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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.17 no.4 São Paulo out./dez. 2019  Epub 27-Jan-2020

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2019v17i4p1781-1807 

Artigos

EUROCENTRISMO E CURRÍCULO: APONTAMENTOS PARA UMA CONSTRUÇÃO CURRICULAR NÃO EUROCÊNTRICA E DECOLONIAL

EUROCENTRISM AND CURRICULUM: POINTS FOR NON-EUROCENTRIC AND DECOLONIAL CURRICULAR CONSTRUCTION

EUROCENTRISMO Y CURRÍCULO: PUNTOS PARA LA CONSTRUCCIÓN CURRICULAR NO EUROCÉNTRICA Y DECOLONIAL

Alessandro de MELOi 

Débora RIBEIROii 

i Pós-doutor em Educação. Docente do Programa de Mestrado em Educação da Unicentro e do curso de Pedagogia da Unicentro. E-mail: alessandrodemelo2016@hotmail.com.

ii Doutoranda em Educação. Professora da rede municipal de Guarapuava-PR. E-mail: deboraribeiromsncom@msn.com.


RESUMO

O Pensamento Decolonial Latino-Americano emerge de um grupo de teóricos e teóricas localizados epistemicamente no sul do mundo, cujas reflexões partem da ferida colonial, daqueles e daquelas que tiveram suas vozes e experiências suprimidas pela colonização e modernização. Diante disso, o objetivo que guia a escrita deste texto é analisar as discussões sobre o currículo e a proposta alternativa de educação encabeçada pelo movimento zapatista via pensamento decolonial, a fim de contribuir para uma construção curricular não eurocêntrica, decolonial e decolonizadora. Para tanto, realizou-se uma pesquisa teórica buscando elementos no pensamento decolonial, nas teorias críticas e não críticas do currículo, e na proposta alternativa de educação encabeçada pelo zapatismo, a fim de contribuir para a reflexão sobre o eurocentrismo no currículo. A partir dessa análise, percebe-se que o currículo dentro das tendências tradicional, tecnicista e renovada representa vários aspectos da colonialidade do poder, ser e saber, excluindo os conhecimentos e identidades dos povos e grupos sociais subalternizados. E que mesmo quando tendências críticas procuraram repensar o currículo dentro do pensamento ocidental, isso aconteceu dentro das orientações do pensamento eurocêntrico, apesar de constituírem importantes contribuições. No entanto, as alternativas de educação dos movimentos sociais latino-americanos, como o zapatismo, apontam e já constroem uma educação decolonial e não eurocêntrica. Tal discussão torna-se importante na medida em que uma transformação social só é possível juntamente com uma transformação epistêmica, já que a racionalidade ocidental sustenta e sustenta-se sobre o mundo moderno/colonial.

PALAVRAS-CHAVE: Currículo; Eurocentrismo; Colonialidade; Movimento zapatista

ABSTRACT

Latin American Decolonial Thought emerges from a group of theoretical epistemically located in the south of the world, whose reflections depart from the colonial wound, of those who had their voices and experiences suppressed by colonization and modernization. Therefore, what is writing guide of this text is to analyze the discussions about the curriculum and the alternative proposal of education headed by the Zapatista movement through the decolonial thought, in order to contribute to a non-Eurocentric, decolonial e decolonizing curricular construction. For this purpose, a theoretical research looking for elements in decolonial thought, in critical and noncritical theories of the curriculum, and in alternative proposal of education headed by Zapatismo, in order to contribute to the reflection on eurocentrism in the curriculum. From this analysis, it is perceived that the curriculum within the traditional trends, technical and renewed, represent several aspects of the coloniality of power, being and knowing, excluding the knowledge and identities of subalternized peoples and social groups. And that even when critical trends sought to rethink the curriculum within Western thought, this happened within the orientations of the Eurocentric thinking, although they constitute important contributions. However, the education alternatives of Latin American social movements, such as zapatismo, point out and already construct a decolonial and non-Eurocentric education. Such a discussion becomes important insofar as a social transformation is possible only together with an epistemic transformation, since Western rationality sustains and sustains itself over the modern/colonial world.

KEYWORDS: Eurocentrism; Coloniality; Zapatistamovement

RESUMEN

El PensamientoDecolonialLatinoamericano emerge de un grupo de teóricos y teóricas localizados epistémicamenteenelsurdel mundo, cuyas reflexiones parten de laherida colonial, de aquellos y aquellas que tuvieron sus voces y experiencias suprimidas por lacolonización y modernización. En este sentido, el objetivo que guíala escritura de este texto es analizarlasdiscusiones sobre el currículo y lapropuesta alternativa de educaciónencabezada por elmovimiento zapatista víapensamientodecolonial, a fin de contribuir a una construcción curricular no eurocéntrica, decolonial y decolonizadora. Para ello, fue realizada una investigación teórica buscando elementos enelpensamientodecolonial, teorías críticas y no críticasdel currículo, y enlapropuesta alternativa de educaciónencabezada por elzapatismo, a fin de contribuir a lareflexión sobre eleurocentrismoenel currículo. A partir de eseanálisis, se percibe que el currículo dentro de lastendências tradicional, tecnicista y renovada representa varios aspectos de lacolonialidaddel poder, ser y saber, excluyendolosconocimientos e identidades de lospueblos y grupos sociales subalternizados. Y que incluso cuandolastendencias críticas buscaban repensar el currículo dentro delpensamientooccidental, esosucedió dentro de lasorientacionesdelpensamientoeurocéntrico, a pesar de constituir importantes contribuciones. Sin embargo, las alternativas de educación de losmovimientossocialeslatinoamericanos, como elzapatismo, apuntan y yaconstruyen una educacióndecolonial y no eurocéntrica. Tal discusión se vuelve importante enla medida en que una transformación social sólo es posible junto com una transformación epistémica, ya que laracionalidadoccidentalsostiene y sostiene a símisma sobre el mundo moderno/colonial.

PALAVRAS CLAVE: Currículo; Eurocentrismo; Colonialidad; Movimiento zapatista

1 INTRODUÇÃO

O currículo tem uma história, ele é determinado socialmente, produzido dentro de um amplo contexto. Por meio dele se traduzem concepções de mundo e sociedade, visões interessadas e particulares, ele se vincula a formas específicas de organização da sociedade e da educação. Nesse sentido, o currículo pode ser considerado um artefato social e cultural que produz identidades, significações, representações e concepções de mundo. No processo de fabricação curricular entram em jogo: “[...] fatores lógicos, epistemológicos, intelectuais, determinantes sociais menos ‘nobres’ e menos ‘formais’, tais como interesses, rituais, conflitos simbólicos, culturais, necessidades de legitimação e controle, propósitos de dominação dirigidos por fatores ligados à classe, gênero e raça” (GOODSON, 2008, p. 8).

É nesse sentido que se pode dizer que a seleção cultural dentro dos currículos é tão importante, porque de certa forma eles acabam servindo a esses interesses e relações supracitados. Por isso é preocupante o atual discurso do retorno ao clássico, ao passado, à cultura comum presente nas atuais políticas direitistas, neoliberais e neoconservadoras. Como afirma Apple (2001), o pânico sobre padrões rebaixados, evasão e analfabetismo, o medo da violência nas escolas, a preocupação com a destruição dos valores familiares e religiosos, são exacerbados por grupos dominantes para deslocar o discurso em educação para satisfazer aos seus interesses: o tradicionalismo, a padronização, a produtividade, as iniciativas de mercado e as necessidades industriais. Em grande parte, essas medidas são justificadas pelo desejo de estreitar as relações entre educação e um projeto mais amplo de economia.

