1 INTRODUÇÃO
Este artigo tem como objetivo analisar a influência das diretrizes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) no processo de elaboração da BNC-Formação (BRASIL, 2019c). As políticas educacionais, principalmente a partir da década de 2000, tornaram-se instrumentos de regulação transnacional e nacional no processo de legitimação da fase atual de acumulação flexível, financeira e neoliberal do capital, o que justifica a importância de se examinar o tema em tela. Diversas pesquisas abordam a temática, especialmente a partir da década de 1990, entre elas destacam-se Evangelista, Moraes e Shiroma (2002), Maués (2011), Moreira (2015) e Oliveira (2020). Entretanto, a necessidade de analisar essa problemática amplificou-se com as atuais reformas curriculares no País.
Elencaram-se como categorias de análise para o cotejamento dos documentos nacionais e internacionais investigados na pesquisa os conceitos de reprodução e de hegemonia, uma vez que a garantia de manutenção dos interesses da classe dominante diante do antagonismo de classes requer a reprodução das relações de produção para preservar suas formas de dominação, e, para tanto, é necessário um consenso que legitime sua hegemonia (CURY, 1987). Contudo, deve-se considerar que as políticas educacionais são constituídas e constituintes da prática social e histórica, sendo imperativo identificar o que dizem, como dizem, o que ocultam e as razões do silenciamento (EVANGELISTA; SHIROMA, 2018).
Para o proposto, realizou-se um estudo comparativo entre duas publicações da OCDE - “Professores são importantes: atraindo, desenvolvendo e retendo professores eficazes” (OCDE, 2006) e “Melhores competências, melhores empregos, melhores condições de vida: uma abordagem estratégica das políticas de competências” (OCDE, 2014), no qual buscou-se um cotejamento com a Resolução CNE/CP n.º 2/2019, que institui a BNC-Formação (BRASIL, 2019c). Por meio desse procedimento, o intuito foi elucidar e compreender o processo de elaboração e aprovação da BNC-Formação, no qual considerou-se a análise do documento preliminar - “Proposta para a Base Nacional Comum da Formação de Professores da Educação Básica” (BRASIL, 2018b), a “3.ª versão do Parecer da BNC-Formação” (BRASIL, 2019a) e o Parecer CNE/CP n.º 22/2019 da BNC-Formação (BRASIL, 2019b). Trata-se, portanto, de um estudo exploratório e documental, cujo encaminhamento teórico-metodológico pretende mostrar que, independentemente do governo em vigência, o Brasil tem atendido ao mecanismo de regulação transnacional no processo de formulação das políticas para formação de professores, o que revela seu alinhamento aos interesses do capitalismo internacional, expresso nas diretrizes da OCDE analisadas que, apesar de não serem recentes, continuam a preservar seu caráter orientador.
2 OCDE E SUA INTERLOCUÇÃO COM AS POLÍTICAS PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO BRASIL
A OCDE é uma organização internacional e intergovernamental que agrupa os países mais industrializados da economia do mercado. Com sede em Paris, a organização consiste em assessorar os governos para contribuir com seu desenvolvimento focados na governança e na avaliação, no diagnóstico para expansão da economia dos países mediante a concepção de eficiência e gasto com educação, atrelada “às políticas de gestão e avaliação do ensino que adotaram o nexo entre a elevação dos padrões de desempenho educativo e a crescente competitividade internacional” (MOREIRA, 2015, p. 228).
Após os anos 2000, a OCDE passou a monitorar as políticas para formação de professores em diversos países. Em 2002, publicou o documento “Atrair, desenvolver e reter professores eficazes: plano de projeto e implementação da atividade” (tradução nossa)1, cujo objetivo foi levantar informações e dados em diferentes países para ajudar na elaboração/implementação de políticas de formação de professores com o intuito de melhorar a qualidade de ensino (OCDE, 2006). Na visão da OCDE, a função da escola está relacionada a promover a diversidade de idiomas e culturas, a coesão social, o uso de novas tecnologias, entre outros. Para monitorar a formação de professores a OCDE criou, em 2008, a Pesquisa Internacional sobre Ensino e Aprendizagem (TALIS)2, para fornecer dados sobre a formação e as condições de trabalho dos professores nos países participantes a fim de favorecer a elaboração de políticas educacionais que tornem a carreira docente mais atraente. Contudo, para a Organização não se trata apenas de atrair mais pessoas para a docência, mas de recrutar aquelas que serão professores eficientes (OCDE, 2013). O resumo das possíveis políticas passou, a partir de 2012, a ser publicado anualmente no Teaching in Focus.
Suas diretrizes defendem que a formação dos docentes para a Educação Básica precisa desenvolver as competências e as habilidades necessárias e as capacidades para atuarem de modo construtivo na sociedade e prepararem os alunos para serem adultos produtivos, autodirecionados, eficazes para dar respostas aos problemas cotidianos e motivados a aprender ao longo da vida (OCDE, 2006; 2014). Verifica-se uma estreita relação entre a educação e a economia, pois o investimento em competências e habilidades individuais é considerado fator de crescimento econômico, ou seja, “[...] as competências se transformaram na moeda global das economias do século XXI” (OCDE, 2014, p. 10). Tal afirmação revela que a Organização entende a educação a partir da perspectiva da Teoria do Capital Humano, apologética do sistema capitalista, a qual no legado de Schultz (1973, p. 58) considera que “[...] a educação é uma das fontes principais do crescimento econômico depois de ajustar-se as diferenças nas capacidades inatas e características associadas que afetam os rendimentos, independentemente da educação”.
