1 INTRODUÇÃO
No Brasil, os negros viveram uma história marcada por muitas desigualdades, por estereótipos negativos que se manifestaram através da discriminação racial. Essa página da história ainda não foi virada. O racismo prevalece no ideário da população brasileira que privilegia a cultura branca europeia em detrimento de outras culturas, como a indígena e a africana. Vale ressaltar que o racismo, além das relações culturais e sociais, abarca também o campo do conhecimento científico (Gomes, 2017; Laborne, 2014; Verrangia; Silva, 2010).
Alguns avanços contra o racismo impregnado na sociedade brasileira já foram alcançados graças aos movimentos sociais, em particular o Movimento Negro. No campo da educação, políticas públicas, institucionais e pedagógicas vieram em resposta a essa luta (Gomes, 2017). Um exemplo das conquistas alcançadas na área da educação foi a Lei 10.639/03 que tornou obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana no ensino fundamental e médio, tanto em escolas públicas quanto privadas. Essa lei foi regulamentada pela Resolução CNE/CP 01/04 que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DNCERER) e pelo Parecer CNE/CP 03/04 (Brasil, 2004a, 2004b). Posteriormente, a lei foi alterada com inclusão da questão indígena.
As DNCERER orientam que as instituições de ensino superior, em especial aquelas que ofertam cursos de licenciatura, insiram a Educação das Relações Étnico-Raciais (Erer) em seus currículos (Brasil, 2004a). Portanto, tais cursos precisam explorar essa temática em seus projetos pedagógicos, com vistas à formação de professores para discussão e abordagem das questões étnico-raciais também no ensino Fundamental e Médio.
Essa tarefa, ao contrário do que muitos pensam, não está restrita aos professores dos cursos de História. Nesse sentido, alguns trabalhos como os de Baptista (2015), Baptista e Araújo (2018), Fernandes (2018), Francisco Júnior (2008), Verrangia e Silva (2010) procuraram estabelecer uma articulação entre a Erer e o ensino de Ciências, tanto na formação inicial de professores de Ciências/Biologia quanto no ensino básico. Contudo, elaborar um currículo que apresente uma ruptura com as relações de poder vigentes na sociedade e que trabalhe a Erer é um desafio.
Nesse contexto, considerando que os Projetos Pedagógicos dos Cursos (PPCs) são centrais para a inserção das DNCERER nas Instituições de Ensino Superior (IES), acredita-se que os cursos de licenciatura em Ciências Biológicas, ofertados no estado de Alagoas, apresentam de forma incipiente a Erer em seus currículos. Assim, a questão central que norteou esse estudo foi: “De que forma os PPCs dos cursos de licenciatura em Ciências Biológicas ofertados em instituições públicas do estado de Alagoas abordam a Erer?”
O referido estado está localizado na região Nordeste e teve grande representatividade na história da luta dos negros no Brasil, abrigando o maior refúgio de escravizados fugidos da história do país: o Quilombo dos Palmares (Fonseca, 2003). Ainda hoje, existem diversas Comunidades Remanescentes de Quilombos (CRQs) em todo o Brasil. Segundo dados atualizados em 2021, pela Fundação Cultural Palmares, havia um total de 2.807 comunidades quilombolas certificadas em todo o país, sendo que, mais da metade (61%) estava localizada na região Nordeste e Alagoas contava com 69 CRQs (Brasil, 2021).
Buscou-se, com essa pesquisa, explorar os avanços alcançados pelas IES públicas, localizadas em Alagoas, quanto à inserção das questões étnico-raciais nos currículos dos cursos de formação inicial de professores de Ciências/ Biologia. O artigo está dividido em uma breve fundamentação teórica sobre educação e relações étnico-raciais; teorias curriculares e a formação docente; além de como as questões étnico-raciais têm sido abordadas dentro das ciências naturais, especificamente, no ensino de Ciências e Biologia. Posteriormente, tem-se o detalhamento do percurso metodológico que foi baseado na análise de conteúdo segundo Bardin (2011). Ao final do artigo são apresentadas as análises dos PPCs dos cursos de Licenciatura em Ciências Biológicas ofertados em Alagoas.
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 Educação e as relações étnico-raciais
Educação é um conceito amplo que envolve a formação de qualidades humanas, sejam elas físicas, morais, intelectuais ou estéticas, as quais estão imbricadas no contexto das relações sociais. A educação formal abarca a escolarização, todos seus aspectos teóricos e práticos, e fornece aos indivíduos conhecimentos e experiências culturais para atuar no meio social e transformá-lo, a partir de necessidades políticas, econômicas, sociais e coletivas (Brasil, 2004b; Libâneo, 2013).
Para Freire (1981, p.73-74), “[...] a educação para a ‘domesticação’ é um ato de transferência de ‘conhecimento’, enquanto a educação para a libertação é um ato de conhecimento e um método de ação transformadora que os seres humanos devem exercer sobre a realidade.” A educação formal pode, portanto, servir como um instrumento que permite a construção de uma sociedade democrática, que garanta habilidades para elaboração de conhecimento e inserção nas lutas sociais.