Na verdade, essa cultura comum nada tem de comum, tem em comum o fato de representar uma certa classe social, a dominante em cada sociedade, em cada período histórico. Aí se encontra o que Bourdieu e Passeron (1970) chamaram de dupla violência simbólica, ou seja, ao mesmo tempo em que a cultura da classe dominante é definida como a única cultura, tal processo é camuflado como natural e não analisado como fruto de relações sociais de poder. Complementam ainda esses autores, dizendo que ao ser veiculada na escola a cultura dominante, tal processo acaba legitimando o código natural que possuem as crianças que advêm da classe dominante, enquanto as crianças das classes dominadas, por não possuírem proximidade com essa cultura, têm sua cultura desvalorizada e acabam enfrentando mais acentuadamente o fracasso escolar (SILVA, 2005).

O conhecimento escolar, nessa acepção, deve reportar-se aos conhecimentos, saberes, modos de ser e viver elaborados pela população mundial mais avançada no desenvolvimento histórico unilinear, onde a Europa Ocidental e, mais recentemente, Estados Unidos, figuram como ápice e exemplo a serem seguidos. O conhecimento que é construído nas universidades a partir do século XVIII endossa a narrativa eurocêntrica, dando suporte a ela, partindo de uma falsa universalidade e neutralidade que acabam naturalizando e legitimando a ordem social excludente e desigual do mundo moderno.

Ou seja, o conhecimento ocidental eurocêntrico é aquele que é construído sob o mito que estabelece o único conhecimento válido e legítimo a partir do lócus de enunciação do sujeito europeu, civilizado, desenvolvido, descorporizado, dessubjetivado, neutro, objetivo e universal. Toda a gama de experiências e conhecimentos produzidos em outros contextos e por outros sujeitos são desconsiderados, portanto, não devem adentrar nas escolas oficialmente e, inclusive, devem ser repelidos fortemente e desconsiderados. Um conhecimento intrinsecamente atrelado à modernidade/colonialidade do poder, do ser e do saber, mas que é afirmado enquanto neutro, objetivo e universal, que nega o passado e o presente de genocídios e epistemicídios cometidos sob sua lógica (SOUSA SANTOS, 2010).

Diante disso, a preocupação que nos move é sobre a reprodução do conhecimento eurocêntrico nos currículos escolares, já que ele se erige sobre o mito da modernidade (DUSSEL, 2000) e sustenta o eurocentrismo, contribuindo significativamente para a manutenção das relações coloniais/modernas de poder, ser e saber. Diante disso, o intento deste texto é analisar as diferentes concepções de currículo com relação ao tipo de conhecimento que é entendido como válido e a ser curricularizado, ou seja, em que sentido as concepções curriculares podem ser entendidas enquanto eurocêntricas, para então apontar uma proposta alternativa de educação - a zapatista -, que nos oferece uma perspectiva decolonial e não eurocêntrica de currículo e conhecimento. Para tanto, iniciamos com as contribuições do Pensamento Decolonial Latino-Americano, a fim de compreender o eurocentrismo e a colonialidade presente no conhecimento ocidental, para então analisar as concepções críticas e não críticas do currículo sob esse viés. Por último, apresentamos algumas considerações para a construção de um conhecimento e currículo não eurocêntrico e decolonial a partir da proposta alternativa de educação zapatista no México.

2 PENSAMENTO DECOLONIAL LATINO-AMERICANO: COLONIALIDADE E EUROCENTRISMO

O primeiro elemento fundamental em uma incursão ao pensamento decolonial é o início da modernidade. Sob uma perspectiva eurocêntrica, o início da modernidade é historicamente atrelado ao século XVII com a Reforma, a Ilustração, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial no século XVIII, em países como França, Inglaterra e Alemanha. Nesta concepção, a modernidade é emancipação, uma saída do estado de imaturidade da humanidade para a razão como processo crítico, que pode proporcionar um novo tipo de desenvolvimento humano (DUSSEL, 2000).

Enrique Dussel (2000) afirma que a modernidade é um fenômeno mundial que se originou com as rotas marítimas e comerciais a partir de 1492 com o “descobrimento” da América, e não como um produto intra-europeu e local1. É este o processo que configura a “primeira modernidade”, iniciada com as navegações de Espanha e Portugal; já a “segunda modernidade” inicia com a Revolução Industrial e o Iluminismo.

O sociólogo peruano Aníbal Quijano (2007) adiciona à noção de modernidade iniciada a partir de 1492 uma outra face, a colonialidade2. Com a colonização da América Latina, o emergente poder capitalista se faz mundial, seus centros hegemônicos se localizam sobre a Europa e como aspectos centrais desse novo padrão de dominação manifestam-se a modernidade e a colonialidade como duas faces da mesma moeda, ou seja, não existe modernidade sem colonialidade e vice-versa3. A colonialidade é um dos elementos constitutivos do padrão de poder capitalista, que se torna global e sobrevive ao fim do colonialismo depois da Segunda Guerra Mundial. Enquanto colonialismo significa uma relação política e econômica, e, neste sentido, a soberania de um povo reside no poder de outro povo ou nação, a colonialidade emerge do colonialismo, refere-se à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se relacionam entre si através do ideal de mercado capitalista e de hierarquização racial da população mundial (MALDONADO-TORRES, 2007).

A esta relação de poder moderno/colonial/capitalista, Quijano (2007) denomina colonialidaddel poder, que instaura desde a Conquista uma classificação social da população mundial a partir dos critérios de raça, trabalho e gênero.

Subjaz que a partir de 1492 todo o mundo e todas as culturas são organizados conforme uma única narrativa universal eurocêntrica, como se antes disso não existisse história. Como resultado da inserção europeia pela força em todo o mundo, a Europa passa a ser considerada o modelo universal de desenvolvimento histórico unilinear e unidirecional pelo qual deveriam passar todas as outras sociedades. Dessa forma, a perspectiva eurocêntrica de conhecimento e a experiência histórica permitem definir os principais elementos do eurocentrismo como:

a) una articulación peculiar entre un dualismo (precapital-capital, no europeo-europeo, primitivo-civilizado, tradicional-moderno, etc.) y un evolucionismo lineal, unidireccional, desde algún estado de naturaleza a lasociedad moderna europea; b) lanaturalización de las diferencias culturales entre grupos humanos por medio de sucodificaciónconlaidea de raza; y c) ladistorsionadareubicación temporal de todas esas diferencias, de modo que todo lo no-europeo es percibido como pasado. Todas estas operacionesintelectualesson claramente interdependientes. Y no habrían podido ser cultivadas y desarrolladassinlacolonialidaddel poder (QUIJANO, 2000, p. 221-222).

O eurocentrismo naturaliza as experiências do capitalismo moderno/colonial, eliminando da história a luta de classes e colocando em seu lugar uma série de forças externas que determinariam o grau de desenvolvimento dos países. Assim, as desigualdades regionais e entre países, são explicadas de acordo com as características internas, que poderiam atrapalhar ou atrasar o desenvolvimento.

O grau de superioridade europeu se justifica com relação aos graus de humanidade atribuídos às diferentes identidades. Em geral, quanto mais clara for a pele de alguém, mais próximo estará de representar o ideal de humanidade. Para Maldonado-Torres (2007), assim como existe uma diferença epistêmica colonial que permite observar o funcionamento de uma colonialidade do conhecimento, existe uma diferença ontológica colonial que revela a colonialidade do ser.

Enquanto a diferença epistêmica colonial, ou simplesmente diferença colonial para Mignolo (2000), é um mecanismo hegemônico de subalternização do conhecimento não ocidental, que impõe a inferioridade e a diferença a quem se classifica para justificar a colonização, a diferença ontológica colonial, colocada entre o ser e o que existe abaixo dele, como um sub-outro, marcado como utilizável ou dispensável, permite uma hierarquização entre a subjetividade humana e a condição de sujeitos sem resistência ontológica. A colonialidade do saber (QUIJANO, 2000), hierarquiza os diferentes tipos de conhecimento, de forma que apenas o conhecimento produzido pela elite científica da Europa Ocidental ou dos Estados Unidos é considerado válido e legítimo, os demais conhecimentos são identificados como irracionais, míticos, arcaicos, senso comum, folclore, conhecimentos tradicionais entre outras formas de denominação.

