A presente entrevista é fruto da convivência e dos estudos realizados no laboratório do grupo de pesquisas Inovações Educativas, coordenado pelo professor Jurjo Torres Santomé, na Universidade da Coruña, na Espanha. A entrevista é decorrente do estágio doutoral1 (período sanduíche) realizado com a supervisão do referido professor. Tal estágio visava aprofundar os estudos curriculares relacionados à inclusão. Foram seis meses de aprendizado e trocas que culminaram, em março de 2020, na realização da entrevista, que fechou um ciclo de grande amadurecimento e aprofundamento no campo dos estudos curriculares, tendo como ênfase a escola inclusiva e democrática frente à diversidade.
Jurjo Torres Santomé é um importante pensador no campo educacional e referência nos estudos curriculares. Professor, formado em Pedagogia e Psicologia, com mestrado e doutorado em educação, atualmente, é professor catedrático da Universidade da Coruña, onde coordena o grupo de pesquisa Inovações Educativas. Dentre algumas de suas principais obras publicadas, estão: El curriculum oculto (1991), Globalización e interdisciplinariedad: El curriculum integrado (1994), Educación en tiempos de neoliberalismo (2001), La desmotivación del profesorado (2006), La justicia curricular: El caballo de Troya de la cultura escolar (2010), Políticas educativas y construcción de personalidades neoliberales y neocolonialistas (2017), além de diversos textos, palestras e entrevistas em comunidades acadêmicas de diferentes países.
O relato ofertado por Torres Santomé é de forte contribuição para a construção de currículos inclusivos, que se relacionam à organização escolar não excludente e não classificatória; além disso, facilita a compreensão do termo “Justiça Curricular”, aqui compreendido como um conceito que caminha de mãos dadas com a organização escolar democrática na defesa de práticas pedagógicas inclusivas, participativas, dignas, éticas e dialógicas. Ademais, a justiça curricular respeita as singularidades dos corpos, dos sujeitos, das culturas, dos grupos sociais, ao mesmo tempo em que dá voz, visibilidade e representatividade a todos os integrantes das comunidades escolares com suas distintas realidades e regionalidades, aspectos constituintes de todos nós, seres humanos complexos, sócio-históricos, únicos em suas características, desejos, anseios, medos e experiências, nas mais diversas dimensões, contextos e cotidianos da vida, em um processo e período de tempo histórico e contínuo.
ENTREVISTA COM JURJO TORRES SANTOMÉ
Entrevistadores: Professor, quando o senhor iniciou os seus estudos curriculares e a sua trajetória no Ensino Superior?
Jurjo Torres Santomé: Minha trajetória acadêmica tem múltiplas influências. Quando eu concluí os estudos de Ensino Médio e ingressei na universidade, vivíamos os últimos anos da ditadura franquista2. A minha família me pressionava, queria que eu cursasse o Ensino Superior, porém me chamava mais atenção o mundo das artes. Diante desse dilema, optei pelas áreas de Educação e Psicologia. Quando iniciei os estudos, o meu objetivo era ter um diploma e poder trabalhar, mas, naquele momento, comecei a me envolver com os movimentos sociais, por meio de grupos e partidos políticos clandestinos, em uma tentativa de lutar pela democracia. Compreendi que também precisávamos de outro tipo de educação, um projeto educativo antifascista para reeducar as nossas cosmovisões fascistas. O trabalho político nos grupos com os quais eu militava me permitiu ver que as vidas pessoais nunca devem ser entendidas de forma fragmentada; todos os âmbitos: público, privado e profissional estão em inter-relação, tenhamos ou não consciência disso. Não é coerente ser democrata, anticlassista, antirracista, antissexista em horário de trabalho e não o ser nos momentos de lazer, no ambiente familiar, na vida privada.
Naquela época, filiei-me a um partido político clandestino e comecei a trabalhar pela mudança, pela democracia e por uma sociedade socialista mais democrática, inclusiva e justa. Por um lado, eu estava começando a minha carreira, estudando o que me mandavam estudar, como era a universidade antigamente, muito conservadora e fascista. Por outro lado, nos partidos e lutas políticas, começavam a circular bibliografias, textos, discursos e debates que o franquismo proibia, mas que foram aflorando clandestinamente na sociedade. Com isso, pouco a pouco, fui percebendo a necessidade da luta política, também, no campo educativo. Tal engajamento não era necessário apenas para fazer com que as classes populares chegassem à universidade, o que até então não era uma realidade. À medida que a minha carreira foi se estruturando, fui percebendo que essas mesmas lutas políticas estavam nos conteúdos de cada disciplina, falando de uma realidade inexistente, pois as vivências eram outras. Eu me formei e finalizei a licenciatura em Pedagogia no mesmo ano em que morreu o ditador Franco, em 1975, e esse evento promoveu uma forte mudança. Nessa mesma época, comecei a trabalhar em uma rádio, com programas sobre a cultura galega, aqui na Galiza, reivindicando uma cultura galega autêntica, lutando por um idioma galego, que é também uma variante do galego-português. Nós queríamos que o idioma fosse legalizado e que se inserisse na vida cotidiana e no ambiente de trabalho, e não que se tornasse uma espécie de língua proibida, só permitida em ambientes onde o Estado não vigiava.
Com o passar dos anos, tive a possibilidade de trabalhar como professor na Universidade de Salamanca, concorrendo a um posto de professor adjunto (assistente). Em 1977, ingressei na instituição supracitada, e, a partir disso, fui me aprofundando no tema Currículo, inicialmente, por meio da sociologia da educação, posteriormente, pesquisando diretamente o assunto.
Visto que era recém-chegado à instituição, eu era o último a escolher tudo. Então, a cada ano, eu me deparava com matérias novas e, em muito pouco tempo, fui me dando conta de que havia algumas que eu gostava mais. Percebi que essa docência poderia ser um grande enfrentamento, pois eu tinha que lidar, também, com a própria universidade, com o estamento universitário, que era conservador. Havia muitos companheiros, professores e professoras, que já faziam parte do quadro fixo (permanentes no cargo), funcionários catedráticos da universidade que não gostavam dos estudos nos quais eu trabalhava e investigava.
Inicialmente, notei que a bibliografia oficial, os livros que líamos, eram muito ruins. Além da abordagem fascista, eram controlados por uma espécie de metafísica ou ideologia ultraconservadora e fundamentalista religiosa.
