ENTREVISTA REALIZADA EM AGOSTO DE 2020
Entrevistadores: Conte um pouco para nós como foi a sua trajetória até abraçar a causa do direito à Educação e, mais especificamente, até a defesa da Educação Integral. Aproveite e informe aos nossos leitores o que é Educação Integral.
Jaqueline Moll: Nasci no interior do Rio Grande do Sul e frequentei a Educação Infantil e o Ensino Fundamental, à época jardim de infância, pré-escola e primeiro grau, em uma escola confessional, o Centro Educacional São José, porque tenho duas tias religiosas. Estudamos, eu e meus irmãos, nessa Escola, na qual convivi com estudantes que, na época, eram bolsistas, não sei se era filantropia, mas eram meninos e meninas pobres, negros, poucos, numa escola de classe média, que recebia os ricos da cidade e nós, de classe média, que também estávamos lá. Meu pai, um profissional liberal, e minha mãe, ‘do lar’, como era comum falar.
Venho de uma família muito religiosa, muito católica e de muita caridade; uma família que sempre teve um olhar para os pobres. Minha mãe, meu pai, minha avó materna sempre nos fizeram ver que existia um mundo diferente do nosso. Não como tomada de consciência política, mas como compromisso cristão, entendendo que as pessoas têm de poder comer, têm de poder viver, têm de ter dignidade.
Há um momento importante de formação no âmbito dessas vivências familiares. Depois, no Ensino Médio, fui para uma escola pública, única escola de formação de professores da cidade, a Escola Estadual José Bonifácio, onde encontrei várias colegas provenientes das classes populares, várias porque eram todas meninas. Compunha o currículo da Escola Normal um conjunto de experiências de observações e estágios, e, nesse contexto, fiz minhas primeiras incursões pelas escolas públicas da periferia da cidade.
Encontrei um mundo muito diferente do meu. Crianças que viviam de um jeito muito diverso do que vivi minha infância em escolas cujas condições eram muito inferiores, inclusive às da escola pública de Ensino Médio que frequentei, que era no centro da cidade. Aconteceu, então, um encontro com essa humanidade desassistida, excluída. Inicialmente, eu a entendi como desassistida; depois, passei a entendê-la como excluída. Essa compreensão foi possibilitada sobretudo pela imersão no universo da teologia da libertação.
A relação da minha família com esse entorno católico me levou a movimentos pastorais que foram formadores do meu modo de estar no mundo, do meu compromisso com os outros. As pastorais sociais dos anos de 1980 foram uma escola e tanto para mim! Nesse contexto, imediatamente após terminar o Ensino Médio com formação profissional, comecei a trabalhar como professora ao mesmo tempo que ingressei no curso de Pedagogia. Era a primeira metade dos anos de 1980, e o país ainda vivia uma ditadura com muitas interdições e silenciamentos para a compreensão da realidade. Foram os professores - importantes professores! - que me ajudaram a ler o mundo, para além daquilo que era o aparente, tirando o véu de alienação que encobre tudo, desvelando os mecanismos e o modus operandi que mantém a estrutura social desumana e desigual. Os estudos marxistas constituem, nesse momento, a base para entender a forma como a sociedade está organizada, como as riquezas são produzidas, a distribuição das pessoas nas diferentes funções de acordo com a classe social, as teias dos processos para manutenção da alienação, as questões da ideologia, entre tantas outras.
Enfim, há um encontro entre a menina que vem de uma casa aberta aos pobres, sensível a eles, e a jovem que vai, por meio de seus professores, das pastorais, dos livros, da leitura e da imersão na realidade, entender a sociedade para além daquilo que as aparências mostram. Esse encontro é muito importante para o meu envolvimento visceral na luta por um mundo onde todos caibam. Creio que vem daí uma disposição para o enfrentamento dos processos naturalizados que atuam como monstros que assombram a educação brasileira: de repetência, evasão, exclusão, silenciamentos e tantos epistemicídios. Trabalhei como professora primária, universitária, formadora de professores, no ensino, na pesquisa e na extensão universitária, em diferentes Universidades, tendo sempre como eixo a garantia do direito à educação nos seus diferentes níveis e modalidades, tendo especial preocupação com a Educação de Jovens e Adultos. Com esses pressupostos, as responsabilidades assumidas no Ministério da Educação (MEC) em relação à agenda da Educação Integral foram marcadas pela compreensão da relação entre escola e democracia, entre direito e garantia à educação e desenvolvimento para todos.
