1 VIVER, PESQUISAR, ESCREVER
“Uma selvageria tão antiga quanto o tempo.
Não se pode escrever sem a força do corpo. ” Marguerite Duras
“Escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar,
cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por vir.” Gilles Deleuze e Félix Guattari
Dois pares de mãos um tanto desconhecidas se propõem a escrever juntos. Dois pares de mãos, cujos corpos e subjetividades que carregam e que lhes carregam são também aqueles que se dispõem a pesquisar, escrevem. O que pode surgir desse entrelaçamento? Não se encontram, eles, necessariamente. Mas tampouco se desencontram. Caminham pelo espaço, pelas teclas, transitam em variadas direções, criam, cada um a seu modo e a seu tempo, um território comum no qual se faz possível percorrer palavras, frases, pontos, rabiscos, rascunhos, paisagens, pensamentos… sensações. Remexem-se, deslocam-se sobre a superfície irregular desse terreno em que investem habitar e, em seus movimentos próprios, costuram dizeres, silêncios, passos e pausas em torno do problema do escrever (DELEUZE, 1997), este que não se separa do pesquisar e do viver.
Esses corpos e mãos e subjetividades conformam duas pesquisadoras que se arriscam na tarefa de, juntas, algo dizer. Pesquisadoras que buscam encontrar e dar a ver, em seus caminhos de pesquisa, de escrita e de vida, a força da palavra que nesses tempos difíceis mostra-se tão embaçada, força que, julgam, mais que ser dita, urge ser vista e ouvida (DELEUZE, 1997) e sentida. Diante dos dias e mais dias que anunciam porvires sombrios, elas apostam que as palavras que clamam por ser pronunciadas, em todos os campos mas, principalmente, naquele do qual provêm e que se mostra tão ameaçado pela macropolítica vigente, o campo da Educação, não podem ser tratadas como provenientes unicamente da técnica, não podem seguir o caminho da ausência de experiência anunciado por Walter Benjamin (2012) ainda no começo de um século que já ficou no passado, mas cujos reflexos ainda se notam tão claramente no presente. Uma ausência que, consideram elas, embora exaustivamente discutida na atualidade, seja talvez pouco evitada ou insuficientemente combatida, ao menos não com o fervor que seria preciso, qual seja, com as mesmas unhas e braços e dentes e sangue que vemos, hoje, serem exaltadas as tais palavras vazias de experiência, palavras que já são meros grunhidos, reflexos da pobreza de vida daqueles que nada mais têm além de gritos ressequidos ávidos por proliferar potências de morte.
A força dessas palavras que já não podem ser tudo o que foram até agora - porque foram, cada vez mais, menos; essas novas e necessárias palavras que clamam por ganhar existência e por criar outros mundos, menos tóxicos e insalubres, mais alegres e que saúdem a vida que vale a pena ser vivida; essa força e essas palavras, pensam as pesquisadoras, não estão dadas, não estão jogadas em um canto qualquer esperando por algum salvador que as encontre e delas se utilize para um “bem maior”. Não, não haverá tal personagem e nem tais palavras “de bem”, não perdidas por aí nem na boca daqueles que se proclamam possuidores do direito e do dever de as pronunciar, e de o fazer pelos outros. Pelo contrário, essas palavras estarão sempre por ser ditas e escavadas no limite daquilo que somos e daquilo que desejamos nos tornar, diluídas em nossos fazeres cotidianos, intrincadas na maneira com que caminhamos neste mundo onde decidimos fincar nossos pés e na maneira pela qual traçamos, nele, nossos caminhos, inseparáveis dos modos como conduzimos, todos e cada um de nós, nossas existências, latentes em todo ente dotado da capacidade de dizer. Sempre por ser ditas e nunca descoladas, como muitos tentam nos convencer, daqueles - e aqueles são todos e não alguns - que as dizem e de tudo aquilo que fazem, tampouco da ética (FOUCAULT, 2004) e da estética (FOUCAULT, 1992) que precisam ser particulares a esse dizer e a esse fazer - e o verbo precisar, aqui, é fundamental para o combate às palavras-grunhido, essas que proliferam afetos tristes (ESPINOSA, 2009), que não se comprometem, em absoluto, com a conduta de uma vida bela (FOUCAULT, 2012) e que se tornam privilégio na boca de uma minoria que se autopromove o poder de as pronunciar.