O questionamento da formação de professores no Brasil acirrou-se a partir do baixo desempenho dos estudantes no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA)3, também organizado pela OCDE. Os dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP) demonstram que, em 2015, 70 países participaram do PISA e o Brasil ficou em 59.º na avaliação em leitura, 66.º lugar em matemática e 63.º lugar em ciências. Na avaliação do PISA de 2018, da qual participaram 79 países, o Brasil permaneceu em 59.º na avaliação em leitura e 66.º lugar em matemática e caiu para 64.º em ciências, o que significa que o País não apresentou melhoria nos indicadores educacionais de 2015 para 2018.
Não se pode ser incauto quanto ao significado das avaliações educacionais realizadas, principalmente por organismos internacionais, pois elas são formuladas para “[...] produzir indicadores que contribuam para a discussão da qualidade da educação nos países participantes, de modo a subsidiar políticas de melhoria do ensino básico” (INEP, 2019, n.p.). O objetivo expresso quanto ao PISA revela que são meios de convergências entre os interesses nacionais e internacionais, visto que os países recorrem às relações de cooperação internacional como forma de legitimar os interesses nacionais (TEODORO, 2015).
Ao restringir a noção de qualidade educacional aos resultados das avaliações em larga escala (PISA, o Sistema de Avaliação da Educação Básica - SAEB e o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica - IDEB), produz-se uma narrativa hegemônica, oriunda de organismos internacionais e grupos nacionais (educadores, Estado e empresários), da urgência de rever o ensino e a formação dos professores a fim de reduzir as desigualdades educacionais e garantir a promoção da qualidade e equidade na educação escolar. Dessa narrativa e da correlação de forças públicas e privadas antagônicas foram aprovadas: a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a educação infantil e o ensino fundamental (BRASIL, 2017a)4 e a BNCC para o ensino médio (BRASIL, 2018a)5, que passaram a compor um único documento.
A BNCC defende a formação integral do aluno e estabelece um conjunto de “aprendizagens essenciais” que devem concorrer para assegurar ao aluno o desenvolvimento de competências compreendidas como a mobilização de conceitos, procedimentos, habilidades práticas, cognitivas e socioemocionais, atitudes e valores voltados para solução de problemas do cotidiano (BRASIL, 2017a; 2018a). Com a aprovação da Lei n.º 13.415/2017, art. 7.º que alterou o § 8.º, do art. 62 da Lei n.º 9.394/1996 (BRASIL, 1996), a BNCC passou a ser a referência para a reformulação dos cursos de formação de professores.
O documento preliminar da BNC-Formação (BRASIL, 2018b) foi enviado ao Conselho Nacional de Educação (CNE) em dezembro de 2018, ainda no governo de Michel Temer, para apreciação e deliberação, porém, em fevereiro de 2019, o governo federal, sob a Presidência de Jair Bolsonaro, solicitou sua devolução ao Ministério da Educação (MEC) para revisões e adequações. Em outubro de 2019, o MEC divulgou a 3.ª versão do Parecer da BNC-Formação (BRASIL, 2019a) para discussão e deliberação pelo CNE, que o aprovou em 7 de novembro de 2019, como Parecer CNE/CP n.º 22/2019. Em 20 de dezembro de 2019, foi aprovada a Resolução CNE/CP n.º 2, de 20 de dezembro de 2019, que definiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e instituiu a Base Nacional Comum para Formação de Professores da Educação Básica (BNC-Formação).
3 DIRETRIZES DA OCDE E A CATEGORIA QUALIDADE E PADRONIZAÇÃO NAS POLÍTICAS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Com a criação do PISA e do TALIS, a OCDE revelou seu interesse tanto pela formação das crianças e jovens quanto pela formação dos professores, ao apregoar que a melhoria da qualidade do ensino e do desempenho dos alunos nas avaliações é dependente da qualidade de formação dos professores, sendo essenciais o planejamento e a implementação de políticas adequadas. Para comprovar a hipótese de que os professores não conseguem manter sua eficiência por longo prazo e reforçar a ideia de aperfeiçoamento constante, destaca que, “[...] em 50% dos países da OCDE, a maioria dos estudantes de 15 anos de idade frequenta escolas cujos diretores avaliam que a aprendizagem é prejudicada pela escassez ou pela inadequação de professores” (OCDE, 2006, p. 42). Diante desse cenário, a OCDE se propôs a identificar os fatores que podem melhorar a formação de professores e atender às demandas dessa sociedade marcada, principalmente, pelo avanço tecnológico.
Por conseguinte, elencou as características dos professores eficazes como: grande capacidade de raciocínio, comunicação e planejamento; amplo conhecimento do conteúdo e habilidades para organizar e aplicar os conhecimentos com o intuito de estimular, orientar e avaliar a aprendizagem em diversos ambientes. Requer-se, assim, a modernização da formação docente a fim de os professores terem suas experiências e habilidades substituídas ou moldadas a contento dessa sociedade dinâmica e tecnológica. Para atingir tal meta, a OCDE recomenda a implantação de políticas que não somente atraiam e retenham pessoas competentes para a docência, mas também ofereçam incentivos para o desenvolvimento profissional contínuo.
