1 MODOS DE PESQUISAR COM NARRATIVAS: IMPLICAÇÕES PARA O CAMPO DO CURRÍCULO
As pesquisas no campo do currículo vêm hoje ampliando as articulações temáticas e teóricas e produzindo problematizações em torno de aspectos epistemológicos e metodológicos. O movimento tem mobilizado avanços importantes em torno das noções, experiências e interfaces entre campos e questões de investigação. O reconhecimento da complexidade crescente, em torno das questões contemporâneas que a Educação enfrenta, vem corroborando o transbordamento do campo do currículo e suas conexões, cooperações e colaborações que se expressam na aproximação entre pesquisadores, espaços e saberes produzidos nas diversas práticas e vivências sociais.
Quando somos convocado/as a refletir sobre as relações entre nossos modos de pesquisar e o que pressupomos ser conhecimento, o debate quanto ao papel epistemológico e político efetivo necessário à pesquisa em educação nos leva a pensar o “como” pesquisar, precedido pelo porquê e para que produzimos conhecimentos. Diz um ditado Yorubá: “Exu matou um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje”. O deslocamento temporal e perceptivo que os modos de sentirpensar o mundo em racionalidades não ocidentais trazem, particularmente na que esse ditado expressa, fala um pouco sobre as utopias que praticamos ou buscamos por em movimento com os conhecimentos produzidos nas pesquisas e aqui convocados pelo ato de narrar. Isto nos provoca a ampliar as conexões que nos favoreçam articular nas pesquisas posicionamentos político-epistemológico-metodológico mais coerentes com a justiça cognitiva e social (SANTOS, 2010). Considerando essa indissociabilidade entre o campo do político e o do epistemológico, as pesquisas em currículo vêm assumindo a necessidade de repensar as ideias hegemônicas sobre o que é conhecimento e como ele é produzido e legitimado. Precisamos, portanto, pensar nossos referenciais epistemológico-metodológicos de modo que se mostrem mais adequados às nossas lutas políticas pela transformação social.
Dentre as discussões que envolvem questões epistemológicas e metodológicas crescentes no campo, as pesquisas com narrativas certamente vêm ganhando destaque. Salientam-se as narrativas identitárias “(bio-socio)gráficas [enquanto] contra-narrativas, uma vez que nos seus actos de fala com a teoria desfiam silêncios (a)normais no estaleiro da ciência”, funcionando ”à margem da plataforma redutora da ciência que produz como não-existente tudo que não se pode reclamar como ‘objectivo’” (PARASKEVA, 2011a, p. 16). Dentre outros aspectos, as pesquisas com narrativas e conversas vêm trazendo contribuições para a investigação dos processos que envolvem as políticas curriculares, o registro sistemático e de compartilhamento de experiências docentes que dialogam com a avaliação dos currículos produzidos e processos formativos, além de mostrarem-se pertinentes com a produção do repertório de saberes docentes e com a produção dos currículos nos cotidianos das práticas educativas que se identificam com as alternativas emancipatórias e com as lutas contra as desigualdades. O campo do currículo é conhecido por sua ousadia epistemológica na área de educação, exatamente pela capacidade em formular questões e buscar articulações que alimentem a inquietação investigativa que o caracteriza. Nesse sentido, reunir em um dossiê experiências e debates em torno das narrativas, conversas e questões curriculares possibilita fornecer um conjunto de reflexões que contribuam com o campo.
Dentre as pesquisas que vêm investindo no trabalho com narrativas nos estudos em currículo estão as que investigam processos de formação docentes e discentes, em especial os saberes docentes, em uma trajetória de mais de três décadas que reconhece nos cotidianos a produção de saberes que se expressam pelo trabalho docente e pelas narrativas a ele relacionadas (GERALDI; FIORENTINI; PEREIRA, 1996; ALVES; GARCIA, 1999). Desde então, seja em conversas que mais se aproximam de Bakhtin (2017) ou de Certeau (1994, 2010), seja em novas conversas com outros interlocutores e influências teóricas, as aproximações entre currículo e narrativas têm se tornado cada vez mais frequentes e férteis em ampliar as compreensões e aspectos que envolvem as redes de conhecimentos circulantes e operantes nas práticas educativas. Nessa trajetória, Alves (2019) ousou trazer em narrativas e imagens discussões que envolvem os currículos, as escolas e a docência, nos mostrando com isso não apenas o potencial, mas, sobretudo, a propriedade narrativa em expressar as imbricações que engendram as redes educativas com as quais os conhecimentossignificações são tecidos. Com isso, destacando a pertinência para as pesquisas em Educação e Currículo do trabalho com narrativas.
As narrativas aparecem aí sob a forma de escritas docentes e discentes, cartas, documentação das práticas pedagógicas (SUÁREZ, 2008) e mais recentemente como elemento que resulta ou é mobilizado por conversas com professores (RIBEIRO; SOUZA; SAMPAIO, 2018). As narrativas, a partir dos estudos que envolvem saberes docentes e em sua continuidade e complexidade, favorecem produzirmos elementos para que nossa reflexão teórica e empírica contribua para compreendermos e interagirmos com as produções de sentidos de docência tecidas nos processos formativos e com os modos como o/as professores/as pensam sua atuação e os currículos, dentre outras contribuições.