Palavras escovadas, como disse o poeta Manoel de Barros (2018), no mais fundo de uma existência comprometida com a vitalidade do viver, perseguidas sem descanso nem desânimo até os confins e além daquilo que nos constitui e, por fim, inventadas “[...] na crosta rugosa do mundo” (CALVINO, 2005, p. 88), lá onde só há “[...] a extensão mesma da matéria [...], que se contrai e se decanta em formas e consistências diversas e em várias matizes, exatamente como [esta] página em que escreve[mos]” (CALVINO, 2005, p. 88). É a busca por essas palavras o que move esta escrita e as pesquisadoras que dela se acometem. E é partindo dessa maneira de conceber o escrever, o pesquisar e o viver; é considerando que, embora não coincidam completamente, tampouco são tão divergentes a ponto de existirem separadamente uns dos outros; é conjecturando que, exatamente num dos inúmeros pontos em que convergem e se tornam indissociáveis, está aquele em que a palavra tem lugar; e é apostando que essa palavra se tece, antes de apenas no papel, na vida, que nós, essas pesquisadoras, nos prestamos a vasculhar os processos de escrita, de pesquisa e de vida que nos colocam aqui, a escrever estas e não outras palavras e a tentar encontrar, nesses processos, o ponto em que ainda não se discerniram os distintos fazeres e seus respectivos modos, o ponto em que a potência da palavra e do dizer ainda não foi dizimada pelos formatos tirânicos da partilha sensível (RANCIÉRE, 2005) a que se submetem - e a que são imediatamente investidos - pelos jogos discursivos dos quais não se podem destituir, deixando transparecer sua existência em nós, deixando-os intensificar-se em nós. Essa é, consideramos, a ousadia sincera a que alude este artigo. Uma ousadia que, sabemos, beira o impossível, mas que, por isso mesmo, enfatizamos, precisa ter lugar no mundo.
Caminharemos, por estas páginas, com uma escuta e um olhar atentos a nossos “objetos” 3 de pesquisa e àquilo que, ao se mesclarem de maneira irrevogável à toda vida que nos cerca e nos transpassa, eles nos impelem a sentir, perceber, pensar e dizer, tanto a respeito de si mesmos e dessa própria vida quanto a respeito do pesquisar e do escrever que a partir deles, por eles e através deles se conjugam. Nos lançaremos às montanhas e às dunas4, sob o imenso céu que nos abriga e com vistas ao mar que nos rodeia5, na tentativa de, embriagadas por suas forças, com elas pensar, com elas escrever, com elas criar outras maneiras de dizer. Uma hibridização de processos, cotidianos e fazeres. Uma cartografia que se estende, para além da extensiva - dos mapas geográficos que nos imprimem visões fixas de mundo -, como prática intenso-intensiva do que se passa e do que atravessa. Mapa, porém móvel, tanto quanto as areias das dunas e mesmo o solo aparentemente fixo - mas sempre, no tempo, mutável - das montanhas que percorremos. Um modo inacabado, composição de rastros, miríade de caminhos que, desejamos, possam interpelar, com a intensidade que o fazem a nós, também aqueles que nos leem.
2 DUNAS E MONTANHAS: FRAGMENTOS6 DE CAMINHAR, OUVIR E VER
“Há uma pintura e uma música próprias da escrita, como efeitos
de cores e de sonoridades que se elevam acima das palavras.”
Gilles Deleuze
“A obra é feita somente de páginas avulsas.”
Roland Barthes
Por entre montanhas e dunas, céus e mares, os ventos e as cores são intensos. Sussurram e embaçam. UIVAM e OFUSCAM. Levam olhos e ouvidos a dizer, e as palavras são a própria vida, essa matéria sempre inacabada sobre a qual nos debruçamos a cada despertar e que nos incita a pintar de letras uma folha em branco.
Escrever, pela vida. Pelos sentidos, pelo corpo, com o corpo, para o corpo. Para o inevitável, para o impossível. Para combater as seduções do existente. Como quem dança, como quem arrisca. Como quem olha o infinito.
