1 INTRODUÇÃO
Homologada pela Portaria 1.570, de 20 de dezembro de 2017, e instituída em abril de 2018, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi elaborada como uma política cujo principal objetivo é garantir a todos os estudantes a aprendizagem de conhecimentos considerados essenciais para a formação do cidadão. A ideia de formular a BNCC surgiu a partir do arcabouço jurídico educacional brasileiro e pela necessidade e urgência de se combaterem as abissais desigualdades sociais e educacionais.
Sua formulação foi iniciada no ano de 2015 e marcada por um contexto de grande instabilidade política, envolvendo o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff e a participação de três ministros da Educação - Renato Janine (abril a setembro de 2015), Aloizio Mercadante (outubro de 2015 a maio de 2016) e Mendonça Filho (maio de 2016 a abril de 2018). O contexto de instabilidade política que culminou com a ruptura do mandato da Presidenta Dilma Rousseff impactou a criação da BNCC que, naquele momento, estava na fase de elaboração e consolidação da segunda versão, publicizada em maio de 2016, quando o processo de impeachment já estava instaurado. Após a publicação da segunda versão, o MEC, com o Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), organizou, de forma aligeirada, 27 seminários estaduais com professores, gestores e especialistas do campo da educação e do currículo para debater a segunda versão do documento. Esses 27 seminários ocorreram em um período de tempo inferior a dois meses (de 23 de junho a 10 de agosto de 2016), evidenciando a pressa do governo federal em acelerar as etapas de formulação da BNCC antes da concretização do impeachment. Após esses seminários, começou-se a estruturação da terceira versão, a qual foi divulgada somente em abril de 2017, já no governo de Michel Temer.
Em que pesem as dificuldades apresentadas pelo contexto político, a proposta de se construir uma base nacional comum curricular mostrou-se polêmica desde 2015, nas primeiras discussões, e envolveu posicionamentos a favor e contra sua formulação e implementação. A afirmação desses posicionamentos, os argumentos e os atores que compõem esses dois grupos podem ser analisados à luz dos conceitos de sistemas de crenças e de coalizões de defesas de Sabatier (1988).
Para tentar compreender as dinâmicas entre os atores e as razões (sistemas de crenças) que levaram à formação desses dois grupos (coalizões de defesas), este estudo analisará dois documentos publicados por organizações da sociedade civil - Movimento pela Base (MPB) e Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) -, que se posicionaram a favor e contra à BNCC, respectivamente.
Este estudo está dividido em cinco seções, com esta introdução. A seção seguinte apresenta os conceitos de sistema de crenças e de coalizões de defesa de Paul Sabatier. A seção três aborda a BNCC e o contexto político em que se deu seu processo de formulação. A quarta seção analisa os dois documentos publicados em 2015 pelo MPB e ANPEd, que apontam as principais razões que fundamentam os posicionamentos a favor e contra a elaboração da BNCC. Na quinta seção, o estudo traz algumas considerações finais.
2 O MODELO DE COALIZAÇÃO DE DEFESA (MCD)
Uma importante chave de leitura para a análise dos processos que envolvem a formulação de uma dada política é a abordagem do Advocacy Coalition Framework (ACF) ou Modelo de Coalização de Defesa (MCD), desenvolvido por Paul Sabatier. Esse modelo passou por diversas revisões e atualizações desde que foi criado, em 1988.
O Modelo de Coalização de Defesa é um modelo teórico baseado em um conjunto de premissas que buscam explicar a formulação de políticas públicas e suas mudanças a partir da formação de coalizões de defesas. Essas coalizações são compreendidas como um conjunto de atores que se situam em diversas instituições, mas que compartilham uma série de crenças, valores, ideias, objetivos etc. sobre assuntos políticos fundamentais. A partir dessas crenças em comum, esses atores constituem uma coalização para fazer valer seus interesses comuns perante as disputas políticas em jogo nos processos de formulação de uma dada política pública.
De acordo com Vicente e Calmon (2011, p. 2), Sabatier (1988) define uma coalização de defesa como um conjunto de
[...] pessoas de uma variedade de posições (representantes eleitos e funcionários públicos, líderes de grupos de interesse, pesquisadores, intelectuais e etc.), que (i) compartilham determinado sistema de crenças: valores, ideias, objetivos políticos, formas de perceber os problemas políticos, pressupostos causais e (ii) demonstram um grau não trivial das ações coordenadas ao longo do tempo.
Esse compartilhamento de crenças é o que forma, dentro dos vários subsistemas políticos (exemplo: educação, saúde etc.), sistemas de crenças que vão não apenas caracterizar a atuação da coalização formada, mas também fazer valer os interesses compartilhados pelos membros da coalização na condução da formulação de uma dada política pública.
Embora reconheça a existência de divergências no interior da coalização, o MCD assume que essas divergências possuem relevância menor diante de concepções, crenças e interesses em comum, compartilhados por seus membros e, por esse motivo, a coalização se mantém. Outros dois aspectos importantes do MCD são destacados. O primeiro é a questão temporal, uma vez que as coalizações coordenam suas ações com objetivos de longo prazo e, também, modificam-se no tempo. Logo, para a compreensão do sistema de crenças de determinada coalizão, é preciso observar suas ações e as modificações dessas ações ao longo do tempo (VICENTE; CALMON, 2011; CARVALHO, 2019). O segundo aspecto é a questão geográfica, uma vez que as coalizões se articulam e atuam sobre uma extensão territorialmente limitada (CARVALHO, 2019).