Na ditadura espanhola, os dois grandes poderes eram a Falange (o único partido político legalizado, pertencente aos fascistas e, local de militância do próprio Franco), uma corrente similar ao nazismo de Hitler e ao fascismo de Mussolini, e, por outro lado, vigiando tudo isso e apoiando e legitimando esse racismo, a igreja católica ultraconservadora.
Nessa época, a igreja católica, ultraconservadora, estava muito distante ideologicamente da Teologia da Libertação, que só conheceríamos anos mais tarde, na década de 1970, na América Latina; corrente essa que foi proibida oficialmente na Espanha.
A igreja católica apostólica e romana, que desde o primeiro momento apoiou e colaborou com o golpe militar de 18 de julho de 1936, movimento este que tirou do poder, pelas armas, a República Democrática Espanhola, recebeu, entre outros prêmios, o encargo de governar e vigiar os sistemas educativos e o mundo da cultura. Todos os conteúdos escolares, publicações e atos culturais precisavam da aprovação da Falange e da Igreja. Dessa forma, seriam incutidos no povo espanhol uma cultura e um senso comum fascista, ultracatólico e militarista.
Contudo, clandestinamente, chegavam textos proibidos, como, por exemplo, os livros e revistas marxistas, as obras dos grandes pensadores, os sociólogos mais progressistas, marxistas, neomarxistas etc. Nesse momento, passei a ser consciente da situação da Galiza, meu povo, e com os discursos da esquerda que a apontavam como nação negada dentro do Estado Espanhol. Entrei como militante na organização nacionalista e comunista galega, União do Povo Galego (UPG).
Na formação política que recebíamos como militantes, no interior dos partidos políticos, nós trabalhávamos muito com os livros de Marx, Lenin, Rosa Luxemburgo, Frantz Fanon, entre outros, mas tais referências não estavam presentes no discurso acadêmico.
Nós líamos, aos 19, 20 anos, os livros de Frantz Fanon, como Pele negra, máscaras brancas (2008)3 e Os condenados da terra (1968)4, e a obra de Albert Memmi, Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador (2007)5. Nós estávamos em contato com toda essa bibliografia sobre o colonialismo porque queríamos afirmar que a Galiza era uma colônia interna, não era como as colônias localizadas fora da Espanha.
A Galiza se localizava no mesmo território do Estado espanhol, mas não era a beneficiária dos excedentes econômicos e da riqueza gerada pelas empresas situadas na cidade, estes eram investidos majoritariamente em Madrid. Por exemplo, a Galiza produzia energia elétrica para todo o país, além de exportar para a França, acarretando a destruição dos nossos rios, vales e recursos agrícolas, mas os benefícios econômicos não eram investidos na nossa comunidade. A Galiza era explorada e os respectivos produtos e recursos eram levados para outras cidades fora da Galiza e outros países. Nós, os habitantes locais, não usufruíamos do que era produzido em nossa terra, o mesmo ocorria nas colônias externas. E o nosso povo ainda precisava emigrar, pois aqui não havia onde trabalhar.
Nós víamos que havia essa situação de colonialismo presente, aqui na Europa, em muitos países. O que se percebia era que, no continente europeu, quando se construiu o Estado Nacional, determinados Estados-nação se ergueram e, junto com eles, os fenômenos de negação de determinadas identidades e povos dentro do mesmo estado. Diante desse cenário, por meio da minha formação militante, pouco a pouco, busquei ser coerente com o discurso pedagógico e com os modelos educativos vigentes, entendendo que seria necessário explorar um outro tipo de educação, de pedagogia.
Nesse momento, na Espanha, a palavra currículo quase não era empregada, optava-se pelo vocábulo didática. O mundo da didática estava dominado pelo conservadorismo, por filosofias e modelos educativos caducos e autoritários, e o conceito de educação democrática ainda não estava estabelecido, entretanto, pouco a pouco, fomos descobrindo outros livros que falavam sobre currículo. Nós, militantes dos partidos clandestinos, começamos a ler e, inicialmente, surgiu um questionamento: currículo não viria a ser o mesmo que didática? À medida que íamos nos aprofundando nesse assunto, - e por ter pessoal apreço pelas etimologias -, noto que o significado original de currículo é o mesmo que o de didática, vindo o primeiro vocábulo do latim, currere, e o termo didática, do grego didaktikós, ambos representando caminhar em uma direção, planejar-se para caminhar em uma determinada direção.
O currículo do qual falamos até esse momento está muito mais influenciado pelo pensamento de esquerda, pelo marxismo e neomarxismo, pela psicologia cognitiva de Jean Piaget e Jerome Bruner (que faziam frente ao condutismo até então dominante) e pelas políticas educativas que o trabalho britânico mais progressista vinha desenvolvendo. E começou a chegar todo o discurso do marxismo e neomarxismo, que passaram a se fazer presente.
Alguns anos mais tarde, durante a década dos 70 e início dos anos 1980, passei a ter contato com a obra de autores silenciados e desconhecidos pela universidade espanhola: Paulo Freire, Célestin Freinet, Paul Willis, Basil Bernstein, Lawrence Stenhouse, John Elliott, Jerome Bruner etc. Há várias obras que me marcaram muito, que influenciaram muito o meu modo de pensar, entre elas: o livro compilado por Michael F. Young, Knowledge and control: new directions in the sociology of education (1971) e os livros de Michael Apple, em especial a obra Ideologia e currículo (1979). Tudo isto, mostrou-me um mundo novo, e a partir daí, fui aprofundando os estudos sobre o neomarxismo aplicado à educação e ao próprio currículo, passando a focar mais nos conteúdos sobre o assunto.
Algo que me chamou rapidamente a atenção foi o enorme preconceito ideológico que a escola defendia como cultura; temática que passou a ocupar a maior parte do meu tempo de pesquisa e que, anos mais tarde, sistematizei. Pouco a pouco, fui descobrindo que a justiça social e a justiça curricular eram coisas distintas.