Conhecer e narrar, narrar como modo de tessitura de conhecimentos, sejam eles mobilizados pelas invenções da memória, sejam compostos pelas traduções (sub)versões e interpretações das histórias contadas, é algo que tem íntima relação com aquilo que nos afeta. As narrativas podem produzir versões e digressões que criam brechas para se escapar de uma ordem imposta (CERTEAU, 1994), que garantem 1001 noites de vida, podem mostrar o mundo como é sentido por alguém ou como se pretende que ele seja percebido por muitos. As conexões entre narrar e sentir, assim, estão de algum modo envolvidas em pensar com as práticas educativas, os currículos, o/as docentes e discentes aquilo que nos afeta e a própria potência de um conhecimento. Nessa direção, também, as pesquisas com narrativas parecem trazer essa dimensão dos afetos (SPINOZA, 2010) e do cuidado (NODDINGS, 1998) no que tange à dimensão ética, política e estética nos currículos, posto que permitem não somente percebê-los como, também, mobilizá-los. Por isso, quando falamos nas articulações entre as questões curriculares e as narrativas, cabe lembrar que estamos considerando o transbordamento da narrativa em expressões e linguagens diversas. Imagens, sons, silêncios, ruídos, textos, audiovisualidades e outras criações que nos permitem perceber as conexões entre afeto e conhecimento são, para nós, possíveis de serem entendidos como narrativas.
A ruptura, também conceitual com as lógicas e práticas de relação hierarquizante entre poderes e saberes, é um aspecto crucial à compreensão e desenvolvimento de relações com a produção de saberes nos currículos e nos processos formativos mais horizontalizadas e solidárias que as narrativas podem ajudar a pensar. Entendemos que um currículo se produz nos espaços de interação e produções de sentidos e saberes com as práticas de seus sujeitos. Entendemos que currículos são espaços de produção de conhecimentos que trazem sentidos políticos e epistemológicos e onde esses sentidos são disputados e negociados. Essa negociação também envolve os sentidos de docência e escola a que podem ser relacionados aos currículos produzidos que as narrativas ajudam a acessar.
A incorporação das narrativas em processos de pesquisa e formação inspirados nas discussões sobre as narrativas como instrumentos nas pesquisas (PASSEGI; SOUZA; VICENTINI, 2011) vem ao encontro de compreensões epistemológicas e metodológicas que, dentre outras contribuições, favorecem deslocamentos de percepções hegemônicas quanto às formas de conhecer e as formas de tecer conhecimentos. Nesse sentido, interessam para pensar os saberes docentes, as práticas pedagógicas e os processos de formação de forma mais ampla.
As narrativas e o trabalho com elas que vem sendo estudado, ainda, como caminhos de formação docente que convocam o/as professores/as a um lugar de criação e produção política e epistemológica, ao mesmo tempo em que dão relevo às produções singulares conectadas às redes de saberes que se tecem com as escolas em seus cotidianos. Como modos de movimentação das redes de conhecimentos que, especialmente enquanto conversas, favorecem produções mais coletivas e solidárias, as narrativas parecem também aproximar os currículos do exercício ordinário da justiça social e cognitiva. Particularmente porque,
As narrativas não necessitam ser épicas para provocarem outras histórias e alimentarem o repertório de saberesfazeres das práticas. Seu potencial de deslocamento e para provocar produções de outros-novos saberes, sentidos e valores tem se mostrado muito mais relacionado ao que mobiliza as professoras, ao que, num sentido mais amplo, as afeta. O reconhecimento do afeto em diversos sentidos desse termo é um dos elementos que mais mostra-se como mobilizador e relacionado à vontade de agir, de contar das práticas, de pensar com elas e de propor ações de maior ou menor monta (GARCIA; RODRIGUES, 2017, p. 127).
Dentre as várias possibilidades e contribuições que as aproximações entre currículos e narrativas vêm apontando, este dossiê assumiu como seus objetivos: 1. Compartilhar experiências e contribuir com o desenvolvimento e consolidação da pesquisa em educação e no campo do currículo; 2. Mobilizar o debate em torno das pesquisas com narrativas, com foco na formação docente, cotidianos e currículos; 3. Ampliar o conhecimento de processos, princípios e práticas adotados e desenvolvidos por grupos e pesquisadores/as que se voltam para questões relacionadas às várias tipologias narrativas (narrativas escritas/ escritas narrativas; narrativas e oralidade; narrativas fílmicas e imagéticas; narrativas docentes e discentes) com foco em questões curriculares; 4. Discutir práticas de produção e práticas de investigação e suas contribuições para o campo. Com isso, o dossiê foca atenção na necessária abertura do campo dos estudos curriculares sobre as discussões a respeito das grafias de vida que cabem (ou não) em distintos tipos de narrativas e narratividades, a partir das quais as relações entre sujeitos e objetos se modulam diferenciadamente, com reflexos e atravessamentos nas compreensões sobre conhecimentos, identidades, valores éticos, estéticos e políticos. Nesse sentido, as aproximações entre currículos e narrativas nas pesquisas mobilizam questões que podem favorecer a ampliação dos repertórios de saberes face ao enfrentamento das desigualdades e a produções mais emancipatórias e solidárias.