Depois de formadas, as coalizações de defesas entram em disputas para fazer com que suas crenças sejam traduzidas em programas governamentais ou em políticas públicas. Nesses processos de disputa, as coalizões mobilizam uma série de aprendizados políticos adquiridos, denominados policy-oriented learning ou aprendizado orientado à política pública (VICENTE; CALMON, 2011). Esses aprendizados são de ordem técnica e científica e acumulados no tempo, conforme as experiências dos membros das coalizações. Vicente e Calmon (2011, p. 2) explicam que, para Sabatier (1988), o policy-oriented learning é “entendido como a permanente alteração de pensamentos e de comportamentos resultantes da experiência prática apoiada pela evolução do conhecimento técnico/científico do problema, o que permite revisões nos objetivos da política pública”.
Assim, as alterações das ações das coalizações de defesa são baseadas no know-how que seus integrantes vão adquirindo a partir de aprendizados técnicos e científicos acumulados nas experiências. Carvalho (2019, p. 33-34) explica que os aprendizados alcançados são imbricados no sistema de crenças das coalizões e derivariam de três fatores:
(1) os resultados e impactos dos embates políticos entre as coalizões dentro do subsistema; (2) percepções relacionadas a dinâmicas externas; (3) o aumento do nível de conhecimento dos atores quanto aos parâmetros do problema, no qual estão focados, e os fatores que afetam estes parâmetros.
Nesse sentido, os aprendizados que vão sendo acumulados permitem a construção de novos argumentos e a mobilização de novos recursos que modificam o sistema de crenças dos integrantes no interior de uma coalização (VICENTE; CALMON, 2011) e, consequentemente, contribuem para as discussões que permeiam as disputas entre as coalizões.
São, portanto, a forte relação entre os membros, o compartilhamento e a coesão de valores, ideias e crenças, somados aos domínios técnicos e legais sobre políticas específicas (policy domain), que legitimam a participação dos atores e a formação de coalizões de defesa (CAPELLA; BRASIL, 2015, p. 69).
A arena de disputa política entre as coalizões de defesa se forma num subsistema de políticas públicas. Segundo Sabatier e Jenkins-Smith (1999), o subsistema político (ou de políticas) é a área de atuação onde as ações e as interações dos integrantes das coalizões ocorrem. Referenciado em Sabatier e Jenkins-Smith, Vicente e Calmon (2011, p. 3) explicam que um subsistema de políticas públicas é um
[...] conjunto de atores individuais ou coletivos de uma variedade de organizações públicas, privadas e da sociedade civil (ONGs), num determinado escopo geográfico, que está ativamente preocupado com determinada questão de política pública e que regularmente tenta influenciar as decisões naquele domínio.
Os subsistemas de políticas são formados por atores políticos e, também, por profissionais de outras áreas de atuação, como jornalistas, cientistas/pesquisadores e pessoas em outras esferas de atuação governamental, ou não, mas que influenciam e desempenham papéis importantes nos processos de formulação, implementação e avaliação de políticas públicas.
Assim, de forma sintética, as coalizões de defesas são formadas em subsistemas políticos a partir do compartilhamento de crenças entres seus integrantes. As coalizões podem ser as mesmas em vários subsistemas políticos ou não. Por exemplo, no campo da Educação - que é um subsistema político -, podem-se formar coalizões que vão debater a necessidade de se construir a BNCC. Essas coalizões podem ser as mesmas, ou não, que vão discutir, por exemplo, o desmatamento da Amazônia no subsistema político referente ao meio ambiente. Nesse sentido, uma coalização de defesa formada num subsistema político pode não ser, necessariamente, a mesma em outro subsistema. Apesar disso, Sabatier e Jenkins-Smith (1999) assinalam que, geralmente, os atores que atuam num dado subsistema não atuam em outros. Isso porque todo subsistema é muito complexo (em matéria de compreensão das leis e regulamentos, magnitude dos problemas envolvidos, indivíduos e organizações envolvidos etc.), o que exige que os atores das coalizões do subsistema se especializem para efetivamente fazer valer sua influência. Por conseguinte, os atores acabam atuando em apenas um subsistema e defendem suas crenças nesse subsistema.
Para o recorte de nosso estudo, as coalizões de defesas são basicamente duas: uma que defende a formulação e a implementação de uma política curricular nacional e a outra que é contra essa política. Essas coalizões de defesas foram formadas no subsistema político educacional. Compreender o conjunto de crenças que originaram essas duas coalizões e os embates travados entre elas nos processos de formulação da política são os dois objetivos centrais deste estudo.
3 BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR
Com a redemocratização do País, em 1988, o Brasil passou a contar com um robusto arcabouço jurídico que estabelece, na Constituição Federal, a educação como um direito público subjetivo (DUARTE, 2004), o que obriga o Estado a elaborar políticas públicas visando garantir esse direito. A seção I do capítulo III da Constituição Federal dispõe sobre a organização do sistema educacional brasileiro, informando os princípios que devem nortear o ensino (artigo 206), as ações que o Estado deve ter para a garantia do direito à educação (artigo 208), as responsabilidades de cada ente federado na oferta de educação básica (artigo 211) e a contribuição de cada ente para o financiamento dessa oferta (artigo 212). No que diz respeito ao currículo, a Constituição Federal estabelece, no artigo 210, a fixação de “conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais” (BRASIL, 1988, n.p.).
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) é o documento jurídico legal que define e regulariza a organização da educação brasileira com base nos dispositivos da Constituição Federal. O artigo 9.º da LDB incumbe a União como o ente federado responsável por estabelecer, “em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum” (BRASIL, 1996, n.p.).
Portanto, com base nesse arcabouço jurídico, foram criados, na década de 1990, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que se caracterizaram como uma ferramenta (sem força de lei) para auxiliar os profissionais da educação nas “discussões pedagógicas, na elaboração de projetos educativos, no planejamento das aulas, na reflexão sobre a prática educativa e na análise do material didático” (MEC, 1997, n.p.).