No tema da justiça social incidiam todos os discursos que faziam com que as classes e coletivos sociais marginalizados e silenciados pudessem e tivessem obrigatoriamente que aceder à escolarização. O que estávamos vendo era que os pobres, as classes mais populares e as minorias, como a cigana, puderam entrar e ir ascendendo por meio do sistema educativo. Com as lutas sociais de finais dos anos 1970 e 1980, baseados nas análises sobre a classe social e as desigualdades, fomos conseguindo tornar o ensino obrigatório na prática e não somente na legislação, pois nas pesquisas sobre o que acontecia na realidade, constatávamos que quando as minorias colocavam o pé na escola, a porta da saída abria imediatamente; e pouco a pouco, todos iam abandonando os estudos. Esse panorama foi o que me levou a estudar, a descobrir e a dissertar sobre o que era a teoria da reprodução, primeiro em Bourdieu, depois em Bowles e Gintis, que era: o sistema educativo servindo para reproduzir a estrutura classista, sexista e racista da sociedade do momento. A prova era que entravam as classes populares e, em função do nível delas ou da pouca riqueza que poderiam ter, seguiam abandonando a escolaridade depois do segundo, terceiro e quarto anos, pois, naquelas condições, a maioria nunca seria capaz de concluir com sucesso a escolaridade obrigatória e, menos ainda, progredir até a universidade e ter êxito.
Como era possível que todas as pessoas que fracassavam pertenciam às classes populares? As classes mais altas tinham êxito acadêmico com muito mais facilidade. Com o passar do tempo, optei por centrar mais os meus estudos nas análises dos conteúdos curriculares e notei que os conteúdos culturais trabalhados nas escolas não têm nada a ver com o mundo dessas pessoas, não falam de suas realidades e, portanto, temos dificuldades para motivar esses estudantes a se aprofundarem nesse conhecimento e mostrar, nisso, alguma serventia.
A educação se apresenta, para mim, por esse contexto de final da ditadura e início da democracia, transformando-se em um compromisso vital. Esse compromisso político não vai se dirigir só a apostas e à preocupação com assuntos públicos. É um compromisso político, no campo educativo, nas praças educativas, nas relações com o alunado, é o meu mundo cotidiano dentro da escola.
Entrevistadores: Professor, diante de tantas adjetivações e pluralidades referentes ao termo currículo, com diferentes conceitos e definições. Hoje, qual seria a sua concepção de currículo?
Jurjo Torres Santomé: Bem, currículo é tudo o que acontece nas aulas; desde o que pretendemos trabalhar com o alunado até tudo o que fazemos na prática: matérias e os seus conteúdos, os materiais e recursos didáticos, tarefas para o corpo discente, como organizamos o espaço e o tempo, a função do professorado e do alunado, o papel das famílias e dos demais agentes sociais na aula, as funções e modelos de avaliação que desenvolvemos etc.
O currículo escolar seria o instrumento e processo pelo qual aprendemos a viver e a conviver, a ajudar, a cooperar e trabalhar juntos; a reconhecer o outro tal como é, e valorizá-lo; procurar, nesse reconhecimento, evitar as deformações das socializações, em que os grupos dominantes, para reproduzir o seu poder, construíram. Assim como as imagens distorcidas a respeito dos grupos que eles consideravam inferiores, subalternos. Os sistemas escolares têm a obrigação de trabalhar para desmontar esses imaginários hierárquicos e promover a igualdade, ainda que dentro de individualidades diversas; mas sempre iguais em direitos, conforme as Declarações dos Direitos Humanos.
É imprescindível e urgente assumir que todos os adultos de hoje, que foram escolarizados, receberam a educação racista, classista, sexista, colonialista etc., sem que ninguém tenha consciência disso, porque ninguém conscientemente diria que é teoclassista ou que despreza a outros coletivos. Esses preconceitos e olhares seletivos funcionam como um mecanismo automático. A educação é um diálogo em que estamos continuamente debatendo um com o outro, argumentando e contra-argumentando, buscando maneiras de demonstrar por que determinada teoria funciona ou não. Se não fizermos um ensino baseado no diálogo, no debate, procurando escutar as vozes silenciadas e marginalizadas, o discurso elitista se reforça e se consolida de modo reprodutor, conservador, racista, sexista, classista.
Portanto, se nós queremos uma sociedade justa, devemos ser muito conscientes de que em meio a enorme importância das políticas econômicas, industriais, sanitárias, culturais, há uma instituição-chave que tem um poder enorme: as escolas. No ambiente escolar, é construída a visão do que é bom, do que vale a pena, logo, do que não é bom. Se esses processos não se produzem democraticamente, se não se produzem dialogicamente, debatendo, argumentando, contra-argumentando num espaço de liberdade de pensamento, então é previsível que a colonização mental, a dominação ideológica continue a ocorrer.
Atualmente, os grupos hegemônicos estão dando ainda mais poder a essa “escola”, por meio dos grandes meios de comunicação, que, de certa forma, controlam e manipulam a informação. Na Europa, está crescendo o pós-fascismo, o neonazismo, tendo como um dos mecanismos de ascensão as fake news, as notícias falsas, que têm um enorme poder. Grupos políticos e econômicos muito poderosos, até mesmo alguns governos, estão contratando empresas de informática para espalhar inverdades, inundando as redes sociais com perfis inexistentes, divulgando informações que soam verossímeis, apesar de falsas, com a finalidade de atacar e desprestigiar grupos e políticas progressistas e ajudar os grupos fascistas, neonazistas e de direita nas eleições. No Brasil, acredito que, infelizmente, vocês conhecem muito bem esse tipo de estratégia.
A quantidade de notícias falsas que circularam por meio de mensagens nas redes sociais é imensa, pois muitas pessoas repassam fake news sem verificar a veracidade da informação. Ao observarmos essa linguagem de fake news, nos indagamos: a quem favorece? A extrema direita? Essa é a pergunta. Esse tipo de desinformação era praticado nas escolas, por meio dos conteúdos, dos livros didáticos, da injúria educativa, mas atualmente a notícia circula por outros meios. Se você olha para o seu país, para o mundo, um dos assuntos mais falados, mas sobre o qual raramente há um debate democrático, é: “Qual é a cultura escolar que dizemos ser obrigatória a todas as pessoas e que taxa aqueles que não a possuem de ignorantes? Onde debatemos isso democraticamente? Quem controla os livros didáticos nas escolas? Quais autores e autoras escrevem essas obras? Afinal, as informações que aparecem nos livros didáticos são aceitas como verdade absoluta, neutra e objetiva.
Os livros didáticos, em espanhol, “libros de texto”, como sugere a origem etimológica, são os textos, as obras sagradas, como a Bíblia para os cristãos e o Alcorão para o Islã. Se algo está na Bíblia não haverá revisão histórica, não há forma de contestá-la. Para tal, inventaram uma ciência, que é a teologia, para “interpretar”, tornar crível tudo o que há nos textos bíblicos e que, na atualidade, a ciência demonstra que é falso, como, por exemplo, que a mulher nasceu da costela de um homem, que Deus criou o mundo em sete dias, entre outras coisas, caindo em total contradição com o que hoje demonstram as teorias evolucionistas. O que eu quero dizer é que os conteúdos escolares, que a cultura, que a escola legitima como cultura e como verdades objetivas, científicas e neutras são concepções que não escutaram as vozes das mulheres, dos povos originários dos países colonizados, das classes populares etc.