Na expectativa de reunir uma multiplicidade de enfoques metodológicos, epistemológicos e do campo da criação entre linguagens, na Chamada Pública realizada foram bem-vindas contribuições em diferentes estilos e composições, que se abrissem à problematização das narrativas como os modos de relação com os currículos e as formações docentes, ambos campos dimensionados em amplo espectro de significações e sentidos. Esperavam-se articulações com as discussões sobre cotidianidade, teorias de conhecimentos, as histórias de vida de sujeitos humanos e não humanos, formas expressivas das vidas pulsantes nos currículos escolares, nas memórias e partilhas de sentidos em experiências formativas de vir a ser professora/professor, mobilizações de produções políticas nas conversações curriculares, produções coletivas impulsionadas por experiências em torno do trabalho com narrativas nas discussões curriculares, dentre outras possíveis articulações que se façam pertinentes aos currículos e às narrativas. Foram selecionadas conversações realizadas com pesquisadoras/es de instituições do Brasil e exterior em torno das narrativas nas pesquisas com formação docente e questões curriculares, permitindo ao dossiê convidar os leitores a explorar o debate teórico, metodológico e as interfaces entre as narrativas, a produção de conhecimentos e sensibilidades.
A temática proposta pelo dossiê “Narrativas, conversas e as múltiplas grafias de vida: reverberações curriculares” pretende se somar, assim, aos espaços de discussão e partilha de conhecimentos e práticas especificamente interessadas no diálogo com o campo de estudos sobre currículo, tanto no que já lhe é singularmente identificado como pertencimento, quanto em diferenciação das suas matrizes metodológicas e epistemológicas. Ao trazer aportes de pesquisas nacionais e internacionais, o dossiê contribuirá para as trajetórias de qualidade relevante de ambas as revistas, somando-se às temáticas que vêm sendo socializadas, bem como abrindo possibilidades outras para a compreensão crítica e sensível de movimentos do pensar e praticar currículos na contemporaneidade.
2 O DOSSIÊ E AS APOSTAS NA INDISSOCIABILIDADE ENTRE O CAMPO DO POLÍTICO, DO EPISTEMOLÓGICO E DO ÉTICO-ESTÉTICO
O dossiê abre com o texto “El giro pedagógico en el Currículum, la Formación y el Oficio de Enseñar: experiencias, principios e inspiraciones con investigaciones narrativas en educación”, de Daniel Hugo Suárez da Universidad de Buenos Aires. O texto desenvolve a discussão iniciada num encontro de um Ciclo de Conversas Internacionais em Torno das Narrativas nas Pesquisas e na Formação (GIRO), inscrevendo-a num movimento internacional de reflexão e ação “relativa al imperativo epistemológico, político, ético, estético, poético y metodológico de un viraje radical en las maneras de hacer ciencia”. A virada discursiva do século passado, que abalou os fundamentos sacralizados da ciência moderna, veio resgatar o lugar da experiência e da subjetividade nos modos de conhecer até lá conhecidos. Assim se consolida o campo da pesquisa narrativa em educação, ensaiando-se outros modos de conhecer e narrar, imaginar e teorizar a pedagogia, a formação docente e o currículo.
O autor estrutura o texto em três momentos: um primeiro, no qual relata a sua experiência com a pesquisa narrativa no âmbito do processo de constituição da Red de Formación Docente y Narrativas Pedagógicas. Trata-se de um programa de extensão universitária, no qual os docentes indagam e documentam as suas experiências pedagógicas através de narrativas sobre a pedagogia, sobretudo de natureza autobiográfica. Num segundo momento, o autor narra aquilo que considera o “princípio” da sua aventura com a pesquisa narrativa, onde currículo, narrativas de si e memórias pedagógicas confluem de um modo oficialmente validado. Trata-se de um projeto de cinco anos, que articulou docentes, diretores/as, supervisores/as e investigadores/as, num processo de pesquisa-formação-ação que visava promover a construção colaborativa de conhecimento sobre as práticas pedagógicas com o apoio do governo local. Num terceiro momento, o autor recua aos princípios do seu envolvimento com a pesquisa narrativa, e que se deveu ao desempenho de um cargo político, de coordenação do Programa de Desenvolvimento Curricular ao serviço do Ministério de Educação da Nação no ano de 2000. O projeto que procurou desenvolver, “Documentar la experiencia escolar”, envolveu a documentação do currículo em ação, a partir de uma perspectiva etnográfica, o currículo como era relatado pelos/as docentes nas várias províncias argentinas. Assim se começou, na sua experiência, a reconhecer e validar o saber docente enquanto “referência empírica válida”, o/as docentes enquanto sujeitos de enunciação do currículo, produtores de documentos curriculares autorizados, produtores legítimos de discursos, saberes e práticas pedagógicas.
Este texto dá o mote aos treze textos que o seguem, abrindo o campo da pesquisa narrativa e apresentando os seus fundamentos, muito além do metodológico - um movimento epistemopolítico de resgate do/as docentes como sujeitos de enunciação e de produção de conhecimento (GARCIA; OLIVEIRA, 2014; 2015), um movimento contra-hegemônico à epistemologia curricular e formativa dominante (PARASKEVA, 2011b), e que estará claramente presente nos textos que se seguem.
