1 INTRODUÇÃO
O artigo se volta ao debate sobre a luta política pela legitimação e significação da disciplina Sociologia e seu papel no contexto de disputas históricas em prol da diversidade étnico-racial. Focaliza os tensionamentos sofridos pela referida disciplina na constituição de uma base curricular nacional, a qual propõe alterações no currículo do Ensino Médio.
Este texto é o resultado de uma pesquisa, no campo do currículo, pautada por uma abordagem epistêmica pós-fundacional, pelo pensamento laclauniano e ancorada nos estudos pós-estruturais das produções dos grupos de pesquisa coordenados por Alice Casimiro Lopes e Elizabeth Macedo. Baseados nesses pensamentos, ponderamos acerca da significação da Sociologia como disciplina no currículo do Ensino Médio e procuramos organizar um posicionamento teórico de currículo que adotamos, entendido como produção discursiva e que constantemente está lutando por sua significação.
Buscamos, nessa pesquisa, uma tentativa de discutir sobre a luta política curricular para as diversidades étnico-raciais e a Sociologia escolar a partir do documento orientador do currículo do Ensino Médio, a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), que visa constituir “[...] um fundamento, um padrão, um conjunto de conteúdos básicos ou mesmo um conjunto de critérios consensuais para definir de uma vez por todas uma identidade para o currículo da Educação Básica” (LOPES, 2015, p. 447).
Nesse estudo, a disciplina de Sociologia e as diversidades étnico-raciais foram focalizadas a partir de um processo de constituição que ocorre com base em sentidos múltiplos que se configuram no terreno das contingências nas articulações discursivas entre diferentes contextos. Problematiza o discurso acerca da diversidade presente nos documentos investigados (1.ª e 3.ª versão da BNCC), os quais não correspondem à plena representação de um fundamento sobre o conceito de diversidade dado a priori, mas formulado na luta política, na busca constante de hegemonizar um modelo de educação para as relações étnico-raciais que direcionem para a construção de significados nos quais a educação deve ser valorizada para que se mantenha um padrão de qualidade considerando as diferenças étnico-raciais existentes no País. Contudo, as reformulações curriculares propostas pela Lei n.º 13.415/2017 e pela versão final da BNCC não garantem que estas estejam presentes no currículo do Ensino Médio.
Focalizamos, nessa pesquisa, como se deu o contexto de negociações para a manutenção da Sociologia escolar no currículo do Ensino Médio e o lugar das diversidades étnico-raciais nesse processo das disputas políticas para construção de uma base curricular nacional. Para tanto, foram investigadas a primeira e a terceira versão do documento da BNCC direcionada para a última etapa da Educação Básica.
A primeira parte do artigo aborda o currículo de Sociologia numa perspectiva discursiva. Em seguida, focaliza o contexto discursivo das disputas políticas, envolvendo a Sociologia escolar e sua relação com as diversidades étnico-raciais a partir de uma leitura via Teoria do Discurso, e das disputas por significação do currículo de Sociologia e as diversidades étnico-raciais, contextualizando o processo de reformulação curricular da disciplina nas versões da BNCC. E, finalizando, as considerações contingenciais que buscam uma tentativa de tecer o posicionamento da pesquisa sobre a política curricular para a Sociologia escolar e as diversidades étnico-raciais apresentadas na versão final da BNCC para o Ensino Médio.
2 O CURRÍCULO DE SOCIOLOGIA NUMA PERSPECTIVA DISCURSIVA
As investigações empreendidas nessa pesquisa sobre o currículo de Sociologia no Ensino Médio e sua vinculação às questões étnico-raciais foram realizadas a partir das concepções de currículo e política curricular baseadas numa perspectiva pós-fundacional e pós-estrutural, utilizando as contribuições dos estudos no campo da teoria curricular de Lopes (2015; 2017; 2018), Lopes e Macedo (2011) e Macedo (2014).