Embora tenha se caracterizado como uma tentativa de uniformizar os conteúdos curriculares no território nacional (MARSIGLIA et al., 2017), o que se verificou, na prática, foi uma pluralidade de currículos, em que muitos deles passaram a ser construídos com base em dois documentos: nos livros didáticos e nas matrizes de referências das avaliações em larga escala. Dessa forma, os PCNs não se consolidaram como referências para a elaboração dos currículos, sendo subutilizados pelas redes de ensino e pelas escolas.
Anos mais tarde, em 2013, o governo federal lançou as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs). Esse documento avança em relação aos PCNs, pois afirma sua obrigatoriedade em todos os sistemas de ensino e, ao mesmo tempo, reafirma a autonomia dos entes federados ao destacar que cada sistema deve formular seu próprio currículo.
[...] as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica visam estabelecer bases comuns nacionais para a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino Médio, bem como para as modalidades com que podem se apresentar, a partir das quais os sistemas federal, estaduais, distrital e municipais, por suas competências próprias e complementares, formularão as suas orientações assegurando a integração curricular das três etapas sequentes desse nível da escolarização, essencialmente para compor um todo orgânico (MEC, 2013, p. 8).
Essa obrigatoriedade sem a coordenação de um órgão central fez com que as DCNs se tornassem uma espécie de versão atualizada dos PCNs, não sendo efetivamente implementadas nas redes de ensino e nas escolas.
Importante observar que, enquanto os PCNs configuram uma proposta flexível, a ser concretizada nas decisões regionais e locais sobre currículos e programas de transformação da realidade educacional empreendidos pelas autoridades governamentais, pelas escolas e pelos professores (MEC, 1997), apresentando-se, assim, como referências curriculares, as DCNs são normas obrigatórias que orientam o planejamento curricular das escolas e sistemas de ensino, fixadas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). São definidoras de competências e diretrizes para a Educação Básica. Por isso, embasa a elaboração dos currículos e dos conteúdos mínimos para garantir uma formação comum.
Sabe-se que, desde 1990, o que orienta os currículos são as matrizes das avaliações em larga escala, demonstrando que as DCNs não foram efetivamente implementadas nas redes de ensino e nas escolas. Com relação às implicações das avaliações em larga escala sobre o currículo, Bonamino e Sousa (2012, p. 386) aduzem que:
[...] a revisão de pesquisas sobre o tema apresentada aportou contribuições, por vezes recorrentes, para a compreensão das interferências da avaliação sobre o currículo escolar. O que esses trabalhos evidenciam, em conjunto, é a importância que vêm assumindo as avaliações de segunda e terceira geração no delineamento das políticas educacionais e, em consequência, seu potencial de direcionar o que, como e para que ensinar.
Portanto, gradualmente, a avaliação em larga escala foi adquirindo centralidade na formulação das políticas públicas educacionais e na implementação de políticas curriculares, relegando aos PCNs e às DCNs menos protagonismo na construção do currículo escolar.
De acordo com a legislação, há, por um lado, a necessidade de se construírem bases curriculares para todo o território nacional e, por outro, a necessidade de se garantir a autonomia dos entes federados na organização de seus sistemas educacionais. Essa dicotomia está no cerne dos embates travados na formulação da BNCC e nos argumentos daqueles que se posicionam a favor ou contra.
Em que pese esse embate, o arcabouço jurídico educacional vem evidenciando em seus documentos, desde a Constituição Federal de 1988, a necessidade de se elaborar uma base curricular comum. Esses destaques são verificados no documento elaborado pela primeira Conferência Nacional de Educação (CONAE), ocorrida em meados de 2010, que contou com a participação de diversas instituições da sociedade civil e especialistas da educação. Esse documento ressalta a importância de se construir uma Base Curricular Comum em todo o território nacional como parte de um Sistema Nacional de Educação. O documento ressalta que, para a efetivação de políticas comprometidas com a garantia de padrões de qualidade social e de gestão democrática, uma diretriz necessária é a “indicação das bases epistemológicas que garantam a configuração de um currículo que contemple, ao mesmo tempo, uma base nacional demandada pelo sistema nacional de educação e as especificidades regionais e locais” (MEC, 2010, p. 38).
Um Sistema Nacional de Educação requer uma ação sistematizada que busca alcançar determinadas finalidades. Segundo Saviani (2008, p. 120), sistema de ensino significa “uma ordenação articulada dos vários elementos necessários à consecução dos objetivos educacionais preconizados para a população à qual se destina”. Nesse sentido, a construção de um Sistema Nacional de Educação requer a definição de objetivos educacionais comuns a todos os entes federados e a coordenação e articulação de ações planejadas para o alcance desses objetivos.
Nessa direção, a segunda Conae, ocorrida em 2014, teve como objetivo dar mais um passo na “articulação da educação nacional como uma política de Estado” (CONAE, 2014, n.p.), em que foi destacado o segundo Plano Nacional de Educação (PNE) como a principal política de articulação dos entes subnacionais para a construção e efetivação do Sistema Nacional de Educação.
Em sintonia com o arcabouço jurídico educacional que dispõe sobre o currículo, o PNE estabeleceu na estratégia 2.21 “a implantação dos direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento que configuram a base nacional comum curricular” (BRASIL, 2014, n.p.) e, na estratégia 7.12, por meio de pactuação interfederativa, a implantação de
[...] diretrizes pedagógicas para a educação básica e a base nacional comum dos currículos, com direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento dos(as) alunos(as) para cada ano do ensino fundamental e médio, respeitada a diversidade regional, estadual e local (BRASIL, 2014, n.p.).