Nessa perspectiva, pensar Educação Integral implica pensar no conjunto de oportunidades de formação humana que dialogam com o direito de bem viver. A escola não é uma bolha, e a vida escolar não pode ser reduzida a listas de conteúdos a serem ensinados e avaliados para selecionar os poucos “aproveitáveis” pelo sistema e os muitos que ficarão de fora.
A confusão que se faz é muito grande, fala-se de escola de tempo integral, quase como um nome fantasia... O tempo pode ser ampliado, a corda do tempo pode ser esticada, sem que se faça Educação Integral, focando-se no reforço de determinadas disciplinas escolares a serem avaliadas, em um círculo vicioso que retira da escola a perspectiva de sua função social e cidadã. Criou-se uma ilusão muito grande sobre as avaliações de larga escala, que acabam por condicionar e dirigir as experiências curriculares, como se todo o aparato de mais de 2 milhões de professores, quase 180 mil escolas públicas, cerca de 48 milhões de estudantes da Educação Básica, no Brasil, estivesse à disposição apenas para preparar os/as alunos/as para a realização das provas. É isto que o modus operandi deseja, que a escola siga sendo essa grande máquina de seleção social, tão denunciada por tantos estudiosos da educação brasileira.
Não há livro de Anísio Teixeira que não mencione essa seleção. As obras Educação não é privilégio, Educação é direito e Educação no Brasil apontam a forma piramidal que a educação brasileira naturalizou esses processos. Uma base que vai se alargando, de modo muito mais lento do que gostaríamos, pela entrada de mais gente, porém com um topo que segue estreito.
Entre tantas e tamanhas contradições, vivemos um tempo-limite. Diante dos enormes desafios para construirmos uma escola de formação humana integral, com tempos, espaços e oportunidades ampliadas, coloca-se a tensão com aqueles que gostariam de retroagir em relação ao direito à educação ainda não universalizada, aqueles que defendem o homeschooling. Sabemos que o espaço público proporcionado pela escola provê possibilidades de convivências diversas e diálogos, fundamentais para a vida em sociedade.
Além disso, a Educação Integral exige que disputemos o conceito de uma escola para um desenvolvimento pleno. Uma escola que persiga certo equilíbrio curricular... quanto mais música, organização de peças teatrais, oportunidades de diferentes práticas esportivas, laboratórios de ciências, mais condições para o desenvolvimento em todas as áreas do conhecimento, mais condições para a complexificação do pensamento e construção de autonomia moral e intelectual.
Pensar a escola de tempo integral como se ela pudesse ser uma escola de reforço é seguramente uma distorção da função formadora da escola e da sociedade democrática. Quando falamos de Educação Integral, apontamos para uma formação humana nas diferentes dimensões do sujeito, sempre como um horizonte utópico para o qual caminhamos. Não dá para dizer que o currículo possa abarcar tudo, pois as possibilidades humanas são infinitas, e o currículo é sempre em recorte, mas pode-se falar na busca constante pelo desenvolvimento das diferentes dimensões humanas, tendo a ampliação do tempo como uma condição para a sua realização. Sabemos que o tempo das 4/horas diárias é insuficiente. Portanto, a ampliação do tempo é uma condição, mas não pode ser o marcador da Educação Integral, assim como a ampliação dos espaços... deseja-se uma escola para além dos espaços das salas de aula, na perspectiva de salas ambiente, de oficinas, de laboratórios, espaços de arte, hortas, jardins e espaços para além dos muros escolares... na articulação com espaços significativos para a vida em sociedade, como os Parlamentos, os teatros, as praças, os parques, os observatórios...
Esse diálogo recoloca o próprio sentido da escola em relação ao projeto que se tem como sociedade. Para os que têm um projeto funcional de um espaço institucional que seleciona os que interessam para a manutenção da sociedade, sob um discurso de excelência e inovação na gestão, esse tipo de escola temos serve. O projeto que propomos é o de uma sociedade em que todos caibam, e, para isso, a escola tem de desenvolver outros diálogos e outras potencialidades. Foram esses os sentidos de/para Educação Integral com os quais provocamos milhares de educadores e educadoras deste país continental com o Programa Mais Educação e outras ações construídas.