O profissionalismo docente, na visão da OCDE, é um dos aspectos-chave para a melhoria da atuação do professor. No entanto, o conceito de profissionalismo assumido pela Organização refere-se ao conhecimento básico necessário ao ensino; à autonomia na tomada de decisão; às redes de parcerias entre professores para troca de informações e ao suporte necessário para manter altos padrões de ensino (OCDE, 2016). Além disso, associa o profissionalismo à satisfação, à confiança na capacidade de ensinar e à percepção do status da profissão. No entanto, o profissionalismo docente não pode ser relacionado apenas aos conhecimentos básicos, como descrito. Ao contrário, requer o domínio dos conhecimentos teórico-práticos referentes à ação do professor, bem como a compreensão da educação como prática social voltada para a transformação da realidade educacional e social.
A definição de professor adotada pelo Organismo também reforça o saber-fazer, ou seja, “[...] uma pessoa cuja atividade profissional envolve a transmissão de conhecimento, atitudes e habilidades [...]” (OCDE, 2006, p. 25, grifo nosso); reduz o professor à função de transmissor de conhecimentos e de disciplinador do comportamento dos alunos. Considera-se que, sendo a educação uma prática social pela qual a geração mais nova se apropria dos bens materiais e intelectuais produzidos histórica e socialmente, é necessário que o professor seja o intelectual capaz de selecionar e organizar intencionalmente os conhecimentos e as atividades de ensino que mobilizem, de forma efetiva, a aprendizagem dos alunos, sem perder de vista os sentidos de sua ação, ou seja, o ideal de homem a ser formado e de sociedade a ser construída (MARTINS, 2012).
Para a OCDE (2014), o PISA evidencia que os estudantes, ao término do ensino obrigatório, possuem pouco domínio das competências básicas. O argumento é de que isso decorre dos currículos “conteudistas” e com grande carga teórica dos cursos de formação de professores que minimizam a possibilidade de os professores desenvolverem as competências para ensiná-las posteriormente.
A OCDE (2006) já havia instituído dois níveis para a modernização do perfil docente: o primeiro, no âmbito do desenvolvimento profissional, voltado à elevação do status e ao aprimoramento da competitividade no mercado de trabalho e em seu ambiente de atuação; o segundo, focalizado na atração e retenção de tipos específicos de professores. Esse estudo se restringiu aos itens “Desenvolver perfis dos professores” e “Aprovar programas para a educação de professores” do objetivo de políticas “Desenvolver o conhecimento e as habilidades dos professores”. Quanto ao perfil dos professores, a OCDE recomenda políticas que desenvolvam as competências dos professores em formação para atuarem com eficácia nas escolas. Essas competências devem estar alinhadas aos objetivos de aprendizagem para a Educação Básica, além de envolverem conhecimento de sua disciplina, habilidades pedagógicas, capacidade para trabalhar com grande diversidade de estudantes e colegas e ter capacidade de desenvolvimento contínuo (OCDE, 2016). Estabelecer o perfil profissional é a base para o processo de avaliação da formação por favorecer o acompanhamento e o controle da eficiência e a qualidade dos programas e das políticas implantadas pelos países, conforme anunciam:
O desenvolvimento de perfis claros de professores e de padrões de desempenho em diferentes estágios da carreira docente ajudará a oferecer um objetivo e uma estrutura para o desenvolvimento profissional, assim como um critério para a avaliação de resultados (OCDE, 2006, p. 144-145, grifo nosso).
Dessarte, a OCDE (2006, p. 99) assevera a necessidade de oferecer “[...] sólida capacitação básica de conhecimento de disciplinas específicas”, conhecimentos gerais sobre a pedagogia e as habilidades para práticas docentes reflexivas, pois espera-se que os professores atuem como pesquisadores e solucionadores de problemas cotidianos, além de serem responsáveis por seu desenvolvimento profissional. Os programas precisam apoiar e incentivar experiências significativas de docência porque favorecem o aumento das taxas de retenção na carreira, além de aumentarem a eficácia e a satisfação profissional. Também ressalta a tendência de mudança nos requisitos para credenciamento de programas de formação de professores, deixando de enfatizar os critérios de conhecimento (por exemplo, conteúdo, currículos e processos) para avaliar critérios de resultados, tais como: “[...] habilidades e competências medidas de maneira variadas, inclusive a partir de portfólios” (OCDE, 2006, p. 123).
As diretrizes da OCDE (2014) para a formação de professores explicitam sua adesão à pedagogia das competências6 ao enfatizarem o desenvolvimento da criatividade e de conhecimentos em novas tecnologias, da capacidade de tomadas de decisões para solução de problemas cotidianos, de comunicação, de colaboração, além de formarem cidadãos ativos e responsáveis. Em suma, apregoam o pragmatismo do saber-fazer e dos aspectos comportamentais em detrimento da formação científica e humanística docente e discente. Esse posicionamento revela seu alinhamento com o processo de reprodução da acumulação flexível e financeira do capital e da manutenção da hegemonia dos grandes grupos internacionais e nacionais que detêm o poder econômico e político no momento.
A expansão da especulação financeira, no intuito de obter maior rentabilidade do capital, resultou em várias crises relacionadas às bolhas especulativas até culminar no grande colapso financeiro de 2008. Inicialmente, esse colapso, como parte da crise estrutural do capital, atingiu os países centrais, disseminando-se gradativamente, em tempos e de formas diferentes pelos demais países. A crise financeira tem agravado a crise estrutural do capital ao reproduzir o ciclo de menor investimento no setor produtivo e, por conseguinte, mais desemprego e menos consumo; crises exacerbadas pelas medidas de ajustes fiscais, de arrocho salarial e de redução dos direitos trabalhistas (CORSI; CAMARGO; SANTOS, 2018). Nesse cenário, a educação é defendida pelos organismos internacionais como elemento-chave para a redução das desigualdades e a promoção do crescimento inclusivo e sustentável. Entretanto, o enfoque educacional é deslocado da escolaridade para a aprendizagem de qualidade (WORLD BANK, 2011), definida pelos resultados obtidos em avaliação de larga escala, o que implica maior responsabilização do aluno e do professor pelo sucesso ou fracasso escolar.