No que concerne ao currículo, a política nacional começou a ser efetivamente construída em 2015. A partir de todo o arcabouço jurídico brasileiro e inserida num contexto de busca pela construção de um Sistema Nacional de Educação, a Portaria 592, de 17 de junho de 2015 (MEC, 2015), instituiu uma Comissão de Especialistas, composta por 116 membros das várias áreas de conhecimento e respectivos componentes curriculares para a elaboração da Proposta da Base Nacional Comum Curricular. Essa proposta, construída sob o comando do então Ministro da Educação Renato Janine, consolidou-se como a primeira versão da BNCC colocada em consulta pública, por meio da internet, entre outubro de 2015 e março de 2016.
As críticas e sugestões dessa consulta foram tratadas com brevidade em razão do contexto político conflituoso vivido pelo Brasil naquele momento. Assim, em meio ao processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff e após dois meses de encerramento da consulta pública, o MEC, já sob o comando de Aloizio Mercadante, lançou a segunda versão da BNCC. Essa segunda versão foi discutida por cerca de 9 mil educadores em 27 Seminários Estaduais realizados pela UNDIME e pelo CONSED. As discussões colocadas em pauta nesses Seminários também ocorreram de forma aligeirada (em apenas três meses, entre junho e agosto de 2016) em virtude do cenário político que já apontava para a efetivação da ruptura do governo.
Em 31 de agosto de 2016, a então Presidenta Dilma Roussef é destituída de seu cargo e Michel Temer assume a Presidência, promovendo, rapidamente, mudanças nos cargos estratégicos do MEC e do INEP, colocando à frente do MEC o ex-governador do estado de Pernambuco, Mendonça Filho. Essa mudança levou a uma ruptura do processo de construção da BNCC. Até a segunda versão, especialistas das diversas áreas do conhecimento, em diálogo com a sociedade civil, estavam à frente da elaboração do documento. Com a mudança de governo, esses especialistas foram afastados e outro grupo assumiu o comando para a elaboração do documento da terceira versão - entregue ao CNE em abril de 2017.
Esta terceira versão foi alvo de muitas críticas, inclusive daqueles que advogavam a favor da BNCC. A principal crítica recaiu sobre a ruptura da transparência e do processo democrático de construção da BNCC. Nas duas primeiras versões, constavam os nomes de todos aqueles que participaram da elaboração dos dois documentos, o que confere transparência ao documento. Sabe-se quem são as pessoas e a qual lugar elas pertencem. No entanto, a terceira versão não apresenta o nome de nenhum ator ou grupo de atores, seja do campo político, acadêmico ou da sociedade civil organizada. Não se sabe quem são os signatários dessa terceira versão.
A segunda crítica refere-se à estrutura e ao conteúdo da terceira versão, que rompe com as concepções de educação que até a segunda versão vinham guiando a elaboração da BNCC. A mais significativa delas diz respeito à retirada do termo “direito à aprendizagem”. As duas primeiras versões apresentavam direitos e objetivos de aprendizagem comuns a todos os estudantes de todas as etapas da Educação Básica. Já a versão final exclui o termo ‘direitos de aprendizagem’ e traz uma nova proposta de competências gerais que devem ser desenvolvidas por estudantes de todas as etapas da Educação Básica, como pode ser visto na Figura 1.
Tal mudança é justificada com base nas reformas curriculares das últimas décadas empreendidas em diversos países e nas avaliações educacionais em larga escala nacionais e internacionais. A Figura 1 apresenta a mudança da estrutura geral da BNCC, evidenciando que a proposta de direitos de aprendizagem é substituída pela proposta de desenvolvimento de competências. Apesar dessa significativa mudança, importa destacar que a ideia de habilidades e competências já estava presente nas versões anteriores, de forma que as três versões guardam semelhanças.
Essa mudança de proposta representou uma ruptura com o que havia sido construído até a segunda versão do documento, sendo, portanto, alvo de muitas críticas, inclusive daqueles que participaram e defendiam a construção da BNCC.
A despeito das críticas feitas a essa terceira versão, ela foi apresentada ao CNE e homologada em novembro de 20173. Antes da homologação, no entanto, três conselheiras pediram vista para discutir o texto, mas, como o CNE já possuía maioria favorável, o texto foi aprovado com 20 votos a favor e 3 contrários.
O processo de formulação da BNCC é polêmico não apenas por ter se dado num contexto político instável, mas também porque marcou e tensionou diversos atores e instituições, que se organizaram (e continuam organizados) em duas grandes coalizões de defesa (SABATIER, 1988): uma a favor da elaboração e implementação de uma base nacional curricular e outra contra.
4 COALIZAÇÃO A FAVOR DA BNCC
A coalização de defesa a favor da BNCC é constituída por nomes importantes tanto do campo da produção técnica e acadêmica quanto do campo da atuação política (Executivo e Legislativo). Essa coalização é liderada pelo Movimento pela Base (MPB) - uma organização não governamental formada por pessoas e organizações que, em defesa de uma educação pública de qualidade para todas as crianças e jovens brasileiros, engajam-se na construção e implementação da BNCC e também do Novo Ensino Médio.
O MPB recebe apoio institucional de organizações do terceiro setor, como Instituto Ayrton Senna, Fundação Lemann, Instituto Natura, Instituto Unibanco, Fundação Roberto Marinho, Instituto Inspirare, Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, Todos pela Educação e Instituto Itaú BBA. Além dessas instituições, o MPB conta com a ajuda de organizações do campo político, como o CONSED e da UNDIME e de organizações do campo acadêmico, como a ABAVE (Associação Brasileira de Avaliação Educacional) e o CENPEC (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária).