Entrevistadores: No livro Caminhos da Educação Integral no Brasil: direitos a outros tempos e espaços educativos (MOLL, 2012), você afirma que o Programa Mais Educação (PME) se empenhou na
[...] mobilização de ‘forças vivas’ da educação brasileira e de recursos orçamentários, para construção de práticas pedagógicas [...] na perspectiva da educação integral, tendo como referência as Escola-Parque de Anísio Teixeira e os Centros Integrados de Educação Pública de Darcy Ribeiro (MOLL, 2012, p. 28).
Conte um pouco para os nossos leitores como nasce o PME e como ele ganha espaços nas políticas educacionais?
Jaqueline Moll: Inicialmente, é preciso afirmar algo que me parece óbvio: as políticas educacionais não são uma “bolha”, algo que possa ter brilho próprio independente das linhas políticas e econômicas gerais dos governos que as compõem. Elas conversam com essas linhas e com a perspectiva do projeto de país em curso. Vivemos tempos muito difíceis, de algum modo, repetindo como tragédia e como farsa, todos os descaminhos de momentos ruins da sociedade brasileira. Volto a Anísio Teixeira que afirmava que nossa sociedade apenas vive intervalos democráticos, não é uma sociedade democrática. Os motivos que levaram à Proclamação da República do Brasil estão muito longe de estabelecer a res-pública, a coisa pública, para o conjunto das pessoas do país. O povo, em grande parte da vida republicana, foi alijado de qualquer lugar no projeto de desenvolvimento nacional.
O Manifesto de 1959, “Mais uma vez convocados”, em referência ao Manifesto de 1932, dos “Pioneiros da Educação Nova”, constituído por posicionamentos plurais, refletindo a sociedade democrática que se desejava construir, colocava a tarefa da educação como “a tarefa” para a construção nacional. Nesse contexto de afirmação de direitos e do papel do Estado na construção da nação, vimos a construção da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), em 1961, e do primeiro Plano Nacional de Educação, em 1962, apesar do lugar estreito ocupado pela educação no famoso Plano de Metas de Juscelino Kubitschek.
A estagnação desses propósitos e dessas perspectivas marcou o país na longa noite vivida no contexto do regime militar inaugurado em 1964. Somente em 1985, o Brasil começou a caminhar, de novo, na perspectiva da construção de uma democracia. A memória desse tempo é recorrente para mim, pois me tornei professora ainda em um país ditatorial, conservador, com pouquíssimos espaços de ação e de expressão.
É importante retomar as experiências anteriores à ditadura marcadas no campo educacional pelas Escolas-Parque, Ginásios Vocacionais, Centros Brasileiros de Pesquisa Educacional (CBPE), Campanha Nacional de Alfabetização, entre outras iniciativas e realizações, que não retornaram - infelizmente - ao debate nacional, nem no período recente.
A partir do leito desse rio da história, o Programa Mais Educação (PME) flui nas águas que só a democracia é capaz de engendrar e busca nas memórias desses tempos e dessas ações democráticas a perspectiva das forças vivas que precisam mobilizar-se para construir outra agenda. O PME situa-se nos embates e nas propostas que povoaram o MEC em um período em que grandes sonhos democráticos foram retomados. É importante lembrar da lucidez e da perspectiva histórica do, então ministro, Fernando Haddad, com quem era possível conversar sobre Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro entre outros, e que possibilitou a construção das bases e das condições para que o PME pudesse ser construído, no âmbito da Diretoria de Educação Integral, Direitos Humanos e Cidadania da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do MEC.
Antes de assumir a coordenação desta Diretoria, trabalhei no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e na Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica, especialmente na construção e na articulação do Programa de Educação de Jovens e Adultos integrado à Educação Profissional (PROEJA), implementado nos Institutos Federais.
