolhidos para fazerem a execução do desenho; outros pensavam como poderiam ser os desenhos. A inspiração vinha de vários lugares: dos livros didáticos, dos globos terrestres, dos atlas e internet. E ainda, os outros membros se dedicaram à arte-final e à pintura com lápis de cor, canetinhas hidrográficas e giz de cera. Uma das estratégias que mais nos chamou a atenção durante a atividade foi o fato que o mesmo desenho produzido tinha sua arte-final realizada por várias mãos, simultaneamente. Era preciso finalizá-lo logo. Essa atitude revelou que durante o processo criativo houve colaboração.
Aos poucos, uma grande variedade de imagens foi surgindo das mãos dos jovens estudantes. Embriões de pensamentos foram aparecendo, possibilitando múltiplas composições e conexões. Novos mapas entre eles e o componente curricular Geografia e entre eles e o mundo e entre eles e as linguagens e.... Cada poema e desenho produzidos trouxeram consigo uma multiplicidade de imagens-pensamento, também agenciada por clichês das redes sociais (virtuais ou não).
Quando os estudantes, com seus celulares, optaram por buscar na internet figuras que poderiam ajudá-los durante o processo de criação dos desenhos, a maior parte das imagens encontradas a partir do aplicativo de busca GOOGLE ® apresentava “uma mesma realidade, grafando uma espécie de concretização além das próprias figuras, fotos ou qualquer outra produção imagética da rede” (OLIVEIRA JR., 2009, p.10). Essas imagens, materializadas nas fotos, nos desenhos, ditavam uma realidade de mundo. Determinavam um conjunto de valores universais, como se ali estivesse a única e possível verdade. Mesmo assim, os desenhos e os seus respectivos poemas, organizados em 59 cartazes não podiam ser considerados como meras reproduções . Era visível nos estudantes o esforço para criar outras possibilidades, tentativas de desterritorialização dos clichês. Seguem alguns exemplares que representam os trabalhos que foram desenvolvidos pelos estudantes durante o experimento (Figuras 1 e 2).
Mitos de valores universais enraizados no pensamento daqueles jovens aos poucos davam lugar a produção de novas imagens-pensamentos desterritorializadas, aproximando-se da noção de espaço que “proporciona a heterogeneidade simultânea; ele retém a possibilidade da surpresa [...] em seu mais amplo sentido” (MASSEY, 2008, p. 157). Esse modo de pensar o espaço, que não foi posto pelo professor nos termos “o espaço geográfico é”, desafiou os estudantes a lidarem com diversos processos de desterritorialização. As imagens-clichês do mundo, em conexão com Drummond e sua poesia, catalisaram processos de criação. No campo da educação em Geografia, a ideia de rizoma ganha potência em permitir múltiplas conexões de imagens-pensamentos: “não cessaria de conectar cadeias semióticas, organização de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais [...]” (DELEUZE e GUATTARI, 2011, p. 23).
Os processos cognitivos envolvidos e estimulados na experiência dos estudantes com as linguagens, a exemplo do que foi apresentado, são organizados por uma estrutura cheia de pontas soltas. Permitem amplas possibilidades de conexões do pensamento, que estão longe de constituírem uma universalização do modo de pensar. É por isso que cabe afirmar que, apesar dos estudantes estarem sujeitos aos processos de subjetivação do capitalismo, a experiência permitiu que o poder criador emergisse a partir de cada problemática apresentada. Serviu como dispositivo, como “máquinas que fazem ver e falar” (KASTRUP e BARROS, 2010, p. 78).
Na medida em que os estudantes eram apresentados a cada etapa do experimento, prevalecia a reação de desconforto - porque o que já estava estabelecido não valia mais - e estranheza diante das novas situações que surgiam. Os estudantes eram lançados ao desconhecido, assim como ocorre com os viajantes que chegam em terras desconhecidas (KASTRUP, 2001). Suas faculdades cognitivas foram mobilizadas diante da estranheza. Era preciso encontrar soluções para cada problema que emergia. Muitos riam, outros permaneciam em silêncio, outros lideravam o grupo, outros consultavam os materiais de apoio que estavam à disposição e outros auxiliavam os demais que estavam em dificuldade. Tudo isso ocorria ao mesmo tempo, naquele espaço do LABGEO.
A pequenez, sugerida pelo poeta, “Não, o meu coração não é maior que o mundo. É muito menor” (ANDRADE, 2012b, p. 69), a princípio provocou certo sentimento de impotência dos jovens diante das coisas do mundo. Entretanto, tal incômodo gerou um processo de desterritorialização de subjetividades que oportunizaram uma espécie de rebeldia diante das coisas ruins do mundo, a partir da visão de cada estudante.