A perspectiva teórica aqui adotada para entender currículo é de base pós-fundacional a partir da qual contestamos a existência de um fundamento último (nesse caso, referimo-nos à BNCC) que defina o projeto curricular direcionado para a disciplina Sociologia. Pensamos o currículo como luta constante por significação/interpretação por meio de um enfoque discursivo que opera com a dessedimentação de discursos1 que pretendem fundamentar e representar o que venha a ser currículo. Este é considerado como discurso (interpretado como linguagem e ação, prática de significação), uma construção cultural, social, histórica, discursiva, contingente e produzida socialmente, na qual as relações de poder e os conhecimentos resultam de negociações, de diálogos, de disputas, e criam no campo da significação instabilidades, flexibilidades e indeterminações.
Os sentidos produzidos para o currículo de Sociologia na Educação Básica constituem-se por meio de práticas articulatórias e de relações antagônicas sempre provisórias. Ao investigar o contexto de lutas pela legitimação da Sociologia como disciplina que deve compor o currículo do Ensino Médio, são notórias as articulações formadas por diferentes elementos que se aglutinaram em diversos momentos (vide quadro abaixo), traduzindo-se por discursos de defesa e tentativa de significá-la como importante ou não para a formação do estudante.
Ano | Documento/lei | Impacto |
---|---|---|
1891-1925 | Primeiros discursos favoráveis. Documentos sem efeito | Sem efeito |
1925 | Reforma Rocha-Vaz (Decreto n.º 16.782-A, de 13 de janeiro de 1925) | Presença da disciplina em todo o ensino secundário |
1936 | Reforma Francisco Campos (Decreto n.º 19.890, de 18 de abril de 1931) | Presença da disciplina em todo o ensino secundário |
1941 | Reforma Capanema (Decreto-lei n.º 4.244, de 9 de abril de 1942) | Presença somente nos cursos secundários normais |
1961 | Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.º 4.024, de 20 de dezembro de 1961) | Presença optativa |
1971 | Lei n.º 5.692/1971 | Presença optativa |
1982 | Lei Federal n.º 7.044/1982 | Início do retorno |
1986 | Resolução do Conselho Federal de Educação n.º 6 | Reforço ao retorno |
1996 | Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996) | Dá espaço, mas não garante |
1998 | Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio | Dá espaço, mas não garante |
1999 | Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio | Dá espaço, mas não garante |
2006 | Parecer n.º 4 do CNE/CEB | Torna as disciplinas obrigatórias nacionalmente |
Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio | Recomenda o retorno da Sociologia e Filosofia | |
2008 | Lei n.º 11.864/2008 | Lei nacional que torna obrigatória a presença |
2016 | Medida Provisória n.º 746/2016 | Retira a obrigatoriedade da disciplina Sociologia e Filosofia |
2017 | Lei n.º 13.415, aprovada em 16 de fevereiro de 2017 | A disciplina de Sociologia passou a integrar a parte diversificada do currículo |
2018 | 3.ª versão da BNCC | A disciplina de Sociologia foi incluída no itinerário formativo de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas passando a fazer parte opcional na parte complementar do Ensino Médio |
Fonte: Elaborado pelas autoras (2018).
Nessa ótica, o jogo da presença-ausência2 da disciplina no currículo vai além do que está prescrito nas orientações curriculares, uma vez que seus sentidos não podem ser apreendidos e essa disputa constante pela sua legitimação na escola tem influenciado sua significação e, consequentemente, a interpretação do que venha a ser o currículo. Isso nos reporta ao excerto de que
[...] o currículo não é coisa alguma. [...] cada uma das tradições curriculares é um discurso que se hegemonizou e que, nesse sentido, constituiu o objeto currículo, emprestando-lhe um sentido próprio. [...] [As tradições] são um ato de poder, na medida em que esse sentido passa a ser partilhado e aceito (LOPES; MACEDO, 2011, p. 40).
Pensar o currículo nessa perspectiva subjaz, conforme apontam Lopes e Macedo (2011), deslocar o questionamento sobre o que é Sociologia, conhecimento, estudante, disciplina escolar, entre outros, para a investigação de como os sentidos produzidos discursivamente se intersectam, criando articulações políticas, construindo determinada ideia de mundo, de fundamento, de centro, de significação para atender uma sociedade (COSTA, 2018). Assim, consideramos que este nome currículo não existe como “[...] objeto da realidade; é uma construção constante; decorre das substituições, traduções e iterações diferenciais produzidas pelas tradições curriculares que, também, são construções com pretensões de produzir efeito de verdade” (COSTA, 2018, p. 56).