Escrever “[...] é também inseparável de um problema de ver e ouvir [...] um processo, [...] uma passagem de vida que atravessa o vivível e o vivido. [Algo] sempre inacabado, sempre em vias de fazer-se” (DELEUZE, 1997, p. 11). Toda palavra se gesta no corpo, é corpo, e é todo ele quem escreve. “Tudo escrevia quando eu escrevia na casa. A escrita estava por todo lado” (DURAS, 2017, s.p)7. É primeiro ar e respiro, folhas e fome, pedra e água e choro, terra e gente. Vida que ganha potência no perdurar de cada dia e se derrama, como prelúdio do vir a ser, no papel da existência.
O vento persiste desde a hora em que cheguei e o sol sai das nuvens pela primeira vez. Sinto o som dele ao encostar em minha pele, e os caranguejos, e pedaços de plástico que povoam essa areia... Ouço o mar, intenso, chega a ser atordoante, constante. A restinga e seus ruídos, o farfalhar de suas dobras, os lagartos que lá vivem, o sol que estala nas folhas, duras, rígidas, pontiagudas, espinhentas. A restinga é um lugar de sobrevivência. (R)existir é um ato de sobrevivência.
A escrita pede conexão com aquilo que nos rodeia, com esse algo que se coloca entre o vivido e vivível do cotidiano. Ela exige o cultivo de um tipo de atenção que permeia todo o corpo. Olhos, ouvidos, pele, pelos, língua, nariz, dedos, pés: tudo em nós produz palavra. Escrever com os sentidos, todos eles, é promover um deslocamento sensível lá onde eles parecem estar atrofiados, anestesiados pelos intensos bombardeios midiáticos cotidianos.
O som do mar, do vento, do sol… o som vem e vai, como as marés. Sinto-o recostar em minha pele. Deixo outras sensibilidades atingirem as superfícies.
“Para escrever como gostaria, seria preciso que esta página branca se tornasse dura de rochas avermelhadas” (CALVINO, 2005, p. 87). Escrever solicita-nos a colocar os sentidos e o sensível em movimento e criar uma espécie de “[...] readequação [...] das formas de comunicação com o mundo” (CATUNDA, 1994, p. 129), pondo em xeque as certezas, as ideias prontas e totalizantes que precisam perder força a fim de que outras tenham lugar. Os ambientes que percorremos, os caminhos que traçamos nos apresentam um mundo todo vivo em face do qual escrever torna-se uma maneira de dar potência a esse corpo que sente, que se conecta a seu entorno, se mistura a ele e se deixa atravessar por suas forças.
A vida se faz certeira no gato deitado à minha frente. Não há qualquer resolução que já não esteja presente naquele sono de gato. Ele não se “pré-ocupa”, mas dorme, como gato. E acorda, como gato. E caminha, e mia, e come, e ronrona, e caça, e caga, e pula, e me olha, como gato. Há na vida que não se pretende algo de belo em ser o que é.
Nunca escrevemos sós, mas povoados pelo mundo que nos rodeia. Cada coisa, cada rocha, cada ente, cada sensação. O gato que não pretende, mas é, o som que se sente e vê, tornam-se palavras pelos olhos e bocas e ouvidos e mãos daquele que escreve. Não escrevemos apenas quando nos sentamos frente à folha em branco, mas também quando caminhamos, dançamos, descansamos, choramos, resolvemos coisas que precisam ser resolvidas, observamos o sono de um gato, sentimos o barulho do mundo. Os temas, os habitamos, os tornamos matéria mesma, nossa. Escrever é também inscrever(se). Percorrer a folha e traçar, ao mesmo tempo, um território possível para o viver.
Vida mais perto do chão, mas com vistas infinitas para a amplitude das coisas simples.
Diante do branco da página “[...] está-se à beira do abismo como à beira de um combate, um combate em que se retoma o ato transgressivo da escrita e se escreve para desfazer as coisas” (GODOY, 2011, p. 37). Nesse limite, a cada letra da qual não se pode fugir mas com que tampouco se pode permanecer - devido à impossibilidade que cada uma delas carrega e ao porvir a que todas impelem no ato mesmo de dizer - traça-se e se habita um território existencial8 (GUATTARI, 1992; PASSOS; ALVAREZ, 2015; DELEUZE; GUATTARI, 2012).
Aqui me recuso a começar uma escrita pelo meio de qualquer coisa outra. Começo pelo mar.