Pensando nos currículos escolares, o problema não está no ensino dos conteúdos, do conhecimento acumulado, mas sim quando apenas isso importa, quando outros conhecimentos e formas de ser acabam sendo deslegitimados, porque não têm seu lugar afirmado na escola, universidades e centros de formação de professores. Agindo dessa forma a escola está contribuindo com a legitimação de um conhecimento que exclui, oprime, explora, nega outros conhecimentos. Isso não significa que o conhecimento técnico, por exemplo, não deve ser ensinado nas escolas, ou que ele não é necessário em nosso contexto social, mas que é preciso equilibrar as forças em jogo, quer dizer, trabalhar em uma ecologia de saberes, em que diferentes formas de conhecimento podem dialogar em igualdade de condições (SOUSA SANTOS, 2009).

Mesmo sabendo que o currículo envolve questões bastante complexas que não se limitam ao conhecimento, esse é um dos eixos principais no funcionamento escolar e na formação das subjetividades e identidades sociais e culturais. Além disso, o conhecimento sob a análise decolonial implica relações de dominação, opressão e negação, está intimamente relacionado com a colonialidade e a hierarquização da população mundial.

3 ANÁLISE DECOLONIAL E DA ECOLOGIA DE SABERES SOBRE AS CONCEPÇÕES CRÍTICAS E NÃO CRÍTICAS DO CURRÍCULO

Com relação às concepções não críticas do currículo e da educação, em especial sobre a concepção tradicional, sabemos que seu início no Brasil data de 1549 com a chegada dos jesuítas e o consequente monopólio da vertente religiosa até 1759. Quando os pioneiros da Escola Nova começaram a organizar reformas nos sistemas de ensino de alguns estados brasileiros, não se tinha difundido uma abordagem sistemática sobre currículo, mas as tradições curriculares se baseavam nos princípios positivistas de Herbart, de Pestalozzi e dos jesuítas, que podem ser caracterizados como: “a) ênfase em disciplinas literárias e acadêmicas; b) enciclopedismo; e c) divisão entre trabalho intelectual e manual” (MOREIRA, 1990, p. 85).

Dessa forma, o currículo tradicionalmente significou uma relação de matérias ou disciplinas fragmentadas, com seu corpo de conhecimento organizado sequencialmente. Basicamente, o objetivo era introduzir os alunos no repertório das obras clássicas, assim como no domínio das línguas grega e latina. “Supostamente, essas obras encarnavam as melhores realizações e os mais altos ideais do espírito humano” (SILVA, 2005, p. 26). Esse tipo de ensino era elitista e não atingia o povo em geral, para o qual a aprendizagem se limitava à aquisição de habilidades técnicas e manuais para o trabalho.

O conhecimento tinha o dever de retirar os indivíduos da sua ignorância, revelando a verdade, exercitando sua mente e corpo para a civilização, retirando-os da selvageria. A ênfase nos clássicos demonstra a concepção de que apenas algumas sociedades produziam conhecimentos válidos que poderiam conduzir as pessoas e os povos à civilização. Além disso, o conhecimento era do tipo fragmentado e compartimentalizado, dividido em espécies de caixas muito bem separadas, ignorando-se sua relação com o todo. Era ainda entendido como estático e universal, pressupostos eurocêntricos fundamentais na avaliação dos conhecimentos produzidos fora de sua zona de poder e controle.

O modelo herbartiano de educação tradicional foca na racionalidade ocidental como meio de formar o cidadão, de acordo com padrões científicos e voltado apenas para a formação intelectual, o desenvolvimento da razão. No sul do mundo esse modelo de educação carrega esse modo de ensinar e o conteúdo científico que apostam na unidimensionalidade, deixando de lado as identidades dos de abajo, em nome de conhecimentos universalmente válidos. Esse modelo parte da superioridade de um tipo de conhecimento e da inferioridade de outros, da colonialidade do saber. É um modelo de educação válido para o período de formação do estado nacional no ocidente europeu que é trasladado para o Brasil, mas que nada tem a ver com a identidade histórica da população e do país.

As mudanças sociais do final do século XIX e início do XX, ocasionadas em função dos processos de urbanização e industrialização dos Estados Unidos, também trouxeram novas perspectivas educacionais com forte influência no Brasil. Os principais representantes dessa teoria pedagógica são o filósofo estadunidense John Dewey (1859-1952) e o pedagogo estadunidense Willian HeardKilpatrick (1871-1965), os quais representaram o esforço de adequar a escola às recentes mudanças sociais.O papel da educação deveria ser o de colaborar para a construção de uma verdadeira sociedade democrática, onde as igualdades fossem reais e não apenas formais.

No Brasil, a adesão aos ideais escolanovistas por grande número de intelectuais e educadores também se alinhou com as transformações sociais da crescente urbanização e industrialização. Anísio Teixeira4, que dirigiu a reforma educacional baiana em 1925 de acordo com ideais da Escola Nova, considerava a educação um elemento chave para a inovação e modernização da sociedade.

Há que se considerar que os ideários da escola nova utilizados no Brasil não foram todos inspirados em Dewey. “Houve também um escolanovismo francamente taylorista e funcionalista, com marcada ênfase na eficiência dos procedimentos escolares, na simples adequação do indivíduo à ordem social e ao ritmo da indústria em ascensão” (CUNHA, 2001, p. 97). O legado de Dewey, assevera Westbrook (2001), consiste mais em uma visão crítica do que prática, pois as escolas estão longe de ser ambientes amplamente interessantes e instigadores.

A defesa da democracia é um grande avanço com relação à pedagogia tradicional, pois o papel do professor é relativizado e a relação entre adultos e crianças é entendida enquanto interação e não imposição. Percebe-se o papel ativo das crianças na aprendizagem e produção do conhecimento, mas a defesa da democracia ainda é voltada para uma democracia burguesa. Assim, a identidade da escola se volta para os desígnios nacionais, a defesa da nação, algo que a educação decolonial coloca em xeque por se constituir como uma identidade autoritária, nacional, que deriva da colonialidade do poder.

O tecnicismo nos Estados Unidos, após os fatos acima narrados, ascende como ideologia hegemônica quando um número crescente de educadores começou a tratar sistematicamente de problemas e questões curriculares. O propósito era planejar cientificamente o processo educativo de modo que as influências subjetivas fossem minimizadas e não se desviassem das metas e padrões pré-definidos. A escola foi vista como necessária para adequar as novas gerações às transformações econômicas, sociais e culturais que ocorriam. “Na escola, considerou-se o currículo como o instrumento por excelência do controle social que se pretendia estabelecer. Coube, assim, à escola, inculcar os valores, as condutas e os hábitos ‘adequados’ (MOREIRA; SILVA, 2002, p. 10). O currículo como campo especializado de estudos surge no momento em que diferentes forças econômicas, políticas e culturais tentam definir os objetivos e formas da educação de massas nos Estados Unidos.

O planejamento e a definição dos objetivos são considerados primordiais para evitar erros e tomar caminhos indesejáveis. O importante é aprender a fazer e racionalizar o processo com a ajuda do pensamento científico. O currículo se transforma em algo mecanicamente organizado por especialistas, atrelado ao cargo do supervisor escolar. As finalidades educacionais já estavam dadas pelo mundo do trabalho, bastaria pesquisar e selecionar quais habilidades são necessárias para as diversas ocupações, trabalho destinado ao especialista. Cabe ao gestor planejar e decidir, o professor e o aluno apenas executam conforme os moldes de qualidade já estabelecidos; o gestor disporá ainda de aparatos vigilantes para garantir o cumprimento do programa.