No ano de 2007, no contexto ministerial do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), constituiu-se o PME, cuja origem foi marcada por uma Portaria Interministerial assinada pelo MEC, pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, pelo Ministério da Cultura e dos Esportes. Depois, fomos construindo outras relações interministeriais: com o Ministério da Saúde por meio do “Saúde na Escola”; com o da Defesa, por intermédio das “Forças no Esporte”; com o do Meio Ambiente, com o debate das “Salas Verdes e das Hortas Escolares”; entre outros. Além de todo o diálogo no âmbito das Instituições relacionados ao MEC, como o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e o Conselho Nacional de Educação (CNE).
O PME foi pensado no contexto de construção de um projeto nacional que buscava qualificar a escola pública incluindo as classes populares e organizou-se na confluência de muitos e diferenciados interesses, no qual, por exemplo, a lógica de compras gigantescas e centralizadas foi tensionada pelo Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), que permitia planos de desenvolvimento específicos, construídos no âmbito do Projeto Político Pedagógico de cada escola. O PME foi completamente desenvolvido por meio de um desenho institucional que pressupunha tomada de decisões da comunidade escolar. Ocorreu em um momento de amadurecimento e avanço da sociedade em que se imaginava estar construindo solidez nas instituições democráticas. Foi construído em uma lógica que tensionou o currículo escolar monopolizado pelos conteúdos oriundos das exigências das avaliações, buscando trazer os sujeitos e a sua história para o coração do processo. Sob esses pressupostos, é que foi compreendida a Educação Integral, não como mais uma modalidade de educação como é a Educação de Jovens e Adultos ou a Educação Inclusiva.
Entendíamos que a Educação Integral precisava constituir-se como característica definidora e estrutural da escola pública, universal e laica, e de qualidade, em todos seus níveis e modalidades. Integral pela superação do tempo parcial de estudantes de professores/as, da visão encurtada de currículo e da exclusão de áreas importantes para o desenvolvimento humano. Nesse sentido, o PME vai sendo construído como uma ação indutora para a agenda política e pedagógica de uma Educação Integral em tempo ampliado, ganhando espaço pela qualidade social e pedagógica do que se produz no chão da escola e pelo grande diálogo nacional que é capaz de desencadear, envolvendo comunidades escolares, Secretarias de Educação e outras pastas, universidades, ministérios, Organizações não Governamentais (ONGs), espaços de cultura, de esporte, de ciências...
Pode-se afirmar que o PME inova no conteúdo do que propõe, pois provoca a comunidade escolar a desnaturalizar a escola de 4/horas diárias e os temas desconectados da vida e inova, também, em termos de método, porque, a partir de uma ação do Governo Federal, compromete e induz a ação de cada comunidade escolar, com escolhas, com um desenho próprio, sem ter aquela característica vertical que as políticas educacionais costumam ter.
O PME nunca foi um “aplique-se esta política”, sempre foi uma ação indutora. Gilberto Gil, então Ministro da Cultura, dizia que os Pontos de Cultura eram um do-in antropológico. Parafraseando-o, dizemos que o Mais Educação era um do-in pedagógico, porque avivava as forças das comunidades por meio de seus saberes, suas memórias, suas práticas e seus valores.
Nesse contexto, consolida-se como uma referência. Desenhando outra pedagogia com os sujeitos e com a força de seus territórios. Uma pedagogia que coloca em diálogo os saberes historicamente construídos e os saberes das comunidades. Uma pedagogia que mobiliza as comunidades escolares superando verticalidades. Esse é um processo bonito de narrar e importante de não ser esquecido.
Entrevistadores: Nas suas pesquisas, palestras e publicações, você tem proclamado a urgência de uma Educação Integral pautada na intersetorialidade e nas relações com a comunidade levando em conta os saberes comunitários. Em entrevista ao periódico argentino La Capital, em 2013, você afirma também que: “A escola tem que baixar seus muros para não ser um simulacro da vida real” (DIETRICH, 2013, n.p.). Quais foram as possibilidades sociais e educativas do PME e quais foram os seus limites?
Jaqueline Moll: Importante questão porque não há como trabalhar nessa perspectiva de saberes comunitários e intersetorialidades sem situá-la em um território de disputas. Disputas conceituais - no campo pedagógico - e disputas políticas que nos levam a uma questão que era muito recorrente nos anos 1980 e 1990 nos movimentos sociais de militância, cuja pergunta era “Qual é o projeto de sociedade, de sujeito, de homem e de mulher, que está posto nesta proposta educativa?”. É preciso recuperar isso.
