1 INTRODUÇÃO
No campo das pesquisas educacionais, adentrar a temática do currículo não compreende uma tarefa simples, visto que suas concepções e definições no âmbito das investigações pedagógicas são diversificadas. Qualquer tentativa de definir currículo, segundo Gimeno Sacristán (2000), implicará uma relação de domínio (poder), uma vez que a tese da imparcialidade se enfraquece nos movimentos de sistematização curricular, pois esse processo é intimamente permeado de princípios e valores.
Silva (2011) entende o currículo como um elemento da perspectiva pedagógica formal, que resulta de uma seleção política de conhecimentos e saberes culturalmente acumulados pela humanidade. Segundo o autor, o currículo escolar necessita ser concebido como uma elaboração social, um plano, uma prática diversificada, desde sua criação até seu desenvolvimento em sala de aula. Ponderamos, ainda, que sua construção é histórica, pois demarca um determinado momento de percepções e ideias de uma cultura.
Gimeno Sacristán (2000) destaca que o currículo, da forma como se apresenta, consiste em uma composição de conteúdos historicamente configurada, ou seja, pressupõe o envolvimento e a participação dos sujeitos instituídos na realidade escolar, mais diretamente professores e alunos, de modo a contextualizarem os conteúdos nele estabelecidos.
Contudo, entendemos que a instituição escolar precisa estar atenta ao fato de que os programas curriculares e os projetos pedagógicos se complementam e oferecem parâmetros para os professores desenvolverem sua prática docente. Por isso, faz todo sentido que tais elementos contemplem e incentivem os professores ao trabalho articulado, à sensibilidade pela correspondência das temáticas propostas e às demandas sociais atuais, bem como considerem a aprendizagem dos alunos.
Pontuamos, nesse sentido, a importância de um currículo escolar que vá muito além da abordagem de conteúdos clássicos presentes nos livros didáticos, incluindo bases de conhecimentos atuais, referentes à História da Ciência recente, a saber, conteúdos emergentes que são veiculados diariamente nos meios de comunicação e que atingem os alunos em seus ambientes de convívio.
Ressaltamos, portanto, a possibilidade de o currículo não ser delimitado por conteúdos estanques, pois ele não é neutro e nem terminantemente acabado, conforme exposto. Essa ponderação é relevante porque, conforme Veiga-Neto (2002, p. 7) afirma, “[...] a análise e a compreensão do processo de produção do conhecimento escolar ampliam a compreensão sobre as questões curriculares”.
Nesse sentido, como fase inicial de uma intervenção pedagógica realizada com licenciandos dos cursos de Pedagogia e Ciências Biológicas, por ocasião da aplicação de nossa Produção Técnica Educacional (decorrente de um Mestrado Profissional na área de Ensino), buscamos evidenciar as noções de currículo desses estudantes, a fim de que um curso formativo fosse ofertado a eles, tendo como foco a questão do currículo e sua abertura para temáticas científicas recentes de ampla divulgação, impacto e conhecimento social.
Assim, constituímos a questão de pesquisa que norteou a investigação: Quais noções de currículo os estudantes dos cursos de licenciatura em Pedagogia e Ciências Biológicas de uma universidade pública do Estado do Paraná apresentam?
Adentramos, portanto, nos aportes teóricos que fundamentaram a pesquisa, trazendo destaques relativos ao currículo e aos saberes docentes, convergindo para as considerações sobre os saberes curriculares.
2 CURRÍCULO E SABERES CURRICULARES
O termo “currículo” deriva do latim curriculum, que significa “pista de corrida” (SILVA, 2011). No Brasil, de acordo com Moreira e Silva (1997), as considerações sobre a reflexão curricular tiveram origem entre as décadas de 1920 e 1930, tendo teorias diversificadas como abordagens, principalmente aquelas difundidas nos Estados Unidos da América, sob a influência das ideias de John Dewey, que censuravam o currículo tradicional elitista e defendiam propostas mais progressistas à época. Até esse período, os conteúdos escolares brasileiros guardavam uma estreita relação com a concepção jesuítica do período colonial, ou seja, um desenho clássico de currículo imperava de modo integral até a primeira metade do século XX.
No contexto escolar recente, Forquin (1993, p. 22) esclarece que o currículo, no vocabulário anglo-saxão, compreende “[...] um percurso educacional, um conjunto contínuo de situações de aprendizagem (learning experiences) às quais um indivíduo vê-se exposto ao longo de um dado período, no contexto de uma instituição de educação formal”. Assim, para o autor, o currículo diz respeito aos conhecimentos sistematizados que devem orientar a atividade docente por um determinado tempo, configurando um programa (ou um conjunto de programas) de aprendizagem em um dado curso.