A BNCC e a BNC-Formação inserem-se no que Freitas (2018) denomina de movimento global de reforma da educação, cujos objetivos são adaptar a escola às demandas da economia competitiva e globalizada e adequar a produção nacional à lógica produtiva internacional. Coordenado por organismos multilaterais como a OCDE, esse movimento tem tornado “[...] os processos educativos mais atrativos aos investimentos transnacionais, à atuação de indústrias e prestadoras de serviço dos países centrais, que podem ampliar sua operação também na periferia do sistema - reproduzindo o ciclo de colonização científica, cultural e tecnológica” (FREITAS, 2018, p. 32).
Segundo Oliveira (2020), o movimento mundial de reforma da educação, com diferentes siglas e denominações7, é coordenado por organismos internacionais, organizações não governamentais e redes de thinks tanks8; produtores e disseminadores de um conjunto de ideias sobre a qualidade da educação escolar e do trabalho docente que se corporificam como hegemônicas nos diferentes países. A produção e a divulgação dessas ideias não se dão apenas por meio desses três grupos de atores, mas também pela ação de uma parcela da comunidade educacional e da mídia vinculadas às classes/frações de classes dirigentes e dominantes, até serem internalizadas por uma grande parte da sociedade e se tornarem hegemônicas.
A estratégia implícita de controle é exercida pela vinculação entre os sistemas de avaliação da educação em larga escala (nacionais/internacionais), as políticas curriculares nacionais e a formação docente com a padronização de competências profissionais cognitivas e socioemocionais. Tal estratégia corresponde à manutenção da hegemonia econômica e política atual marcada por extremas desigualdades e conflitos sociais. Trata-se, portanto, de um projeto educacional gerencialista de mercado que
[...] implica em parcerias público-privadas, com a terceirização da produção de materiais didáticos e venda de sistemas apostilados, com a inclusão de sistemas de gestão educacional, na forma de aplicativos ou plataformas digitais, que monitoram todo o sistema administrativo e pedagógico, retira das escolas e do professorado o controle sobre o que deve ser ensinado e como deve ser ensinado (HYPÓLITO, 2019, p. 194).
Embora Hypólito (2019) se refira ao contexto da produção da BNCC, sua abordagem é relevante para a análise da BNC-Formação, uma vez que ela expressa a adequação da formação de professores à BNCC. O consenso requer não só a ampla divulgação de suas ideias, mas também uma massa educadamente despreparada para questionar o sistema. Isso tem sido obtido pela padronização/precarização da formação docente orientada pelo discurso das competências.
Apesar de a pedagogia das competências defender a formação integral do indivíduo, Kuenzer (2005) alerta para a acentuação da distinção entre trabalho intelectual e instrumental e ampliação do processo de alienação do sujeito, em virtude da ênfase nas habilidades psicofísicas e nas competências sociocognitivas em detrimento dos fundamentos teóricos dos cursos e das bases científico-humanistas da formação de professores. O destaque nesse tipo de competência reduz a formação docente a um pragmatismo que inviabiliza a compreensão da totalidade histórica e das mazelas e contradições sociais.
Ao corroborar a precarização da formação docente, recomendar a redução dos elementos teóricos e exacerbar os aspectos pragmáticos, a OCDE contribui, contraditoriamente a seu discurso, para desqualificar a docência e garantir a produção de sujeitos mais propícios à internalização de suas ideologias hegemônicas e, consequentemente, à manutenção da reprodução do capitalismo.
4 O ALINHAMENTO DA BNC-FORMAÇÃO ÀS DIRETRIZES DA OCDE
O documento preliminar da BNC-Formação (BRASIL, 2018b) foi dividido em quatro capítulos, mas, para esta reflexão, foi selecionado o terceiro capítulo, “A proposta de matriz de competências profissionais para a formação de professores”, em função de sua maior proximidade com o texto da Resolução n.º 2/2019 CNE/CP, que institui a BNC-Formação. Importa assinalar que, na apresentação do documento preliminar, é proeminente a ênfase na necessidade de reformulação da educação escolar, diante das mudanças tecnológicas, sociais e econômicas recentes, e no conhecimento como um capital fundamental para o desenvolvimento econômico dos países (BRASIL, 2018b). Essa perspectiva, ancorada nas ideias neoliberais e conservadoras9 e em consonância com as orientações internacionais de organismos internacionais, como o Banco Mundial e a OCDE, considera o professor em posição estratégica para a qualidade de aprendizagem, o que assevera a necessidade de rever a formação de professores no Brasil de modo a atender às novas demandas impostas pela “sociedade do conhecimento” e de geração de capital humano (BRASIL, 2018b).
A 3.ª versão do Parecer da BNC-Formação (BRASIL, 2019a) reforça a ideia de domínio dos conhecimentos básicos exigidos pelo mercado de trabalho e de desenvolvimento e utilização das habilidades socioemocionais ao longo da vida pessoal, escolar e profissional como diferencial. O Parecer aprovado (BRASIL, 2019b) apregoa a revisão da formação de professores no Brasil, pois, diante de um mundo volátil, incerto e complexo, que requer competências cognitivas e híbridas de alta complexidade e habilidades socioemocionais, as novas gerações precisam “[...] compreender e construir relações com os outros e consigo mesmos de modo confiante, criativo, resiliente e empático [...]” (BRASIL, 2019b, p. 12).
