INTRODUÇÃO
O uso de obras audiovisuais no ensino-aprendizagem já não é mais uma novidade. Desde que a escola tenha condições físicas e estruturais, professores têm feito a sua inserção em sala de aula. De acordo com Vasconcelos et. al. (2013), percebe-se o aumento das publicações na área de audiovisual no ensino de Química a partir de 2010 e os autores atribuem esse fato ao acesso ao site YouTube. Como consequência dessa crescente disponibilidade e acessibilidade ao audiovisual na escola, há paralelamente um maior interesse por entender e buscar conhecimento sobre seu uso, por meio de relatos de experiências e de pesquisas, por exemplo. O ensino de Química é uma das áreas em que cresceu o número de pesquisas e trabalhos sobre o uso de audiovisual.
Entretanto, como visto na revisão feita por Vasconcelos et. al. (2013), frequentemente estes trabalhos carecem de uma base teórica que oriente suas análises ou de uma reflexão sobre um conjunto de questões que veja o audiovisual no ensino para além de sua dimensão instrumental. Assim, esses trabalhos não costumam considerar, como fatores relevantes para o ensino com audiovisual (REZENDE FILHO, PEREIRA & VAIRO, 2011), a experiência como espectador dos alunos, as diferenças estéticas e de conteúdo entre os filmes e vídeos usados, as formas de uso ou interação com essas obras e as ações dos professores para incorporá-las às aulas, aspecto que nos interessa especialmente neste trabalho. A partir destas lacunas é que se configurou o problema desta pesquisa traduzido na seguinte pergunta: Quais estratégias um professor de Química utiliza para incorporar obras audiovisuais em seu planejamento e prática de ensino, e que resultados elas produzem no processo de ensino e aprendizagem?
A execução ou não de ações, como um chamado de atenção para alguma cena ou imagem, o retrocesso ou pausa na exibição, a exibição com ou sem repetição, falas do professor sobre as cenas, entre outros, poderiam nos indicar as intenções docentes a respeito da fruição ou do controle da leitura das obras audiovisuais pelos estudantes como elemento de contribuição potencialmente relevante para o aperfeiçoamento do uso deste recurso.
Em nossa visão, para a compreensão da integralidade dos resultados apresentados nestes e em outros trabalhos que indicam que a utilização do audiovisual traz contribuições importantes na aprendizagem dos estudantes, consideramos de fundamental importância que sejam descritos detalhadamente os modos de ação docente com o audiovisual, o que denominamos reendereçamento.
Neste artigo iremos relatar e analisar os resultados de uma pesquisa realizada junto a um professor de Química que planejou uma aula sobre funções orgânicas por meio da temática das drogas com o uso de diversos vídeos. Seguimos um percurso metodológico que implica em: identificar os endereçamentos e os significados preferenciais dos vídeos utilizados, descrever as atividades e ações do professor (reendereçamento audiovisual), e buscar relações entre essas ações e as leituras produzidas pelos estudantes. Desta forma, o objetivo principal deste trabalho foi identificar e analisar as estratégias de reendereçamento elaboradas por esse professor participante, de maneira a entender como essas estratégias podem apontar condicionamentos, potencialidades e limites no ensino de Química com o uso de recursos audiovisuais.
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Elizabeth Ellsworth (2001) relacionou o conceito de modos de endereçamento, desenvolvido pela teoria do cinema, ao campo da educação. A autora afirma que os professores são como os produtores de cinema: se estes fazem suposições sobre o seu público para criar um filme, os professores também as fazem quando criam um plano de aula ou uma prática curricular. Estas suposições geram “traços intencionais e não-intencionais” no filme, que ela define como modos de endereçamento. Os “(re)endereçamentos” criados pelos professores também deixam traços nos seus planejamentos e aulas.
De acordo com Ellsworth (2001, p. 46), o modo de endereçamento seria algo “invisível, não localizável – é uma relação e não uma coisa. É um produto da contínua interação entre uma série de aspectos dos usos particulares de forma, de estilo e estrutura narrativa feitos por um determinado filme”. Ela nos revela que, no interior das relações de um filme, existe uma posição de sujeito construída a partir de pressupostos sobre quem é o público. Se o espectador assume essa posição, o filme funciona predominantemente no sentido que foi pretendido pelo seu produtor. Mas se o espectador não assume essa posição, é possível que ele faça uma leitura distinta da prevista, de resistência.