Silva (2011, p. 150) também defende que “[...] o currículo é um documento de identidade”, a saber, um domínio que reporta aspectos sociais e constitui uma construção social, política e ideológica.
Arroyo (2013) evidencia que esse termo consiste em um elemento nuclear da constituição espacial do sistema escolar, o ponto estruturante e central da escola que orienta as práticas educativas. Além disso, segundo o autor, um exercício hipotético de traduzir o currículo envolveria conhecer as maneiras pelas quais uma sociedade estabelece, dispõe e conduz as informações socialmente vivenciadas em um período sócio-historicamente determinado.
Para Corazza (2001), os esforços empregados na construção de um currículo contêm aspectos do contexto em que ele está inserido. Desse modo, aquele que o constrói junto a seu coletivo precisa ter consciência e compreensão do local e do tempo em que ele se constitui para que possa expressar, com fidelidade, os anseios presentes na realidade social.
No caso da instituição escolar, como local fundamental da concretização dos conhecimentos escolares, essa tradução do currículo para a realidade contextual se apresenta em uma perspectiva mais rigorosa que, por vezes, acaba reproduzindo ideologias e intencionalidades implícitas ou, ainda, desempenhando uma mera reprodução do sistema educacional. Portanto, sendo a base curricular uma construção social, sua efetivação na realidade escolar não poderia estar distante do contexto social, enfatizando tão somente os conhecimentos acumulados ao longo da história e da cultura humana.
Assim, a sistematização do currículo escolar requer uma atenção especial, pois idealiza cumprir os objetivos do projeto pedagógico e da prática educacional da instituição escolar. Ele concebe uma direção a ser seguida pela instituição de ensino, bem como os sentidos que darão manutenção à prática pedagógica intermediada pelo professor e desenvolvida com os alunos nos diversos ambientes educacionais.
Em termos práticos, muito se discute sobre a segmentação do currículo escolar, na qual cada área do conhecimento ou, ainda, cada disciplina, é programada isoladamente, ao passo que aquelas que são ponderadas como de maior importância ganham mais espaço curricular. Contudo, é imperativo mencionar que, em sua constituição, os programas curriculares necessitam não só valorizar, mas proporcionar maior comunicação entre as áreas do conhecimento. O Art. 27 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Ldben) nº 9.394/96, destaca que os conteúdos curriculares da Educação Básica observarão, até mesmo, as seguintes diretrizes:
I - a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática; II - consideração das condições de escolaridade dos alunos em cada estabelecimento; III - orientação para o trabalho; IV - promoção do desporto educacional e apoio às práticas desportivas não formais (BRASIL, 1996, n.p.).
No contexto internacional, na década de 1980, houve um movimento voltado à investigação da profissionalização do ensino, que suscitou uma discussão acerca de quais seriam os saberes específicos caracterizadores da profissão docente. Tais saberes são aprendidos e mobilizados desde o processo de formação inicial até a prática cotidiana da docência, logo, estão em constante ampliação.
Nesse período, Shulman (2014) destacou a necessidade de uma reforma educacional, argumentando que o conhecimento sobre o ensino era fundamental para que isso ocorresse. O autor elencou elementos mínimos possíveis de se organizar em manuais ou enciclopédias, como “[...] conhecimento do currículo, particularmente dos materiais e programas que servem como ‘ferramentas do ofício’ para os professores” (SHULMAN, 2014, p. 206). Assim, o conhecimento sobre o currículo e sobre os programas escolares se constitui como a base para a prática docente de qualquer profissional, ou seja, é fundamental para poder ensinar.
Ao mencionarmos a formação de professores, tendo como princípio a discussão da abertura do currículo para os conhecimentos recentes, corroboramos com Shulman (2014), que indica que os programas de formação docente não podem ficar limitados às preparações didáticas estanques. De acordo com o autor, seria importante trabalhar a “[...] habilidade do professor para pensar sobre o ensino, para ensinar tópicos específicos e para basear suas ações em premissas que podem ser escrutinadas pela comunidade profissional” (SHULMAN, 2014, p. 223).