Fica bastante claro que o tecnicismo, na definição e nos arranjos que faz relacionados ao conhecimento escolar, possui vários elementos eurocêntricos. No seu intuito de eliminar a subjetividade do processo educativo para garantir a sua eficácia, opera pela separação entre mente e corpo, razão e emoção, corpo e mundo. Esse é um processo que historicamente tem excluído epistemicamente todos os conhecimentos que não se configuram dessa forma. Os preceitos de objetividade, neutralidade e universalidade implicam na lógica de que somente um corpo de especialistas bem treinados é capaz de produzir conhecimento, e, nesse sentido, o supervisor escolar é aquele que pode planejar, coordenar e avaliar o currículo, pois ele receberia treinamento para isso.

Servindo a esses interesses, o conhecimento curricularizado deve ser instrumento de racionalização, não de reflexão. O pensamento científico é o artífice utilizado para levar a esse caminho, mais uma vez reafirmando o lugar daqueles que produzem conhecimento e daqueles que devem somente apropriar-se dele de forma objetiva e neutra. O papel da vigilância, do controle e da avaliação demonstram que assim como os países têm que prestar contas às agências e mecanismos de controle internacionais, professores, escolas e alunos têm um caminho a seguir que não admite desvios perigosos ao sistema.

Em suma, as concepções tradicionais do currículo (humanista, tecnicista e renovada), seguem uma abordagem realista, estática e essencialista do conhecimento, da cultura e do próprio currículo. Nesta concepção, o currículo é considerado como um reflexo do conhecimento existente, o qual representa fielmente a realidade. A cultura e o conhecimento são retirados do seu campo de produção, tornando-se reificados. Dessa forma, a relação entre currículo e produção social do conhecimento, da cultura e mesmo do currículo é deixada de lado, o que implica a desconsideração das relações de poder e diversos interesses que participam dessa construção (SILVA, 2006). Como afirma Goodson (2008, p. 8): “O currículo não é constituído de conhecimentos válidos, mas de conhecimentos considerados socialmente válidos”. E nesse sentido, os conhecimentos selecionados e a forma que o currículo adota implicam a direção que o processo de ensino tomará, implicam quais os objetivos, finalidades, preferências, gostos, comportamentos, mentalidades, e subjetividades que são almejados para uma certa população.

No entanto, as teorias críticas do currículo e educação começam a ser questionadas na década de 1970 com intensidade. Enquanto a teoria tradicional preocupava-se com o como fazer do currículo, as teorias críticas preocuparam-se com o que o currículo faz, o que ele produz e como é produzido. Nos Estados Unidos e Canadá o movimento de crítica ao currículo tradicional emergia dentro do próprio campo de estudos da educação. Um movimento mais organizado foi impulsionado pela I Conferência sobre Currículo realizada em Nova York, em 1973. O movimento de reconceitualização, como ficou conhecido, expressava a insatisfação de pessoas que não reconheciam o currículo como meramente técnico e administrativo, pois tal noção se afastava das teorias sociais de origem europeia, como a fenomenologia, a hermenêutica, o marxismo e a teoria crítica da Escola de Frankfurt. No caso da fenomenologia e da hermenêutica, desnaturalizar essas categorias significava focalizá-las através de uma perspectiva bastante pessoal e subjetiva. Tal investigação coloca em questão o senso comum, não o substituindo por categorias teóricas e abstratas, mas focalizando na experiência vivida os significados construídos subjetiva e intersubjetivamente (SILVA, 2005). As separações do conhecimento ocidental são questionadas, pois se a subjetividade é considerada, significa que todas as pessoas são capazes de produzir conhecimento.

No entanto, para o neomarxista Michael Apple tal estudo representa um recuo ao pessoal, narcisístico e ao subjetivo. O autor busca nas fontes da crítica marxista e da teorização crítica mais ampla subsídios para suas contribuições acerca do currículo. Assim, parte do pressuposto de que existe uma conexão clara entre a forma como a economia está organizada (dominação de classe) com a forma como o currículo está organizado. Nesse sentido, cabe à escola produzir e reproduzir formas de consciência que permitem a manutenção do controle social, tornando-se uma força ativa na legitimação da ideologia e das formas econômicas e sociais.

Diante disso, Apple afirma ser necessário analisar as ligações entre poder econômico e político e o conhecimento que é tornado acessível na escola (e o que não é). Para isso: “[...] precisamos examinar criticamente não apenas ‘como um estudante adquire mais conhecimento’, mas ‘porque e como determinados aspectos da cultura coletiva são apresentados como conhecimento objetivo, factual’” (APPLE, 1979, p. 27).

Apple traz importantes contribuições sobre as atuais reformas educacionais de âmbito internacional que acabam sendo impostas a muitos países pelos organismos financeiros como o Banco Mundial. O autor nos leva a pensar sobre a escola e seu papel dentro do sistema capitalista, sendo o conhecimento e o currículo importantes peças-chave para o controle social, para manter a hegemonia das classes dominantes. Ele critica os currículos nacionais e as avaliações estandardizadas de massa, cujo resultado será a produção das diferenças de forma ainda maior, assim como os antagonismos sociais e econômicos. Demonstra como a escola, não apenas com os conteúdos, mas em sua estrutura e organização é pensada para atender aos objetivos da classe dominante.

Nesse sentido, os currículos nacionais e avaliações estandardizadas servem para assegurar um conhecimento homogêneo, pensando no modelo de sujeito que se deseja formar para a sociedade neoliberal-patriarcal-colonial-moderna. O conhecimento ocidental novamente é utilizado como instrumento de ordenação das pessoas, colocando cada um(a) em seu devido lugar, entendido como conhecimento técnico e não para a vida.

Henry Giroux é outro crítico neomarxista do currículo com muitas contribuições importantes. Para evitar a rigidez economicista de certos enfoques marxistas, Giroux apostou nas contribuições da Escola de Frankfurt e sua ênfase nos aspectos da dinâmica cultural, da crítica à razão iluminista e da racionalidade técnica.

A preocupação de Giroux centra-se em analisar as escolas como esferas públicas democráticas e os professores como intelectuais transformadores. Para ele, para que a pedagogia radical se torne viável como projeto político, deve desenvolver um discurso que combine a linguagem crítica com a da possibilidade. Encarar as escolas públicas como esferas democráticas significa defendê-las como instituições que desenvolvem um serviço público importante, onde os estudantes aprendem o discurso da associação pública e responsabilidade social. Para este autor: “[...] as escolas são defendidas como instituições que fornecem as condições ideológicas e materiais necessárias para a educação dos cidadãos na dinâmica da alfabetização crítica e coragem cívica” (GIROUX, 1997, p. 28), as quais constituem as bases para que sejam cidadãos ativos em uma sociedade democrática.

O mesmo autor afirma ainda que os professores devem começar desvelando o horror do sofrimento passado, assim como as resistências, pois ambos nos alertam para as condições históricas que constroem tais experiências. Com isso podemos transformar as condições sociais existentes para eliminar esse sofrimento no presente. A libertação da memória também aponta para o papel que professores podem ter: “[...] na rede pedagógica de solidariedade destinada a manter vivo o fato histórico e existencial do sofrimento através da revelação e da análise das formas de conhecimento histórico e popular que foram suprimidas ou ignoradas” (GIROUX, 1997, p. 30). A memória nos alerta para as formas de resistência e, portanto, nos dá esperança.

Giroux nos oferece importantes reflexões sobre a educação escolar como forma de resistência, ele se esforça para superar a crítica sem proposições. Encontra na escola pública como esfera democrática, nos professores como intelectuais transformadores e na cultura popular meios de tornar a educação escolar transformadora, tanto da vida de cada sujeito envolvido nesse processo quanto da sociedade mais ampla. E ao mesmo tempo não deixa de considerar a escola e o currículo como espaços de reprodução, por isso a escola é entendida como apenas uma das esferas para a transformação social.