O modo como os docentes se constituem como produtores de currículo e sujeitos-atores da sua formação é explorado no texto “Entre el curriculum prescripto, el vivido y el narrado. Saberes de la experiencia docente en la formación inicial desde coordenadas biográficas”, de Maria Florentina Lapadula, Luis Porta e Jonathan Aguirre, da Universidad Nacional de Mar del Plata (primeira autora e terceiro autor) e da UNMDP-CONICET (segundo autor). O estudo relatado neste texto visa recuperar saberes construídos a partir da reflexão sobre a experiência, individual e coletiva, de um grupo de professores/as (iniciantes e experientes) do Ensino Fundamental da cidade de La Plata (Argentina). O estudo envolveu a análise documental e a realização de entrevistas biográfico-narrativas a docentes responsáveis pela orientação da prática pedagógica de futuros docentes. O estudo documental tratou da análise do desenho curricular dos cursos, leis, resoluções e normativos e uma amostra de programas representativos da formação pretendida no campo da prática. As entrevistas biográfico-narrativas visaram conhecer os processos de construção curricular do/as docentes orientadores/as. Para estes e estas, a partilha de experiências com os estudantes futuros profesores/as assume-se como uma atividade central à sua função, na medida em que percebem o trabalho docente como uma atividade profissional mas também cultural. A transmissão de saberes docentes, a discussão e partilha de diferentes formas de ser e estar na docência e de trajetórias estudantis e profissionais, bem como questões do foro administrativo e burocrático ligados à docência, são aspetos relevantes do seu trabalho de indução de novos profissionais. A formação surge como um trajeto individual e coletivo “en el que se entrelaza pasado, presente y futuro, un trayecto en el que diferentes experiencias van formando al sujeto y reflexionando sobre ellas”. Assim, o pessoal acaba por se fundir no profissional, quando assume-se a importância de motivar e inspirar novas gerações para o exercício da função docente, a fim de contrariar os efeitos perniciosos da intensificação do trabalho docente, da flexibilização, do pluri-emprego. A partir deste olhar, os saberes pedagógicos constroem-se a partir da reflexão crítica sobre os processos que caracterizam o exercício da função docente - uma função simultaneamente pedagógica e cultural, mas também profissional e política.
A reflexão sobre o papel das narrativas na propulsão de processos formativos construídos em diálogo intergeracional, ou seja, entre docentes em diferentes fases da sua carreira, continua com o texto “Artesanias narrativas: conversas entre currículo e formação docente”, de Graça Regina Franco da Silva Reis e Marina Santos Nunes de Campos, do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. As autoras convocam-nos a pensar as narrativas docentes enquanto “artefactos”, “nos desafiando a pensar naquilo que é tornado irrelevante nas pesquisas tradicionais, caminhando pelas pistas que as diversas experiências cotidianas deixam pelo caminho quando compartilhadas, exercitando o não desperdício das experiências”. O arcabouço teórico do texto na sociologia da vida cotidiana visibiliza as situações de interação social que se produzem nos cotidianos das escolas e o potencial dessas situações (e dos imprevistos que as caracterizam) na produção de saberes curriculares a partir do chão da escola. A partir de um curso de extensão baseado numa metodologia de roda de conversa, as autoras discutem o modo como as narrativas docentes, em registo vídeo ou escrito, se constituem como pesquisas “com os cotidianos e não sobre os cotidianos”. A pesquisa sobre a docência é feita a partir daquilo que as docentes narram sobre ela, articulando, no processo, a construção de conhecimento pedagogicamente relevante com auto e heteroformação. O curso envolve docentes experientes dos anos iniciais do ensino fundamental de escolas públicas do município do Rio de Janeiro e região metropolitana e licenciandos/as. No final do curso, estes/as escrevem um memorial de formação e fazem uma avaliação do curso. A metodologia de Rodas de Conversa favorece a interação social e a construção coletiva de saberes. A multimodalidade dos registos das memórias e experiências relatadas (memoriais de formação, capítulos de livro, filmagens, fotos e transcrições) permite o entrelaçamento dos artefatos narrativos com os textos teóricos de autores/as que discutem o papel da produção curricular a partir dos cotidianos. O resultado é um trabalho laborioso de artesania, de mergulho na experiência vivida a partir das narrativas que se produzem sobre ela. Assim, se cria “intencionalmente encontros” de auto e heteroformação docente que ampliam o conhecimento dos currículos pensadospraticados nos cotidianos escolares, num movimento de educação emancipatória, de natureza “singular-coletiva”.