Nesse sentido, entendemos que o professor precisa pensar, elaborar e planejar ações didáticas que viabilizem o ensino da melhor forma. No entanto, para que essas mudanças aconteçam, é necessário assumir alguns riscos, pois ao falarmos de reformas no ensino, falamos diretamente de novas políticas educacionais, do contexto histórico e dos sujeitos envolvidos - fatos que nos expõem a diferentes pontos de vista.
Ao analisarem as implicações das reformas curriculares para a formação docente, Matos e Reis (2019) evidenciaram que a política brasileira de formação desses profissionais tem reforçado a redução da formação teórica, implicando no esvaziamento de conhecimentos com impacto direto na Educação Básica. No mesmo sentido, Freitas e Molina (2020) destacaram uma intensa modificação na legislação brasileira nos últimos 30 (trinta) anos, no âmbito da formação de professores, mostrando que a formação é essencial para levar em curso as novas propostas educacionais. Segundo os autores, ao conhecerem e refletirem sobre as políticas públicas, o que inclui as discussões sobre programas e propostas curriculares, os professores poderão avaliar se esses novos movimentos atendem ou não ao propósito de uma educação emancipadora.
Por conseguinte, “reformas no ensino” nos remetem aos saberes docentes, explicitamente, relacionados à formação do profissional docente.
Os saberes, de acordo com Tardif (2012, p. 199), são “[...] unicamente os pensamentos, as ideias, os juízos, os discursos, os argumentos que obedeçam a certas exigências de racionalidade”. Assim, na atuação docente, quando conseguimos explicar e argumentar sobre o que e porquê fazemos algo, estamos no âmbito dos saberes docentes, os quais são construídos no contexto das interações sociais e discursivas e dependem daquele que os expressa.
Para Tardif (2012, p. 11), o saber não é “[...] uma coisa que flutua no espaço: o saber dos professores é o saber deles e está relacionado com a pessoa e a identidade deles, com a sua experiência de vida e com a sua história profissional”. O autor ainda aponta que é difícil falar em saber de uma profissão sem colocar em pauta as condições e o contexto do trabalho. Os saberes dos professores, por exemplo, são plurais e estão espontaneamente relacionados com a sua pessoa, com a sua identidade profissional e, também, com as suas relações com os alunos e com outros profissionais da instituição escolar (TARDIF, 2012).
Diversos autores apresentam uma tipologia de saberes docentes, todavia, para o desenvolvimento de nossa proposta investigativa, voltamos os nossos interesses para os saberes que dizem respeito ou se aproximam da compreensão ou da delimitação de currículo, no entendimento dos depoentes questionados. Por esse motivo, inspirados por estudos que realizamos, reunimos e apresentamos a seguir algumas afirmações acerca do currículo na perspectiva dos saberes docentes.
De acordo Tardif (2012), os saberes docentes podem ser divididos em 4 (quatro) grupos: I. Saberes da formação profissional; II. Saberes disciplinares; III. Saberes curriculares; IV. Saberes experienciais; os quais balizam e associam as práticas docentes, além de projetarem diferentes relações objetivas e subjetivas com esses saberes.
Para o autor, os saberes curriculares se referem “[...] aos discursos, objetivos, conteúdos e métodos a partir dos quais a instituição escolar categoriza e apresenta os saberes sociais por ela definidos e selecionados” (TARDIF, 2012, p. 38). Ou seja, esses saberes correspondem às propostas curriculares estabelecidas desde as esferas mais gerais do sistema educacional de um país ou estado, até o planejamento anual praticado por docentes nas escolas, que se traduz em planejamentos menores (planos de aulas ou de ensino para a atividade diária do professor).
Segundo Tardif (2012), o professor modelo - ou seja, o professor ideal - é aquele que precisa conhecer seu objeto de trabalho, sua área e seu programa de ensino, bem como mobilizar saberes referentes às Ciências da Educação e à Pedagogia e ampliar um saber prático, fundamentado em sua experiência diária com os alunos. Em acréscimo, o autor define o professor “[...] como um profissional dotado de razão e cujos saberes são regidos por certas exigências de racionalidade que lhe permitem emitir juízos diante das condições contingentes de seu trabalho” (TARDIF, 2012, p. 40).
Para Gauthier et al. (2013), o ensino é idealizado com a incorporação dos seguintes saberes: I. Disciplinares; II. Curriculares; III. Das Ciências da Educação; IV. Da tradição pedagógica; V. Experienciais; VI. Da ação pedagógica.