O currículo de Sociologia imaginado como prática discursiva/poder, contingencial e indefinido, constrói a realidade curricular com pretensões e mecanismos de funcionamento, regulamentação e limitação. Buscando ser estrutura, o processo de significação, de estabilização de tudo o que dizemos que é currículo, não encontra seu fim (COSTA, 2018; LOPES, 2017).
Por esse prisma, o texto curricular, como qualquer texto político, passa por um processo de significação que leva ao fracasso, toda tentativa de prescrição curricular que objetiva a sedimentação, pois o que se encontra sedimentado resulta de decisões por uma determinada alternativa, “decorrente de um ato de poder, e não de uma suposta racionalidade obrigatória. E a escolha por certa opção será sempre a exclusão de outras tantas opções” LOPES, 2015, p. 450). Com esse enfoque, ponderamos com base em Lopes (2015) a defesa de um currículo sem fundamentos, sem um chão que consiga bloquear a significação dele, pois as decisões políticas para qualquer proposta curricular são definidas provisoriamente por meio de certas relações de poder que criam efeitos de realidade.
O currículo do Ensino Médio nas últimas décadas vem passando por alterações; são tentativas de modificações curriculares via reformas educacionais, por exemplo, a Medida Provisória n.º 476/2016, programas e projetos como o Programa Ensino Médio Inovador (PROEMI), Novo Ensino Médio, entre outros, que intentam inovar o currículo de modo a torná-lo mais atrativo para os estudantes, como se os problemas enfrentados por essa modalidade de ensino fossem apenas de ordem curricular. Essas propostas políticas tentam imprimir determinado sentido de formação ao Ensino Médio pautadas por um currículo constituído por conhecimentos adequados ao mundo contemporâneo, capazes de construir sujeitos3 para atuarem nesse contexto.
Focalizamos essas reformas como ações políticas que tentam criar totalidades significativas para direcionar aquilo que se entende por sociedade, aluno, escola, enfim. Essas reformas têm provocado muitos embates no campo do currículo e a disciplina de Sociologia tem sofrido muito com elas, seja pela tentativa de sufocar sua importância no currículo do Ensino Médio, procurando legitimar sua ausência do currículo como disciplina específica, seja por intentar subjugá-la à parte diversificada integrada à área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas com a alegação de que o currículo precisa ser mais atrativo, menos denso, como se o campo de estudo da disciplina Sociologia não fosse importante.
Acreditamos, conforme aponta a Teoria do Discurso, que o que há são disputas constantes, pois nenhuma normatividade discursiva oficial, as reformulações - e aqui nos referimos particularmente à BNCC -, pode fixar ou impedir as disputas por parte dos que defendem outro currículo de Sociologia.
3 DISPUTAS POLÍTICAS ENVOLVENDO A SOCIOLOGIA ESCOLAR E SUA RELAÇÃO COM AS DIVERSIDADES ÉTNICO-RACIAIS
A Sociologia é considerada, nesse trabalho, como Ciência e disciplina que tem base epistemológica, política e lutas históricas que a legitimam como potente para pensar as diversidades étnico-raciais no contexto escolar, uma vez que, antes de sua institucionalização como Ciência, ela já abordava, em seu escopo de pesquisa, estudos sobre as questões raciais4.
A disciplina Sociologia está em constante disputa desde seu aparecimento obrigatório no currículo, com a Reforma Rocha-Vaz (BRASIL, 1925). E diversos foram/são os discursos produzidos que disputam seu lugar na Educação Básica, pois ela, muitas vezes, é significada como disciplina que não era/é tão importante para a formação dos jovens e não corresponde aos padrões de sociedade que se tentava forjar, podendo ser substituída por outras matérias.
Os estudos de Oliveira (2011) realçam como o ensino de Sociologia foi apropriado por diferentes discursos, que a modificaram. A disciplina deixou de apresentar, em determinado período, um corpo formal de conhecimentos, sendo trocada por temáticas como orientação moral, étnica e cidadania, entre outras. Isso aconteceu no período ditatorial, quando houve a flexibilização e a profissionalização do currículo da Educação Básica e a substituição da disciplina de Filosofia e Sociologia por de Educação Moral e Cívica (EMC) e de Organização Social e Política do Brasil (OSPB). No contexto atual, esse discurso ressurge com outras alterações presentes na Reforma do Ensino Médio - Lei n.º 13.415/2017 - e no documento da 3.ª versão da BNCC, no qual a Sociologia deixa de existir como matéria específica no currículo.