A BNC-Formação conceitua competência como “[...] a capacidade de mobilizar diversos recursos cognitivos para enfrentar um tipo de situação [...]” (PERRENOUD, 2000apudBRASIL, 2018b, p. 42); e “[...] implica capacidades e habilidades de enfrentar situações e tarefas muitas vezes desconhecidas ou novas, agrupar de maneira diferenciada e integrada habilidades, atitudes, conceitos, valores, [...]” (PEREZ, 2018 apudBRASIL, 2018b, p. 43).
Com base nesses argumentos e perante as aprendizagens essenciais estabelecidas na BNCC (2018a), assevera-se que é impositivo garantir um conjunto de competências aos profissionais da docência que assegurarão a qualidade da Educação Básica (BRASIL, 2018b; 2019a). Como disposto nos arts. 2.º e 3.º da Resolução CNE/CP n.º 02/2019, os cursos de formação devem desenvolver nos professores as mesmas competências que estão determinadas na BNCC (BRASIL, 2019c). Esse vínculo entre as competências a serem desenvolvidas nos professores com a dos alunos na Educação Básica é um meio de afiançar, pela centralização curricular, o controle e a avaliação de que o projeto social hegemônico está sendo implantado.
Ao reiterar a proposta do documento preliminar de 2018 e do Parecer CNE/CP n.º 22/2019, a Resolução CNE/CP n.º 02/2019 estabeleceu duas categorias de competências a serem desenvolvidas pelos futuros professores: as competências gerais (as mesmas da BNCC) e as competências específicas (BRASIL, 2019c). As competências específicas envolvem três dimensões articuladas que interagem entre si: o conhecimento, a prática e o engajamento profissional. Segundo o documento preliminar (BRASIL, 2018b), o conhecimento profissional é entendido como o núcleo da formação e deve ser valorizado, uma vez que está intimamente ligado à prática profissional. Na Resolução CNE/CP nº. 2/2019, art. 4.º, § 1.º, são indicadas as seguintes competências relativas ao conhecimento profissional:
I. Dominar os objetos de conhecimento e saber como ensiná-los;
II. Demonstrar conhecimento sobre os estudantes e como eles aprendem;
III. Reconhecer os contextos de vida dos estudantes e,
IV. Conhecer a estrutura e a governança dos sistemas educacionais (BRASIL, 2019c, n.p.).
Quanto à prática profissional, o documento preliminar da BNC-Formação (BRASIL, 2018b) recorreu à ideia de Maurice Tardif para o qual a prática se refere aos saberes utilizados pelo professor para desenvolver suas tarefas no cotidiano. Na Resolução n.º 2/2019, no art. 4.º, § 2.º, estabelecem-se as seguintes competências com relação à prática profissional:
I. Planejar ações de ensino que resultem em efetivas aprendizagens;
II. Criar e saber gerir ambientes de aprendizagem;
III. Avaliar o desenvolvimento do educando, a aprendizagem e o ensino; e
IV. Conduzir as práticas pedagógicas dos objetos de conhecimento, competências e as habilidades (BRASIL, 2019c, n.p.).
Finalmente, o engajamento profissional se refere ao compromisso ético e moral do futuro professor que eleva a qualidade de ensino, ou seja, a responsabilidade do professor com o aperfeiçoamento de seu conhecimento e de sua prática profissional (BRASIL, 2018b). Na Resolução n.º 2/2019, art. 4.º, § 3.º, as competências relacionadas a esse aspecto são:
I. Comprometer-se com o próprio desenvolvimento profissional;
II. Comprometer-se com a aprendizagem dos estudantes e colocar em prática o princípio de que todos são capazes de aprender;
III. Participar do Projeto Pedagógico da escola e da construção de valores democráticos; e
IV. Engajar-se, profissionalmente, com as famílias e com a comunidade, visando melhorar o ambiente escolar (BRASIL, 2019c, n.p.).
O estabelecimento dessas competências revela que a BNC-Formação (BRASIL, 2019c) possui interlocução com as diretrizes da OCDE quanto à necessidade de fixar um perfil profissional a ser desenvolvido pelos cursos de licenciaturas, na formação inicial e continuada de professores. Como exemplo de bons modelos de perfis, a OCDE (2006) destaca os programas da Inglaterra, Canadá (Quebec) e Austrália (Vitória). Desses exemplos, a BNC-Formação se assemelha ao modelo do Victorian Institute of Teaching10 (VIT) da Austrália, no qual os padrões se aplicam a oito áreas, sendo agrupadas em três categorias:
- Conhecimento profissional: 1. Os professores sabem como os estudantes aprendem e como ensiná-los com eficácia; 2. Os professores conhecem o conteúdo que ensinam; 3. Os professores conhecem seus alunos
- Prática profissional: 4. Os professores planejam e avaliam a aprendizagem eficaz; 5. Os professores criam e mantêm ambientes de aprendizagem seguros e desafiadores; 6. Os professores utilizam uma variedade de práticas e recursos de ensino para envolver os estudantes na aprendizagem eficaz
- Envolvimento profissional: 7. Os professores refletem sobre seu conhecimento e sua prática profissional e avaliam e melhoram esse conhecimento e essa prática; 8. Os professores são membros ativos em sua profissão (OCDE, 2006, p. 122).