Para construirmos uma escola para todos/as, em um país ainda tão desigual, precisamos de ações intersetoriais. A intersetorialidade é estratégica para que se possa articular territórios educativos, construindo interfaces entre as políticas de museus, de bibliotecas, de cinematecas, de leitura, de direitos humanos, de consciência ambiental, entre outras, para colocar em diálogo as políticas educacionais com as políticas de assistência social, de saúde, de geração de emprego e renda, de infraestrutura urbana, de combate à fome, na perspectiva de construir respostas estatais robustas para os problemas que a população enfrenta.
Nós chegamos a ter 1/3 dos estudantes da Educação Básica no Brasil que provinham de famílias que recebiam recursos do Programa Bolsa Família. Este é um país de desigualdades abissais e não é possível recortar a criança do seu contexto. É preciso que as políticas conversem entre si... uma criança que sai de casa e precisa pisar no esgoto para chegar à escola, uma criança que tem vergonha de onde mora e do que veste... são sentimentos que interferem muito na sua relação com a escola, no seu gosto por estar na escola. É preciso que se pavimentem os caminhos simbólicos e reais de acesso ao conhecimento e ao conjunto das experiências escolares, e isso só é possível articulando políticas governamentais a partir das demandas das comunidades e de seus territórios, também com outras possibilidades e outras janelas para ver e experimentar o mundo.
Nas políticas de cultura, por exemplo, construímos um largo, um vastíssimo repertório de experiências no campo do teatro, da música, da dança e, também, das mídias, da educomunicação, da fotografia, dos esportes. Esse diálogo foi alargando horizontes e construindo outras possibilidades curriculares. A potência em termos de possibilidades estava relacionada à semeadura acerca de outra agenda possível para o trabalho escolar, uma agenda não-tecnicista, uma agenda acolhedora, (re)significadora da experiência escolar, com recursos que chegaram à escola a partir da autonomia e, portanto, de escolhas para construção de seus projetos. Criamos uma memória recente de outros fazeres escolares e percorremos caminhos de uma ação estruturante para as políticas educacionais, sobretudo pela prospecção da meta 6 do Plano Nacional de Educação com suas várias estratégias, como resultado direto do impacto do PME na cotidianidade das escolas.
E os limites? Claro que muitos. O primeiro deles, do ponto de vista material/físico, foi a ausência de espaço nas escolas. As escolas nunca foram pensadas para serem escolas de dia inteiro e para todos os seus estudantes. Tivemos muitas experiências em muitos lugares do país em espaços comunitários, em praças, em parques, em clubes, que são insuficientes, mas cujo uso permitiu a ampliação do tempo formativo entrelaçado ao trabalho escolar.
Outros sérios limites referiam-se à questão dos profissionais da Educação Básica que dificilmente tem dedicação exclusiva a uma instituição, assim como a naturalização da escola de turnos e a prática cotidiana das exclusões da escola travestidas de “evasões”. Também foram limitadores a organização curricular rígida, que demarcava o turno com conteúdos escolares, e o contraturno, com atividades diversas em lugares com pouca ou nenhuma interface com a escola. A própria descontinuidade das políticas educacionais que determina a descontinuidade dos projetos das escolas e acaba descomprometendo gestores/as, professores/as e a própria comunidade é um sério limitador. Além disso, se o projeto era de ocupação do tempo das crianças das classes populares para tirá-las da rua e higienizar as cidades usando a escola como espaço de contenção, ele gerou limites que esvaziaram qualquer possibilidade de avanço democrático.
Como nosso esforço era na direção contrária dessa perspectiva, trabalhamos alargando esses horizontes e constituindo possibilidades a partir do que se pode chamar de diálogo social, na horizontalização da relação entre o MEC, secretarias estaduais e municipais e escolas com suas comunidades. Isso rendeu frutos tanto em experiências implementadas, até hoje, em inúmeras redes públicas, quanto em diferentes estudos, traduzidos em dissertações, teses, cadernos pedagógicos e um amplo (e relativamente novo) repertório educativo, que tem provocado o pensamento acerca de outras pedagogias voltadas à construção de um país soberano, que demanda uma escola que produz pensamento, construção de hipóteses, diálogos, afirmação de identidades, autonomia e convivialidades.