Sobre os sentidos de uma produção, Hall (2003, p.398) considerou que toda obra possui um conjunto complexo de significados elaborado por seus produtores. Tal conceito é definido como significado preferencial. O autor também reconheceu a agência dos espectadores na recepção, considerando que esses poderiam se posicionar de forma a aceitar, negociar ou mesmo resistir ao significado preferencial. Em seus estudos, ele concluiu que majoritariamente nós fazemos leituras negociadas e que os produtores não têm como controlar totalmente a produção de sentido dos espectadores, já que outros fatores atuam junto às nossas leituras, tais como nossas subjetividades, experiências socioculturais e a situação e/ou o contexto de leitura.
Ellsworth (2001, p.13) afirma que os públicos nunca são exatamente da forma como eles foram imaginados pelos produtores, logo estes podem “errar” o endereçamento. Esse erro diz respeito, por exemplo, ao não reconhecimento pelo espectador que o filme se dirige a ele. No entanto, para a autora, um erro de endereçamento não é necessariamente algo ruim. No campo pedagógico, ela considera que os professores podem aproveitar produtivamente essa diferença de resposta dos estudantes para um enriquecimento do processo de ensino-aprendizagem.
O reendereçamento audiovisual é inspirado no conceito de endereçamento em sua transposição para o campo educacional. Ele se refere a processos de adaptação de obras audiovisuais ao ensino que visam reconfigurar seus objetivos de leitura e os endereçamentos e posições de leitura nela implícitos, a partir de conhecimentos que o professor tem sobre seus alunos. Essas adaptações realizadas podem implicar em um deslocamento da posição do estudante (que também é um espectador) para assistir à obra audiovisual (DISSAT & REZENDE FILHO et al., 2019). O conceito também apresenta similaridades com a noção do reendereçamento no campo literário, que se refere à nova publicação de uma obra produzida originalmente para um outro público (AGUIAR & CECCANTINI, 2012), por exemplo, a adaptação por meio de recursos gráficos e textuais de uma obra adulta para o público infanto-juvenil.
Outro conceito convergente com a noção de reendereçamento é o de coviewing, que remete à situação de assistir um audiovisual na companhia de alguém com o compartilhamento de informações (SÁ, 2015). Neste artigo, a noção de coviewing será utilizada para situações educacionais, nas quais os professores assistem e intermedeiam vídeos em coviewing com seus estudantes em sala de aula. Em alguns casos, classificaremos essas ações de coviewing como reendereçamentos, por exemplo quando essas têm como intenção conduzir ou controlar os sentidos apreendidos ou mesmo reduzir as resistências dos estudantes à exibição.
A noção de reendereçamento é a nossa base teórica e conceitual para compreender como os modos de uso do audiovisual pelo professor podem favorecer ou não a produção de leituras guiadas pelos seus objetivos de ensino. Esses modos de uso do audiovisual nos apontam para uma dimensão criativa da atuação do professor, que, até certo ponto, se torna coautor dessa obra adaptada para exibição no contexto educativo. Por outro lado, essa perspectiva teórica também nos permite produzir conhecimento sobre como e em que sentidos a construção de um lugar de espectador para o aluno pelo professor é importante e interfere sobre os processos de ensino-aprendizagem com o auxílio de obras audiovisuais.
3 METODOLOGIA
Esta pesquisa tratou de um estudo qualitativo de natureza empírica desenvolvido com base na observação da utilização de quatro vídeos escolhidos por um professor de Química para uma aula sobre funções orgânicas a partir da temática drogas em uma turma de estudantes da 2ª série do ensino médio de uma escola pública do Rio de Janeiro.
Em um primeiro contato com o professor, realizamos uma entrevista semiestruturada com a finalidade de conhecer quais vídeos seriam utilizados, os objetivos de seu uso e ter acesso ao planejamento da aula.