O discurso da OCDE (2006) de que os países tracem seu perfil de professores de acordo com a necessidade de sua população camufla a estratégia de padronização e homogeneização da formação docente. O conceito de qualidade da educação, por exemplo, é definido pelo desempenho docente e a noção de desenvolvimento profissional, pelo maior engajamento, responsabilidade e protagonismo do professor. Esses conceitos, para Oliveira (2020), tornam-se hegemônicos e são incorporados às políticas educacionais. A responsabilização da melhoria de desempenho dos alunos em avaliação em larga escala é atribuída ao professor sem sua efetiva participação na tomada de decisões. A noção de engajamento profissional é parte do processo global de reforma da educação que adota formas mais flexíveis de controle ao apelar para o compromisso do professor com os objetivos institucionais como se fossem seus; assim, o professor se torna “[...] um sujeito empreendedor que deve zelar pelo seu próprio desempenho e desenvolvimento profissional, mesmo que não tenha qualquer segurança e apoio para tal” (OLIVEIRA, 2020, p. 103).
A aprovação da BNC-Formação expressa, portanto, ser mais um instrumento do movimento regulatório das políticas educacionais a fim de assegurar a implementação da BNCC. Esse movimento foi contestado, sobretudo, por entidades educacionais, como a Associação pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope) e a Associação Brasileira de Currículo (ABDC), que exigiam a implantação da Resolução CNE/CP n.º 2, de 1.º de julho de 2015, por entenderem que esta era uma síntese bem elaborada de suas lutas (BAZZO; SCHEIBE, 2019). Contudo, as autoras afirmam que houve também um movimento reacionário e conservador dos novos ocupantes do MEC e do CNE, pós-impeachment da Presidenta Dilma, para adequar as políticas de formação de professores à BNCC em função da agenda global de manutenção do capitalismo. Tal como a BNCC, a elaboração e a aprovação da BNC-Formação estiveram sob a tutela do MEC-CNE, marcada fortemente pela parceria público-privada (BAZZO; SCHEIBE, 2019).
Outrossim, a 3.ª versão do Parecer da BNC-Formação (BRASIL, 2019a) foi elaborada pela Comissão Bicameral designada pelo CNE, composta por dez conselheiros com vínculos com a iniciativa privada: aparelhos privados de hegemonia (UNESCO, Instituto Natura, UNDIME); instituições de ensino superior privado (Kroton, Fundação Cesgranrio); empresas educacionais de capital aberto (Kroton, Estácio de Sá e Grupo Ser Educacional); Sistema S (Senai; Sesi, Senac); e movimentos empresariais (Todos pela Educação e o Movimento pela Base Nacional Comum), porém somente dois conselheiros possuíam vínculos com instituições públicas de ensino superior na época (EVANGELISTA; FIERA; TITTON, 2019). Observa-se, portanto, a forte ingerência do empresariado na construção da narrativa e dos interesses hegemônicos sob os quais foi aprovada a BNC-Formação pela Resolução CNE/CP n.º 02/2019, que revogou a Resolução CNE/CP n.º 2/2015.
O art. 27 da Resolução CNE/CP n.º 2/2019 determina que as Instituições de Ensino Superior (IES) têm até dois anos para realizarem as mudanças e se adequarem à BNC-Formação. O parágrafo único estabelece a adequação às competências em até três anos para aquelas IES que implementaram a Resolução CNE/CP n.º 2/2015. É válida a crítica de Farias (2019) ao processo verticalizado e antidemocrático de elaboração e aprovação da BNC-Formação que desconsiderou o diálogo com as universidades públicas, as entidades acadêmicas do campo educacional e as entidades representativas de professores e estudantes. Nesse processo, cabe aos professores o papel de executores das políticas, marca característica do Estado neoliberal vigente que transfere a execução das políticas sociais, entre elas a educação, para a sociedade, preservando seu papel regulador e normatizador.
Esses encaminhamentos nas políticas de formação de professores inserem-se no movimento global de reforma da educação (GERM) caracterizado pela padronização curricular; transferência da responsabilidade da gestão dos sistemas escolares para as esferas locais; e accountability ou o processo de responsabilização e prestação de contas. Essas estratégias, somadas aos resultados nas avaliações de larga escala, colaboram para a competitividade entre as instituições de ensino e entre professores, que são premiadas ou punidas no que diz respeito a incentivos salariais, recursos financeiros ou materiais (HYPÓLITO, 2019).
A padronização curricular adotada na BNC-Formação (BRASIL, 2019c) ainda reduz os conhecimentos profissionais às questões pragmáticas da docência, distancia os professores da compreensão da educação como prática social e os transforma em meros técnicos do ensino. O não aprofundamento nos conhecimentos científicos teóricos e práticos que envolvem a educação e a ênfase na formação de competências e habilidades socioemocionais e cognitivas, com base em parcos conhecimentos necessários para a resolução de problemas cotidianos, não promove a formação do ser humano como sujeito histórico emancipado. É o que revela o art. 5.º, I, da Resolução CNE/CP n.º 2/2019, ao estabelecer, entre os fundamentos da formação de professores, “A sólida formação básica, com conhecimento dos fundamentos científicos e sociais de suas competências de trabalho” (BRASIL, 2019c, grifo nosso). Essa questão é defendida pela OCDE ao afirmar que
[...] Além de fornecer uma sólida capacitação básica de conhecimento de disciplinas específicas, de pedagogia relacionada a disciplinas e de conhecimentos gerais de pedagogia, a educação inicial de professores deve também desenvolver habilidades para práticas reflexivas e para o desenvolvimento de pesquisas em serviço (OCDE, 2006, p. 99, grifo nosso).