As investigações empreendidas no desenvolvimento da pesquisa apontam para a potência da disciplina no tocante ao arcabouço teórico para abordar as relações raciais, desconstruindo saberes científicos com sentidos que tentam se apresentar como legitimados, hegemonizados. A Sociologia permite problematizar as posições de quem fala e de onde fala, como forma de discutir os interesses e evidenciar os antagonismos envolvidos na construção dos conhecimentos definidos e que buscam ser legitimados para imprimir um formato de sociedade racialmente democrática, o qual consideramos impossível, pois, entendendo o social como textualidade, há sempre diferentes modos de considerar o que é uma “[...] sociedade racialmente democrática [...]” (LACLAU, 2013; OLIVEIRA, 2011), o social é terreno do indecidível.
O Ensino Médio está sendo orientado para a criação de novas propostas de reformulações curriculares sugeridas pela BNCC como se fosse possível barrar a luta política e inserir um modelo fixo, definidor de educação. Nesse contexto, as demandas por significação estão se tornando mais intensas, uma vez que, no caso específico dessa pesquisa, as diversidades étnico-raciais e a Sociologia escolar serão sempre disputas, as alterações nos documentos prescritores do currículo jamais garantirão que sejam legitimadas como verdades e assumidas integralmente nas escolas; o antagonismo sempre se fará presente disputando demandas diferentes.
Os discursos produzidos pela Lei n.º 10.639/2003, regulamentada pelo Parecer 04/2004, permitem pensar como o ensino de Sociologia pode contribuir para problematizar os antagonismos existentes nos diversos modelos de sociedade que se tentou forjar no País desde o período colonial, como os vários estudos presentes nas obras de Freyre (2006), Fernandes (1978), Guimarães (2009), entre outros, que colaboram para desmarcar a visão romantizada de que no Brasil se vive uma democracia racial e seus impactos nos processos de socialização e escolarização.
A Sociologia tem um papel importante na defesa das diversidades étnico-raciais como disciplina de relevo para discutir sobre significantes importantes, como o conceito de raça e o racismo, o qual ainda é tão forte na sociedade brasileira. A defesa da Sociologia no currículo perpassa pelas questões raciais, pois existem disputas constantes pela disseminação do conhecimento social e histórico que tenta forjar determinados conhecimentos. Segundo Oliveira (2014, p. 93), há “[...] uma forte tentativa de epistemicídio, ou seja, o silêncio, o interdito e a negação de histórias, saberes e de existências humanas de milhões de indivíduos com tecnologias, culturas e organizações políticas e sociais oriundas do continente africano”. Assim, a função da disciplina Sociologia vai além da formação para a cidadania; ela possibilita a “[...] desconstrução que significa concretamente um profundo questionamento a uma interpretação histórica hegemônica que perpetrou uma rejeição ontológica do outro” (MOORE, 2007, p. 12).
Nesse entendimento, a disputa epistemológica, política e social deve ser constante nas tentativas de descolonização e de rupturas epistemológicas e culturais na educação brasileira (OLIVEIRA, 2012; 2014), uma vez que, segundo Gomes (2010), há um distanciamento epistemológico curricular entre o texto da Lei n.º 10.639/2003 e as práticas de ensino nas unidades escolares e, com as novas orientações curriculares (BNCC), tal distanciamento tende a aumentar. Portanto, o docente tem um papel basilar na interpretação dos textos políticos das normatizações curriculares voltado para a Sociologia e as diversidades étnico-raciais, o que denota que há disputas discursivas constantes nesse campo, uma vez que sempre haverá posições divergentes dos documentos prescritores; as formas de apreensão do social são contingentes e precárias; não há como barrar a significação e os sentidos são difundidos em variadas direções, em cada contexto político eles passam por mudanças; não há fixidez nas próprias posições daqueles que pensam, escrevem ou defendem esses documentos, e, sim, disputas contínuas.