Após o professor disponibilizar os quatro vídeos que seriam utilizados, esses foram assistidos e analisados com o objetivo de identificar os endereçamentos e os significados preferenciais, segundo o referencial de Análise Fílmica (VANOYE & GOLIOT-LÉTÉ, 1994). A identificação dos endereçamentos e dos significados preferenciais dos vídeos foi necessária para analisar como o professor os modifica ou os incorpora de acordo com os sentidos que deseja que os estudantes produzam na aula. Os princípios da análise fílmica, segundo Vanoye e Goliot-Lété, consideram que primeiramente as obras devem ser assistidas, posteriormente revistas com a intenção de fazer um exame técnico a partir de sua decomposição de seus elementos constitutivos. Após esta fase, é feita a sua reconstrução, estabelecendo-se os elos entre os elementos que foram isolados, visando compreender como eles se associam e fazem surgir um todo significante.
O princípio metodológico utilizado foi a observação da aula com o registro de áudio, complementado com anotações no diário de campo. Nossos olhares perante a observação da aula buscavam identificar se o professor, durante a sua mediação dos vídeos, manteria o endereçamento e os sentidos conferidos pelos produtores ou se os adaptaria (reendereçamento) para atingir os objetivos de seu plano de aula. Uma vez identificadas ações de reendereçamento realizadas pelo professor, procuramos analisá-las no processo de ensino e aprendizagem.
4 RESULTADOS: ANÁLISE DOS VÍDEOS
4.1 Documentário: “Como funcionam as Drogas”
A versão dublada do episódio da série Curiosidades intitulada “Como funcionam as drogas”3 foi exibida pela primeira vez em 2012 no canal Discovery Brasil. O documentário original tem 44 minutos, classificação etária para 14 anos e foi dirigido por Ron Bowman e apresentado por Robin Williams.
Em síntese, o programa apresenta quatro usuários das quatro drogas mais consumidas nos Estados Unidos como participantes de experimentos físicos e psicológicos com a supervisão de uma equipe médica para mostrar como as drogas funcionam. Os usuários sob o efeito do uso das drogas são avaliados quanto à coordenação, à concentração, ao stress psicológico e à força física. Ao final, a equipe médica avalia os resultados dos efeitos fisiológicos e psicológicos dos experimentos realizados. Para o uso em sala de aula, o professor recortou do vídeo o bloco referente à avaliação dos usuários no quesito de stress psicológico, resultando em um vídeo adaptado de 30 minutos de duração.
Apesar do documentário pretender parecer imparcial para que coubesse ao espectador uma livre interpretação dos fatos veiculados para a formação da sua opinião, observamos um sentido preferencial que se concentra em divulgar os malefícios provocados pelo consumo de drogas, pois em nenhum momento foram apresentadas discussões e situações sobre o uso benéfico das drogas, tal como o uso terapêutico. A partir desse sentido principal, entendemos que os produtores do programa tiveram o objetivo de promover sentidos relacionados à prevenção, à dissuasão e/ou à desistência do uso de drogas. Como o documentário se detém em apresentar os efeitos das drogas mais consumidas nos Estados Unidos, o seu endereçamento principal é direcionado a qualquer telespectador norte americano com faixa etária igual ou maior que 14 anos.
4.2 Reportagem: “Álcool é a segunda maior causa de morte no trânsito”
A reportagem “Álcool é a segunda maior causa de mortes no trânsito”4 pertence ao programa Rede TV News, apresentado pelo âncora Boris Casoy. Ela foi exibida no ano de 2018, tem um total de 4 minutos e trata dos 10 anos de vigência da Lei Seca.
O professor utilizou apenas o trecho de 1’15” a 2’46” em que a repórter apresenta: a vigência da Lei 11.705, a legislação no Brasil comparada ao mundo, o padrão do bafômetro, as penalidades da infração perante a lei e os dados de acidentes de trânsito, ilustrados por imagens desses acidentes.
A reportagem tem um claro posicionamento de defesa da lei, informando sobre o que ela prevê para a redução das mortes no trânsito e punição dos contraventores, reforçando a sua naturalização como algo correto e necessário do ponto de vista político-legislativo. Neste sentido, ela está endereçada não apenas aos condutores de veículos, como um alerta, mas também ao cidadão-eleitor brasileiro, que deve se posicionar de forma favorável à existência da lei, defendendo-a e cumprindo-a.