Ainda, no art. 7.º, II, estabelece que, entre outros aspectos, a organização dos cursos de formação de professores deve ter como princípio “[...] o reconhecimento de que a formação de professores exige um conjunto de conhecimentos, habilidades, valores e atitudes, que estão inerentemente alicerçados na prática [...]” (BRASIL, 2019c, n.p., grifo nosso). O deslocamento do foco da formação de professores para as práticas cotidianas restringe o docente a uma formação básica e pragmática em detrimento de uma formação teórico-prática ampla e sólida, alicerçada no conhecimento científico acumulado no campo da pedagogia e demais licenciaturas.
Os conhecimentos e as habilidades propostos pela BNC-Formação, alicerçados na prática empírica, indicam um desprezo pelo campo teórico cujo domínio é imprescindível para a aplicação consciente de procedimentos didáticos necessários para a qualidade da educação (PARO, 2012). O autor assinala que a discussão a respeito da qualidade do ensino, bem como, o estabelecimento de atributos para defini-lo deve ter como ponto de partida o objetivo que se tem para a educação. Embora a LDB n.º 9.394/1996, no art. 2.º, proclame como objetivo o “pleno desenvolvimento do educando”, a BNC-Formação (BRASIL, 2019c) se limita à formação básica voltada para o trabalho e, nesse sentido, a pedagogia das competências é a mais adequada.
Silva (2019) explicita a estreita relação entre a formação para o trabalho produtivo em geral e a formação para o trabalho docente e, nesse caso, a BNC-Formação é necessária para formatar a mentalidade do professor; materializar a BNCC nas escolas; constituir um vasto mercado de produtos educativos em todos os níveis; e concretizar os elementos centrais da formação da classe trabalhadora no Brasil. Em suma, é uma estratégia “[...] de produção de hegemonia burguesa que lança mão da escola, em todos os seus níveis, para produzir força de trabalho dócil, a baixo custo e por meio de formação rebaixada do ponto de vista da aquisição do conhecimento científico” (EVANGELISTA; FIERA; TITTON, 2019, p. 8).
A BNC-Formação (BRASIL, 2019c), no art. 6.º, elenca uma série de princípios para as políticas de formação de professores que, aparentemente, estão em consonância com uma busca pela melhoria da qualidade de formação, tais como: a valorização da profissão docente, a articulação entre teoria e prática, a articulação entre a formação inicial e a continuada; é preciso analisar o documento em sua totalidade. Tais princípios possuem estreita relação com uma política de formação alienante, uma vez que a Resolução n.º 2/2019, no Capítulo III, que trata sobre a Organização Curricular dos Cursos, estabelece como princípios organizacionais: o compromisso com igualdade e equidade; o reconhecimento de conjunto de valores, conhecimentos, atitudes e habilidades alicerçados na prática; a aprendizagem como tendo valor em si mesmo; o fortalecimento da responsabilidade individual, da autonomia como parte do próprio desenvolvimento profissional e de centralidade na prática (BRASIL, 2019c). Esses princípios se opõem ao desenvolvimento da práxis como fundamento da formação docente. A construção da narrativa hegemônica dá-se mediante a reiteração de categorias em diversos documentos, publicações, legislação e até mesmo na grande mídia. Definimos como categorias políticas os termos (palavras) que expressam políticas recomendadas e presentes nos documentos. O Quadro 1 evidencia a recorrência do uso de determinadas categorias políticas na publicação “Professores são importantes: atraindo, desenvolvendo e retendo professores eficazes” (OCDE, 2006) e na Resolução CNE/CP n.º 02/2019, que institui a BNC-Formação e seu anexo (BNC-Formação), conforme indicação da quantidade de vezes que foram citadas no texto dos referidos documentos.
TERMOS | OCDE | BNC-FORMAÇÃO |
---|---|---|
Competências | 28 | 50 |
Desempenho | 215 | 6 |
Resultado | 0 | 6 |
Eficácia | 42 | 1 |
Engajamento profissional | 6 | 16 |
Conhecimento profissional | 5 | 4 |
Prática profissional | 6 | 4 |
Igualdade/desigualdade | 12 | 4 |
Sólida formação básica | 7 | 2 |
Teoria e a prática | 2 | 3 |
Fonte: Elaborado pelas autoras (2021).
Ao enfatizar categorias políticas como competências, desempenho, resultado, eficácia e o trio das competências profissionais (conhecimento, prática e engajamento), não apenas se confirma o alinhamento entre as diretrizes da OCDE e a BNC-Formação, mas também o caráter economicista e pragmático do discurso de ambos. Chama a atenção o fato de a BNC-Formação (BRASIL, 2019c) ter utilizado a categoria competência 50 vezes e a categoria engajamento profissional, 16 vezes. Na publicação da OCDE, há maior recorrência das categorias políticas de desempenho (215 vezes) e eficácia (42 vezes). Embora a categoria resultado não conste no documento da OCDE, ela aparece 6 vezes na BNC-Formação (BRASIL, 2019c). A categoria engajamento profissional, citada 6 vezes no documento da OCDE, foi reproduzida 16 vezes na BNC-Formação, o que reforça sua preocupação com a responsabilização do professor e da escola pelo fracasso ou êxito escolar dos alunos. O quadro comparativo, além do aspecto quantitativo, revela correspondência de categorias políticas entre os dois documentos, pois trata-se de políticas recomendadas pelo mercado atual e que tem sido apropriada pela área da educação.