Entrevistadores: A ampliação da jornada diária no processo de escolarização, desde Anísio Teixeira, tem sido pauta intermitente nos debates sobre a Educação brasileira. Essa ampliação está prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 e, mais recentemente, no Plano Nacional de Educação 2014-2024. Que balanço você faz dessa pauta? Como a situa no processo de democratização da sociedade e no enfrentamento das desigualdades sociais?
Jaqueline Moll: É importante o registro do impacto da agenda do PME no Plano Nacional da Educação no contexto de um governo com um projeto com claro objetivo de enfrentamento das desigualdades sociais e educacionais. Embora possamos encontrar contradições na operacionalização dos processos, o projeto era claro. Essa moldura permitiu pautar temas e trazer à luz, na agenda educacional, problemas pouco contemplados, até então, nas políticas públicas. O debate da ampliação da jornada diária na escola e da pauta de uma educação humanizada vai e volta na educação brasileira. A palavra “intermitência” é muito boa porque dialoga com a ideia dos intervalos democráticos dos quais nos falava Anísio Teixeira. O PME talvez tenha sido o esforço democrático mais duradouro, do ponto de vista de ações do Governo Federal. Sua vigência foi de 2007 a 2016. Foi o esforço mais longevo na perspectiva de expandir o tempo diário na escola, de induzir a ampliação de jornada como consta no art. 34 da LDBEN. A meta 6 do PNE só foi possível porque o PME pavimentou esse caminho, pautando um tema que é central para o enfrentamento das desigualdades sociais, que se configuram também como desigualdades educacionais.
Vejam que esse tempo de vigência do PME não é nada do ponto de vista da consolidação de uma política pública. Ele foi descaracterizado em 2016 pelo Programa Novo Mais Educação (PNME), que era um programa de reforço escolar com ênfase no desempenho que ocorria no contraturno e atuava nos “resultados”. Outra configuração governamental, outro contexto, outros propósitos alicerçados sobre a ruptura democrática de 2016.
As crianças das classes populares cujos pais, avós, bisavós não viveram a experiência escolar ou a materialização do direito a um processo continuado de educação, desde a infância até a juventude, chegam à escola em uma situação de muita desvantagem em relação àquelas cujo grupo familiar teve acesso à escola. A qualidade do processo educativo, em que pese a Constituição de 1988 ter consagrado a igualdade das condições de acesso e permanência na escola como princípio, segue sendo - via de regra - uma determinação de classe social no Brasil, agravada pelas questões raciais, cujo debate hoje ganha importante expressão. Soma-se ao não acesso, a baixa qualidade das escolas e dos processos pedagógicos a que essa parte expressiva da população tem acesso.
O enfrentamento de todo esse contexto de exclusão social e educacional só é possível com políticas de distribuição de renda, moradia, saneamento e geração de emprego, entre outras, associadas e territorializadas, e de ações intersetoriais no campo das políticas educacionais, culturais, de assistência social e de saúde. O PME abriu caminho para o diálogo com diferentes demandas dos territórios, sobretudo nos contextos de pobreza e de extrema pobreza. Uma ação exemplar foi o da relação estabelecida entre PME e Programa Bolsa Família (PBF). A condicionalidade da frequência à escola para continuidade no PBF determinava a permanência das crianças e dos jovens, produzindo-se um circuito virtuoso que associava presença e qualidade das aprendizagens e vivências no campo das artes, dos esportes, das mídias, dos direitos humanos e tantos outros.
Aprendemos a intersetorialidade como determinante para superação das situações de pobreza e de pobreza extrema. Construímos interfaces com Ministérios que, hoje, nem existem mais, assim como com programas relevantes de desenvolvimento social e combate à fome, cultura, esportes, discriminação racial, que caminhavam em diálogo com a amplitude conceitual, pedagógica e política do Programa Mais Educação.
O debate da Educação Integral é eminentemente político, diz da responsabilidade, do esforço, da intenção do país, dos governantes, nos diferentes tempos, para avançar e construir a possibilidade de elevação cultural, educacional e política do povo brasileiro. Não há como enfrentar os ciclos intergeracionais de pobreza e miséria sem enfrentar as desigualdades educacionais, e a ampliação e o redimensionamento da jornada escolar são condições para esses processos.