Os livros didáticos reproduzem e impõem a cultura oficial que legitima uma suposta superioridade das elites sociais, dos povos colonizadores, das empresas multinacionais, dos poderosos. Essas obras representam apenas os homens, reforçam uma cultura patriarcal, classista, racista, idadista, urbana, colonialista, militarista, desrespeitosa com a sustentabilidade do planeta. Procure e tu não encontrarás um livro didático que não seja patriarcal, classista, racista, todos são assim. Levei muitas décadas de minha vida profissional revisando continuamente materiais curriculares, não encontrei um que não fosse racista, classista ou sexista, nenhum, que coincidência.
Entrevistadores: Professor, como os estudos curriculares podem contribuir para uma educação escolar mais inclusiva?
Jurjo Torres Santomé: À medida que estas pesquisas e estes estudos curriculares estejam presentes. Se você faz uma pesquisa e introduz entre as dimensões que merecem atenção, - por exemplo, no seu caso, que trabalha junto a pessoas com deficiência visual -, a partir daí elas se tornam visíveis. Você passa a vê-las como aparecem e se aparecerem, porque elas podem não aparecer. Pessoas cegas nunca aparecem em livros didáticos. Pode parecer um com óculos, porque tem uma visão cansada, mas não porque é cego. Ao não aparecer, tampouco os vemos. Descobrimos que uma pessoa é cega porque passamos diante dela na rua. Em sua vida cotidiana, você não está pensando em como as vê e pode se comunicar com elas, ou com surdos, ou com quem quer que seja. Ao não estarmos acostumados em nossa vida cotidiana a interagir com pessoas com deficiência, elas acabam por se converter em invisíveis, até para o nosso trabalho como profissionais, seja o que for (arquitetura, urbanismo, engenharia, educação, mundo laboral). Isso explica por que os desenhos das cidades, ruas, praças, prédios, lugares de trabalho, de ócio, o interior das nossas casas, escolas, universidades, entre outros lugares, dificultam a mobilidade, as inter-relações na vida cotidiana dessas pessoas e as nossas interações com elas.
Há toda uma série de coletivos que não aparecem nas preocupações das pesquisas e, portanto, não são uma dimensão a ser considerada. Ou seja, você analisa os materiais curriculares, os livros didáticos e, historicamente, conclui que não foram contemplados. Até os anos 1980 a única coisa a que se prestou atenção foram as classes sociais, porque, no final das contas, os movimentos sociais existentes estavam orientados e muito marcados pelos partidos marxistas e neomarxistas.
Quando os movimentos feministas começaram a se organizar, minimamente, surgiram, também, estudos analisando a presença das mulheres nas ilustrações, nos próprios conteúdos, a presença da mulher como conteúdo, as vozes femininas etc. As justas reivindicações e lutas do feminismo explicam suas realizações.
Este milênio, o século XXI, deve ser considerado como a era do feminismo. Algo semelhante ao que se passou com a infância desde princípios do século XX e que preconiza o título do livro “O século da infância”, da feminista sueca Ellen Key, publicado em 1900. As reivindicações e mobilizações sociais e o bom trabalho de muitos profissionais em todos os âmbitos ajudaram a estruturar as lutas pelos direitos de qualquer coletivo ou povo marginalizado, silenciado, ignorado; inclusive os direitos das pessoas com deficiência.
Os pesquisadores da sociologia voltados às pessoas com deficiência foram, em grande medida, a força motriz a intervir nesse universo, percebendo e argumentando, com grande sucesso, que a Carta dos Direitos Humanos não estava sendo respeitada. Até então, o mundo das pessoas com deficiência era o centro de preocupação apenas da medicina e da psicologia, esta última voltada apenas para a psicologia clínica, e não para a psicologia social e para a Educação Inclusiva. As famílias com maior capital cultural e com filho(a) com deficiência também foram grandes responsáveis, visto que começaram a se preocupar com o que era feito na escola, com maneiras de ajudá-los etc.
Na Espanha, um dos países europeus mais avançados nessa legislação nos anos do governo socialista, com o Ministério da Educação Socialista, durante a década de 1980 e início dos anos 1990, elaborou uma nova lei educacional, possibilitando esse discurso da integração, que afirmava que as crianças com deficiência deveriam estudar junto às crianças sem deficiência. Dessa forma, os colégios de Educação Especial foram fechando aos poucos, e os recursos e especialistas dessa área passaram para as escolas regulares, visando beneficiar a todos. Se na escola é ensinada a convivência, não posso aprender a viver junto com uma pessoa cega se eu não a tenho aqui comigo e não nos conhecemos e nos reconhecemos. Então, nos anos 1990 e, a partir desses eventos, a inclusão vai se consolidando e tornando-se cada vez mais exigente, inclusive no que diz respeito à necessidade de se revolucionar todo o campo didático.
Ainda em meados dos anos 1970, fiz uma especialização em Educação Especial para pessoas com deficiência. Em todos os livros que estudei na carreira, não há nenhum hoje que seja útil, válido. Essas obras são unicamente materiais para historiadores, para comprovar como a educação foi melhorando. Em todos aqueles livros e documentos havia uma certa barbárie do ponto de vista atual, porque éramos informados de que as pessoas com deficiência tinham uma síndrome ou outra característica que delimitava o máximo que poderíamos aspirar delas, que tinham limitações insuperáveis e que existia um topo na melhora que não poderíamos superar.
Atualmente, à medida que vamos nos aprofundando no discurso teórico, sociológico e político da deficiência e inclusão, descobrimos que as nossas próprias metodologias, nossas formas de organizar o ensino estavam estabelecidas sem contar com essas pessoas e, portanto, se esses indivíduos entrassem na escola, iriam fracassar, pois não eram esperados.
Auguste Comte afirmava que existia uma área do conhecimento na ciência que freava o desenvolvimento científico, a medicina. Os médicos estavam atrasando o desenvolvimento da ciência? Sim, porque estavam classificando, assumindo que as doenças se classificavam de duas maneiras: curáveis e incuráveis. Se essa enfermidade fosse incurável, não haveria mais investigação, apenas o enfrentamento, mas com a certeza da impossibilidade de cura.