4.3 Campanha publicitária de trânsito Australiana
“Campanha de Trânsito Australiana”5 é um vídeo comemorativo dos 20 anos da produção de campanhas de conscientização no trânsito pela Transport Accident Commission da Austrália. Trata-se de uma retrospectiva compilada de variadas imagens de todas as campanhas desenvolvidas até a data da produção do vídeo. Vários motoristas são representados, tanto homens como mulheres, na maioria de uma faixa etária mais jovem, de 20 a 40 anos. Nas primeiras cenas, os motoristas saem ilesos mesmo diante das imprudências cometidas pelo uso de álcool e drogas na direção. Há uma progressão gradual das cenas, nas quais observamos batidas violentas, engavetamentos, capotagens, explosões, atropelamentos, pessoas feridas, mutiladas e mortas associadas ao uso de álcool e drogas na direção.
O professor utilizou uma adaptação pronta do vídeo que não se encontra mais disponível no Youtube. Com base no vídeo original de referência citado acima, o vídeo adaptado contém apenas o trecho entre 23” e 4’35”, sem falas, sem legendas e com a música de fundo modificada. A música original da campanha é Everybody Hurts da banda de rock R. E. M., que foi trocada para My immortal da banda de rock Evanescence. Segundo o professor, a troca da música tornou o vídeo mais intenso e impactante.
Em nossa análise, notamos que os produtores do texto audiovisual buscaram, por meio do que é chocante de ser visto e ouvido, persuadir e sensibilizar os usuários do sistema de trânsito a uma mudança de hábito na condução de veículos. A campanha objetivou a segurança no trânsito na Austrália, logo entendemos que ela foi endereçada principalmente aos motoristas de veículos que vivem neste país. Isso pode ser notado, por exemplo, pela escolha de representar os motoristas predominantemente como mais jovens, uma vez que esses estão estatisticamente mais envolvidos em acidentes de trânsito.
4.4 Simulação: Pulmão saudável X Pulmão fumante
O vídeo “Pulmão saudável x Pulmão fumante”6 está disponível no canal “Medicina é” na playlist do seriado “Dose de Conhecimento”, na plataforma Youtube. Segundo o canal, o seu conteúdo é direcionado a vestibulandos de Medicina. Com base no repositório, podemos afirmar que este foi um vídeo produzido com finalidade educativa.
O vídeo apresenta um experimento que simula o ato de fumar. O experimento mostra o consumo de 60 cigarros, que resulta no depósito de uma substância tóxica de aspecto preto na traqueia/pulmão e o escurecimento da coloração de um pulmão saudável. A mensagem “Diga não ao cigarro, diga sim à vida” é passada na tela ao final, sintetizando o significado preferencial do vídeo.
O vídeo apresenta claramente um posicionamento de advertência para os efeitos da prática do tabagismo e de sensibilização para o seu abandono. As imagens da comparação entre o pulmão saudável e o pulmão fumante funcionam como evidência científica dos malefícios do fumo à saúde. Por outro lado, a inserção da frase final e a autodenominação do vídeo como “campanha” confirmam que o vídeo se coloca fortemente contra o fumo e deseja que seu público também o faça. Apesar do canal direcionar seus vídeos ao público específico de estudantes interessados em cursar Medicina, ou por afinidade por assuntos da área das ciências, a mensagem final deste vídeo amplia o seu endereçamento para qualquer público.
5 RESULTADOS: DESCRIÇÃO DA AULA
O professor nos comunicou que antecipou aos alunos que eles teriam uma aula “especial”. Quando perguntado em entrevista sobre porque denominar essa aula de especial, esclareceu-nos que partiu da suposição de que os jovens se interessam muito pela temática drogas, e que assim previa que os alunos iriam gostar da atividade planejada. Informou-nos ainda que a sua aula teria como objetivo “despertar o interesse e a curiosidade dos alunos para o tema reconhecimento das funções orgânicas, (...) também existe um interesse em orientar os alunos sobre o consumo das drogas”.
Em relação ao seu planejamento de aula, o professor nos contou que inicialmente previa a exposição de imagens de algumas moléculas com o princípio ativo das drogas que seriam abordadas no documentário para o reconhecimento de algumas funções orgânicas. Em seguida, ele exibiria o documentário sobre drogas. Posteriormente, seria iniciada uma discussão sobre o uso do álcool, e na sequência ele colocaria dois vídeos sobre acidentes de trânsito devido ao uso de álcool. Por fim, haveria uma discussão sobre os malefícios do tabaco, exibindo um vídeo e realizando um experimento simulando como um pulmão fica contaminado com os resíduos da fumaça dos cigarros.