E, no contexto de disputas pelo currículo da Educação Básica, muitas práticas articulatórias começaram a aglutinar demandas que defendiam a reformulação da educação no Brasil, a qual deveria sofrer mudanças na estrutura curricular para superar as defasagens nos resultados aferidos nas avaliações externas e nos elevados índices de evasão. A partir de então, muitas ações passaram a ser planejadas pelo Ministério da Educação (MEC), contando com a iniciativa de grupos empresariais, como a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) e organizações sem fins lucrativos, o Fórum Nacional dos Diretores/as de Faculdades de Educação (FORUMDIR), a União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (UNCME), a Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE), a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE), a Fundação Lemann, o Banco Itaú, o grupo Marinho, entre outros, constituindo demandas em defesa de uma BNCC; essa ação deu origem ao Movimento pela Base (MACEDO, 2014).
Embora a defesa por uma Base Nacional Comum (BNC) para orientar o currículo no País não seja assunto recente5, essa ideia foi ganhando força e aglutinando cada vez mais demandas vinculadas à centralização curricular, pautadas, sobretudo, pelas deliberações do Plano Nacional da Educação - PNE (2014-2024) que, em uma de suas metas, defendia a criação de uma BNCC.
Apesar da forte resistência que os PCN encontraram no âmbito acadêmico, especialmente no campo do currículo, não se pode dizer que o discurso educacional não interponha demandas por algum nível de centralização curricular. Um dos indicativos, mas não o único, de tais demandas foi a participação das comunidades de especialistas no ensino das diferentes áreas na produção dos parâmetros curriculares e de materiais de ensino, destacadamente, os parâmetros curriculares em ação. Outro é, sem dúvida, a própria literatura pedagógica, onde a defesa de que a função da escola é garantir o domínio do “conhecimento socialmente acumulado” ou do “conhecimento poderoso”, nas versões respectivamente da pedagogia histórico-crítica ou de Michael Young, tem sido uma constante (MACEDO, 2014, p. 1534, grifos da autora).
A defesa de modificações na educação brasileira, via tentativa de implementação de uma BNCC, passou a vigorar com força no País sob o discurso da necessidade de reformar o ensino para garantir uma educação de qualidade. Esse discurso, por sua vez, passou a ser adotado por diferentes governos nacionais e internacionais e pelo setor privado. Assim, a partir do ano de 2015, forças políticas no MEC, com o apoio do Movimento pela Base e sob a justificativa de elevar o índice de desempenho dos estudantes, reduzir a evasão escolar e assegurar a ascensão econômica do País regulando-o ao patamar dos países mais desenvolvidos, iniciou-se a elaboração do documento da BNCC para a Educação Básica, contando com um longo processo de consultas e discussões com representantes da categoria docente, especialistas e diversas organizações da sociedade civil e grupos empresariais.
Nesse contexto de disputas pela reformulação do Ensino Médio e reestruturação curricular por meio da Medida Provisória n.º 746/20166, diversas instituições, como a Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação (ANPEd), a Associação Brasileira de Pesquisa em Ensino de Ciências (ABRAPEC), a Associação Brasileira de Currículo (ABdC), entre outras, posicionaram-se contra a base na disputa política em defesa do Ensino Médio “[...] em movimentos críticos a essa política, ainda que eventuais pronunciamentos favoráveis à BNCC tenham sido expressos por pesquisadores em Educação, de forma isolada” (CUNHA; LOPES, 2017, p. 25).
Com as novas resoluções direcionadas para o currículo do Ensino Médio, via Medida Provisória convertida na Lei n.º 13.415/2017, um intenso debate foi desenhado no País com a participação de profissionais das diferentes áreas do conhecimento para a criação e publicação da primeira versão do documento da BNCC, na qual a disciplina de Sociologia estava presente, contando com uma equipe de especialistas que auxiliou na redação do texto da base e defenderam a demanda pela legitimação da Sociologia escolar como disciplina obrigatória e do respeito às diversidades étnico-raciais, às diferenças e às liberdades individuais, conforme o excerto:
O documento preliminar à Base Nacional Comum está organizado em quatro áreas de conhecimento: Linguagens, Matemática, Ciências Humanas e Ciências da Natureza. Tal organização visa superar a fragmentação na abordagem do conhecimento escolar pela integração contextualizada desses conhecimentos, respeitando-se as especificidades dos componentes curriculares que integram as diferentes áreas (BRASIL, 2015, p. 16).