O desenvolvimento da ciência é exatamente o oposto, é baseado no fato de que eu não sei como resolver esse problema, mas deve haver uma solução, por isso, continuarei pesquisando e ensaiando. A medicina aprendeu isso muito bem, todos sabemos hoje que há enfermidades que ainda não conseguimos curar, por exemplo, a covid-19, mas sabemos que isso deve. Não há ninguém para dizer que isso é impossível, não, alguns levaram mais tempo, outros menos, mas tem que ser possível. Todo mundo está pesquisando até encontrar uma vacina, vamos encontrá-la6.
A partir da década de 1980, de 1985 a 1990, aplicamos o mesmo método, nós não podíamos melhorar a inclusão educacional desses coletivos sociais, porque a compreensão era que já havíamos chegado ao topo, ao nível mais alto possível. A partir daquele momento, em que derrubamos aquele suposto topo, a única coisa que dissemos foi: “Ainda não sei como alcançar aquelas ou aqueles que têm essas características para resolver ou aprender esses problemas, mas tem que haver uma maneira e, a partir desse modo, todos os métodos de educação se revolucionaram, porque começamos a ensaiar e a fazer o mesmo que os médicos: ‘Essa forma não nos serve, tentaremos outra’”, “Isso não nos ajuda, vamos tentar de outra forma até que inventemos uma que nos ajude a fazer isso”. Então, nesse ponto, passamos a ter pessoas com deficiência que entraram em carreiras universitárias e conseguiram obter títulos de doutorado. Há 30 anos, a ciência dizia que isso era impossível. Hoje, as pessoas com síndrome de Down formam-se em carreiras universitárias e isso significa que o sistema educacional assumiu essa responsabilidade. As metodologias didáticas e o currículo descobriram que deve haver uma forma de essas pessoas aprenderem. Revisou-se todos os limites que tínhamos construídos artificialmente até derrubá-los e acharam uma maneira de essas pessoas com deficiência aprenderem e estarem com outros indivíduos. E as pessoas sem deficiência aprenderam a vê-las, a conviver, a trabalhar, a desfrutar, a estabelecer toda classe de relações com elas.
Dessa forma, à medida que estão nas salas de aula, todos aprendemos a conviver, porque estamos na mesma aula e nos (re)conhecemos. Vejo que tal pessoa faz isso melhor ou pior, compensamo-nos e ajudamos uns aos outros, porque aprendemos a estar juntos. Se vivermos separados, sempre suspeitaremos do outro, que é o problema que pode surgir para nós agora, sobretudo como um dos efeitos da covid-19, que gera o medo de que outros possam nos contaminar, deixar-nos doentes e isso é perigoso. Basta lembrar que os slogans políticos eram: “Cuide-se!”, “Fique longe dos outros!”. Todo um vocabulário ultraindividualista, como “Salve-se você mesmo”.
Entrevistadores: Professor, no Brasil, um de seus livros é chamado de Currículo escolar e justiça social: o cavalo de Troia da educação (2013). Na Espanha ele é chamado de La justicia curricular, el caballo de Troya de la cultura escolar 7 (2011). Gostaria que o senhor falasse um pouco dessa mudança no título, do conceito de justiça curricular e como ele pode contribuir para a inclusão escolar.
Jurjo Torres Santomé: O termo “justiça social” não me agradou muito, foi o tradutor ou a editora que mudou esse nome. Em espanhol é “justiça curricular”. Nesse livro, há a diferença entre a justiça curricular, a justiça educativa e a justiça social. São coisas diferentes. Quer dizer, a justiça curricular é um elemento que estava passando despercebido dentro dessa luta pela justiça social.
A justiça tem muitas dimensões: a justiça social, a justiça econômica, a justiça afetiva, a justiça administrativa, a justiça em todos os campos, quer dizer, você conhece cada ministério do governo e esses ministérios fazem políticas justas e injustas. Há a justiça econômica, justiça jurídica, justiça religiosa, entre outras, logo, há a justiça educativa. Mas a educação é um campo que tem muitas parcelas, tem muitas pessoas que creem que a justiça educativa começa ou termina permitindo que todo mundo vá à escola. Inclusive fazemos com que a escola seja obrigatória, que sejam escolarizados, que não passem fome, incluindo a alimentação na escola para que aprendam. De alguma forma, readaptamos todos os elementos escolares, mas sem tocar no livro didático, por assim dizer. Ou seja, vamos fazer com que entrem nas salas, que tenham umas cadeiras confortáveis, mesas acessíveis a cada estudante e que se acomodem as condições e as possibilidades físicas de cada estudante etc., mas não entramos nos conteúdos escolares.
O currículo é uma parcela da educação e é tudo o que vamos fazer dentro daquela aula, aquilo que consideramos que vale a pena que se estude e os modos como se trabalha, se organizam as tarefas escolares das crianças, com os livros didáticos ou com qualquer outro recurso didático etc. A justiça curricular é que vai olhar, aplicar, aprofundar em que medidas esses conteúdos que estão sendo abordados nos livros didáticos, nos materiais curriculares são justos ou não, quer dizer, de que forma essas culturas visíveis e invisíveis, que trabalhamos nas nossas pesquisas e publicações, são também elementos que perpetuam essas situações de desigualdade social.
Quando analiso os materiais curriculares, verifico que as classes sociais populares não estão representadas, e quando estão são deturpadas, justificando situações de subordinação. A escassa presença das mulheres nos conteúdos, a restrição dessa figura feminina a tarefas domésticas, aos cuidados da casa e coisas sexistas. A comunidade cigana aqui na Espanha, por exemplo, vejo que estão nos colégios, mas não nos livros escolares. Eles dizem: “Se não falam de mim, eu não existo?”. A justiça curricular revela de que modo todos estão presentes nos conteúdos escolares, se o que dizem de nós é justo, e se as nossas vozes estão ali presentes. Os povos indígenas estão presentes, sim, mas por que falar por eles? Por que outros falam por nós? E o mesmo acontece com muitos outros coletivos e realidades sociais.