Quando fala da libertação da memória para analisar as formas de conhecimento histórico e popular que foram suprimidos, Giroux se aproxima das discussões realizadas por Marín (2013) sobre a memória coletiva. Essa pode ser uma estratégia para perceber a atuação da colonialidade do saber e as formas de resistência adotadas pelos grupos sociais e culturais. Sua concepção de conhecimento relacionado com o poder também se aproxima das concepções decoloniais e, nesse sentido, possui o gérmen para a construção de um conhecimento não eurocêntrico. A mesma coisa pode-se dizer acerca da importância que o autor confere à cultura popular, sempre destacando a capacidade de resistência e inovação presente nesse e em outros âmbitos populares.

Na Inglaterra a crítica do currículo se dava a partir da sociologia, diferentemente dos Estados Unidos. Em 1971 o livro Conhecimento e controle de Michael Young marca o início do que seria conhecido por Nova Sociologia da Educação (NSE). A referência para essa crítica foi a antiga sociologia da educação desenvolvida na Inglaterra, a qual dava uma ênfase especial à estatística e aos estudos empíricos. O currículo tradicional era simplesmente considerado como dado, não era questionado, a preocupação se voltava para as variáveis de entrada e saída de alunos, mas não problematizava o papel da escola e do currículo na produção das desigualdades. Por isso o ponto de partida da NSE é construir uma sociologia do conhecimento que destaque: “[...] o caráter socialmente construído das formas de consciência e de conhecimento, bem como suas estreitas relações com estruturas sociais, institucionais e econômicas” (SILVA, 2005, p. 66). A tarefa de uma sociologia do conhecimento seria a de questionar, desnaturalizar e mostrar o caráter histórico e arbitrário das categorias curriculares, pedagógicas e avaliativas utilizadas pelas teorias educacionais e pelos educadores.

Já o campo dos Estudos Culturais (EC) tem sua origem em 1964 na Universidade de Birmingham, Inglaterra. Sua crítica inicial foi sobre a noção de cultura dominante na crítica literária britânica, na qual a cultura era identificada apenas com as “grandes obras” da literatura e artes em geral. Na visão dos EC a cultura passa a ser entendida como: “[...] modo de vida global de uma sociedade, como a experiência vivida de qualquer sociedade” (SILVA, 2005, p. 131), portanto, não haveria hierarquia entre alta cultura e cultura de massa, cultura erudita e cultura popular. Seus esforços iniciais se concentraram no estudo das subculturas urbanas britânicas e depois se ampliaram para a cultura popular. Algumas perspectivas do marxismo foram incorporadas pelos EC, e, assim: “[...] a questão do poder foi remetida para o centro das discussões; se ele não estava nas estruturas do capital, precisava ser problematizado na linguagem, no simbólico, no inconsciente” (COSTA; SILVEIRA; SOMMER, 2003, p. 39). Por isso, a cultura é entendida como um campo de significação, de definição da identidade cultural e social, é um jogo de poder. Mas nos anos 1980 esse predomínio marxista daria lugar à vertentes pós-estruturalistas baseadas no filósofo francês Michel Foucault e no filósofo franco-magrebino Jacques Derrida.

Suas contribuições para a análise do currículo incluem conceber o currículo como campo de contestação em torno da significação e da identidade. O conhecimento e o currículo podem ser vistos como campos culturais sujeitos à disputa e interpretação, no interior do qual diferentes grupos procuram estabelecer sua hegemonia. Nesse sentido, o currículo é uma invenção social como qualquer outra, e seu conteúdo é uma construção social implicada em relações de poder que determinam um tipo de currículo e de conhecimento e não outro. Uma análise de currículo baseada nas contribuições dos EC daria ênfase à linguagem e ao discurso no processo de construção do currículo como artefato social e na produção de “identidades culturais e sociais” (SILVA, 2005, p. 135). Todo conhecimento é visto como algo que foi construído, o que faz com que todas as formas de conhecimento sejam igualadas, não havendo separação rígida entre o conhecimento considerado escolar e o conhecimento do cotidiano. Os autores dos EC foram criticados por sua ênfase na subcultura urbana, tendo permanecido com uma noção de cultura eurocêntrica, além disso, por mais que se ocupassem de questões da classe trabalhadora, das mulheres, negros e outras minorias, eram compostos inicialmente na sua maioria por homens brancos de classe média (COSTA; SILVEIRA; SOMMER, 2003).

Já o pós-estruturalismo radicaliza a crítica do sujeito do humanismo e da filosofia da consciência feita pelo estruturalismo, questionando também o sujeito cartesiano-kantiano, o sujeito hegeliano, o sujeito do existencialismo e o sujeito coletivo do marxismo. Em contrapartida, descrevem o sujeito como descentrado e “[...] totalmente dependente do sistema linguístico do seu contexto, um sujeito discursivamente constituído e posicionado na intersecção entre as forças libidinais e as práticas socioculturais” (BRANDÃO, 2015, p. 41). Eles questionam o privilégio concedido à consciência humana, a qual remonta a Descartes e Bacon, que tinham como pressuposto um sujeito estável, capaz de desenvolver um conhecimento sobre si e o mundo a partir da razão. Tal “eu” racional seria capaz de fornecer verdades universais sobre o mundo, consideradas as únicas verdadeiras.

O conhecimento é analisado pelo pós-estruturalismo de forma a buscar os mecanismos pelos quais os saberes são produzidos como práticas discursivas em meio a relações de poder, em sistemas mais ou menos hierarquizados. Assim como o processo de significação é instável e indeterminado, o conhecimento é também produzido cultural e socialmente. Todas as asserções de verdade são questionadas, não importa mais saber qual é a verdade, mas sim como algo se tornou verdade.

De certa forma, pode-se dizer que os EC e o pós-estruturalismo contribuem significativamente para pensar o currículo para além de um instrumento de reprodução e seleção cultural, como um artefato social que produz aquilo que diz apenas representar, produz corpos, subjetividades, docilidades, modos de ser e pensar. Como afirma Veiga-Neto (2003), ao falar do entendimento de cultura que marcou o pensamento pedagógico moderno, o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) em sua obra Sobre a pedagogia de 1777, teria diferenciado cultura de civilidade, no sentido de que a cultura recebe um caráter elitista e diferenciador, sendo que somente a nascente sociedade burguesa alemã personificava o mais elevado grau cultural. Enquanto a cultura compreendia os feitos e valores artísticos, filosóficos, espirituais, religiosos, literários etc., a civilidade era vista como o conjunto de atitudes e comportamentos cada vez mais autorregulados, como a cortesia, as boas maneiras, a elegância etc.

Dessa forma, a ressignificação da palavra cultura, no sentido de culturas, contribui para repensar também o conhecimento escolar que advém de apenas uma cultura, justamente essa cultura que se proclama universal. Quando a escola atual ainda se centra basicamente nesses conhecimentos técnicos, objetivos e pretensamente universais, ela continua a cumprir seu papel eurocêntrico na modernidade/colonialidade. Isso não significa que esses conhecimentos devem ser totalmente rechaçados, mas que devem integrar uma rede muito mais ampla de saberes que dialoguem, visto sua íntima relação com a cultura do grupo dominante, que acaba produzindo sujeitos e interpelando-os com um discurso hegemônico, precisamente, a colonialidade do ser, saber e poder. Quando somente um grupo é representado pelos conhecimentos escolares, os demais grupos acabam tendo sua presença deslegitimada nos espaços de produção do saber, o que é uma expressão prática da ideia de que não são sujeitos epistêmicos, não possuem conhecimentos e, portanto, devem ser inculcados com os conhecimentos que podem ser úteis ao processo moderno/colonial/capitalista.