A lógica economicista é camuflada pelo emprego repetitivo de categorias políticas que pressupõem uma preocupação com o problema da desigualdade educacional e social, da necessidade da unidade entre teoria e prática escolar e com a proposição de uma sólida formação básica para o docente. São categorias, contudo, que condizem com a formação das competências essenciais ao perfil do trabalhador requeridas para a reprodução da relação capital-trabalho. A competência está pautada pelo desempenho, produtividade, eficácia, competitividade, no saber-fazer, no sentido de saberes tácitos adquiridos no fazer do trabalho e utilizável como resposta imediata aos problemas do cotidiano (DUARTE, 2010). Além disso, o foco da aprendizagem está no aluno, cabendo ao professor apenas criar um ambiente propício para tanto, o que fortalece o caráter técnico de sua formação. Conforme Duarte (2010), o professor perde sua identidade de mediador entre o aluno e o conhecimento, sendo necessária uma formação para a emancipação que garanta o acesso ao conhecimento produzido pela humanidade.
A BNC-Formação deve ser questionada, pois pode ser instrumento de acirramento da desvalorização dos professores, bem como para depreciar sua identidade como intelectuais da educação. Isso porque não se trata de uma formação científica, técnica, tecnológica, pedagógica, cultural e humana, mas, sim, da redução dos conhecimentos necessários à docência, que se amortiza em competências, habilidades e técnicas. O risco de tal proposta é restringir a formação de professores ao conhecimento pragmático que dissocia o ato de educar da função social da prática docente e desconsidera os conhecimentos científicos fundamentais para a formação emancipadora do sujeito e a práxis11 revolucionária.
Imbuídos desse propósito, é imprescindível uma base teórico-prática sólida, e não uma sólida formação básica. Paro (2012) salienta a importância da educação escolar como meio pelo qual o homem, como ser histórico e social, constitui-se pela apropriação, tanto dos conhecimentos acumulados pela humanidade como dos elementos que compõem a cultura. Para tanto, a ANFOPE e o Fórum Nacional de Diretores de Faculdades/Centros/Departamentos de Educação ou Equivalentes das Universidades Públicas Brasileiras - ForumDir (2018) evidenciam a necessidade de uma formação teórica e interdisciplinar, ancorada nos fundamentos históricos, políticos e sociais e no domínio tanto dos conteúdos da educação básica quanto das formas como esses conteúdos serão trabalhados no processo de ensino. A problemática de almejar a formação sólida básica é restringir a formação docente e, também, a educação escolar aos conhecimentos cotidianos básicos, de competências e de habilidades para o mercado de trabalho e, por conseguinte, condenar o sujeito a um desenvolvimento pífio, alienante e reprodutor da realidade; é limitar a capacidade humana criadora.
A distância entre os objetivos de uma educação para a formação emancipadora e os da OCDE, incorporados à BNC-Formação, revela que a educação voltada à emancipação é fundamento para a constituição do ser humano histórico e deve possibilitar o acesso a todas as formas de conhecimento e expressão cultural, e não somente aos conhecimentos básicos oferecidos pela escola. A OCDE, diferentemente, busca formar o cidadão produtivo para o mercado, aquele cumpridor de deveres impostos pelo trabalho capitalista. Essa distinção revela o caminho escolhido pela BNC-Formação, ou seja, a formação de professores que tenham competências e habilidades para garantirem a reprodução das relações capitalistas de produção e formarem mão de obra para o mercado de trabalho.
5 CONCLUSÃO
As publicações da OCDE selecionadas para a análise relacionam a qualidade de formação dos professores à melhoria da qualidade de educação. Com base em uma abordagem materialista e dialética da história, entende-se que a formação docente apregoada pela BNC-Formação atende às demandas da acumulação flexível do capital ao visar a promoção de uma prática docente que desenvolva nos educandos os conceitos básicos e as habilidades e competências para resolverem problemas cotidianos. Alinhado a esse objetivo, constatou-se que a BNC-Formação tem como base teórica a pedagogia das competências, uma vez que relaciona um conjunto de atitudes e habilidades que os professores devem desenvolver nos cursos de formação. Tal proposta é contrária à formação docente visando a emancipação, pois favorece a reprodução das relações de produção capitalista e a manutenção da hegemonia das classes ou frações de classes que detêm o poder na atual fase do capital financeiro.
As políticas para a formação de professores não podem se limitar ao desenvolvimento de competências para resolver problemas cotidianos, sem relacioná-los à totalidade da sociedade e do processo educativo. É preciso que as políticas públicas, e também os professores, considerem a atividade docente como práxis revolucionária e o professor como um intelectual consciente de sua ação e crítico com relação ao ideal de homem e de sociedade a serem construídos.
A análise considera o alinhamento da BNC-Formação com as orientações da OCDE, pois prioriza a prática cotidiana, as disciplinas de metodologias e didática, o domínio dos conhecimentos previstos na BNCC e do conteúdo específico a ser ensinado, a capacidade criativa e inovadora, o engajamento na formação e no desenvolvimento profissional, entre outros. O conceito de competência da BNC-Formação e da OCDE está relacionado à primazia do saber-fazer em detrimento do conhecimento historicamente acumulado. Sob uma perspectiva dialética e histórica, assevera-se que a proposta de formação docente da BNC-Formação revela-se condizente com a reprodução e a hegemonia do capital. É, portanto, inapropriada para a formação de um sujeito histórico capaz de superar as relações sociais capitalistas contraditórias e desiguais.