A aula de Química com o uso dos audiovisuais ocorreu no turno regular com duas horas de duração. Seu público foram os alunos da segunda série do ensino médio em uma escola pública do Rio de Janeiro. Neste dia, 30 alunos estiveram presentes. Fomos informados pelo professor que estes alunos têm uma faixa etária média de 16-17 anos.
No início da aula, o professor esclareceu aos alunos que ele iria trabalhar com a temática das drogas porque ela se relacionava com a parte do conteúdo que seria estudada no momento. Ele definiu o conceito de drogas e mostrou as estruturas químicas dos princípios ativos da cocaína, maconha, heroína e metanfetamina em slides digitais, identificando as classes funcionais dos compostos orgânicos presentes nas fórmulas estruturais das drogas. No slide da estrutura da metanfetamina, tínhamos três imagens com referência ao seriado Breaking Bad7. Neste momento, o professor recomendou aos alunos que assistissem ao seriado, supondo que eles iriam gostar.
Na continuidade, ele esclareceu que se deteve em mostrar a estrutura dessas quatro drogas, porque elas seriam tratadas no documentário “Como funcionam as drogas”. Antes da exibição do vídeo, ele apresentou uma sinopse do documentário, informou que a sua duração seria em torno de 30 minutos e apagou as luzes para melhorar a visualização do vídeo.
Terminada a exibição, os alunos iniciaram uma discussão sobre o documentário de forma livre entre eles. No entanto, logo o professor interrompeu essa discussão, chamando a atenção deles com uma pergunta, retomando a condução da discussão. Os alunos começaram a responder juntos quais as drogas mais consumidas mundialmente, e então o professor optou por direcionar a pergunta individualmente. As opções mais citadas foram o tabaco e o álcool, mas também houve citações individuais da maconha, do café e dos remédios.
As respostas dos alunos conduziram o professor a comentar que o documentário somente expôs sobre algumas drogas ilícitas, mas que também existem as drogas lícitas, que são as mais consumidas mundialmente, dentre elas, o tabaco e o álcool. Após breve explanação, ele ressaltou que a sua intenção não foi dizer o que eles deveriam fazer, e sim apenas mostrar um pouco das consequências do uso dessas substâncias.
Na sequência dos slides, o professor trouxe informações em nível nacional em relação aos problemas associados ao consumo do álcool. A partir dos dados, ele fez uma proposta de reflexão aos estudantes, pedindo que eles imaginassem caso o investimento gasto no SUS com problemas relacionados ao álcool estivesse sendo aplicado em outras áreas na sociedade.
Com a pergunta “Certamente vocês conhecem alguém que dirige ou já dirigiu sob o uso de álcool?”, o professor abriu um espaço para a participação dos estudantes. Uma aluna relatou um caso acontecido no dia anterior, contando que um primo sofreu um acidente de carro porque dirigiu alcoolizado.
Os alunos da turma reagiram rindo da situação apresentada, parecendo desaprovar a imprudência do jovem relatada. O professor continuou mediando a conversa, citando que o excesso de álcool poderia causar ou agravar diversas situações problemas. Posteriormente, ele pediu atenção aos vídeos que seriam apresentados sobre acidentes de trânsito, informou que teriam uma duração aproximada de 5 minutos e comentou que algumas cenas eram reais e que outras foram produzidas “só pra criar um pouco de intensidade na mensagem”.
Após a exibição dos vídeos, o professor recomendou que nenhum veículo deveria ser usado sob o efeito de nenhuma droga. Ele continuou a aula comentando dados sobre o consumo de tabaco e explicando sobre algumas substâncias presentes no cigarro em um infográfico projetado, intitulado “A Química do cigarro”.
Em seguida, ele comunicou aos alunos que iriam assistir um vídeo que tratava de uma simulação de um pulmão sadio consumindo alguns cigarros e avisou aos estudantes que, se eles tivessem repulsa em observar órgãos humanos, não precisavam assistir.
Antes da exibição do vídeo “Pulmão saudável x Pulmão fumante”, uma aluna interrompeu com uma pergunta a respeito de uma personagem do primeiro vídeo exibido. Ela quis saber se o problema de saúde da personagem estaria ligado à substância ou à forma de consumo da droga. O professor discutiu um pouco a respeito com os alunos, explicando que os problemas se apresentam diferentes variando o organismo da pessoa.