O saber curricular (II) diz respeito a “conhecer o programa”, o qual é constituído por outros autores da área de Educação, que não é organizado pelo professor em si. Assim, esse saber põe em demanda o olhar crítico do professor, no que concerne ao “[...] programa que lhe serve de guia para planejar, para avaliar” (GAUTHIER et al., 2013, p. 31).
Nesse sentido, Gauthier e seus colaboradores (2013) evidenciam a constante necessidade de se questionar o planejamento, haja vista que ele é suscetível de alterações. Nesse mesmo mote, há muitas perspectivas a serem consideradas, entre elas: os parâmetros que fundamentam a seleção dos conteúdos por parte dos docentes; a escolha por um material didático adequado; o seguimento total ou parcial desse material pelos docentes. Segundo os autores, “[...] uma disciplina nunca é ensinada tal qual, ela sofre inúmeras transformações para se tornar um programa de ensino” (GAUTHIER et al., 2013, p. 30).
Por sua vez, Pimenta (1999) indica que os saberes da docência são organizados em 3 (três) classes: I. A experiência; II. O conhecimento; III. Os pedagógicos.
De acordo com a autora, refletir sobre os saberes da docência e sua correlação com a identidade docente tem significado na medida em que queremos compreender o sentido das investigações das práticas docentes e rever a formação inicial e continuada de professores. Ela ainda evidencia que é preciso que os cursos de formação inicial formem o professor, ou ao menos contribuam para a sua formação, principalmente, para a sua ação docente. Com isso, é necessário pensar em desenvolver saberes da docência nesses futuros profissionais da Educação.
De acordo com Pimenta (1999), é a partir dos saberes do conhecimento e dos saberes pedagógicos que podemos compreender que o currículo faz parte dos conhecimentos da docência do professor e se constitui nele.
Assim, após discorrermos sobre os saberes docentes na concepção de Tardif (2012), Gauthier et al. (2013) e Pimenta (1999), destacamos que é possível estabelecer um paralelo em relação a tais saberes e a questão do currículo, pois todos esses autores abordam o currículo como um saber necessário à docência.
No caso de Tardif (2012), os saberes curriculares são aqueles que pertencem à proposta do programa curricular das instituições de ensino, do qual o professor vai se valer para planejar e organizar suas aulas, assumindo-o como norteador, como um caminho para essa elaboração no que diz respeito aos conteúdos específicos, às abordagens metodológicas, à avaliação, entre outros.
Para Gauthier et al. (2013), o professor adota o programa curricular da instituição de ensino para planejar e avaliar o que vai ensinar aos seus alunos, o que nos leva a aproximar tais considerações a respeito do saber curricular com as considerações de Tardif (2012). Todavia, Gauthier et al. (2013) chamam a atenção do professor para que ele conheça o programa de ensino - pelo fato de ser, na maioria das vezes, elaborado por outras pessoas. Em adição, Gauthier e seus colaboradores (2013) evidenciam a necessidade de que o professor estabeleça um olhar crítico para aquilo que lhe serve de guia para organizar e planejar suas aulas, ou seja, indicam uma análise constante do programa curricular.
Ao retornarmos à Pimenta (1999), procurando integrar essas argumentações, constatamos que o currículo está implicado no saber pedagógico, que versa sobre o saber planejar as aulas com base em um conhecimento sistematizado. Ou seja, a partir de um currículo, o professor vai reorganizar seu ensino e sua prática pedagógica. O diferencial de Pimenta (1999) é que, para a autora, isso confere identidade profissional ao docente.
Em suma, observamos que a questão dos programas curriculares implica um saber indispensável para o conhecimento do professor, bem como sua relação com o ensino com vistas à aprendizagem. Assim, a concepção de currículo adotada nesta pesquisa se baseia nas acepções de Veiga-Neto (2002) e Corazza (2001) no âmbito da coletividade curricular, ou seja, da construção plural e coerente com o contexto histórico vivido, em sensibilidade aos anseios e demandas presentes na realidade.
A seguir, apresentamos alguns esclarecimentos a respeito do processo de coleta de dados, dos sujeitos investigados, da organização das informações, e da evidenciação das categorias e subcategorias que, posteriormente, foram retomadas e comentadas quanto aos procedimentos analíticos.
3 ENCAMINHAMENTOS METODOLÓGICOS
A pesquisa, de âmbito qualitativo, foi amparada nos pressupostos de Flick (2009). Para o autor, a perspectiva qualitativa possibilita a interpretação da complexidade e da diversidade do campo e dos materiais. Desse modo, “[...] dirige-se à análise de casos concretos em suas particularidades locais e temporais, partindo das expressões e atividades das pessoas em seus contextos locais” (FLICK, 2009, p. 37).