O documento da base, na versão preliminar, apresentava conteúdo específico para a disciplina Sociologia em cada série do Ensino Médio, com conteúdos que tratam da diversidade étnico-racial, além de orientar que o currículo deveria inserir, em uma mesma área ou entre diferentes áreas, os chamados temas integradores: consumo e educação financeira, ética e direitos humanos e cidadania, sustentabilidade, tecnologias digitais e culturas africanas e indígenas.
O texto da primeira versão da base foi entregue ao Conselho Nacional de Educação (CNE) e submetido à consulta pública; sofreu muitas críticas e alterações, o que resultou em uma segunda versão, porém sem a parte direcionada ao Ensino Médio. O comitê gestor, coordenado pela representante do MEC, Maria Helena Guimarães, reorganizou nova equipe para a elaboração de uma nova versão para o documento da base com a parte voltada para a última etapa da Educação Básica.
Os processos articulatórios realizados pela demanda de defesa por uma base e Reforma do Ensino Médio não encontram plenitude ou estancamento, mas são processos contínuos e contingenciais, constituídos como momentos de sensação de fixação, provisórios. Nesse entendimento, a busca por modificações no currículo da Educação Básica e a tentativa de sua flexibilização como forma de defender um discurso pela qualidade da educação, suprimindo e relegando campos do conhecimento tão importantes para pensar a própria escola - a educação, a cidadania, a democracia, as diversidades étnico-raciais e tantos outros temas de relevância para a formação do indivíduo -, aglutinando os saberes em itinerários formativos, como propõe o documento final da base direcionado para o Ensino Médio, remetem ao entendimento de que no próprio movimento de afirmação na política sempre haverá adulteração, uma corrosão tenaz e permanente de toda a verdade contextualizada na política - nesse caso, que a base é a melhor proposta para assegurar a qualidade na educação e a legitimação dos componentes curriculares de linguagens e matemática como obrigatórios no currículo, por constituírem a garantia de melhor desempenho nos resultados aferidos nas avaliações externas (COSTA, 2018).
Para pensar o currículo de Sociologia e as diversidades étnico-raciais nesse contexto de tentativa de controle do Ensino Médio, é preciso ponderar que “[...] a política não tem um centro de poder, uma estrutura que a defina. Articulações discursivas possibilitam decisões políticas, tornando complexo o jogo (de linguagem) que hegemoniza uma dada orientação curricular” (LOPES, 2015, p. 454). É preciso considerar que, na significação dessa disputa política, há contingências que possibilitam essa significação, e não é possível uma totalidade que estabeleça um fundamento último que sutura e aniquila a disputa, pois o sistema é contingencial e precário e é seu exterior constitutivo que estabelecerá os limites para serem reconfigurados em relação a outros sistemas discursivos, na disputa pela fixação de sentidos (LOPES, 2015; LACLAU; MOUFFE, 2015). Nessa via, a significação ocorre no jogo político, “[...] que constitui a condição de possibilidade e impossibilidade de um sistema significativo - seus limites” (LACLAU, 2011, p. 71).
Nas articulações discursivas estabelecidas pelos representantes da base, sob a justificativa de melhorar a qualidade da educação no Ensino Médio, divulgaram, em 2018, a versão final do documento, a terceira Base Nacional Comum Curricular7, com alterações no currículo do Ensino Médio (em relação à versão preliminar apresentada em 2016), na Sociologia e nos conteúdos direcionados para o trato das diversidades étnico-raciais, entre outras. Essas modificações correspondem aos interesses das demandas vinculadas ao MEC, dos apoiadores do Movimento pela base e de grupos empresariais.
A organização do currículo em áreas integradas do conhecimento foi apontada como medida necessária para tornar o Ensino Médio mais atrativo e de qualidade. Nessa proposta curricular, a disciplina de Sociologia deixa de existir como componente curricular obrigatório, passando a integrar a área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. O quadro a seguir apresenta as alterações que a disciplina de Sociologia sofreu nas diferentes versões do documento da BNCC.