Concomitante à exibição da simulação, o professor chamou a atenção para as imagens contidas em um acontecimento que deveriam ser observadas com mais consideração. Pelo fato de o vídeo não conter narração, o professor pôde falar enquanto este era reproduzido (ação de coviewing), direcionando o olhar dos alunos para determinadas situações apresentadas. Terminado o vídeo, ele acrescentou dados sobre o experimento apresentado.
Finalizando a aula, o professor reafirmou que a sua intenção não seria de condenação e sim de conscientização sobre as drogas. Ele avisou aos alunos que a próxima etapa seria o deslocamento para o laboratório de Química, e perguntou se alguém teria alguma dúvida. Dois estudantes pediram uma explicação sobre o café e a significação do nome “drogaria”. Então ele fez um breve esclarecimento sobre os dois assuntos e encerrou a aula.
6 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Em relação aos vídeos, tivemos informações que esses foram escolhidos para que estimulassem em sala de aula a motivação para estudar as funções orgânicas e promovessem orientação sobre o tema drogas. O próprio tema “drogas” tem potencial de endereçamento, já que este de fato atrai o interesse de adolescentes (BASTOS, REZENDE FILHO & PASTOR JUNIOR, 2015). Um dos vídeos também foi escolhido em função de uma de suas marcas de endereçamento: a classificação indicativa do documentário para espectadores a partir dos 14 anos. O professor, em concordância com esta orientação, destinou o vídeo para uma turma de estudantes de faixa etária entre 16-17 anos. Importante destacar que o objetivo da aula se ampliou na medida em que o professor associou a Química a questões de prevenção de saúde pública e violência no trânsito, permitindo uma abordagem da Química em uma perspectiva sociocultural.
Como mencionado anteriormente na seção de análise dos vídeos, o professor realizou edições nos vídeos e fez uso de uma versão da campanha publicitária com menor duração. Ele justificou que essas edições, tais como a retirada de um bloco do documentário e de um trecho da reportagem, foram feitas com o objetivo de usar o tempo disponível em sala para mostrar as partes principais dos vídeos para o seu planejamento de aula.
A apresentação em slides das estruturas químicas das drogas que seriam abordadas no documentário foi uma ação para promover a relação dos conteúdos com as situações de uso destas drogas desenvolvidas pelos vídeos. O professor também promoveu a intertextualidade pela utilização de slides com dados informativos e infográficos dos temas uso do álcool e do tabaco associados aos textos audiovisuais, buscando integrar o assunto drogas aos conceitos de substâncias químicas, efeitos tóxicos e riscos. O uso dessa estratégia fez com que os sentidos atribuídos pelos estudantes aos textos audiovisuais estivessem não somente relacionados a eles mesmos, como também aos textos apresentados pelo professor.
Estes procedimentos caracterizaram-se como ações de reendereçamento, uma vez que a inserção de informações conceituais complementares ao texto audiovisual fazem com que seja facilitada a identificação da associação dos vídeos com a Química pelos estudantes. Por isso, podemos dizer que a promoção da intertextualidade funciona como uma estratégia de reendereçamento, na medida em que ajuda a deslocar o lugar de espectador dos alunos, de um espectador que poderia estar buscando apenas saciar sua curiosidade sobre determinado tema, para a posição de espectadores que assistem aos vídeos para aprender Química. Eles passam então a ver tudo o que é mostrado (inclusive os vídeos) como “parte da matéria”, possibilitando, assim, que o professor possa alcançar seus objetivos de ensino.
O professor realizou ações de preparação anteriormente à exibição de cada vídeo. Para a apresentação do documentário, ele informou aos estudantes dados sobre o gênero, a produção, o enredo e o tempo de duração do documentário, realizando uma ação de coviewing, para fornecer algumas informações aos estudantes antes da exibição. Previamente à projeção do vídeo da campanha publicitária, o professor alertou que “(...) grande parte do que for explícito aqui para vocês mostrado, vai ser real” e fez um pedido de atenção. Neste caso, percebemos que o seu coviewing tinha a intenção de que seus estudantes não vissem o vídeo como se fosse ficção, ressaltando que grande parte das cenas eram reais. Anteriormente à exibição do vídeo simulação, o professor antecipou o conteúdo das suas imagens, dizendo que mostravam órgãos humanos na fala: “se você tiver um pouco de repulsão em observar esses órgãos aí, não precisa assistir, tá”. Esta ação de coviewing demonstrou preocupação do professor com a receptividade dos alunos. Todas estas ações de coviewing se caracterizaram como reendereçamento, nos indicando que o professor estava tentando controlar e direcionar o modo de ver dos estudantes e evitar resistências durante a exposição dos vídeos.