Nesta investigação, compreendida como a fase inicial da implementação de um curso formativo, como Produção Técnica Educacional resultante de um processo de Mestrado em um Programa de Pós-Graduação da área de Ensino, objetivou-se investigar as noções prévias de um grupo de estudantes de licenciatura em Pedagogia e Ciências Biológicas acerca do currículo escolar e sua relação com novos conhecimentos.
Ao todo, no ano de 2018, foram aplicados 26 (vinte e seis) questionários com questões abertas, sendo: 14 (quatorze) com licenciandos do quarto ano de Pedagogia; 9 (nove) com estudantes do quarto ano de Ciências Biológicas; e 3 (três) com acadêmicos do quinto ano de Ciências Biológicas. A fim de manter o anonimato dos depoentes, optamos pela seguinte forma de codificação: LP1, LP2 até LP14, para os licenciandos do curso de Pedagogia; LB1, LB2 até LB12, para os licenciandos em Ciências Biológicas.
A média de idade dos participantes foi de 23 (vinte e três) anos. Apenas 1 (um) dos estudantes de Ciências Biológicas já possuía outra graduação, por coincidência, em Pedagogia.
No que diz respeito ao tempo de experiência na docência, entre os participantes do curso de Ciências Biológicas, 3 (três) possuíam experiência de, em média, 5 (cinco) anos de atuação docente. Quanto aos licenciandos de Pedagogia, 11 (onze) possuíam experiência na docência, tendo atuado, em média, 2,5 anos (dois anos e meio).
A opção pelo questionário com questões abertas foi inspirada nas colocações de Flick (2009), que indica que esse tipo de coleta de dados possibilita que o depoente responda às questões propostas com mais reflexão e tempo. Objetivando atingir as compreensões almejadas, propusemos aos depoentes que respondessem às seguintes perguntas: 1. O que você entende por Currículo? 2. Em sua opinião, as estruturas curriculares da Educação Básica são sensíveis aos conhecimentos recentemente desenvolvidos, incluindo-os no processo formativo dos estudantes? É importante que essa inclusão aconteça? Justifique.
No âmbito da pesquisa qualitativa, desenvolvemos a interpretação dos dados a partir dos procedimentos organizacionais e interpretativos apresentados pela Análise Textual Discursiva (ATD), segundo o que nos indicam Moraes e Galiazzi (2007).
Primeiramente, as respostas obtidas com a aplicação do questionário foram transcritas com o apoio de um software editor de texto e, posteriormente, revisadas por nós.
Na sequência, demos início à organização dos dados, com a realização do processo de unitarização ou fragmentação dos textos em unidades de análise. Esse processo consistiu em efetuar a leitura das transcrições para se chegar a unidades constituintes que expressassem um significado relacionado a currículo e que trouxessem em seu contexto um sentido de resposta às questões 1 (um) e 2 (dois), descritas anteriormente.
Com esse procedimento, sistematizamos 73 (setenta e três) fragmentos textuais, que passaram por uma nova leitura com a intenção de estabelecer relações entre eles, isto é, realizar o agrupamento dos excertos textuais que possuíssem uma aproximação de sentido, o que nos conduziu à elaboração e determinação de uma única categoria - “Noções de Currículo”.
Em função dessa emergência, nos restou, então, a busca por uma organização possível das informações no bojo dessa única categoria, ou seja, haveria subconjuntos que caracterizassem essas noções?
Em resposta a essa questão, ao retomarmos novamente todos os fragmentos que elencavam as noções de currículo expostas pelos graduandos, pudemos acomodá-los em 3 (três) grupos, os quais foram assumidos por subcategorias.
No Quadro 1, organizamos esse movimento interpretativo, trazendo a categoria na primeira coluna, uma justificação teórica para sua unicidade na segunda (fundamentada nas argumentações dos depoentes) e as subcategorias evidenciadas na terceira.
Categoria | Justificação | Subcategorias |
---|---|---|
Noções de Currículo | Reuniu as noções dos licenciandos sobre ‘currículo escolar e sua relação com novos conhecimentos’. Em virtude das respostas recebidas tomamos, por exemplar, os pressupostos de Arroyo (2013), considerando o currículo como um direcionamento da prática pedagógica, com base na seleção de conteúdos, de objetivos e de encaminhamentos a serem tomados para que a escola cumpra sua função social de ensinar os conhecimentos construídos pela humanidade. | Noções distantes de pesquisas atuais sobre currículo |
Currículo como base e orientação do trabalho escolar | ||
Noções relacionadas à formação inicial de professores |
Fonte: Os autores.