A produção de narrativas docentes enquanto possibilidade de materialização de encontros que potenciam os espaçostempos de afirmação docente (GARCIA, 2015; ALVES, 2003) é objeto de discussão no texto “A vida grafada nas asas invisíveis da docência: memória, afetos e experiências formativas na produção de currículos”, de Sabrina Mendonça Ferreira, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense, e de Tânia da Costa Gouvêa, da SEEDUC/RJ. Situando-se no campo das pesquisas com os cotidianos, que visa contrariar uma narrativa hegemônica de caracterização das escolas públicas como espaços de produção de fracasso e exclusão, as autoras narram duas pesquisas de formação docente e produção curricular. A partir da narrativa de uma professora, que faz uma analogia entre a docência e o voo de uma mariposa, que mostra como esta professora “poliniza não só o coletivo docente nos encontros como as crianças de sua turma”, produzindo fazeressaberes singulares que são coletivizados por meio de encontros. Estes encontros são narrados na segunda pesquisa, que reflete sobre o papel do “afeto presente nos processos de produção curricular na formação docente”. Os encontros entre docentes, possibilitados por oficinas de produção narrativa escrita realizada por professoras em formação, propiciam a circulação de saberes e afetos, criando um espaçotempo de produção curricular compartida. Trata-se de projetos que evidenciam modos possíveis de pesquisar e valorizar a produção curricular que acontece nos cotidianos das escolas e da formação docente e que não são apenas cognitivos, mas afetivos e relacionais, singulares e coletivos.
O papel dos afetos na construção de uma experiência humana digna na escola e do potencial das narrativas no engajamento em um diálogo de cuidado do outro (NODDINGS, 1998) são abordados no texto “Currículo e prática profissional docente: espaços construídos e experiências com o tema finitude humana e angústia existencial”, de Rosilei dos Santos Rodrigues Kepler e Arnaldo Nogaro, da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões. A pesquisa envolveu dez professoras do Ensino Médio de uma escola pública de um município do oeste do estado de Santa Catarina e teve “como objetivo investigar a presença de angústia existencial e preocupações com a finitude humana como temas do currículo escolar”. Através da leitura de um texto de Maria Julia Kovásc sobre a morte e o visionamento de um vídeo sobre o tema da finitude humana, foram desenvolvidas atividades que procuravam evidenciar o modo como estas professoras identificam indícios de sofrimento e angústia nos seus estudantes e quais as ações que empreendem no sentido de lidar com estas questões. A recolha de depoimentos foi feita recorrendo a conversas de grupo focal, tendo sido trabalhados temas relacionados à finitude humana e à angústia existencial e a currículo e prática profissional docente. As narrativas orais produzidas acerca dos modos como estas professoras desenvolvem o currículo escolar formal, em articulação com um “diálogo respeitoso e a escuta sensível” das necessidades e angústias dos seus estudantes, mostram que “ouvir o outro, cultivar a empatia e a reciprocidade são ações que fazem parte da educação e são fundamentais para o desenvolvimento de todos”.
A articulação da formação docente com a construção de conhecimento pedagógico-didático, através da reflexão sobre a experiência, é explorada no texto “A dimensão narrativa na formação de professores de matemática: reflexões apoiadas nos conceitos de experiência crítica e experiência formadora”, de Cícero Nachtigall, da Universidade Estadual de Campinas, e Maria Helena Menna Barreto Abrahão, da Universidade Federal de Pelotas. O texto apresenta uma experiência de articulação entre tecnologias digitais, autorregulação da aprendizagem e narrativas (auto)biográficas no curso de Licenciatura em Matemática. A metodologia de formação dos licenciandos, baseada na lecionação de todas as aulas de Cálculo Integral seguindo uma metodologia Sala de Aula Invertida, possibilitou a adequação aos ritmos de aprendizagem de cada estudante e a promoção da sua autonomia. A aprendizagem autorregulada foi possibilitada pela adoção da produção narrativa (auto)biográfica por parte dos/as estudantes, quando envolvido/as na narração das suas próprias vivências e experiências formativas. A análise dos pressupostos e fundamentos que subjazem à ação educativa é facilitada pela experiência formadora que a escrita narrativa traz, permitindo, deste modo, a emergência de processos autorregulatórios essenciais ao exercício futuro da atividade profissional.
A reflexão sobre o modo como a produção narrativa articula pesquisa e formação na formação inicial docente, contrariando o divórcio tradicional entre teoria e prática e escolas e universidades, criando terceiros espaços na formação (NÓVOA, 2009; ZEICHNER, 2010) tem continuidade com o texto “Refletindo sobre possibilidades de pesquisaformação no curso de pedagogia: diários e narrativas pedagógicas”, de Inês Bragança, da Universidade Estadual de Campinas, e Juliana Faria e Luciane Pezzato, da UFMG. Situando o seu trabalho nas áreas da saúde e educação e “tomando memórias e narrativas como caminhos de pesquisaformação nos/dos/com os cotidianos, reafirmando a formação inicial como espaçotempo de produção de conhecimentos pedagógicos por professoras-pesquisadoras”, o texto discute o papel da escrita ao serviço de um “projeto democrático de escola e de sociedade”, contrariando políticas e práticas impositivas e coercivas do trabalho docente e de centralização curricular, aliadas à intensificação e precarização do trabalho docente. As “contribuições dos estudos nos/dos/com os cotidianos escolares e da pesquisa-formação ou pesquisaformação” se constituem enquanto movimento de afirmação da produção curricular a partir do chão da escola, uma produção invisibilizada e construída historicamente como um não saber, presença “impertinente nas brechas” que faz “emergir experiências instituintes.” O texto incide na formação de “professoras-pesquisadoras-narradoras” de um curso de Pedagogia de uma universidade pública paulista no âmbito do estágio supervisionado dos anos iniciais do ensino fundamental e uma disciplina eletiva: “Documentação Narrativa de Experiências Pedagógicas: produção coletiva de estudantes do curso de Pedagogia”. As estudantes desenvolvem diários e narrativas pedagógicas como modos de registar o conhecimento que constroem no cotidiano, tornando, deste modo, evidentes as possibilidades formadoras e de construção de conhecimento docente que a escrita encerra na formação inicial.