Uma após a outra, as palavras rasuram o papel e, por seu alcance espacial e por sua constância temporal, pelos ritmos que instauram, pelos vestígios que imprimem, prenúncios do mundo que inauguram, e pelo que podem causar naqueles velhos (mundos) que querem combater - e com sorte extinguir -, tornam-se as nossas assinaturas sobre a terra (DELEUZE; GUATTARI, 2012), nossa expressividade, as marcas que deixamos no espaço - e essas marcas são tão perenes quanto as existências que conseguem suportar, e tão impermanentes quanto as pegadas lavadas pelas chuvas nas montanhas ou apagadas pelas ondas que tocam as areias da praia.
Como é possível surpreender-se, a cada novo dia, perante uma paisagem? Uma surpresa que é sempre outra, para uma vista que também difere, porque tudo muda o tempo todo, mesmo que aparente estar, sempre, no mesmo lugar. Se o mar é um só e sempre lá está, como pode convidar a quebrar ondas, a cada dia, num novo lugar? E se nem ele acomoda, como poderiam as dunas não mudar? Elas que se fixam na paisagem justamente por seu movimento, incansável soprar de areias que esculpem contornos entre ilha, céu e ar. Como é possível vislumbrar, com tamanha eloquência, a paisagem que tanto coincide, mesmo estando, a cada novo dia, em outro lugar?
Nossas marcas são nossos rastros, o que de nós permanece quando ali já não mais estamos, mas são também aquilo que nos antecede, o que nos faz confundir com a superfície mesma (TOURNIER, 1991) onde se deitam todas as coisas e que nos mescla à paisagem que nos rodeia. São, nesse ponto de convergência, a própria terra sob nossos pés, a terra sobre a qual caminhamos, dia após dia, e onde a vida, a pesquisa e a escrita acontecem.
Dia de sol. Após quatro semanas de chuva, tudo se encharcara.
Fazer o mínimo para sobreviver já era esforço tamanho frente a uma vida que escorria, gotejava lentamente pelos dias.
Agora a montanha voltou a verdejar, e o contraste com o céu azul nos poetisa.
Os sons da manhã de domingo, os cães, alguns poucos carros, um ou outro avião.
E o vento, carregando as folhas na rua deserta. Os cheiros das manhãs de domingo, café quente, caqui maduro, abacates. E o sol a enxugar abafamentos, amofamentos.
Pensar é, finalmente, um suspiro. Caminhar ao sol, um alívio.
O problema do escrever é também o problema do fragmentar, “[...] um misto de continuidade e descontinuidade” (BIDENT, 2008). Como afirmava Blanchot - segundo seu biógrafo, Christophe Bident - “[...] os fragmentos designam essa parte secreta e inominável que surge [entre uma coisa e outra]” (BIDENT, 2008, p. 103). Entre essas coisas, constituindo-as e transbordando-as, secreta, intangível, inexprimível, está a vida, esta que é “[...] sempre em modo rascunho [e que] quando se cristaliza, já deixou de ser vida” (CHAVES; BRITTO, 2016, p. 12). A vida que se faz, e permanece, em fragmentos.
As dunas não têm uma só música, elas se arranjam e se rearranjam constantemente. Quase uma discografia completa. O dia parece calmo (por enquanto), sem vento e bem quente, um pouco nublado. Nesta hora da manhã - acho que são sete horas -, sem quase nenhum humano na areia, são os seres que ali habitam que dominam seu território: maria-farinha, moçambiques, tatuíras, papa-terras. A vida em profusão.
Os fragmentos de uma vida e de uma escrita acolhem silêncios, aliam-se aos entremeios que antecedem os próximos passos e as próximas palavras, aceitam os longos suspiros, os descansos, as pausas, propiciam, às incompletudes e insuficiências do caminho e do texto, do corpo e da linguagem, do tempo e do espaço, um modo de existir. Permitem que aqueles que se arriscam ao ato irrecuperável de viver e de dizer sejam abraçados. Ensejam atalhos, alças, rajadas de vento, cheiros de maresia e de terra, sol escaldante, frio de altitude, areia nos pés. Exigem corpo, entrega. Aceitam “[...] do texto [e da vida] suas pontas soltas, estas palavras [e estes fazeres] que parecem chegar à folha branca [e à existência] já arrependidos” (COSTA, 2018, p. 14).