Durante a aula o professor mostrou certo conhecimento dos gostos, necessidades e preferências do repertório cultural de seus estudantes. Na apresentação das estruturas químicas, ele fez uma fala supondo que seus alunos iriam gostar do seriado Breaking Bad. Outra suposição feita foi que talvez esses alunos considerassem desnecessário o desenvolvimento do tema “drogas”, na mensagem exposta no slide: “Talvez você pense no seu íntimo: “são drogas sim, mas não são tão prejudiciais para se fazer tanto alarde. Veja como tal pensamento é totalmente equivocado”. O “você” imaginário colocou o estudante como o sujeito daquela frase, em uma estratégia discursiva de endereçamento. Este seu posicionamento também foi marcado por sua fala seguinte: “(...) muita gente acha que não tem problema nenhum consumi-los”. Estes foram indícios de um posicionamento do professor que conhece seus estudantes e acredita na existência de problemas relacionados ao consumo de drogas lícitas e à falta de debate sobre o assunto com o público adolescente.
No término da exibição do documentário, ele falou que os estudantes já teriam uma idade avançada (maturidade) o suficiente para decidir “aquilo que é bom e o que não é para sua vida”, mostrando um posicionamento semelhante ao enunciado no fim do documentário. Neste vídeo, observamos uma imparcialidade apenas aparente, pois ele só mostra um lado da questão: o malefício das drogas. A mediação do professor segue essa mesma linha de pretensa imparcialidade, sugerindo ao estudante/espectador que ele recebe as informações, mas é livre em suas escolhas. No entanto, todo o encaminhamento da aula foi feito no sentido educativo de enfatizar a prevenção do uso de drogas, o que não é imparcial.
Corroborou essa análise, a percepção do seu posicionamento inflexível quanto ao uso de drogas no trânsito, marcada pela menção: “não deve usar”, na afirmação “a utilização de qualquer veículo, ele pode ser uma arma se você não usar com consciência, então obviamente não deve usar sobre efeito de nenhuma droga”. Menção esta que é contrária à sua mensagem inicial de que não teria planejado a sua aula para incitar proibições.
A desaprovação manifestada pelos estudantes mediante a atitude do primo acidentado devido ao uso de álcool na direção de um veículo, relatado por uma aluna, foi um indicativo do posicionamento responsável e consciente deles, constatado anteriormente à exibição dos vídeos. Salientando que esses alunos, em algum momento, já devem ter tido contato com campanhas de conscientização no trânsito pelos meios de comunicação de massa.
Os estudantes tiveram uma posição de aceitação das mensagens dos vídeos. Ao final, levantaram dúvidas sobre heroína, como visto em uma pergunta sobre a personagem Vicky do documentário: “(...) ela teve insuficiência cardíaca, tem a ver com a forma que ela injetou, pode ter infeccionado ou tem a ver com a substância?”. Os alunos também indagaram sobre as suas percepções do café e dos remédios como drogas lícitas, tal qual na pergunta sobre as consequências “por exemplo do café que é muito consumido?”. Essas falas tanto remeteram a situações vistas no documentário, quanto extrapolaram a delimitação feita pelo professor de abordar somente o álcool e o tabaco na parte das drogas lícitas.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta pesquisa, identificar os significados preferenciais dos vídeos utilizados numa aula pelo professor nos permitiu ver que ele os associou ao conteúdo de Química por meio de uma construção própria em uma perspectiva sociocultural de ensino. Os significados preferenciais dos vídeos convergiam, de uma maneira geral, com a discussão ampliada que o professor buscou fazer sobre funções orgânicas e drogas. Além disso, o professor se apropriou do discurso de imparcialidade marcante na maioria dos vídeos para associá-lo ao seu próprio discurso, apesar de enfatizar a liberdade de escolha dos alunos.