A discussão do papel da pesquisa narrativa como elemento crucial de um movimento de pesquisaformação de natureza (auto)biográfica (BRAGANÇA, 2021) com professores/as iniciantes prossegue com o texto “Aprendizagens narrativas na tessitura de outros currículos possíveis com professoras/es iniciantes: movimentos de uma pesquisaformação”, de Joelson de Sousa Morais, da Universidade Federal do Maranhão. Desenvolvida com três professoras e um professor iniciantes dos anos iniciais do Ensino Fundamental, entre os anos de 2019-2022, da rede pública municipal de Caxias-MA, a pesquisa procurou “compreender os processos de aprendizagem da docência e tessituras curriculares em narrativas de pesquisaformação com professoras/es iniciantes, além de refletir como se tecem outros currículos possíveis na aprendizagem narrativa e construção de conhecimentos com docentes em início de carreira”. A reflexão e a tomada de consciência que potencia ajudam a inscrever o sujeito que narra num processo historicamente situado, num espaçotempo constituidor de identidade(s) sempre dinâmicas e em devir. Mais uma vez, o recurso às narrativas (auto)biográficas responde a uma finalidade epistemopolítica, teórica e metodológica, na medida em que essas narrativas ajudam a pensar o currículo como criação cotidiana e a função docente “como um processo em permanente construção em um contexto multifacetado e de incertezas”. A partir das conversas com as participantes, que narravam o que era, para si, mais significativo das suas experiências escolares, o autor identifica temas que ajudam a compreender os desafios atuais e as aprendizagens trazidas pela pandemia para a prática docente de professores/as iniciantes, como a intensificação do trabalho docente ou o papel regulador do livro didático.
A produção narrativa e a sua investigação também ajudam a compreender os processos de desenvolvimento da profissionalidade e trajetórias docentes, com ênfase no modo como a identidade profissional se constrói desde o início da profissão (ANUNCIATO, 2019), não apenas nos professores/as iniciantes e experientes da educação básica, mas também no ensino superior. O texto “Desafios iniciais e modos de aprender a ser docente universitário(a): o que contam os memoriais acadêmicos?”, de Elzanir dos Santos, da Universidade Federal da Paraíba, procura perceber o modo como se constrói a identidade profissional no contexto universitário a partir da análise de memoriais de progressão na carreira de 16 docentes(as) universitários(as) do Centro de Educação de uma universidade pública federal. Estes memoriais dão conta da sua trajetória e desenvolvimento intelectual e profissional, abordando os desafios, dilemas, experiências marcantes e aprendizagens que marcam o seu percurso de vida acadêmica. Como refere o autor, estas narrativas evidenciam “a singularidade dos percursos e a maior ou menor diversidade de interações vividas pelos(as) professores(as) […] demarcadas pela pluralidade/singularidade, coletividade/individualidade, permanência/ruptura”. Esta riqueza de percursos é devedora das experiências vividas enquanto professores/as na “Educação Básica, na formação inicial e na pós-graduação; a relação com os pares e com estudantes; bem como aprendizagens a partir de deslocamentos geográficos, descontinuidades/rupturas na trajetória”. São percursos dinâmicos, simultaneamente singulares e coletivos, marcados por contradições e fragmentações, mas que partilham uma procura de composição de “uma forma para si”, ou seja, de dotar de sentido um processo identitário em constante evolução.
Os dois textos que se seguem abrem o campo narrativo da produção curricular para o campo da educação inter/multicultural e antirracista e de uma formação docente enquanto projeto político de combate a exclusões múltiplas fomentadas pelo racismo, sexismo, colonialismo e patriarcado na sociedade e na educação (TORRES SANTOMÉ, 2021). O texto “Alguém que soubesse porque me calo”: a Roda de Mulheres do Parque das Missões como experiência emancipatória”, de Fabiana da Silva e Mailsa Pinto Passos, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, aborda a “conversa como metodologia de estabelecimento de um diálogo” de ressignificação da vida de 64 mulheres negras de uma comunidade periférica no município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, no estado do Rio de Janeiro, “triplamente vitimadas - primeiramente pelo racismo, e ainda pelo machismo e pela pobreza”. O estudo narrado se coloca a serviço de um “projeto antirracista, feminista e anticapitalista”, de combate a estruturas de exclusão destas mulheres, assente em modelos patriarcais e capitalistas de branquitude, patriarcado e o capitalismo, e que operam no sentido de as desumanizar e silenciar. O projeto que este texto relata - Roda das Mulheres do Parque das Missões - engaja-as num processo de emancipação individual e coletiva, através de oficinas de leitura de literatura (com destaque para a poesia) e escrita de si, que são, simultaneamente, oficinas de cuidado de si e das outras. Neste contexto, estas mulheres assumem-se como narradoras da sua história, partilham experiências vividas de violência, maus tratos, exclusão, dores e durezas da vida e, no processo, se formam estética, ética e politicamente, através da denúncia de um sistema opressor e de um abismo social que teima em permanecer, na ausência de políticas públicas de mitigação das desigualdades estruturais da sociedade brasileira.