O Conselho Consultivo4 do MPB é formado por Ana Inoue (consultora do banco Itaú), Anna Penido (diretora-executiva do Instituto Inspirare), Claudia Costin (diretora do CEIPE/FGV), Denis Mizne (diretor-executivo da Fundação Lemann), Mariza Abreu (consultora legislativa da área de educação), Miguel Thompson (diretor acadêmico da Fundação Santillana), Pilar Lacerda (diretora da Fundación SM) e Ricardo Henriques (Superintendente executivo do Instituto Unibanco).
Além dessas organizações que integram o MPB, pessoas do campo acadêmico e do campo político pertencem a essa coalização. Entre eles estão Fernando Luiz Abrucio5, Maria Alice Setúbal6, Mozart Neves Ramos7, Magda Soares8, Guiomar Namo de Mello9, José Francisco Soares10, Maria Inês Fini11, Wilson Risolia12, Maria Helena Guimarães de Castro13, Dorinha Rezende14, entre muitos outros. São esses os principais atores e organizações que compõem a coalização de defesa a favor da BNCC, que representam, majoritariamente, grandes empresas, geradoras de empregos e acumuladoras de grandes fortunas.
Essa coalização se formou a partir do compartilhamento de crenças, que estão explicitamente colocadas no documento Necessidade e construção de uma Base Nacional Comum, publicado em 2015 pelo MPB.
O primeiro passo na sua construção é a crença em que a educação de qualidade é não só um direito humano, mas também o fundamento de um projeto maior, qual seja, de desenvolvimento do país . A Base Nacional Comum deve necessariamente ser apoiada por amplo espectro de agentes públicos e privados. Este documento deve ser mais explícito do que está estabelecido atualmente nos textos nacionais legais vigentes que são por vezes genéricos, e promover o debate para o estabelecimento do que, dentro de cada área, deve ser aprendido por todos os brasileiros que concluírem a educação básica. O documento final da Base Nacional Comum só terá impacto se resultar de um pacto suprapartidário, gerando uma política de Estado, não de governo, implementado no sentido proposto no artigo 26 da LDB [...] e com força de lei. Ou seja, o desafio que se coloca é envolver os diferentes atores educacionais do cenário nacional, mas com uma visão de futuro que permita a superação de divergências naturais que ocorrem no curto prazo (MPB, 2015, p. 3, grifos nossos).
A partir desse trecho, pode-se perceber que os integrantes dessa coalização comungam de pelo menos cinco crenças ou princípios educacionais: 1) A educação de qualidade é um direito; 2) A educação de qualidade é fundamental para o desenvolvimento do país; 3) A sociedade civil deve atuar na formulação, implementação e avaliação da educação, por meio de agentes públicos e privados; 4) A política educacional deve ser uma política de Estado, e não de governo; 5) Visão de futuro - a educação como um investimento de longo prazo, visando o desenvolvimento do País. A defesa desses cinco tópicos está no cerne da construção da BNCC, que, mais do que prescrever os conhecimentos essenciais que devem ser adquiridos por todos, pretende ser uma política de Estado e um dos pilares da articulação do Sistema Nacional de Educação.
Tal pretensão coloca no debate o regime de colaboração e a garantia da autonomia dos entes federados na formulação e gestão das políticas educacionais, conforme estabelecido na Constituição Federal. Isso significa que os entes subnacionais podem e devem formular políticas próprias e, se assim desejarem, aderir às políticas do governo federal. Na medida em que se pretende criar um Sistema Nacional de Educação, conforme anunciado nas duas CONAEs, a coordenação e articulação da construção desse Sistema devem se dar a partir da observância e do respeito aos dispositivos constitucionais que garantem a autonomia dos entes federados e o regime de colaboração. Sobre esse aspecto, o documento do MPB em defesa da BNCC esclarece:
A metodologia de construção a ser liderada pelo MEC enfatiza a colaboração entre os entes federados, na perspectiva de que diferentes sistemas têm responsabilidades distintas, mas todos devem conter uma parte comum do currículo que é a Base Nacional Comum, que garantirá equidade no sistema educacional e a materialização do direito à educação. Além disso, a sociedade em geral, por meio de suas várias organizações, será ouvida, pois terá muito a dizer no debate a respeito da qualidade daquilo que é ensinado nas escolas do país (MPB, 2015, p. 3, grifos nossos).
Nesse sentido, o MPB e, de forma mais ampla, os integrantes dessa coalização compreendem que, a despeito das especificidades locais e das distintas responsabilidades de cada ente federado, há algo em comum que deve pertencer a todos: os conhecimentos considerados essenciais para a formação do cidadão. A aprendizagem desses conhecimentos é entendida como um direito de todas as crianças e jovens e, por essa razão, deve ser garantida em todo o território nacional. Uma vez estabelecidos quais os conhecimentos essenciais, estes devem passar a compor os currículos de todas as escolas e redes de ensino do Brasil.
Os defensores da BNCC argumentam que a autonomia dos entes federados não é desrespeitada e que o regime de colaboração entre os entes federados é reforçado, pois todos eles participam da metodologia de construção da BNCC. Isso significa que os conhecimentos essenciais são definidos em colaboração e em diálogo com os entes subnacionais (e com outros atores e instâncias do campo educacional), contribuindo assim para o aperfeiçoamento do regime de colaboração.
Ancorado nessas crenças e princípios, o MPB apresenta duas razões principais que justificam a formulação de uma base curricular comum em todo o território nacional. A primeira razão versa sobre as condições que os sistemas de ensino e as escolas possuem para garantir o direito constitucional a uma educação de qualidade, que para o MPB se manifesta pela garantia do acesso, permanência, conclusão e aprendizado. Para tanto, destaca a necessidade de ter as condições adequadas para que a escola consiga desenvolver seu trabalho visando a garantia desse direito. Essas condições dizem respeito a três dimensões: infraestrutura, pessoal e pedagógica.