1.ª VERSÃO DA BNCC - CONTEÚDOS | 3.ª VERSÃO DA BNCC |
Componente curricular: Sociologia: 1.º ano do Ensino Médio: (conteúdos/conceitos) - Iniciação à perspectiva sociológica -Indivíduo e sociedade; -Fato social; -Estamentos; -Classes sociais; -Ações e relações sociais; -Igualdade/desigualdade; -Diversidade cultural (cor/raça, religião, região do país, entre outros). 2.º ano do Ensino Médio - Processo de formação de identidades políticas e culturais - Estratificação social e identidades culturais; - Sexo, sexualidade e gênero; - Formas de preconceito, discriminação, intolerância e estigma; - Violência no meio urbano e rural; - Diversas formas de violência (contra a mulher, racismo, homofobia, entre outras); - Ações coletivas; - Movimentos sociais; - Consumo e posições sociais. 3.º ano do Ensino Médio - Compreensão das formações políticas, da democracia e da cidadania e compreensão sociológica do trabalho - Poder; - Ideologia como instrumento de poder e construção social; - Cidadania: direitos e deveres da cidadania e suas formas de participação direta e indireta; - Sistemas políticos e formas de participação política e social; - Autoritarismo e democracia; - Divisão dos poderes e organização dos sistemas partidários e eleitoral brasileiro; - Trabalho, consumo e cidadania; - Divisão social do trabalho; - Globalização; - Indústria cultural. |
- Área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (Sociologia diluída nessa área, juntamente com História, Geografia e Filosofia). - Aprofundamento do processo de tomada de consciência do Eu, do Outro e do Nós. - Não há conteúdos, apenas categorias a partir, que “[...] pretende possibilitar o acesso a conceitos, dados e informações que permitam aos estudantes atribuir sentidos aos conhecimentos da área e utilizá-los intencionalmente para a compreensão, crítica e o enfrentamento ético dos desafios do dia a dia, de determinado grupo e de toda sociedade” (BRASIL, 2018, p. 550). - “[...] organizada de modo a tematizar e problematizar, no Ensino Médio, algumas categorias dessa área, fundamentais à formação dos estudantes: tempo e espaço; territórios e fronteira; indivíduo, natureza, sociedade, cultura e ética; e política e trabalho” (BRASIL, 2018, p. 549 - grifos nossos). DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL NO DOCUMENTO: - Deve ser trabalhada de forma transversal e integradora, contextualizada. “[...] cabe aos sistemas e redes de ensino, assim como às escolas, em suas respectivas esferas de autonomia e competência, incorporar aos currículos e às propostas pedagógicas a abordagem de temas contemporâneos que afetam a vida humana em escala local, regional e global, preferencialmente de forma transversal e integradora. Entre esses temas, destacam-se: direitos da criança e do adolescente (Lei n.º 8.069/1990), educação para o trânsito (Lei n.º 9.503/1997), educação ambiental (Lei n.º 9.795/1999, Parecer CNE/CP n.º 14/2012 e Resolução CNE/CP n.º 2/2012), educação alimentar e nutricional (Lei n.º 11.947/2009), processo de envelhecimento, respeito e valorização do idoso (Lei n.º 10.741/2003), educação em direitos humanos (Decreto n.º 7.037/2009, Parecer CNE/CP n.º 8/2012 e Resolução CNE/CP n.º 1/2012), educação das relações étnico-raciais e ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e indígena (Leis n.º 10.639/2003 e 11.645/2008, Parecer CNE/CP n.º 3/2004 e Resolução CNE/CP n.º 1/2004), bem como saúde, vida familiar e social, educação para o consumo, educação financeira e fiscal, trabalho, ciência e tecnologia e diversidade cultural (Parecer CNE/CEB n.º 11/2010 e Resolução CNE/CEB n.º 7/2010). Na BNCC, essas temáticas são contempladas em habilidades dos componentes curriculares, cabendo aos sistemas de ensino e escolas, de acordo com suas especificidades, tratá-las de forma contextualizada (BRASIL, 2018, p. 17-18 - grifos nossos). |
Fonte: Elaborado pelas autoras (2018).