O trabalho com as narrativas a serviço de uma formação docente e de práticas curriculares mais inclusivas, como foco no combate ao racismo continua com o texto “Educação antirracista em tempos de pandemia: os diários de aula como instrumento de formação e reinvenção do currículo escolar”, de Lorene dos Santos e Cleidiane Lemes de Oliveira, da PUC-MG. O artigo traz uma proposta de educação antirracista no âmbito do projeto “Escola de Todas as Cores”, através da produção narrativa de “Diários de Aula” de um grupo de cinco professoras/es de Educação Básica de uma escola da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte. O entendimento de educação antirracista presente no texto afirma “a necessária identificação e problematização das relações de poder contidas no discurso racista moderno eurocêntrico que relega corpos e epistemes negras a lugares de subalternidade em nossa sociedade e, principalmente, nos espaços escolares”. O processo de identificação e problematização destas relações serve um projeto de práxis libertadora que articula o Movimento Negro ao ensino da temática étnico-racial, que recupera as suas raízes africana e afro-brasileira, com vistas à promoção de uma educação antirracista. O projeto desenvolveu-se, num primeiro momento, com encontros semanais de “rodas de conversas”, que contavam com a participação de convidados(as) para debater assuntos da temática étnico-racial. Num segundo momento, houve lugar à realização de encontros semanais, de leitura e discussão coletiva de uma obra da escritora Carolina Maria de Jesus. Durante o projeto, o/as participantes escreviam diários de aula, que sinalizavam as aprendizagens que estavam a ser construídas no âmbito do seu entendimento do que poderia ser uma educação antirracista. As rodas de conversa foram sinalizadas como potenciando as discussões e um trabalho coletivo de compartilhamento dos sentidos desta educação e sua concretização em práticas escolares: como referem as autoras, “Ao criar narrativas sobre processos de aprendizagem experienciados, os(as) professores(as) deram sentido às experiências que viveram e que empreenderam ao buscar construir propostas capazes de interseccionar anticapacitismo e antirracismo, combate ao racismo em sintonia com o combate ao sexismo e patriarcado”.
O texto “O objeto de pesquisa como temporalidade e autobiografia”, de Guilherme Augusto Rezende Lemos, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, debate o estatuto epistemológico das práticas de pesquisa de natureza autobiográfica, a partir do conceito de currere, abordado na obra O que é teoria de currículo?, de William Pinar. Enquanto método autobiográfico que visa promover uma compreensão mais profunda sobre as relações que se estabelecem entre conhecimento acadêmico e história de vida, articulando processos de autocompreensão e reconstrução social, currere ajudou o autor a analisar a sua trajetória pessoal no âmbito de projetos, individuais e coletivos, mostrando de que modo o método autobiográfico funciona a serviço de uma concepção de currículo como produção de sentidos. No seu trabalho docente de turmas de didática do Curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da UERJ, mas também em projetos de formação docente em Niterói e Rio de Janeiro, Rondonópolis, no Mato Grosso e Cachoeira, no Recôncavo Baiano, o autor tomou consciência dos processos de produção da diferença e das limitações dos equívocos de uma dinâmica da normatividade. O seu processo de aprendizagem através da reflexão sobre a sua prática mostrou, claramente, “que a ação didática de cada professor está atrelada ao seu ‘modo de ser’”, a uma rede complexa de relações com Outros - ‘Outros’ professor/a, ‘Outros’ estudante, sempre em deslocamento, produzindo e produzindo-nos. E assim, “educação e subjetividade são inseparáveis e […] portanto, todo currículo é autobiográfico”. O texto termina com um apelo à contribuição dos pesquisadores/as e educadores/as para a constituição de “uma igualdade radical”, “um novo imaginário para um novo real”, fora dos limites de uma geografia e arquitetura capitalista e neoliberal. Para tal, a autobiografia concorre para a construção de um “novo imaginário para um mundo não capitalista e não neoliberal […] um outro lugar onde as relações econômicas não sejam a viga mestra ou o fundamento do ser”.