As duas primeiras dimensões são bastante conhecidas pelos estudiosos e gestores educacionais. A precariedade da infraestrutura física se dá pela ausência de equipamentos, espaços e materiais adequados para os processos de ensino e aprendizagem. Formação, remuneração, desprestígio social da carreira de magistério e condições inadequadas de trabalho dos professores e dos gestores escolares (diretores e coordenadores pedagógicos e educacionais) também são temas muito debatidos e que influenciam a qualidade da educação.
A terceira dimensão, a pedagógica, tem, segundo o MPB, menos visibilidade que as outras duas, embora seja tão importante quanto. A dimensão pedagógica se traduz no projeto político pedagógico da escola - o PPP, que contém “intenções, princípios e orientações que devem reger o ensino” (MPB, 2015, p. 1). É o PPP que apresenta o que ensinar, como ensinar e como avaliar o que foi ensinado. Por conseguinte, é no PPP que consta o currículo escolar que deve descrever “os aprendizados que serão oportunizados pela escola em cada fase escolar” (MPB, 2015, p. 1). Entendendo o PPP como o principal documento curricular de cada escola, o MPB (2015, p. 1-2) destaca:
Há especificidades locais e regionais que só nele podem ser contempladas. No entanto, os currículos de todas as escolas, sejam elas quais forem, naquilo que se refere ao que deve ser ensinado, precisam ter uma Base Nacional Comum, como expressamente exigido pela Constituição Federal no artigo 210 que diz “Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais, ou como definido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (LDB), que em seu artigo 26 explicita que “Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter Base Nacional Comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos” (Redação dada pela Lei n.º 12.796, de 2013).
Nesse sentido, o posicionamento a favor da BNCC está fortemente ancorado no arcabouço jurídico e constitucional que estabelece a educação como um direito.
A segunda razão versa sobre três principais problemas que geram a ausência de uma base curricular comum a todo o território nacional. O primeiro deles é a manutenção e o agravamento das desigualdades. Cada ente subnacional e cada escola constrói seu próprio documento curricular (o PPP), o que torna os conhecimentos e as habilidades presentes nos currículos das escolas e das redes de ensino diferentes entre si. Isso faz com que os estudantes brasileiros adquiram aprendizagens diferentes ou não adquiram aprendizagens, a depender da escola ou rede de ensino a que pertencem.
O segundo problema concerne ao vácuo que a ausência da BNCC deixa, o que permite que as avaliações em larga escala assumam o “papel de prescrição da base curricular nacional” (MPB, 2015, p. 2). De fato, inúmeras pesquisas já demonstraram as práticas de simulado e de treinamento e o estreitamento do currículo nas escolas, principalmente nas disciplinas de Língua Portuguesa e de Matemática, evidenciando que no interior das escolas as matrizes de referência das avaliações estão sendo utilizadas como currículo prescrito.
Por fim, o terceiro problema mencionado é a dificuldade que a ausência de uma BNCC gera para a formação inicial e continuada de professores e, também, para a produção de materiais didático-pedagógicos.
De forma sintética, a coalização de defesa a favor da BNCC argumenta que, em cada componente disciplinar, existe um conjunto de conhecimentos essenciais para a formação do cidadão e que estes se configuram como direitos de aprendizagens que não podem ser negligenciados a nenhum estudante brasileiro. A construção de uma política curricular que seja comum em todo o território nacional visa a garantia desse direito constitucional e o combate às abissais desigualdades sociais e regionais do sistema educacional brasileiro.
Como veremos a seguir, esses argumentos são criticados pela coalização contrária à BNCC que, entre outros aspectos, aponta que a seleção dos conhecimentos essenciais é arbitrária e determinada a partir de relações de poder, as quais necessariamente excluem outros conhecimentos que podem ser entendidos como essenciais, levando a uma padronização de conhecimentos hegemônicos e, consequentemente, à ampliação das desigualdades.
5 COALIZAÇÃO CONTRÁRIA À BNCC
A coalização de defesa contrária à formulação da BNCC é composta especialmente por atores e instituições do campo acadêmico. As principais entidades dessa coalização são o GT 12 - Currículo da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação15 (ANPEd) e a Associação Brasileira de Currículo16 (ABdC).
Essa coalização, liderada pela ANPEd, é composta, majoritariamente, por nomes do campo acadêmico, como Alice Casimiro Lopes (UERJ), Álvaro Hypólito (UFPel), Carlos Eduardo Ferraço (UFES), Elizabeth Macedo (UERJ), Inês Barbosa Oliveira (UERJ), Janete Magalhães Carvalho (UFES), Maria Luiza Sussekind (UNIRIO), Rita de Cássia Frangella (UERJ), Rosanne Evangelista Dias (UERJ). Na arena política, três conselheiras do CNE, que também são acadêmicas, integraram a coalização: Marcia Ângela da Silva Aguiar (UFPE), Aurina Oliveira Santana (IFBA) e Malvina Tania Tuttman (UNIRIO).
Essa coalização é formada a partir de algumas crenças e princípios apresentados no Ofício 01/2015/GR, encaminhado à então conselheira e presidente da Comissão Bicameral da Base Nacional Comum Curricular do CNE, Professora Dra. Marcia Ângela Aguiar. A ideia central que fundamenta o posicionamento contrário à BNCC assenta-se na anulação das diversidades locais e na imposição de conhecimentos hegemônicos e dominantes a todos os estudantes. A partir dessa ideia central, a coalização de defesa contrária à BNCC faz sua crítica com base em alguns pontos principais. Vejamos.