Talvez o aspecto mais relevante desses resultados é a ideia de que as manifestações imagéticas do mundo dos estudantes presentes nos poemas e desenhos evidenciaram a emergência de Geografias menores, essas que desafiam e tendem a se deslocar de uma Geografia única, oficial e de narrativa hegemônica ou de uma verdade. Geografias menores que não buscam substituir uma Geografia maior e oficializada, já constituída, mas sim expandir seu campo ao permitir a emergência do novo (OLIVEIRA JR., 2009).
Entendendo os currículos da Geografia “como obras políticas, como gestos de cultura” (OLIVEIRA JR., 2011, p. 4), concebem-se aberturas que permitem desdobramentos para currículos-menores-subversivos, ou seja, para Geografias menores. “É preciso pensar a educação geográfica como um processo de encontro das diferenças e potencialização das singularidades” (OLIVEIRA JR., 2011, p. 11), investir em possibilidades de promover uma aprendizagem livre e marcada pela criatividade que permita a solução e a invenção de novos de problemas. Assim, para colocar em movimento o pensamento acerca do espaço, é preciso dar uma importância maior “aos voos imaginativos, à valorização dos devires e descobertas, inusitadas, às linhas de fuga dos pensamentos” (OLIVEIRA JR., 2011, p. 11). A liberdade de conectar um pensamento com outro ou outros foi um elemento importante para esses atos de criação. Esse movimento é fundamental para a educação geográfica, principalmente no ensino básico, frente a um mundo marcado pelas redes sociais no contexto da evolução da internet, onde os mecanismos de subjetivação cognitiva são evidentes.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscou-se, nesse texto, apresentar uma possibilidade de trabalho em aulas de Geografia articulando os conceitos de cartografia e mapas, mas também de rizoma e desterritorialização/reterritorialização a partir da filosofia da diferença. Entendemos esse empreendimento como relevante para facilitar a compreensão desse modo de fazer pesquisa em educação, principalmente para o campo disciplinar da Geografia, que compartilha palavras que, no entanto, caminham para sentidos bastante diversos.
Nesse sentido, a própria noção de espaço que fundamenta esse estudo, como uma simultaneidade de estórias-até-então, com múltiplas conexões, encontros e desencontros, que não se submete a recortes e fronteiras delimitadas e que está sempre aberto (MASSEY, 2008), demonstra que adotar a cartografia “tradicional”ou “convencional” como única forma de conceber esse espaço é limitar outras possibilidades de pensá-lo. Outras cartografias também são necessárias para que o cartógrafo dê conta dessas dimensões espaciais, principalmente no contexto da educação geográfica. Cartografias que deram visibilidade a outros mapas que só emergiram no encontro com a poética de Drummond, que foi intercessora e também funcionou como dispositivo inicial.
Para dar um pouco de concretude à abordagem, apresentamos o encaminhamento de uma experimentação, cartografando-a. Esta é uma das experimentações que constituem a tese de doutorado que está vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia de uma Universidade Federal, que foi realizada no âmbito do ensino técnico-profissionalizante integrado ao ensino médio, atualmente alvo de muitas indefinições e controvérsias. A despeito dessas indefinições, entendemos que o exercício permanece válido por lançar luzes ao sentido do componente curricular Geografia e suas potências desterritorializantes/reterritorializantes no novo mundo do trabalho (e de vida futura) que se insinua para esses jovens.
No tocante à experimentação propriamente dita, podemos afirmar que arte e ciência geográfica, quando funcionam como intercessoras umas das outras, podem propiciar novas maneiras de pensar o espaço. Como consequência, também podem movimentar o pensamento em torno do currículo de Geografia que é trabalhado no ensino básico técnico-profissionalizante.
Durante a experimentação, evidenciou-se, a princípio, no comportamento dos jovens certa subordinação aos discursos propagados pelos meios de comunicação, sobretudo através da internet. Mas, mesmo diante dos processos de subjetivação cognitiva do capitalismo global, aos poucos, os estudantes foram criando processos de subversão. Isso ocorreu porque o poema “Mundo Grande” de Carlos Drummond de Andrade forçou dobras no pensamento dos estudantes, quando se depararam com os conceitos de lugar, território, região e, finalmente, o espaço. Perceberam que tais expressões foram usadas de forma livre e criativa, sem os receios da censura imposta pelos meios acadêmicos e da escolarização. Esse voo do poeta, por meio da imaginação, influenciou o pensamento dos estudantes.
As possibilidades apresentadas pela experimentação tensionaram algumas dimensões do processo atual de educação em geografia no ensino básico frente às atuais mudanças em curso no ensino médio e no ensino profissionalizante, o que se configura cada vez menos como formação humana e cada vez mais como formação de mão-de-obra. É oportuno questionar se o componente curricular Geografia nessa etapa escolar não poderia ser o lugar curricular da desestabilização do instituído. Nessa perspectiva política, a arte, como intercessora, pode funcionar como importante agente catalizador e emancipatório das subjetividades na necessária criação de novos referenciais de vida para esses jovens.