Como romper a moldura da ferida, o terror e a repetição em que cada gesto executado já está narrado de antemão? Em um ensaio de destacável profundidade teórico-conceitual, “Fazer sentir. Testemunho de uma transformação da sensação. (Modos de interrogar nossas práticas educativas e pedagógicas)”, Adrián Cangi, da Universidad Nacional De Avellaneda, e Michele Gonçalves, da Universidade Federal de Santa Catarina, nos provocam pensar as relações entre testemunho, sensação e pedagogias, a partir de fragmentos da literatura mundial e de registros históricos sobre os horrores do nazismo. O movimento impresso pela sua escrita questiona os papeis da linguagem da leitura e do reconhecimento da dor do outro como um campo insensível às operações técnico-tecnológicas da língua. Tal inexperiência de saber sentir, para os autores, se estabelece em ‘ir ao toque’, um gesto de “tatear o que não se vê, avançar com o corpo, em detrimento do cérebro”, uma inércia parcial e que se nutre da incerteza, “investigando o caráter infantil do tempo perdido do jogo, que retorna transformado no tempo recuperado dos usos táteis vitais”. Para as discussões do campo do currículo e da pedagogia em geral, as figuras da criança são uma das centralidades importantes, desde as discussões filosóficas. Como desarmar o peso opaco e assustador de uma educação que fecha todas as aberturas, e de pedagogias onde não há vidas inaugurais? Como resposta a esta pergunta, no texto buscam-se as intensidades que aproximam a criança dos devires animais esquecidos pela lógica governamental da linguagem universal. Para provocar rupturas, o risco a se correr curricularmente é agir como um “ato de produção poética dos paradoxos e das fábulas é o que nos confronta a pensar nos intervalos e umbrais como forma de ‘cheirar’ e ‘farejar’ o que emerge do ar circundante”. Os autores argumentam, pelos atravessamentos de exemplos narrativos singulares, que somente com o esquecimento da gramática da mimesis, da repetição e da representação fiel a sentidos dados a priori, a pedagogia poderá alçar voos metamorfoseantes sobre os atos de criação. E, desse modo, narrativas ainda não existentes, quer seja humanas ou não, ganhariam vida em um fora da linguagem ou um esquecimento da língua. Trata-se, segundo os autores, “de evocar o vórtice do abismo chamado ‘humanismo’ e suas inseparáveis ‘representações’ do terror, para melhor compreender a imagem dogmática do pensamento humano diante da imagem problemática da vida que golpeia suas fronteiras.”
O texto que encerra este dossiê, “(Auto)biografia, ciência e arte: diálogos com Oliver Sacks”, de Elizeu Clementino de Souza, da Universidade do Estado da Bahia, parte da análise da autobiografia de Oliver Sacks (2015) para evidenciar questões epistemológicas e teórico-metodológicas da pesquisa (auto)biográfica. O autor discute aspectos epistemológicos e teórico-metodológicos da pesquisa (auto)biográfica no Brasil, ao serviço de um projeto epistemopolítico, descolonizador e pós-disciplinar. Nos seus percursos de vida, os sujeitos narram experiências através de instrumentos semióticos multimodais, em processos de biografização, que configuram e reinterpretam os acontecimentos vividos, se reconfigurando e se reinventando nesse processo. Como refere o autor, a busca pela compreensão de “como os indivíduos se tornam quem eles são” é a finalidade da pesquisa (auto)biográfica, “que coloca no centro do processo a capacidade humana de reflexividade autobiográfica do sujeito, permitindo-lhe elaborar táticas de emancipação e empoderamento, suficientemente boas para superar interpretações culturais excludentes, que o oprimem”, em contracorrente a uma ciência de inspiração positivista que valoriza um sujeito epistêmico “abstrato, objetivo”. A fim de ilustrar o modo como a narrativa autobiográfica coloca o sujeito narrador no centro, e, ao fazê-lo, se reinventa e se reconstitui, pessoal e profissionalmente, num processo de biografização que abre diversas possibilidades de análise e interpretação, o autor salienta movimentos e temáticas da (auto)biografia de Olivier Sacks, que constituíram momentos instituintes da sua identidade, como “as marcas de sua mãe e influências do seu pai, sua relação com os irmãos”, dimensões de sua escolarização e formação, hobbies e paixões, carreira e profissão. As “disposições espaço-temporais e de reflexividade biográfica” são cruciais ao processo de biografização, “num movimento entre vida, escrita, profissão e arte” que abre espaços e linhas de análise e interpretação, só possíveis pela narrativa (auto)biográfica.
3 EM MODO DE SÍNTESE FINAL
Os catorze textos que compõem o dossiê são atravessados por linhas de força comuns, de compromisso vigoroso da pesquisaformação de natureza ética, epistemopolítica e metodológica que visa resgatar a centralidade da experiência vivida na constituição da identidade pessoal e profissional e na construção do conhecimento curricular em educação. As metodologias da pesquisa narrativa (auto)biográfica nos textos são, forçosamente, de natureza hermenêutica (BOLÍVAR, 2012) e fenomenológica (VAN MANEN, 1990), na medida em que, narrando singularidades e histórias diferentes, são partes de um todo multifacetado que constitui a condição humana. Em um nível fundamental, não obstante a inscrição histórica e social em espaçostempos múltiplos, cada narrativa é, simultaneamente, uma história de si e da outra pessoa, uma grafia de uma vida que pode(ria) ser a de qualquer pessoa, pois produzida em encontros e conversas tecidos em/por solidariedade, diálogo, afeto, empatia, transformação e emancipação.
Os artigos do dossiê também abrem perspectivas para se pesquisar no campo de estudos do currículo a partir de narrativas cujos pertencimentos às grafias de vida sejam mais amplos que os sentidos de vida aprisionados em corporeidades biológicas e orgânicas. Apontam para narrativas não orgânicas, caóticas e que brotam de desestruturações do comum e do ordinário, lançando forças para um multiverso de linguagens, sensações, estéticas e políticas ainda não centrais para pensarmos as relações entre sujeitos e conhecimentos. Sugerem, fortemente, que o campo de estudos teóricos e práticos sobre e com os currículos se deixe avizinhar e conversar com as margens, aquilo que foge dos centros, com as vidas que germinam quase invisibilizadas, com o compromisso de criar espaçostempos do comum, nas variações e multiplicidades.