Assim como o MPB, os argumentos que justificam o posicionamento contrário à formulação da BNCC têm amparo na legislação brasileira quando acentua os princípios que devem fundamentar o ensino nas escolas brasileiras, estabelecidos nos incisos II, III, V, VII, VIII, X, XI e XII do artigo 3.º da LDB/1996. Esses incisos destacam os princípios da “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber”, do “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”, do “respeito à liberdade e apreço à tolerância”, da “valorização do profissional da educação escolar”, da “gestão democrática do ensino público, na forma desta lei e da legislação dos sistemas de ensino”, da “valorização da experiência extraescolar”, da “vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais” e da “consideração com a diversidade étnico-racial” (BRASIL, 1996, n.p.).
A defesa desses princípios vai de encontro à formulação de um currículo comum, em forma de lista de conteúdos, por entendê-lo como uma proposta hegemônica, que privilegia certos saberes - aqueles considerados hegemônicos - e silencia outros. A seleção de conhecimentos tidos como hegemônicos e dominantes e sua obrigatoriedade para todas as escolas brasileiras é, segundo o documento da ANPEd, imprópria à ideia de escola pública, universal, gratuita, laica e de qualidade para todos.
Percebemos na BNCC uma lógica em que a seleção de conteúdos proposta é tida como capaz de dar conta do planejamento curricular, desconsiderando que essa seleção é arbitrária e produzida em meio a relações de poder em virtude das quais se exclui muitos outros conhecimentos possíveis de serem ditos e, muitas vezes, necessários de serem tratados. Lutamos contra algo que nos assusta, que é a defesa, a partir desta seleção de conhecimentos disciplinares, da ideia de um currículo nacional, desconsiderando a multiplicidade de conhecimentos decorrente da pluralidade de modos de compreender o mundo e de nele intervir, de desejos e intenções, derivada de uma pluralidade também de atores sociais do país, na escola e fora dela (ANPEd, 2015, p. 4).
O documento destaca que a proposta de formação humana da BNCC ignora “as realidades locais, suas especificidades, possibilidades e necessidades” e busca produzir “identidades serializadas, eliminando as diferenças” (ANPEd, 2015, p. 2).
Fundamentada em processos de administração centralizada, por meio da modelização e homogeneização não apenas dos saberes, como também do trabalho docente, dos materiais e todos os aspectos que permeiam a educação escolar, a BNCC é entendida como uma etapa de um “projeto unificador e mercadológico” de “uniformização/centralização curricular + testagem larga escala + responsabilização de professores e gestores” (ANPEd, 2015, p. 1).
Uma proposta unificadora, homogênea e comum vai de encontro ao respeito às diferenças e diversidades, que são de ordem étnica, cultural, social, política e econômica. Para que as diversidades sejam respeitadas, o currículo precisa ser flexível, o que é “incompatível com a definição de uma base nacional comum idêntica para todos, sob pena de entendimento do nacional como homogêneo e do comum como único” (ANPEd, 2015, p. 2). Nesse sentido, a proposta da BNCC traz dois riscos para a Educação brasileira:
[...] a fragilização da autonomia, da diversidade e da localidade em prol da centralização; e a criação de uma classe de planejadores de currículo que, de fora das escolas e de suas realidades, a partir de uma única e hegemônica visão sobre conhecimentos válidos e necessidades de aprendizagem de conteúdos, legisla sobre o que se deve ou não fazer nas escolas com base naquilo que crê ser importante de conhecer (ANPEd, 2015, p. 5).
Um segundo argumento que sustenta o posicionamento contrário à formulação da BNCC é o entendimento de que os integrantes da coalização têm acerca do direito à aprendizagem, que deve ser pensada “em concomitância com o direito à diferença e o respeito à pluralidade” (ANPEd, 2015, p. 2). Esse direito não se efetiva por meio de uma lista de conteúdos o qual, ao ser assim estabelecido, perde o caráter de direito e se torna uma obrigação a ser cumprida. Para ser efetivamente garantido nas escolas, o direito de aprender deve extrapolá-la e considerar outras dimensões específicas, singulares de cada localidade, de cada sujeito.
O direito de aprender os conteúdos é fundamental nas escolas, mas precisa estar articulado a dimensões outras, igualmente importantes, considerando a complexidade e a multirreferencialidade do processo educativo. Assim, se aprender é preciso, é fundamental reafirmar que a educação não se esgota em aprendizagem. E aprendizagem não se esgota em uma lista de conteúdos ou em metas formais, inclui processos individuais e sociais desenvolvidos e vivenciados “ao longo da vida” (ANPEd, 2015, p. 3).
Conforme a ANPEd, a BNCC propõe uma lista de conteúdos por componente disciplinar, o que também é objeto de crítica, pois os conhecimentos são fluidos e articulados com outros conhecimentos, de outras áreas disciplinares. A maneira como a BNCC é proposta desconsidera as relações “inter e entre” as áreas disciplinares e os conhecimentos que, em verdade, constituem-se nessa relação. Estabelecer listas de conteúdos em cada área disciplinar de forma estanque, sem diálogo com os saberes da própria disciplina e de outras disciplinares, é, de acordo com a ANPEd, uma proposta natimorta e vazia de conteúdo social.
Com esses dois principais motivos que embasam o posicionamento contrário dessa coalização à formulação da BNCC está a denúncia de que a BNCC desqualifica o trabalho docente na medida em que promove uma divisão entre os planejadores do currículo e os executores do currículo planejado. Essa cisão desvaloriza o professor quando o coloca no papel de executor, tirando-lhe a autonomia de sua prática pedagógica.