Na seção seguinte, trazemos exemplos dos depoimentos que contribuem com a elucidação da organização que realizamos e da constituição da nossa categoria única e das suas 3 (três) subcategorias, além de comentários analíticos ancorados nos teóricos que sustentaram o nosso movimento de pesquisa.
4 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS
Informamos que os excertos apresentados e analisados são representativos do total obtido, cuja supressão foi necessária devido ao limite de páginas deste artigo.
No Quadro 2, apresentamos a categoria efetivada e as suas subcategorias.
Subcategorias | Exemplos |
---|---|
Noções distantes de pesquisas atuais sobre currículo | • Estrutura, algo que traz normas, que especifica (LB1). • Currículo para mim é a identificação de uma pessoa no papel, tudo o que ela apresenta na constituição do seu conhecimento fica ali representado (LB6). • [...] impõe normas dentro do ambiente escolar (LB9). • Quando vamos ao estágio os professores concebem o currículo como um documento fragmentado que contém os rols de conteúdos e disciplinas de modo descontextualizado e em muitos casos confundindo-se com o plano de aula (LP2). • O currículo é construído por eles (professores) a partir de uma seleção dos conteúdos do livro didático (LP4). |
Currículo como base e orientação do trabalho escolar | • Se trata de um documento onde todas as especificidades pedagógicas são redigidas para uma organização (LP2). • Pode ser um caminho a ser percorrido e pensado pela escola que não é palpável, mas se materializa no PPP. Especificamente para o professor o currículo então se configura como um rol de conteúdos a serem desenvolvidos em sala de aula, com objetivos a serem alcançados acerca desses conhecimentos produzidos historicamente, nos quais serão selecionados (LP5). • É a base de tudo da escola (LP7). • Uma base que estrutura, que norteia, que conduz o que vai ser trabalhado em uma escola, em relação ao conteúdo (LB10). • O currículo vem contribuir para o trabalho do professor em sala de aula, delimitando o que deve ser ensinado em cada nível. (LB9). • O currículo é o norteador para os professores (LB7). • O currículo envolve um conceito de conhecimentos que abrange a instituição escolar, no qual fica o mesmo caracterizado como um caminho a ser traçado ou até mesmo um conhecimento a ser trabalhado (LP4). |
Noções relacionadas à formação inicial de professores | • É necessário deixar mais claro nos cursos de licenciaturas a definição de currículo. Concordo que o currículo é muito mais amplo do que o caminho percorrido pelos alunos, pois é todo o histórico e contexto, desta forma isto acaba sendo apenas uma parte (LB8). • Tenho que pensar o currículo mais na formação do professor porque se ele não sabe o que é e qual a finalidade, não vai entender a estrutura do que deve passar para os alunos (LB4). • Eu entendo por currículo aquilo que o professor aprende no seu curso de formação e ensina para os alunos, mas não do mesmo jeito e nem com a mesma profundidade. É preciso trazer para o dia a dia do aluno, se você trabalha num bairro pobre, sem serviço de água e esgoto, faz mais sentido esmiuçar por mais tempo a poluição da água, a higiene, doenças causadas por verminoses etc. O currículo é tudo isso (LP4). |
Fonte: Os autores.
Os excertos que exemplificam a subcategoria “Noções distantes de pesquisas atuais sobre currículo” se mostram longe dos entendimentos de currículo que explanamos nas seções iniciais deste artigo e que, por conseguinte, contribuíram com a estruturação da nossa pesquisa. Por esse motivo, foram aqui alocados e assim determinados.
Dentre os segmentos que selecionamos, 2 (dois) deles trataram do currículo como aquele que impõe normas ao trabalho desenvolvido nas escolas (ver relato de LB1 e de LB9 no Quadro 2). Contudo, conforme Corazza (2001), o currículo é um documento que se constrói junto e que expressa os anseios presentes em dada realidade. Dessa forma, essa ideia do currículo como algo impositivo não corresponde à perspectiva abordada em nosso referencial teórico.