Leio um pouco. Ficho um livro. Caio nos rabiscos. Agarro-me ao violão. Livros, arquivos digitais, praia, música, desenhos, produção, amigas, animais, livros, letras, MÚSICA, computador, teclas, sol, verão… Praia, sol, canto, caneta. Música, céu, pássaro, papel. Entrelaçam-se: cotidiano, pesquisa, afetos…. Os caminhos fluem como rio.
Escrever, assim como viver, é fragmentar-se. Por completo. É tomar-se à impermanência dos sentidos, coletar pequenas porções de mundo e com elas forjar o presente de um tempo. É na escrita em fragmento que, talvez da maneira mais expressiva possível, nos aproximamos das intensidades e das vitalidades do estar vivo. Uma escrita- -fragmento é inseparável de uma vida-fragmento e ambas se dão, juntas, no caminhar de um corpo sobre uma superfície, das mãos sobre a folha de papel. Movimento instável, incompleto, nunca fácil, sempre incômodo, pois que exige a suspensão do tempo, do espaço e das estruturas fundantes do pensamento. Mãos que escrevem para além de estilo (MURICY, 2016), corpo que constrói, em seu próprio fluxo, uma casa. E canta territórios (CHATWIN, 1996).
Tudo são inacabamentos.
Assumir essa incompletude é assumir o desejo e a necessidade de ecoar vozes em diferentes entonações, que variem inconstantes por entre começos, meios e fins. O que parece faltar, porventura algum timbre de inteireza, já não se sustenta como falta, mas sim mantém as (im)possibilidades em constante abertura, permitindo a expressão inacabada do que em nós se multiplica e, através de nós, multiplica, apontado caminhos outros, impensáveis e impensados. Vida e escrita que “[...] se reinventam exaustivamente [...], fazendo aparecer mundos imprevistos” (COSTA, 2018, p. 15).
O som pede corpo.
“Escrever apesar do desespero. Não: com o desespero” (DURAS, 2017). O desespero de ver e de ver-se em pedaços e, ainda assim, viver. A agonia de se sentir atordoar diante de um mundo que se esfarela entre os dedos, e de palavras cujos contornos estão habituados apenas “[...] à longitude do tímido globo de uma laranja” (NERUDA, 2004). A aflição diante da solidão de ter que caminhar por terrenos arruinados, por palavras que não conhecem horizontes além-mar para, a partir deles, fazer brotar outra coisa. “Essa real solidão do corpo [que] transformava-se na outra, inviolável, a solidão da escrita” (DURAS, 2017). Escrever com a angústia da solidão da escrita, essa que é também a solidão de quem percorre o deserto das palavras paralisantes, amortecedoras, atemorizantes. A sequidão das palavras-grunhido. Mas também com a cólera, a fúria de quem não tem mais nada além da possibilidade de escrever. E da vida fragmentada. Escrever para desfazer, para poder não fazer (CANGI, 2018). Para destituir os fascismos da palavra, os fascismos na palavra. Para torná-los inoperantes. Para tornar-se ingovernável (COMITÊ INVISÍVEL, 2017). Para estilhaçar-se. Para fragmentar territórios conhecidos. Para criar uma nova terra (DELEUZE; GUATTARI, 1992).
3 EDUCAÇÃO: CRIANDO TERRITÓRIOS OUTROS
“O sentido forte da educação [é] quando ela se torna uma política de dissolução
inseparável de uma escrita que engendra um meio de combate”
Ana Godoy
Esta escrita a duas mãos, um tanto quanto incerta, instável, incompleta, imprevisível, é fruto do anseio de duas pesquisadoras em experimentar, em Educação, outros modos de pensar e produzir conhecimento. Amparadas pela certeza de que é no cotidiano, no passar dos dias e naquilo que neles acontece, na ferida aberta e sempre porvir que o viver não para de produzir e alimentar que se constroem, intrincados, inseparáveis em seu funcionamento, o pesquisar e o escrever; amparadas por essa certeza, nos propomos a lançar olhares sobre nossos próprios processos, tentando encontrar, neles, esse ponto em que nossos corpos e nossas subjetividades não se separam da experiência viva do mundo e em que, imiscuídos nessa experiência, escrevem. Escrevem com as mãos, mas também com os ouvidos, com os olhos, com os pés, com os caminhos traçados e percorridos, com o ar e com a beleza que os alimenta e os mantém de pé, com os fragmentos de si mesmos. Escrevem para se transformar e para poder ser.