Por fim, pautado pela defesa dos princípios democráticos da gestão educacional, o documento enfatiza o papel do MEC - o principal gestor da política educacional brasileira - de proteger as diversidades a partir da flexibilização e da oferta de suporte local às escolas e profissionais da educação. Inspirado em Boaventura de Sousa Santos, a ANPEd (2015, p. 6) defende que “as soluções para os problemas globais são locais e que, quanto mais global for um problema, mais locais devem ser as soluções”.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A construção do documento da BNCC foi permeada por disputas protagonizadas pelas duas principais coalizões de defesas formadas no subsistema educacional: uma contrária à proposta, liderada pela ANPEd, e outra favorável, conduzida pelo MPB. Essas disputas se mostraram muito mais ideológicas do que propriamente informadas por perspectivas objetivamente pedagógicas ou curriculares. As tensões versaram principalmente sobre a necessidade de elaboração de uma base nacional comum e sua efetiva contribuição para a melhoria da qualidade da educação básica brasileira.
A qualidade da educação é um significante polissêmico, que possui distintos sentidos, tornando difícil a tarefa de conceituá-lo. Apesar dos múltiplos entendimentos do que seja qualidade da educação, os documentos normatizadores de políticas públicas educacionais compreendem que uma educação de qualidade é aquela que garante de forma equânime o acesso de todas as crianças e jovens à escola e o aprendizado de conhecimentos necessários para a formação do cidadão na idade-série adequada. Uma definição sucinta elaborada por Matheus e Lopes (2014, p. 341) esclarece que “estar na escola e alcançar níveis instrucionais comuns a todos os alunos, evidenciados por exames nacionais e internacionais, são naturalizados como expressão da qualidade do currículo e, portanto, da educação”.
Por outro lado, o conceito de qualidade também pode ser definido não pelas normativas políticas, mas também pelo próprio contexto escolar, pelos sujeitos dos processos de ensino e aprendizagem, pelos especialistas e estudiosos do campo da educação e, de modo mais abrangente, pela sociedade (MATHEUS; LOPES, 2014).
A compreensão do que é qualidade da educação é o cerne da disputa enfrentada pelas duas coalizações que discutem o conceito a partir de crenças e valores a respeito da garantia do direito à aprendizagem, da diversidade cultural e regional e da mitigação da desigualdade educacional, que são defendidos a partir de perspectivas diferentes. Por um lado, a coalização a favor da BNCC argumenta que um dos elementos centrais para combater a desigualdade de aprendizagem é a garantia de que conhecimentos essenciais para a formação do cidadão sejam aprendidos por todos. Por outro lado, a coalização contra a BNCC sustenta que as desigualdades educacionais são combatidas a partir da valorização da diversidade, da pluralidade de ideias, da autonomia dos professores e dos conhecimentos produzidos na escola pelos sujeitos envolvidos nos processos de ensino e aprendizagem, em face de suas especificidades locais e contextuais.
A ideia de direito à aprendizagem também é tema central de disputa entre as duas coalizações. Para o MPB a aprendizagem, ao ser entendida como um direito, deve ser garantida a todos. Portanto, para se efetivar o direito à aprendizagem, é necessário que todas as crianças aprendam os conhecimentos considerados essenciais para a formação do cidadão. Por sua vez, a ANPEd compreende que o direito vai se efetivar por meio de conhecimentos que façam sentido nos contextos e realidades locais e que os sujeitos envolvidos nos processos de ensino e aprendizagem serão os produtores desses conhecimentos, ou seja, o currículo se faz na escola.
Na arena política do contexto de formulação, cada coalização disputou como mais legítima a perspectiva adotada pelo seu próprio sistema de crenças. Em que pesem o contexto político instável e as várias críticas que muitos atores do MPB fizeram às rupturas do processo de formulação da BNCC, na disputa política, a coalização a favor da elaboração da BNCC venceu.
Não obstante, a formulação da BNCC, que se materializou em um documento, não assegura sua efetiva implementação nas escolas e salas de aulas por vários motivos. Um deles é a garantia das capacidades técnicas (formação dos profissionais da educação) e materiais (livros, materiais didáticos pedagógicos etc.). Essas capacidades devem ser desenvolvidas em todos os sistemas de ensino, incluindo a rede particular, de todos os municípios brasileiros. Isso certamente vai exigir não apenas um aporte significativo de recursos públicos, como também um complexo esforço de colaboração entre os entes nacionais. Outro motivo é o desafio de enfrentar possíveis resistências políticas e ideológicas, uma vez que o debate acerca da necessidade da BNCC ainda vigora na sociedade civil e em outras instâncias, como escolas, redes de ensino, sindicato de professores e universidades. Além disso, questões de ordem prática, não debatidas explícita e exaustivamente no contexto da formulação, como compreensão do documento da BNCC, materiais didático-pedagógicos, autonomia docente, entre outros, podem se colocar no contexto da implementação.
Esses possíveis desafios evidenciam que a formulação e a implementação de uma dada política pública são fases sequenciais e complementares, que envolvem processos decisórios contínuos e atores de diferentes níveis e camadas (HILL; HUPE, 2003), indicando que a formulação de uma política pública não garante sua plena implementação.
As dúvidas que recaem sobre a implementação da BNCC, em todo o território nacional, tornam-se mais relevantes diante da atual crise sanitária do novo coronavírus, quando as redes de ensino e escolas estão produzindo materiais didáticos e ofertando aulas on-line para os alunos. Essas ações estão sendo desenvolvidas a partir das possibilidades e capacidades de cada contexto local, sem uma coordenação governamental em nível nacional, o que pode gerar consequências perversas como o aumento da taxa de evasão e o abandono e a ampliação das desigualdades de aprendizagem.
Nesse contexto, a pergunta que se coloca é: o que as escolas e redes de ensino estão ensinando aos alunos nesse contexto da pandemia, com todas as dificuldades daí advindas? O direito a aprendizagem está sendo garantido? Quais aprendizagens estão sendo trabalhadas? E mais: o que será ensinado no contexto pós-pandêmico? Nesse sentido, torna-se imperativo (re)discutir as políticas curriculares locais, bem como os processos de implementação da BNCC.