Ao questionar a centralidade do sujeito racional capaz de oferecer verdades universais e o potencial de transformação do método científico, o pós-estruturalismo contribui no sentido de desnaturalizar a própria forma de produção do conhecimento ocidental e sua força inabalável. Isso é importante para refletir sobre o conhecimento escolarizado, já que o mesmo é reconhecido como imerso em relações assimétricas de poder e em interesses específicos. Um conhecimento que, como mostram os EC, adentra todos os espaços de nossas vidas, convocando os sujeitos a construírem suas identidades, corpos e subjetividades conforme os ditames necessários à reprodução da sociedade capitalista/moderna/colonial/patriarcal. Ainda assim é preciso recordar que, como afirmam Grosfoguel e Castro-Gómez (2007), o pensamento decolonial se diferencia dos estudos pós-coloniais justamente porque os últimos em sua genealogia se localizam no pós-estruturalismo (considerado como uma narrativa elaborada apenas por quem já tem o privilégio da fala) e não na densa história do pensamento planetário decolonial.

Concluindo esta parte sobre teorias do currículo, sublinha-se a importância das contribuições das teorias críticas do currículo para o trabalho de repensá-lo juntamente com o conhecimento sob uma visão decolonial. Apesar de fazerem parte do mesmo pensamento eurocêntrico que criticam, essas teorias demonstram um esforço em se desprender das amarras do cientificismo e do racionalismo, principalmente as pós-estruturalistas. O conhecimento não é mais visto como neutro, objetivo e imparcial, mas sim como uma construção social e cultural envolta em relações assimétricas de poder. A ênfase no sujeito do humanismo e a centralidade da consciência autocentrada perde força e isso significa radicalizar a noção de construção social e cultural do sujeito. Mais, significa esmiuçar as relações de poder que influenciam a construção do sujeito e do conhecimento. Também o currículo adquire esse sentido, sendo elaborado entre os conflitos dos diferentes grupos sociais pela representação. Quem tem o poder de representar quem? Quem merece ser representado e de que forma? São perguntas que levam a pensar sobre o tipo de conhecimento, qual conhecimento e quais narrativas são inscritas no currículo e como eles representam, criam significados, identidades e diferenças.

Em contrapartida, o pensamento decolonial emerge das vozes e resistências que advêm dos próprios grupos oprimidos e subalternizados, da ferida colonial, de quem sente na pele o peso da modernidade/colonialidade. Diante disso, a seguir apresenta-se a proposta escolar e curricular dos zapatistas como exemplo de uma proposta decolonial.

4 PARA UMA CONSTRUÇÃO CURRICULAR NÃO EUROCÊNTRICA E DECOLONIAL: A EXPERIÊNCIA ZAPATISTA5

O Exército Zapatista de Libertação Nacional - EZLN emerge como referência mundial no âmbito de experiências contra-hegemônicas e anticapitalistas no cenário moderno, representando possibilidades concretas de autonomia diante das investidas globalizadoras e neoliberais (ZIBECHI, 2014). Para entender melhor o papel que a educação escolar adquire nesse contexto, é preciso compreender antes que, como os próprios zapatistas reconhecem, sua luta não se origina no fim do século XX, mas é continuidade de uma resistência histórica com mais de 500 anos de luta contra a escravidão, passando pela guerra de independência contra a Espanha e contra o expansionismo norte-americano, da luta para promulgação da Constituição e expulsão do Império Francês do território mexicano, depois contra a ditadura porfirista quando surgem seus próprios líderes, Emiliano Zapata (1879-1919) e Pancho Villa (1878-1923). O movimento zapatista emerge de um grupo historicamente oprimido pela colonialidade do poder, esquecido pelo governo mexicano.

O estado de Chiapas, no sudoeste mexicano, local da rebelião de 01 de janeiro de 1994 e onde o movimento se aloca até hoje, possui grandes índices de marginalização e pobreza, sendo a população constituída por cerca de mais de um milhão de indígenas descendentes dos povos maias. Nos últimos dois séculos, o governo mexicano vem apostando em um discurso de modernização e desenvolvimento econômico que ameaça as terras indígenas. A partir da década de 1970, as políticas neoliberais aprofundaram o êxodo rural e a exclusão dos indígenas desse espaço econômico. O movimento já vinha se organizando desde então, mas o ponto crucial que levou à revolta armada em 1994 foi a anulação jurídica da proteção das terras comunais indígenas contra o avanço dos latifúndios e do capital internacional, no contexto das negociações do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio - NAFTA. Milhares de indígenas que formavam parte do EZLN declararam guerra ao governo do México em nome de democracia, liberdade e justiça para toda a população mexicana. Armados, ocuparam a sede de sete municípios de Chiapas orientados sob os seguintes pontos de luta: terra, alimentação, teto, saúde, informação, educação, cultura, independência, justiça, liberdade, democracia e paz. A guerra deixou alguns mortos e dezenas de feridos, sendo que o movimento alcançou enorme visibilidade, atos de apoio e solidariedade de todo o mundo, além de ampla mobilização da sociedade civil mexicana exigindo abertura de diálogo e resolução pacífica do conflito (MARQUES, 2014).

A partir desse diálogo com a sociedade civil6, o movimento lança mão de estratégias pacíficas de resistência e construção da autonomia7. Hoje ocupam 27 Municípios Autônomos em Rebeldia Zapatista - MAREZ, os quais estão divididos pelos cinco Caracóis, criados em 2003 e que representam os centros político-administrativos de autogoverno zapatista. Em cada Caracol também se reúnem as Juntas de Bom Governo - JBG, formadas por representantes escolhidos a cada três anos pelos municípios. O processo de autonomia foi intensificado a partir de 1996, após o descumprimento dos Acordos de San Andrés pelo governo8, os quais traziam importantes princípios indígenas para a construção de um novo pacto social. Com base nos sete princípios de mandar obedecendo9, as bases de apoio do EZLN formadas pelos MAREZ, Caracóis e JBG, pensaram e construíram escolas, hospitais e formas de auto-sustento a partir dos recursos naturais e da criação de animais. Além disso, formularam suas próprias leis, como a Lei Revolucionária das Mulheres10, a Lei dos Direitos e Obrigações dos Povos em Luta e a Lei Agrária Revolucionária.

Para Mignolo (2011), o zapatismo pode ser definido como uma revolução também teórica, pois realiza uma dupla tradução como pensamento de fronteira com potencial epistêmico do conhecimento subalterno. Segundo o autor, o Subcomandante Marcos11 começou a traduzir os discursos ameríndios para a nação mexicana e para o mundo, assim como, o marxismo para os intelectuais ameríndios. Essa dupla tradução implica que o marxismo não é simplesmente justaposto à realidade zapatista, ele é perpassado pela cosmologia ameríndia. Desse processo surge um imaginário ético e político que abre a possibilidade de outros futuros construídos além dos limites impostos pelos dois universalismos hegemônicos abstratos: (neo) liberalismo e (neo) marxismo. Conhecimentos que foram desacreditados pela modernidade/colonialidade entram em um duplo movimento de getting in/letting in devido ao processo de reversão da colonialidade do poder iniciada com a dupla tradução.

No campo da educação formal os zapatistas também acabam realizando uma dupla tradução no sentido prático. Incorporam o modelo da escola oficial, mas para transformá-la conforme suas necessidades políticas e culturais. Desde os Acordos de San Andrés, o projeto de educação que queriam os zapatistas centrava-se em dois princípios: interculturalidade e autonomia. A interculturalidade é entendida para o movimento de forma crítica, como bem pontua Walsh (2009), como projeto político, social, epistêmico e ético direcionado para a transformação estrutural e sócio-histórica para a construção de uma sociedade radicalmente distinta. E a autonomia implica no direito das comunidades indígenas de se autodeterminarem com relação a diversos aspectos educativos: organização escolar, definição de planos e programas de estudo e conformação dos seus próprios sistemas de ensino. Depois do descumprimento dos acordos, as iniciativas autônomas ganharam mais força e passaram a ter ação direta do EZLN, enquanto as ações do Estado se concentraram em programas compensatórios e de ampliação da cobertura em nível médio e superior, mas sempre com a mesma estrutura tradicional de educação tão criticada pelos zapatistas (GUTIÉRREZ, 2006).