Na primeira versão, a disciplina era obrigatória no currículo, inclusive com conteúdos direcionados a cada série do Ensino Médio; já na versão final, esses conteúdos desapareceram, assim como sua presença como disciplina específica no currículo. Isso nos remete ao pensamento de que a Sociologia está no currículo (diluída em uma área do conhecimento via itinerário formativo, cabendo à equipe pedagógica oferecê-la ou não), mas pode estar ausente da escola. Ao lançar um programa de implementação de uma base, pensamos, conforme aponta a teoria laclauniana, que há precariedade e provisoriedade, pois essa normatividade discursiva do governo não pode fixar ou barrar disputas curriculares; trata-se de uma disputa repleta de nuances, e não é possível dar um tom de controle.
Ademais, as disciplinas são “[...] campos de saber disputados, submetidos a conflitos, a uma inserção contextual capaz de produzir diferenças nas abordagens, linguagens, modos de ser e compreender o mundo. Em outros termos, são sempre particulares” (LOPES, 2018, p. 28), que estão lutando por sua legitimação e poder para tentar assumir o registro do universal, uma vez que “[...] os campos disciplinares não são divisões epistemológicas, mas articulações políticas encadeadas por subjetivações contingentes envolvidas com as disciplinas” (COSTA; LOPES, 2016, p. 1012), disputando, via negociações, concepções diversas na tentativa constante de manter certa estabilidade curricular.
4 CONSIDERAÇÕES CONTIGENCIAIS
Pesquisar a disciplina Sociologia no Ensino Médio a partir do aporte pós-fundacional proporcionou-nos um olhar para sua potência epistemológica e lutas políticas para o trato das questões referentes às diversidades étnico-raciais no currículo. Este estudo investigativo focalizou as disputas e as negociações da legitimação da Sociologia como disciplina escolar e sua significação no currículo proposto pela BNCC, potencializando importantes desconstruções de significantes como raça, educação, sociedade, currículo, cidadania, entre outros, os quais a disciplina nos instiga a pensar.
A pesquisa aponta que a Sociologia é tão importante para o processo de formação humana como as demais disciplinas legitimadas pela BNCC como obrigatórias - Língua Portuguesa e Matemática -, uma vez que o currículo proposto para o Ensino Médio centraliza pensar a leitura, a escrita e o cálculo perpassando apenas por esses dois componentes curriculares, porquanto esses campos disciplinares se direcionam ao modelo de avaliação e são atinentes aos resultados aferidos nas avaliações externas.
Portanto, ao relegar a Sociologia e as diversidades étnico-raciais à parte diversificada do currículo, a base proposta para o Ensino Médio desconsidera o pensamento democrático presente na Constituição Federal de 1988 e o texto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação n.º 9.394/1996, que alterou seus artigos 26-A e 79-B sugerindo às instituições de ensino promover a inserção do ensino da cultura afro-brasileira, africana e indígena em todo o âmbito curricular, uma vez que “[...] nesta está subentendida a hegemonia de uma única concepção de educação, de conhecimento e aprendizagem que atenta contra a legislação vigente e, mais do que isso, contra os direitos das nossas juventudes” (ABdC, 2018, p. 1). E tratar a Sociologia e as diversidades étnico-raciais dessa forma é negligenciar e desconsiderar o contexto de disputas, as lutas históricas por demandas que defendiam, de maneira contingente, o discurso por uma educação antirracista.
Ponderamos sobre a importância de pensar para além de tentativas de fixações de bases curriculares, uma vez que é possível assumir diferentes negociações de sentidos que produzem traduções constantes no texto curricular. Devemos estar atentos ao que está sendo desenvolvido nas escolas e promover um debate focalizando uma aposta mais plural e heterogênea, visto que não é possível referir-se a um sentido universal de currículo de qualidade ou mesmo se o estabelecimento de uma base vai garantir a tão disputada qualidade da educação, uma vez que esta perpassa por outros contextos, não está restrita, apenas, à padronização de currículos.
A pesquisa possibilita refletir que a diversidade étnico-racial e a Sociologia escolar são arenas sempre disputadas, pois qualquer normatividade política no campo educacional/curricular é constituída na precariedade, são sedimentações abertas a múltiplas possibilidades de leitura. Os documentos curriculares sofrem modificações constantes, não sendo possível dar um tom de controle para garantir-lhes qualquer plenitude.