Observando o que LB6 nos apresentou, temos o currículo vinculado ao emprego, um documento que é entregue em empresas, contendo os dados de identificação de uma pessoa e seus conhecimentos profissionais. Essa noção nos leva ao que Silva (2011) indica, quando pontua que o currículo é um documento de identidade, que envolve diversos aspectos sociais, culturais e históricos. Assim, o currículo não se resume a uma ficha com dados de uma única pessoa, mas representa a identidade de um coletivo escolar, na perspectiva tratada na formação de professores.
Ao focarmos no excerto do licenciando LP2, somos remetidos a situações vivenciadas por ele durante o período de estágio na Educação Básica. Nesse sentido, percebemos que os professores mencionados por LP2 compreendiam o currículo como um documento fragmentado, descontextualizado e confundido com o plano de aula, como um rol de conteúdos a serem ensinados. Contudo, essa não era a sua visão de currículo, mas aquela que ele percebia que outros assumiam e que apresentou quando interpelado sobre o assunto.
Arroyo (2007) nos alerta de que as propostas curriculares nas escolas vêm sendo cristalizadas pela visão dos professores. Desse modo, o autor aponta para a necessidade de que os docentes estejam conectados ao currículo para que ele represente os anseios da comunidade escolar e construa uma identidade pedagógica da instituição de ensino.
Ao analisarmos o que LP4 registrou, temos a noção de currículo pensado a partir do livro didático, e não o contrário. Entendemos que o trabalho pedagógico envolve decisões, escolhas e organização, e esse processo irá refletir na definição dos materiais didáticos que serão selecionados e elaborados para o ensino dos conteúdos aos alunos, dentre eles, o livro didático. Diante disso, nos reportamos às ideias de Veiga-Neto (2002), ao indicar que o currículo não se baseia em conteúdos fechados, e sim na análise e na compreensão da produção do conhecimento escolar.
É fato que poderíamos comentar não somente esses depoimentos, mas o que os 26 (vinte e seis) depoentes nos apresentaram. Contudo, optamos por selecionar alguns que representassem esse coletivo de graduandos e, como já indicado, limitar a quantidade de páginas do artigo.
Damos sequência, agora, com a segunda subcategoria - “Currículo como base e orientação do trabalho escolar”. Elencamos 7 (sete) excertos que indicaram a compreensão do currículo como elemento orientador do trabalho escolar, principalmente, do trabalho docente. Nessa perspectiva, o currículo se constitui como base dos encaminhamentos e da organização didática da escola e da sala de aula.
Assim, os entendimentos perpassaram a significação como sendo: um instrumento estruturante do trabalho pedagógico das instituições de ensino, um caminho (norte) a ser traçado pela escola, uma seleção de conhecimentos/conteúdos a serem ensinados aos alunos.
No que diz respeito à noção de que o currículo consiste em um instrumento estruturante do trabalho pedagógico das instituições de ensino, identificamos nos relatos de LP7 e LB10 enunciações que corroboram as ideias defendidas por Arroyo (2013). Ele evidencia que o currículo escolar é um ponto estrutural de uma escola para orientar suas práticas educativas.
Também encontramos noções sobre currículo relacionadas a um conjunto de conteúdos e conhecimentos que serão ensinados aos alunos, como pode ser observado nos registros que LP4, LP5 e LB9 nos apresentaram. Esses entendimentos vão ao encontro das defesas de Forquin (1993), Silva (2011) e Gimeno Sacristán (2000), ao compreenderem o currículo como um componente pedagógico dentro da escola, que é resultante de um processo de seleção de conhecimentos cultural e historicamente acumulados pela humanidade que orientará a prática pedagógica dos professores.
Em outros excertos (LP2, LB10 e LB7), foram enunciadas noções sobre o currículo como um caminho/norte a ser traçado pela escola e pelos professores. Dessa maneira, tais interpretações dos licenciandos se aproximam dos pressupostos de Leal (2005), Silva (2011) e Arroyo (2007), ao entenderem o currículo como um guia que orienta o caminho pedagógico.
Por fim, trazemos a terceira subcategoria - “Noções relacionadas à formação inicial de professores” - exemplificada nos depoimentos dos licenciandos LB8, LB4 e LP4, em que temos a relação da formação docente com a ideia de currículo. Tais registros, a nosso ver, se aproximam do que destacam Shulman (2014), Gauthier et al. (2013) e Tardif (2012), ao considerarem o currículo como parte do conhecimento no desenvolvimento profissional do professor.