Consideramos que a Educação, como disciplina e como campo problemático do saber, na medida em que produz subjetividades, tanto nas instituições e seus formalismos (BRAGA; KÁSPER, 2013) quanto na vida cotidiana e suas reentrâncias, precisa criar, por seus próprios meios, outros modos de ver, perceber, fazer, sentir, pensar e dizer. Essa criação, afirmamos, passa necessariamente pelo combate aos padrões dominantes das produções hegemônicas, seja em seu próprio domínio, seja em qualquer outro que tente negar ao desejo a possibilidade de querer aquilo que ainda não existe, de pensar o impensado e o impensável, de inventar novos possíveis frente aos prenúncios de morte e inanição que se anunciam na e pela macropolítica e necropolítica vigentes. Uma busca incessante, mas necessária, pelo despertar de outras sensibilidades. Um combate incerto (GODOY, 2011), mas urgente, rumo ao esmorecimento das superfícies endurecidas que teimam em nos cercear.
Não se trata, em absoluto, da negação completa de tudo o que existe, mas, antes, da necessidade de afirmar e fazer existir outras coisas, de combater o que se mostra como universal. Não se trata tampouco de legitimar novas modalidades e torná-las práticas maiores (DELEUZE; GUATTARI, 2011), mas de tentar alcançar os limites daquelas que se colocam como tal, transgredi-los, pôr à prova sua unicidade, dar a ver seu funcionamento, deparar-se com suas imediatas reconstituições pelo poder e enfrentá-las novamente, e de novo, e de novo, e de novo. Tencionar, deslocar, ampliar percepções, produzir polifonias e variações, criar modos de existir e resistir, (re)inventar caminhos e processos, descolar-se dos velhos clichês que ancoram antigos modos de fazer e limitam qualquer concepção do novo. Abrir-se aos riscos, aos erros, aos estranhamentos, ao imprevisível, “[...] à experiência que tem a forma da interrupção [...] e ao jogo desregrado proposto à nossa liberdade [pela experimentação]” (PELLEJERO, 2014, p. 6). Experimentar. Multiplicar as possibilidades do real, torná-lo não coincidente com suas velhas representações, colocar em jogo as certezas, tudo aquilo que nos é familiar. Combater as ideias instituídas, o frenesi anestesiante de velharias inéditas, a embriaguez informacional que coopta nossos sentidos, nossas sensibilidades, nossa criatividade, nossos afetos.
Experimentar, em Educação, é experimentar, antes, na vida. Experimentar a vida, na vida. Em todas suas nuances, em todos seus processos. Também no ensino, na pesquisa, na escrita. É o que tentamos - não sabemos ao certo se com sucesso - fazer conosco, com nosso caminhar conjunto, com nossos “objetos”, também com este artigo. Experimentar um encontro improvável e, dele, fazer brotar palavras e maneiras de dizer. Deixar que elas nasçam em nós. Fazer surgir e vivenciar lugares, sons, imagens. Despertar a potência do sensível. Ouvir os silêncios do mundo e, com eles, tentar escrever. Permitir estrangeirismos (CANCLINI, 2009). Caminhar no limite entre o íntimo e o completamente avesso. Tornar-se, pelo adentrar ao desconhecido daquilo que nos é próximo, daquilo que se nos coloca como sabido, estrangeiro. Fender os clichês desde dentro (DELEUZE, 2007) desse lugar. Uma decisão que exige, do corpo, atenção e disposição. Atenção às armadilhas do deslumbramento pelos próprios modos de pensar, às vaidades retóricas e ao poder devastador da língua, aos conformismos emergentes transvestidos de novos contextos, aos confortos da rotina que se instalam junto à novidade, aos costumeiros recolhimentos para os lugares seguros do cotidiano, de onde raramente se sai pelo medo da perda daquela miséria que é, ainda assim, “alguma coisa”. Disposição para encontrar-se diante do abismo do não sabido e, ali, no deserto das certezas, permanecer. Ali tentar criar outra coisa. Ali por vezes sucumbir.