Então, nota-se que essa justiça curricular revela em que medida todos esses conteúdos são respeitosos com todos os coletivos sociais, desmontando preconceitos, prejuízos e ideias falsas que temos sobre os outros e, portanto, de alguma forma é inclusiva. A justiça curricular nos mostra como colocamos os “outros” no currículo, nos conteúdos, no que lemos e estudamos, se esses coletivos sociais estão presentes e se somos respeitosos com eles. Ou seja, se somos respeitosos, inclusivos e os reconhecemos no sentido de justiça, como povos iguais a nós, que podem ter diferenças, mas são iguais em relação a direitos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos é um marco, um parâmetro para o respeito das diferenças entre os povos. Todas as declarações de Direitos Humanos, não só a de 1948, mas todas as posteriores aprovadas a partir das lutas sociais, como as cartas de Direitos Humanos sobre os povos indígenas, sobre as mulheres, sobre a infância, sobre a pessoa com deficiência etc. Se o corpo docente desconhece a carta de Direitos Humanos, é muito mais difícil que seja justo, mesmo sem pretenderem, irão atentar contra os diversos coletivos sociais.
Todavia, faltam declarações de Direitos Humanos específicas a serem aprovadas, por exemplo, sobre o meio ambiente, sobre as pessoas LGBTQIA+, falta a carta do direito à cidadania, à informação e ao conhecimento. Um governo não pode tolerar que circulem fake news, notícias falsas que estão sendo instrumentalizadas política e economicamente por grupos, por exemplo, de extrema direita, por grandes monopólios financeiros, por igrejas fundamentalistas etc. Deve haver uma legislação que proíba isso, deve-se defender a liberdade de pensamento e o direito à informação, mas informação verídica, não mentiras. Eu não posso injuriar uma pessoa, pois posso ir à justiça por tal feito, pois tampouco uma pessoa pode injuriar os coletivos sociais mediante notícias falsas. Deve-se vigiar, prestar a atenção e corrigir nos agrupamentos escolares, na formação, nos conteúdos, nas formas de avaliar, nas formas de ensinar, considerando que há pessoas, por exemplo, com deficiência visual, portanto, tenho que ter uma metodologia de ensino que as contemple.
Na política inclusiva essas pessoas devem estar presentes. É nossa obrigação que estejamos juntos. Temos que aprender a conviver e se aprende resolvendo problemas juntos. Não sabemos como se pode solucionar isso, mas sabemos que está ali, portanto, temos que buscar uma solução. É o mesmo que estamos fazendo com a covid-19, e estamos aprendendo rapidamente, pois aqui é igual, mas em vez de ser para um vírus, é para esse vírus informativo que nos dão para construirmos um sentido comum que inferioriza e demoniza aqueles que não conhecemos.
Temos um longo caminho com as mulheres, com os povos indígenas, com os ciganos, com quaisquer coletivos sociais, com as culturas silenciadas, mas todos juntos, todos temos os mesmos direitos. É obrigação política e moral de cada cidadão fazer frente às injustiças praticadas contra cada um desses coletivos sociais silenciados e, por vezes, injuriados por meio das barbaridades e mentiras que dizemos explicita e implicitamente sobre eles.
A justiça curricular é o resultado de uma análise curricular que é concebida, implementada, avaliada e pesquisada, tendo em conta, o grau de respeito e resposta às necessidades e urgências de todos os grupos sociais; ajuda-nos a ver, a analisar, a compreender e a julgar a nós próprios como pessoas éticas, solidárias, colaborativas e corresponsáveis num projeto mais amplo de intervenção sociopolítica que visa a construção de um mundo mais humano, justo e democrático.
Entrevistadores: Nesse mesmo livro, o senhor fala sobre intervenções curriculares inadequadas. Como elas poderiam contribuir para a inclusão escolar?
Jurjo Torres Santomé: São frutos das análises que vinha fazendo sobre os conteúdos dos livros didáticos, então, o que vou detectando é como se falseia, se deforma e distorce a informação, que fala sobre essas realidades sociais, sobre esses coletivos sociais. Há uns que são por silenciamento. O silêncio não deixa de ser uma forma de falar. Generalizamos e pensamos que todos são incluídos ao generalizar, que todos estão presentes (no livro didático), e não é bem assim.
Essas formas inadequadas se referem a como se distorce a presença, o que dizemos e o que há sobre esses coletivos sociais nos conteúdos curriculares. Coube propor uma forma, um agrupamento, uma classificação das principais formas de distorção, de manipulação que há sobre essa informação nos livros didáticos. Há dezenas de formas que vou analisando e me refiro à maneira como tratamos esses conteúdos e, portanto, ao modo com que somos curricularmente justos ou injustos.
Se eu me refiro aos povos indígenas como se não tivessem nenhuma cultura e enquanto seres muito ingênuos, e digo: “Bom, temos que ser bons com eles, querê-los, amá-los”, é uma forma de paternalismo, mas é uma forma de paternalismo que não é justa, não enfrenta o problema de justiça. Pode cair na caridade e não é uma forma de justiça. Então, pode-se ver como todos os discursos falham, se alteram e minimizam dados, se ocultam histórias e, portanto, os conteúdos estão deformando o que sabemos e o que vamos aprender sobre esses coletivos e essas culturas silenciadas.
Há muita informação errônea, temos que prestar muitíssima atenção nos conteúdos e, sobretudo, no tratamento deles. Eu posso deformar e ser injusto com os povos indígenas não falando deles, ou falando e distorcendo as informações sobre eles, infantilizando-os, exagerando certos dados e não reconhecendo as suas vozes, ou com análises paternalistas, ou não contextualizando a sua história e as realidades do presente, reduzindo a problemas psicológicos individuais, reproduzindo comportamentos racistas, sexistas, classistas, homofóbicos etc., que têm um fundo, uma causa estrutural; outro modo de tratar essas realidades injustamente e as deformando é não deixando que eles mesmos digam que problemas têm e, que soluções veem; outra estratégia é cair no ceticismo normativo, ou seja, que não podemos julgar as condutas de outros povos, porque respondem a outras tradições diferentes das nossas, por exemplo, que como europeus não devemos opinar e julgar a ablação ou mutilação genital da mulher em certos grupos, em alguns países africanos etc. No livro da Justiça Curricular, desenvolvo muito mais esses tipos de modos de manipular, silenciar a informação sobre a realidade nos conteúdos culturais que se estudam nos livros e materiais didáticos. Isso é a justiça curricular, é ver todos esses conteúdos, o que nós estamos dizendo aos estudantes que é cultura, o que queremos que aprendam e em que medida as diferentes culturas estão presentes, se os coletivos sociais são tratados justamente, se estão sendo silenciados ou deformados e convertidos em seres subalternos, tratados como “inferiores”, violando as declarações de Direitos Humanos vigentes.
Entrevistadores: Professor, quais são os efeitos do neoliberalismo nos currículos e como ele poderia influenciar a inclusão escolar?