Os zapatistas acusam a educação oficial de voltar-se apenas para a formação da mão-de-obra para o trabalho precarizado. As propostas de ensino oficiais são assimilacionistas e baseadas na homogeneidade cultural, sendo os alunos e alunas indígenas desconsiderados como sujeitos sociais e culturais distintos. Os alunos indígenas sofriam com grandes índices de repetência, evasão e analfabetismo, eram objeto de preconceito e racismo nas escolas, o que só dificultava ainda mais sua situação precária de acesso à educação, já que muitos tinham que trabalhar desde pequenos. Por tudo isso e pelo abandono que a população indígena sofreu do governo mexicano com relação à educação também quantitativamente, os zapatistas ergueram-se com propostas de educação centradas na sua cultura e nas necessidades diárias de luta e resistência.

A organização da educação autônoma não ocorreu de forma homogênea, mas com características semelhantes, seu maior ou menor desenvolvimento depende dos recursos, necessidades e prioridades de cada região, já que ocorre conforme a organização administrativa do território nos cinco Caracóis. A função da educação não é outra que não as necessidades do povo zapatista, para o reconhecimento e garantia dos seus direitos.

Sua proposta de educação rompe com o modelo centralizador e homogeneizador da educação oficial, não aceita conhecimentos impostos de cima que muitas vezes não têm nada em comum com a realidade local, que atuam mais como instrumentos de deslegitimação cultural e epistêmica desses povos. O conhecimento nessa educação parte da realidade local, ou seja, sua cultura, valores, tradições, saberes. E deve ser útil para a sociedade em que vivem essas pessoas, o tipo de mundo em que acreditam e querem construir, para ajudar a resolver seus problemas e necessidades. A educação colonizadora é rechaçada e em seu lugar são afirmadas as línguas indígenas, os conhecimentos e os trabalhos socialmente úteis, reconhecendo a importância da cultura e do ser indígena. E isso acontece na forma de diálogo, pois os conhecimentos modernos não são totalmente rechaçados, nem a cultura indígena totalmente reconhecida como positiva, como no caso do machismo cristalizado. E um dos pontos importantes é justamente a construção da igualdade nas relações entre homens e mulheres, meninas e meninos. O que aponta que os e as zapatistas reconhecem que para haver democracia, liberdade e justiça para todos é preciso que antes as desigualdades entre masculino/feminino sejam superadas. Essa também é uma forma das mulheres zapatistas retomarem seu papel político, social e epistêmico excluído pela colonialidade do ser e do poder.

Com relação à organização da educação, um primeiro ponto a destacar é a nomeação dos promotores e promotoras de educação pelas comunidades em assembleias12. Essas assembleias têm um poder de orientação, decisão e delegação de funções em matéria educativa. Participam não apenas pais e mães de educandos e educandas, mas também demais membros da comunidade, jovens e anciãos, alunos e alunas. Como afirma Baronnet (2010), uma nova política educativa está sendo construída, oposta ao centralismo uniformizador e baseada na autonomia de fato e democracia direta dos povos indígenas. Nas assembleias são decididos aspectos sobre planos e programas educativos, avaliação dos educandos, decisões sobre festas e calendários escolares. Com relação ao currículo, cada zona delimitou as matérias com que trabalha, no entanto, existem disciplinas comuns a todas: línguas; matemática; história; vida e meio ambiente.

No Caracol de La Realidad e Morelia os objetivos para estas disciplinas são melhor explicitados. Na disciplina de línguas ensina-se leitura e escrita das línguas maternas indígenas e do castelhano, a ênfase está na recuperação das línguas maternas. Em matemática o enfoque é o ensino das quatro operações básicas e a resolução de problemas relacionados com as necessidades dos povos, também visa-se recuperar saberes tradicionais, como o sistema de numeração e medição dos antepassados. Na matéria de história a preocupação é contar a verdadeira história, não a oficial, por meio de investigações com os anciãos, utilizando lendas, contos e histórias familiares. Em vida e meio ambiente trabalha-se o uso e conservação do meio ambiente. Como tema transversal, que deve estar presente em todas as áreas, existem conteúdos relacionados às demandas e princípios zapatistas. Percebe-se como é recorrente a preocupação com a valorização da cultura e dos conhecimentos indígenas, e não são aceitos os conhecimentos que não estabeleçam relação direta com a vida dos povos indígenas, conhecimentos abstratos e descontextualizados que falam de outra realidade e deslegitimam o saber desses povos (BARONNET, 2010).

Há ainda a preocupação de que a relação ensino-aprendizagem aconteça de forma que os educandos possam participar ativamente desse processo, sem medo de serem reprimidos ou rechaçados. Por isso a avaliação deve ser feita em conjunto entre pais, autoridades educativas e a comunidade, com ênfase no que o educando aprendeu e não em hierarquizar e atribuir valores apenas quantitativos sobre a aprendizagem, pois isso é reconhecido como fator de desestímulo e que incita a competição e menosprezo aos que possuem maior dificuldade. A relação entre educandos e professores deve ser dialógica e pacífica, o ensino sem a separação entre teoria e prática e sempre prezando pela cultura indígena, pelo amor e respeito à natureza e à terra. O ensino não pode ser apenas memorístico, nessa proposta ele se relaciona com as outras atividades da comunidade, a fim de contribuir com a vida produtiva, com o exercício do autogoverno, com os serviços de saúde entre outros. E esse trabalho deve ocorrer de forma coletiva, enfatizando relações de companheirismo até mesmo entre educandos e promotores, pois isso respeita a cosmovisão indígena e é contrário aos valores capitalistas de individualismo.

Enquanto a teoria crítica apresenta dificuldades na imaginação do fim do capitalismo e do colonialismo, na construção de sociedades outras, os zapatistas demonstram que a própria teoria crítica é eurocêntrica por imaginar esse fim de modo homogêneo e universal. A revolução epistêmica que realizam torna possível que sejam ampliadas as possibilidades de experiências, negam a homogeneidade e universalidade moderna. Colocam em foco outros saberes e lógicas, temporalidades, agem para o reconhecimento das recíprocas desigualdades, daquilo que acontece localmente e para o reconhecimento e valorização dos sistemas alternativos de produção, respeitando a mãe natureza. É um conhecimento que não reconhece as linhas visíveis e invisíveis que distinguem entre o que é considerado conhecimento e o que é apenas mito e irracional. Um movimento que constitui uma globalização contra-hegemônica na luta contra a desigualdade e exclusão (SOUSA SANTOS, 2010).

Os zapatistas não acreditam nas grandes narrativas modernas e eurocêntricas, onde o Norte global radica como ápice do desenvolvimento humano, acreditam na revalorização e reconhecimento da sua trajetória histórica de luta e resistência. Atuam contra o desperdício de experiências (SOUSA SANTOS, 2009) e negam as falsas separações eurocêntricas entre especialistas que produzem conhecimento válido e não especialistas, pois sabem da importância do seu conhecimento para manutenção da vida e da natureza. A educação autônoma demonstra que a falsa neutralidade e universalidade do conhecimento científico é desacreditada, desse modo, acreditam em um conhecimento que não parte da objetividade e neutralidade, mas sim da vivência, resistência e desejos gravados na sua história enquanto coletividade. A educação é entendida como uma responsabilidade de todos da comunidade, sendo importante que decisões sejam tomadas coletivamente e sempre em respeito à sua cosmovisão. Nesse sentido, uma educação que envolve toda a comunidade e que só tem sentido em torno dela é construída de forma dialógica, autônoma e com participação ativa. Por tudo isso e principalmente por terem se tornado uma espécie de exemplo global de construção alternativa de sociedades, os zapatistas atuam construindo um mundo melhor de forma decolonial e não eurocêntrica.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A educação pensada e realizada pelo zapatismo é considerada decolonial e decolonizadora. Na medida em que se rompe com pressupostos e paradigmas moderno/coloniais, assim como, com o modelo de educação oficial, essa educação transforma o pensamento e a ação eurocêntricos. Trabalha para a construção de alternativas de conhecimento, experiências e transformações possíveis. A construção de modelos alternativos de educação ocorre com a realização da ecologia de saberes (SOUSA SANTOS, 2010), pois os movimentos sociais fazem uma reconstrução baseada nas melhores contribuições do paradigma ocidental e outros paradigmas. Com todas as suas lutas, pensamento e práticas de transformação e autonomia, os movimentos sociais constroem cotidianamente uma sociedade intercultural não só na educação, mas que caminha para a interculturalidade no sentido amplo, nos diversos âmbitos da sociedade. Uma educação decolonial e decolonizadora aponta para a construção de outras alternativas, outros conhecimentos e experiências, trabalha para uma sociedade com equidade e pela superação da colonialidade do poder, ser e saber.