Somos um país de indecisão congênita em relação à educação como um direito a ser universalizado. Temos mantido a exclusão das oportunidades educacionais como base para a manutenção das desigualdades sociais. O acesso dos pobres à escola e à educação de qualidade tem sido tímido e perpassado por uma organização contrária à perspectiva da Educação Integral. Com isso, quero dizer que a agenda de uma Educação Integral é a própria agenda da democratização efetiva da escolarização com qualidade para todos e todas.
Entrevistadores: Os “sonhos” do Programa Mais Educação permanecem, são parte dos sonhos de muitos de nós, educadores e democratas deste país. Sonhamos com os pés no chão para lutar por nossas utopias. Os nossos pés no chão nos fazem enxergar um Brasil com milhares de mortos em um contexto de pandemia marcado por atos fascistas de extermínio do povo negro, de negligência com os mais carentes, de perseguição aos que optam pela diversidade de gênero, etc. Como viver os “sonhos” do Programa Mais Educação nesse contexto? Como viver o período da pós-pandemia? Com os olhos voltados para o presente e o futuro, quais seriam os desafios para a educação escolar brasileira?
Jaqueline Moll: Nesse dia em que respondo a estas qualificadas perguntas dos queridos amigos da PUC-SP, o país perde Pedro Casaldáliga, que é um dos símbolos da luta por tornar este país possível para todos, é um símbolo do que vivemos com tanta força em gestões populares, como em Porto Alegre, durante 16 anos, sob a luz dos Fóruns Sociais Mundiais e sob a ideia de um mundo onde todos caibam.
Mencionar Pedro Casaldáliga é falar de paz como justiça social, de esperança e de sonhos coletivos. Tudo isso me remete ao PME, porque, de alguma forma, esse Programa atualizou sonhos e materializou possibilidades de uma escola que dialogue com o projeto de um país justo, de um país para todos, de uma sociedade que supere a segregação - justamente as premissas pelas quais ele foi encerrado pelo MEC. Seu desenho largo, seus horizontes amplos, suas proposições em termos de “macrocampos” rompem com a organização cartesiana das disciplinas escolares e permitem uma reorganização curricular que dialoga tanto com a exigência contemporânea de uma ciência que saia de suas caixinhas, quanto com o entorno da escola, com a realidade das crianças e dos jovens e de seus territórios de vida. O desenho inovador dos macrocampos do PME trouxe para o centro do currículo escolar, em diálogo, áreas de conhecimento, temas, práticas e questões importantes para a construção de uma sociedade democrática, tais como as identidades raciais, a perspectiva de gênero, os direitos humanos e tantos outros, sempre pensando na construção das possibilidades de vivermos juntos.
Então, nesse dia em que sofremos e sentimos a despedida de Pedro Casaldáliga, pensar o PME reveste-se de sentidos mais profundos porque transformados em ação em milhares de escolas, com milhões de meninos e meninas, ajudou a romper a perspectiva de uma escola naturalizadora da seleção social, permitindo a cada um/a a escrita de sua história, biografando-se, existenciando-se, historicizando-se, no sentido trazido por Ernani Maria Fiori no prefácio da obra Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire.
Embora o Mais Educação não exista mais como proposição federal, suas aprendizagens e suas utopias vivem nas experiências de escolas municipais e estaduais deste país continental. É muito difícil andarmos pelo Brasil e conversarmos com gestores e professores da Educação Básica, desse período recente, que não falem, que não conheçam, que não façam referência ao PME. Ele revolve as terras da memória buscando as referências dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPS) de Darcy, das Escolas-Parque de Anísio, das ideias dos Manifestos de 1932 e 1959, dos Ginásios Vocacionais de Maria Nilde Mascelani, da experiência dos Círculos de Cultura de Paulo Freire. O Programa Mais Educação dialoga densamente com as ideias de Paulo Freire porque trabalha com a perspectiva de que os saberes do mundo, da vida, vão animar, vão construir sentidos para os saberes escolares, pois a leitura da palavra é sempre precedida e atravessada pela leitura de mundo.