Jurjo Torres Santomé: Eu intuo que essas políticas econômicas têm que ter uma repercussão, também, na educação e comecei a pesquisar, mais diretamente, desde o início da década de 1990 sobre o assunto. E, nos anos 2001, quando já levávamos uma década falando de neoliberalismo, publiquei o livro Educación en tiempos de neoliberalismo 8 (2001), que aborda como e por meio de que mecanismos e discursos essa política de mercado se introduz na educação, condicionando por completo os propósitos do sistema educativo e da escolarização da população. Continuei com essa discussão no livro La desmotivación del professorado 9 (2006) e na obra já mencionada anteriormente da Justiça curricular. Esses são debates que estão continuamente na minha cabeça, dando voltas. Passei a observar como as políticas educativas, que estão legislando, apresentam, todas, determinadas características. Comecei a comparar legislações de distintos países e, à medida que fui aprofundando e detectando novas faces do neoliberalismo na educação, acabei por voltar a sistematizar no meu último livro, até o momento: Políticas educativas y construcción de personalidades neoliberales y neocolonialistas (2017). É um livro que está escrito na Espanha, conforme a realidade da Espanha, mas penso que bastante coisa pode ser extensível a outras realidades, pois não podemos esquecer que o neoliberalismo funciona globalmente, em todos os países. Os leitores dirão se são extensivos ou não. Nós (na Europa) vivemos no chamado primeiro mundo, hierarquia que segue a ser a consequência das políticas dos antigos impérios, que continuam mantendo relações coloniais ou, de modo mais disfarçado, neocoloniais, de subordinação de povos estrangeiros, sobretudo da África e, também, da América Latina. Então, pergunto: como isso segue se reproduzindo, visto como lógico e normal sem que as pessoas dos nossos países, nem dos latinos, nem dos africanos lutem contra isso? Conforme vou pesquisando sobre esse tema, em especial apoiando-me na obra e no pensamento de Antonio Gramsci, acabo por me convencer do importante e decisivo papel das instituições escolares na construção de um sentido comum, de um conhecimento e de uma visão da realidade que passamos a considerar como “objetiva”, “neutra”, “científica” e, inclusive, a etiquetamos, também, como “despolitizada”, de caráter neoliberal, patriarcal, racista e neocolonial; esse sentido comum hegemônico faz com que esse mundo apareça imediatamente como lógico e inevitável. Desse modo, nós sentimos que não temos culpa nem responsabilidade sobre aquelas injustiças que conseguimos perceber (e tampouco as veremos todas), tanto sobre as injustiças que vemos ao nosso redor, quanto em países mais afastados geograficamente.
Esse neoliberalismo vai reacomodando, segundo os seus interesses, todas as dimensões do sistema educativo. Por exemplo, e de modo muito importante, nos acessos às escolas, na privatização dos ambientes escolares e, simultaneamente, pondo toda classe de obstáculos aos governos para atender à educação pública. Começam a proliferar discursos para que a população veja que a educação pública não funciona bem e que o que funciona são os negócios privados.
Uma instituição que, desde o ano 2000, lança, a cada três anos, os ataques mais duros e injustos contra as escolas públicas é a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por meio desse perverso instrumento que são as provas Programme for International Student Assessment (Pisa). Passei a olhar mais detidamente o que diz a OCDE; faço leituras e análises, em profundidade, dos numerosos documentos que a organização publica com grande frequência, muito deles bastante volumosos. Vejo as políticas educativas que tratam de fazer frente ao insucesso escolar “avaliado” (pois só temos dados das matérias avaliadas pelo Pisa e do que esses testes psicométricos medem), seguindo as recomendações da OCDE ou do Banco Mundial, e vou constatando que as soluções acabam por favorecer a entrada do mercado, das instituições e negócios privados para resolver todos os problemas e, em consequência, gerando a imagem de que o público funciona mal, culpabilizando os professores do ensino público, o que é muito preocupante. Pouco a pouco deixamos de falar de cidadania e passamos a falar de clientes, consumidores e produtores; não se fala das pessoas como seres sociais, que vivem em sociedade, que se necessitam mutuamente e, portanto, querem e lutam por uma melhor justiça social.
Então, nesse último livro, abordo como as políticas educativas passam a privilegiar determinadas áreas de conhecimento, enquanto outras áreas de conhecimento não recebem a devida importância. Há um capítulo forte, primeiro, sobre como se faz e se tomam as decisões sobre as políticas educativas, tanto no meu país como na maioria dos países da OCDE. Outro capítulo analisa criticamente como hoje, em nossa sociedade, prestamos a atenção e valorizamos algumas áreas do conhecimento em detrimento de outras. Quando a OCDE nos compara aos países de todo o mundo, nos compara somente em quatro áreas do conhecimento - as ciências, as tecnologias, as engenharias e a matemática -, agora colocaram a educação financeira, mas ninguém nos diz a importância, o rendimento e os problemas do nosso alunado nas humanidades, na filosofia, na ética, nas artes, nem nas ciências sociais; o que está acontecendo? Que formação estão tendo os nossos estudantes?
Que características têm todas essas áreas que a OCDE não avalia? São as áreas que nos socializam, que nos tiram de nós mesmos e nos obrigam a prestar a atenção nos outros. Nas matemáticas e nas ciências, os seres humanos não aparecem, não os percebemos como seres sociais, como cidadania; somente aparecemos como quem resolve um problema de física ou de matemática, mas não irão olhar como e em que medida essa matemática ou física está sendo aplicada com critérios de justiça social, considerando como afetam a vida das pessoas. A construção dessas personalidades e mentalidades neoliberais, patriarcais, racistas e neocolonialistas está sendo conformada por meio de discursos, práticas educativas e curriculares, pela obrigatoriedade e atenção prioritária a determinadas matérias, conteúdos, competências, objetivos e estândares de rendimento, que acabam por dirigir a atenção do professorado, dos estudantes e das famílias, exclusivamente, sobre esses conteúdos.
O Pisa, o Progress in International Reading Literacy Study (PIRLS) e o Trends in International Mathematics and Science Study (TIMSS), ao avaliar e quantificar essas matérias e competências, consideradas como “as verdadeiras chaves para o futuro das novas gerações”, funcionam como instrumentos com grande poder orientador e disciplinante de pessoas e governos dos países.