Fica evidente, também, que a ideia central desses 3 (três) fragmentos diz respeito à necessidade de melhor entendimento do currículo por parte dos professores em formação inicial. Acrescentamos a isso a compreensão de que, mais do que organizar aulas baseadas no currículo, o professor precisa conhecer a proposta (o programa curricular em sua totalidade), como ela foi elaborada, bem como seus parâmetros e objetivos, para ter clareza sobre o papel de sua prática pedagógica naquela escola. Acreditamos que esse movimento de análise e de estudo do currículo constitui uma formação contínua sobre os saberes curriculares dos quais os professores precisam se apropriar para exercerem seu trabalho pedagógico.
Outro aspecto relevante foi o da flexibilidade do currículo. No fragmento apresentado por LP4, percebemos que o licenciando relatou uma compreensão que se aproxima das interpretações de Silva (2011) e Arroyo (2007). Tais autores indicam que o currículo é um elemento sempre em construção e que se faz pela estreita relação com as práticas educativas e, portanto, precisa ser revisitado com constância a fim de ser contextualizado frente à realidade escolar vivida.
Cabe ressaltar que não foram identificados padrões diferentes de percepções sobre currículo entre os licenciandos de Pedagogia e Ciências Biológicas que participaram da pesquisa. Como esperado, a argumentação dos estudantes de Pedagogia foi mais genérica, voltada à educação em geral, enquanto os cursistas da Biologia mantiveram um foco maior nos conteúdos específicos de sua área. Em ambos os casos, porém, as percepções sobre currículo foram semelhantes no que diz respeito à rigidez curricular, à noção currículo como um elemento ordenador da atividade docente e à demanda por uma formação mais efetiva sobre esse assunto nos cursos de licenciatura.
5 CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS DESTA FASE INICIAL
Quando analisamos, de forma geral, as noções dos participantes da pesquisa a respeito do currículo, notamos que muitos deles apresentaram noções distantes da compreensão dos autores que fundamentaram a nossa investigação teórica acerca da temática. Essas noções revelaram um entendimento do currículo como “algo fixo”, “normalizador”, e que se resume a conteúdos que, diversas vezes, estão ordenados em materiais didáticos, como os livros.
No entanto, outros participantes apresentaram uma aproximação de suas ideias com a proposta teórica que referenciamos e assumimos, ao evidenciarem o currículo como um elemento organizador da escola e da prática docente, mas em uma perspectiva de construção, que precisa ser constantemente revisitado e revisado para contemplar as necessidades do contexto em que ele se concretiza.
Assim, o currículo foi definido por alguns participantes, conforme opiniões já defendidas por Arroyo (2013), como um instrumento estruturante do trabalho pedagógico das instituições de ensino, um caminho (norte) a ser traçado pela escola, uma seleção de conhecimentos/conteúdos a serem ensinados aos alunos, uma construção que precisa fazer parte da formação profissional do professor e um documento flexível.
A ideia de um currículo aberto e flexível esteve presente nos dados analisados. O que preponderou na análise, todavia, foi a noção de currículo rígido, de proposição vertical e que necessita ser seguido como se apresenta.
Caminhamos, dessa maneira, para o âmbito da influência que as instâncias pedagógicas das escolas e os professores exercem sobre o que se espera dos programas curriculares, por meio dos projetos pedagógicos e, além disso, do que realmente se materializa nas salas de aula.
Temos, assim, um importante componente a ser trabalhado: a autonomia do docente na significação do currículo e dos projetos pedagógicos. Ou seja, é necessário pensar o docente, respaldado ou não por uma equipe pedagógica, como um agente que aplica, amplia ou restringe a concretização dos programas curriculares, salvo os limites em que se possa pensar essa autonomia em função da perspectiva legal que regula as atividades da profissão docente.
Ficou evidente a necessidade de avançar nas discussões sobre currículo nos cursos de formação inicial de professores, pois mesmo tendo a participação de licenciandos de cursos distintos na pesquisa (Pedagogia e Ciências Biológicas), a compreensão sobre a constituição, o papel e a efetivação do currículo no dia a dia da escola se apresentou de modo bastante superficial, acompanhando os indicativos da literatura adotada na pesquisa.
Por fim, as noções dos participantes nos possibilitaram refletir e reorganizar o curso proposto a eles, tendo como objetivo a conscientização desses futuros professores quanto à importância de se pensar o currículo escolar de forma dinâmica, incluindo as noções de flexibilidade e sensibilidade curricular no processo de educação escolar de seus alunos.