Outro registro histórico importante é que estamos vivendo um dia difícil, chegando a cem mil mortes, cem mil vidas perdidas pela pandemia causada pela Covid-19 - seguramente, muitos familiares de estudantes da Educação Básica, muitos avós, mães e pais, caciques e anciãos de diferentes tribos indígenas e lideranças quilombolas. O país perde e, muito especialmente, as novas gerações perdem muito das memórias, perdem as “bibliotecas” simbólicas das suas famílias, as suas recordações, além dos tempos das convivências, abruptamente interrompidos. Como é que se pode pensar sobre isso e viver esses sonhos nesse contexto de pandemia e pandemônio?
Além da obrigação do Estado e de toda a sociedade com a manutenção da vida nos imensos bolsões de pobreza e miséria que ainda temos, podemos e devemos, no campo do trabalho escolar, alimentar vínculos e construir redes usando as possibilidades virtuais e, eventualmente, físicas para que se possa constituir no âmbito de cada escola, em estreita relação com seu território, uma inteligência coletiva que permita pensar modos de viver e enfrentar a estranheza dos dias atuais. Claro que as condições são muito adversas e diferenciadas em um país imenso e desigual como o nosso, mas temos de construir redes e fazer valer os progressivos graus de autonomia pedagógica, administrativa e financeira das escolas presentes na LDBEN vigente. Temos, erraticamente, seguido em uma toada que, de quatro em quatro anos, impõe rupturas e mudanças na medida mesma em que mudam gestores/as, abortando projetos e processos significativos que nos permitiriam caminhar para outras configurações escolares.
Então, o que podemos fazer agora para animar os sonhos? Construir redes por meio dos diferentes meios e plataformas digitais e encarar a realidade vergonhosa que a pandemia desnudou, colocando as vísceras da sociedade brasileira à mostra. Os mesmos estudantes que aos milhões não têm acesso aos computadores, às redes de internet, são também os que não têm as condições básicas para viver com dignidade. São os mesmos que, por seu berço e sobrenome, classe e raça, sofrem o impedimento a seu pleno desenvolvimento, apesar da garantia constitucional que isso representa.
Temos de sair dessa pandemia pensando sobre como a próxima nos encontrará em termos de organização societária, em 5, 10 ou 50 anos. É um imperativo pensar como o país caminha, apesar do contexto político e sanitário adverso, para que a consciência do direito à vida digna seja construída por todas e para todas as pessoas que vivem aqui, buscando superar as notícias falsas, os falsos profetas e a grande mídia que se sujeita ao grande capital nacional e internacional.
O PME realimenta e traz de volta os sonhos sonhados por Anísio, Darcy, Florestan, Freire e tantos/as outros/as, e nos desafia a conhecer as memórias das tentativas feitas para construir a escola pública, republicana, universal, integral, gratuita e laica, nos intervalos democráticos que já vivemos.
Neste ano de 2020, completamos 10 anos do Decreto Presidencial, assinado pelo então Presidente Lula, que corroborava a perspectiva de uma escola articulada ao seu território, a sua comunidade, aos saberes locais e comprometida com a construção da cidadania. Temos de fazer um esforço para lembrar de tudo que fomos capazes de fazer, ampliando espaços de diálogo, construindo políticas intersetoriais e horizontais, avaliando, não para construir rankings, mas para poder ir mais longe, para rever práticas. Como dizia Paulo Freire, “só existe futuro se o presente for transformado” e nós temos o dever de não esquecer do que fizemos, apesar das condições do presente, apesar do fascismo que nos ronda. Umberto Eco nos recorda que o fascismo é exatamente a ausência da reflexão, é a ação pela ação, também por isso temos de continuar produzindo conhecimento, refletindo, revendo o que vivemos e sonhando. Contra as ideias da força, a força das ideias, dizia o grande Florestan Fernandes.
O Mais Educação ajudou a construir muitas ideias e a constituir um movimento que provocou as inteligências dos/as professores/as da Educação Básica, saindo, inclusive, desse modelo vertical da universidade para a Educação Básica. Entre suas grandes e profundas lições, a de que estudantes e professores/as da Educação Básica precisam ter voz, precisam construir nas suas escolas projetos coletivos que façam sentido, em curto, médio e longo prazo, porque essa tempestade vai passar e, no horizonte, teremos esboçado o projeto de um país para todos/as, no qual a escola pública seja fundamenta e seja uma possibilidade.