Quanto ao currículo, pleiteiam que seja respeitoso com a história e a identidade próprias, superando a ideia de um currículo hegemônico, totalitário e único, que versa sobre uma determinada concepção de mundo mas aparece como sendo “a verdade” sobre o mundo e o modo de o conceber e estudar. Os zapatistas, em sua construção curricular coletiva, remetem-se à crítica do sistema capitalista, que os esmagou por mais de 500 anos, ao mesmo tempo em que constroem a resistência cotidianamente em seus territórios, mediados por conhecimentos próprios, produzidos pelo reconhecimento de sua história, pelo diálogo inter-geracional e com a natureza compreendida como extensão e não como “outro” a ser explorado.

Lembrando que, como afirma Zibechi (2014), nem o Quilombo de Palmares nem os caracoles zapatistas prefiguram a sociedade do futuro, mas representam de fato a sociedade outra realmente possível. Isso porque a prefiguração remete a uma aproximação gradual da sociedade desejada, e os oprimidos não têm outra opção a não ser dar um golpe capaz de mudar radicalmente sua situação, como o levante zapatista de 1994. “Nos espaços que liberam, nos territórios onde se assentam, desenvolvem a vida que querem levar” (ZIBECHI, 2014, p. 13). Nos estados modernos, uma guerra civil legal é instaurada diariamente para eliminar aqueles que o sistema considera sobrantes e esse sistema não pode ser reformado, apenas destruído. Inclusive a democracia é como uma forma de ilusão de participação e representação. Por isso a proposição dos movimentos sociais não é mudar o mundo como uma totalidade, a exemplo do socialismo, porque se entende que o todo não tem primazia sobre as partes, todas heterogêneas e descontínuas, intenta-se mudar o mundo criando algo diferente. Para superar a inferiorização que o colonialismo lhes imputou, necessitam criar algo novo e não lutar para repartir o que existe, pois assim correm o risco de repetir o processo de dominação. Com suas práticas e pensamento já constroem esse mundo outro diariamente.

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NOTAS

1À diferença de Wallerstein, que considerava a modernidade associada ao Iluminismo, Dussel e outros pensadores decoloniais consideram a modernidade originada no momento mesmo de constituição do sistema-mundo (RASTREPO; ROJAS, 2010).

2Quijano utiliza a noção de “colonialidade” no lugar de “colonialismo” para apontar as continuidades históricas entre os tempos coloniais e os pós-coloniais, e para deixar claro que as relações coloniais de poder não se limitam ao domínio econômico-político e jurídico-administrativo, mas possui também uma dimensão epistemológica e cultural (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007).

3Isso significa que ao mesmo tempo em que se define algo como moderno, algo ou alguém é definido como não moderno, ao mesmo tempo se define um interior e um exterior, “No hayunnosotros (modernidad) sin que al mismotiempo se defina un no-nosotros, unellos (no-modernidad)” (RASTREPO; ROJAS, 2010, p. 18). É precisamente essa exterioridade da modernidade que se denomina diferença colonial por Mignolo (2000).

4Anísio Teixeira (1990-1971) foi aluno de Dewey em Nova York e trouxe para o Brasil suas influências, foi personagem central nas ideias da escola nova e sua difusão. Defendia uma educação integral e para todos, criticava o caráter elitista que o ensino vinha tomando no Brasil, onde apenas uma classe social tinha mais êxito e acesso(SAVIANI, 2008).

5Outros exemplos de educação e currículo não eurocêntricos e decoloniais são as experiências desenvolvidas pela PluriversidadAmawtayWasi, no Equador; do Movimento Rural Sem Terra, no Brasil; da educação escolar quilombola, também no Brasil.

6O movimento se caracteriza por sempre realizar trocas de experiências e conhecimentos com a sociedade civil internacional. Um exemplo interessante é a Escuelita Zapatista realizada em agosto de 2013, um curso intitulado “A liberdade segundo as e os zapatistas”. Cerca de 1.500 pessoas foram convidadas em todas as partes do mundo para fazer parte do curso, com o objetivo de mostrar aos ativistas e movimentos uma análise dos acertos e erros das últimas décadas no movimento (MARQUES, 2014).

7O EZLN hoje tem função de proteger as bases de apoio, dar suporte político às comunidades e ser porta-voz com a sociedade civil mexicana e internacional. As bases de apoio são constituídas por membros indígenas rebeldes, enquanto a articulação político-organizativa fica a cargo do Comitê Clandestino Revolucionário Indígena (CCRI), composto por membros do EZLN e das Juntas de Bom Governo (MARQUES, 2014).

8Junto com essa decisão de não aceitar os acordos, o governo mexicano também deu início à crescente violência e violações dos direitos humanos em Chiapas. Um exemplo terrível é a matança que ocorreu em 1997, na comunidade de Acteal, onde 47 pessoas que estavam em uma celebração religiosa, na maioria mulheres e crianças, foram massacrados por 60 homens de grupos paramilitares. O caso permanece não resolvido. O governo também utiliza recursos econômicos, políticos e militares, como proteção e privilégios a grupos contrários ao movimento, censura dos meios de comunicação e implementação de programas assistencialistas. A isso ainda se soma o grande interesse internacional nas riquezas naturais dos territórios indígenas (MARQUES, 2014).

9 “Obedecer y no mandar. Representar y no suplantar. Bajar y no subir. Servir y no servirse. Convencer y no vencer. Construir y no destruir. Proponer y no imponer” (SOUZA, s/a, p. 3).

10Esta lei surge diante da necessidade de lutar pela igualdade entre homens e mulheres dentro da própria organização, em 1993. A lei insurge contra o machismo cristalizado e se relaciona a temas como a participação política e militar, violência doméstica, trabalho e educação, escolha do parceiro e do número de filhos. A lei foi feita exclusivamente por mulheres e teve bastante resistência, transformou profundamente as relações de poder nas comunidades. As mulheres hoje ocupam cargos militares e metade dos cargos das JBG são reservados para elas, além de serem autoridades em todas as áreas de trabalho e possuírem organizações e cooperativas próprias. No entanto, ainda há dificuldades para a sua participação devido a preconceitos, tradições, obrigações domésticas e problemas como o analfabetismo, o qual atinge mais as mulheres do que os homens chiapanecos (MARQUES, 2014).

11Principal porta-voz do EZLN e líder do movimento até 2014.

12Os promotores e promotoras são escolhidos em função de possuírem conhecimentos escolares, como saber ler e escrever. Em seguida há a preocupação com sua formação, que primeiro pode ocorrer com a ajuda de organizações civis, mas depois passam a ser realizadas pelos próprios promotores na comunidade. Os promotores e promotoras são responsáveis pelas aulas e não recebem salários, apenas apoio das comunidades para o seu sustento.

Recebido: 19 de Abril de 2018; Aceito: 23 de Agosto de 2019

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