Vemos como lógico o mundo ser assim e não percebemos as injustiças e o quanto nós contribuímos para que elas aconteçam. Isso ajuda a criar rebeldes-ignorantes ou sábios-ignorantes, pessoas que sabem muito a respeito de um determinado assunto e nada de outros, mas aquilo que sabem, como sabem muito, há o perigo de acharem que já sabem tudo, e assim passam a opinar e a decidir sobre tudo como se fossem grandes sábios enciclopédicos. Uma boa e justa educação deve dificultar e, inclusive, impossibilitar que as pessoas educadas ponham essa formação recebida a serviço do capitalismo e do neocolonialismo.
Entrevistadores: Professor, teria como o senhor falar um pouco sobre o currículo integrado e sua contribuição para a inclusão escolar?
Jurjo Torres Santomé: O currículo integrado tem como finalidade contribuir para que os conteúdos culturais e escolares, que tradicionalmente estão organizados de modo disciplinar, trabalhem e se pesquisem de modo muito mais interdisciplinar. As disciplinas moldam a mente, o modo de ver e de interagir com a realidade. Se somos formados sobre a base de matérias escolares parceladas em microdisciplinas, acabaremos por aprender a ver e analisar a realidade de modo parcelado, fragmentado, como compartimentos estanques. Entretanto, a realidade não existe como compartimento estanque, está tudo misturado, inter-relacionado, mas cada um de nós passa a se comportar como esses ignorantes sábios, somos sábios de uma parcelinha e, com essa parcelinha, tratamos de explicar, ver e solucionar todos os problemas que há no mundo e isso tem efeitos secundários ou colaterais (como expressava George Bush ao levar a cabo a invasão do Iraque) que costumam ser muito prejudiciais para pessoas e para o planeta.
O ensino integrado é a resposta à procura de explicações do porquê esses tipos de comportamentos e decisões profissionais e pessoais estão sendo produzidos, podendo, com facilidade, concluir que todas as matérias da carreira e todo esse conhecimento foram construídos em paralelo, sem entrecruzar-se, sem estímulos e facilidades para estabelecer interconexões entre as distintas disciplinas estudadas. Essas pessoas e profissionais têm dificuldade de saber, por exemplo, a relação que tem a matemática com as ciências sociais, com a fisiologia e com a anatomia humana, não sabemos o que tem a ver isto com aquilo. O currículo integrado serve para que, desde crianças, possamos ver que a realidade deve ser analisada com múltiplas perspectivas, não só com o conhecimento especializado científico, mas com nossa vida cotidiana.
Quer dizer, se eu milito em organizações ecologistas e quero um determinado consumo sustentável e sou respeitoso com a natureza, eu não posso ir ao mercado comprar uma calça e uma blusa e simplesmente ver se fica bem ou não em mim. Terei que olhar, inclusive, a etiqueta, onde foi produzido, por quem, quanto custa produzir isso, que benefícios têm, do contrário posso estar militando para favorecer e ajudar o terceiro mundo e, ao mesmo tempo, estar comprando um produto que está sendo fabricado por escravos ou por crianças escravas e com matérias-primas não obtidas de modo sustentável, respeitando o equilíbrio do planeta.
Por conseguinte, o currículo integrado tem como objetivo prioritário nos ajudar a construir um pensamento integrado que tome conta das tomadas de decisão, das análises que fazemos da realidade, das múltiplas perspectivas que precisam estar em inter-relação, para não cometer erros e injustiças porque não percebemos que isso estava vinculado com aquilo outro etc.
Entrevistadores: Professor, a gente pode falar que existe um currículo inclusivo?
Jurjo Torres Santomé: Penso que, todavia, estamos muito longe. Um currículo inclusivo parte primeiro de uma teoria e concepção de justiça social, que assume uma obrigação política e moral com que todos os coletivos sociais cheguem às escolas e em condições dignas, bem alimentadas, que suas famílias tenham condições para prestar atenção suficiente, que tenham uma casa, um trabalho e salário digno, os cuidados e a satisfação das necessidades afetivas etc.; tudo isso faz parte da consideração da justiça social e educativa. A justiça curricular, por sua vez, passaria a ver de que forma, - uma vez que estamos com esses coletivos na escola, os conteúdos, a forma de organizar os espaços, a aula, os recursos didáticos, as metodologias, os agrupamentos que fazemos dos estudantes para as tarefas e as aprendizagens escolares etc. -, estamos contemplando esses diferentes coletivos sociais e estamos sendo respeitosos e justos com cada um deles, tratando-os como iguais em direitos e, também, ao mesmo tempo, como diferentes. Desse modo, esses coletivos silenciados se convertem em visíveis e eu busco como atender as necessidades de cada um desses coletivos em minhas aulas.
Um currículo inclusivo torna obrigatório o acesso de todas as crianças às escolas, que todas elas tenham os seus direitos respeitados durante toda a sua escolarização, que se sintam valorizadas e constatem que o seu professorado é otimista sobre as suas possibilidades de aprendizagem, que confia neles e os anima sempre e, finalmente, que todas tenham sucesso escolar. A inclusão é incompatível com insucesso escolar. Se uma criança entra na escola e não tem êxito, isso significa que a justiça social ou a justiça curricular funciona mal, ou ambas funcionam mal. Em alguns locais, essas pessoas não estão sendo reconhecidas, ou nos conteúdos ou na forma de organizar o espaço, nas tarefas que propomos, nos modelos de avaliação, nos recursos didáticos que utilizamos com esse estudante e o que necessitam. O pressuposto é: um currículo inclusivo tem que dar lugar para que todo estudante entre no sistema educativo e permaneça, sinta-se reconhecido, busque reconhecê-lo e tenha sucesso escolar. Se o estudante entra na escola e abandona rápido, isso significa que o currículo não é inclusivo; ou, para ser mais claro: que esse estudante que tem insucesso não está capacitado para poder exercer os seus direitos como cidadão. Não esqueçamos que, em concreto, a obrigatoriedade da escolarização é a obrigação que a sociedade assume com as novas gerações que, desde o momento do nascimento, já adquirem a condição de cidadãos, e que por intermédio da escola se capacitarão para poder exercê-la plenamente.
A justiça curricular e a justiça democrática são dimensões da mesma ideia. Não pode haver uma educação democrática se há injustiça curricular. Se há justiça curricular é porque esse conhecimento passa pelo diálogo, escuta a voz do outro, tem participação de todos e é para todos. Não deveria haver um sistema educativo não democrático, uma aula não democrática não possibilita uma educação justa. A democracia deve ser praticada, vivida e, assim, poderemos nos ajudar e nos corrigirmos, continuamente, uns aos outros numa situação de diálogo e de liberdade de expressão.