Em geral, os conteúdos dos vídeos utilizados pelo professor convergiram com a discussão realizada por ele sobre as relações das funções orgânicas e as drogas no ensino da Química. Quanto aos endereçamentos dos vídeos selecionados, podemos notar que o professor identificou nesses vídeos não apenas relações com o conteúdo da aula de Química, mas também sua adequação à faixa etária, ao nível de conhecimento ou maturidade para discussão e a alguns dos gostos e preferências dos estudantes. Dessa forma, podemos dizer que as escolhas, os planejamentos de uso e os reendereçamentos dos vídeos foram feitos de acordo com uma compreensão intuitiva do professor a respeito do endereçamento original e de sua suposição do interesse e necessidade de aprendizado dos alunos.
Apesar de serem vídeos próximos à situação didática, ou seja, apesar de endereçamento e reendereçamento convergirem, tal como notado em Rezende Filho et al. (2019), o professor precisou realizar edições nos vídeos para ajustar o tempo de aula e inserir complementações de informações conceituais por meio de slides. Essas modificações do sentido original dos vídeos foram sutis, mas necessárias também para a inserção das obras audiovisuais dentro da perspectiva que o professor queria reforçar. Atuaram, portanto, como tentativa de neutralização de certas potencialidades ou caminhos a que alguns dos vídeos poderiam conduzir e não apenas para ajustar suas durações ao tempo da aula.
Já a identificação e análise das ações de reendereçamento construídas pelo professor nos mostraram que a principal estratégia de reendereçamento foi o coviewing. As ações de coviewing puderam ser notadas quando o professor partilhou informações antes e durante a exibição dos vídeos, preparou os estudantes para verem imagens com órgãos humanos e chamou a atenção deles para assistir aos vídeos. Assim, por exemplo, é presumível que a ação de preparação para ver órgãos humanos tenha sido feita com a intenção de reduzir resistências ao conteúdo do vídeo, assim como a partilha de informações durante a exibição para reduzir dificuldades de entendimento, como visto em Dissat e Rezende Filho et al. (2019). Assim, consideramos que a estratégia de uso de slides e a inserção de informações complementares e conceituais entre os vídeos (leitura intertextual) foi uma estratégia de reendereçamento, que, assim como o coviewing, contribuiu para a efetivação do deslocamento dos alunos para a posição de “aprendizes de Química”.
Assim, notamos que, embora as ações de reendereçamento tenham essencialmente um efeito regulador e que a participação dos alunos tenha sido controlada pelo professor pela concessão do turno de fala, o estudante na posição de espectador conserva sua autonomia na produção de novos significados. Assim, por exemplo, apesar da delimitação feita pelo professor de quais drogas seriam abordadas, os alunos excederam as expectativas considerando o café e os remédios como drogas a serem discutidas.
Este artigo destacou um aspecto importante que deve ser considerado em investigações sobre o uso de audiovisuais no ensino: as formas de uso ou interação com essas obras e os reendereçamentos audiovisuais que o professor realiza para incorporá-las às aulas. Muitas vezes a relevância desses aspectos para os resultados de uma atividade de ensino com audiovisual, sejam esses considerados bons ou ruins, é negligenciada em pesquisas que se concentram em apontar a aceitação dos alunos pelo uso de filmes e vídeos como suficiente para uma explicação ou validação desses resultados.
De outra forma, o estudo do reendereçamento nesta pesquisa nos apontou que há uma série de outros fatores que intervêm sobre o uso de uma obra audiovisual e dos quais os resultados desse uso e das atividades em que ele se insere dependem de um conjunto de ações e construções que o professor realizou para inserir obras audiovisuais em suas aulas. Dessa maneira, não é natural, nem espontânea, a inserção dessas obras em aula, já que ela exige um trabalho de elaboração que mobiliza diversos conhecimentos do professor. Essa série de conhecimentos se estende desde o currículo (relação dos vídeos com a Química, perspectiva sociocultural), aos estudantes (maturidade, gostos, conhecimentos, coviewing), chegando ao próprio audiovisual (edição dos vídeos, capacidade de analisar o endereçamento e identificar o significado preferencial). Além disso, o estudo do reendereçamento nos mostrou também aspectos fundamentais das abordagens, intenções e posturas docentes em aula com audiovisual e as diversas modalidades de ação docente nessas situações. As considerações acima têm potencial para contribuir, portanto, na formação docente para o uso do audiovisual.