Uma vez que o processo educativo é sempre contextualizado social e politicamente, a escolarização deve possibilitar, aos indivíduos, bases para interpretar de forma consciente e crítica todas as influências educativas, lembrando que a educação não ocorre somente no espaço escolar. Nesse sentido, salienta-se que a Erer, entendida como reeducação das relações entre diferentes grupos étnicos, precisa fazer parte do contexto da educação formal, em todos os seus níveis. O combate ao racismo e a qualquer forma de discriminação não é dever apenas das instituições de ensino, mas também passa por elas (Brasil, 2004b; Candau, 2014; Libâneo, 2013).
Costa e Dutra (2009, p. 1) afirmam que:
Descolonizar o saber é o primeiro passo na luta contra o preconceito racial. A educação tem fundamental importância nesta luta, pois se acredita que o espaço escolar seja responsável por boa parte da formação pessoal dos indivíduos, sendo assim um ambiente fundamental para a superação das desigualdades raciais e superação do racismo.
Existe um crescente número de pesquisas que procuram investigar questões relacionadas à educação e o combate ao racismo. Nessas pesquisas, normalmente, o foco é o livro didático ou o currículo escolar. Na questão referente aos livros didáticos, as pesquisas apontam para uma tendência na reprodução de estereótipos racistas, com personagens negros em tarefas consideradas degradantes ou inferiorizados perante o grupo étnico dominante, o branco (Cavalleiro, 2001; Rosemberg; Bazili; Silva, 2003; Silva, 2005; Silva Jr, 2002). Essa abordagem contribui para uma visão de mundo que desvaloriza o negro e sua cultura.
No tocante ao currículo escolar, os estudos já realizados se depararam com uma escassez de conteúdos relacionados à história e cultura afro-brasileira (Rosemberg; Bazili; Silva, 2003; Verrangia; Silva, 2010). Algumas poucas iniciativas esbarraram em outro fator limitante: precária ou ausente formação dos professores, o que tem inviabilizado a abordagem do tema em sala de aula (Cavalleiro, 2001). Segundo a autora, um professor bem preparado poderia contribuir de diferentes formas, inclusive com uma reflexão crítica perante um material didático com conteúdo racista. Ela entende que a formação de professores para educação antirracista é de extrema importância no sentido de evitar a exclusão escolar, que se configura como o início da exclusão social da criança negra.
Um marco da luta do movimento negro brasileiro, na área da educação, foi a alteração da Lei 9.394/ 1996 das Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, 1996), com a promulgação da Lei 10.639, em 2003, como mencionado anteriormente.
O resgate da memória coletiva e da história da comunidade negra não interessa apenas aos alunos/as de ascendência negra; interessa também aos alunos/as de outras ascendências étnicas, principalmente branca, pois ao receber uma educação envenenada pelos preconceitos, eles também tiveram suas estruturas psíquicas afetadas. Além disso, essa memória não pertence somente aos negros. Ela pertence a todos [...] (Munanga, 1996, p. 16).
De acordo com o Parecer CNE/CP 03/2004, os cursos de formação de professores e de outros profissionais da educação, precisam atentar para a introdução, em seus currículos:
[...] de análises das relações sociais e raciais no Brasil; de conceitos e de suas bases teóricas, tais como racismo, discriminações, intolerância, preconceito, estereótipo, raça, etnia, cultura, classe social, diversidade, diferença, multiculturalismo; de práticas pedagógicas, de materiais e de textos didáticos, na perspectiva da reeducação das relações étnico-raciais e do ensino e aprendizagem da História e Cultura dos Afro-brasileiros e dos Africanos (Brasil, 2004b, p. 14).
As DCNERER, além de orientar a construção de Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) na educação básica, de forma que colaborem com a superação de estereótipos negativos de diferentes populações e etnias, conforme salienta Brito e Soares (2020), também são fundamentais para direcionar ações dos docentes que atuam no ensino superior, na formação inicial dos profissionais da educação básica.
Ressalta-se, nesse contexto, que a mudança na formação dos professores é igualmente importante porque eles poderão ajudar a “promover ações de combate ao racismo no espaço escolar” e colaborar para o desenvolvimento de “boas relações étnico-raciais” (Brito; Soares, 2020, p. 1415).
Embora racismo seja considerado crime, Inciso XLII do Artigo 5º da Constituição Federal (Brasil, 1988), nem todos sabem o que é um crime de racismo. Nesse sentido, cabe também aos professores não silenciar perante situações de discriminações raciais e contribuírem com práticas pedagógicas que promovam o respeito e tolerância às diferentes etnias e manifestações culturais. De acordo com Candau (2008), a escola desempenha papel fundamental para uma formação cidadã que respeite a diversidade, através de uma educação antirracista. Para a autora, “O educador/a tem um papel de mediador na construção de relações interculturais positivas, o que não elimina a existência de conflitos” (Candau, 2008, p. 31), e completa que:
[...] é necessário ultrapassar uma visão romântica do diálogo intercultural e enfrentar os conflitos e desafios que supõe. Situações de discriminação e preconceito estão com frequência presentes no cotidiano escolar e muitas vezes são ignoradas, encaradas como brincadeiras. É importante não negá-las, e sem reconhecê-las e trabalhá-las, tanto no diálogo interpessoal como em momentos de reflexão coletiva, a partir das situações concretas que se manifestem no cotidiano escolar (Candau, 2008, p. 32).
Para avançar nessa direção, é importante que os cursos de formação inicial de professores cumpram seu papel e atuem na preparação de professores para abordagem dessa questão.
2.2 O currículo e a formação de professores
Os docentes que hoje atuam nos cursos de licenciatura, preparando os futuros profissionais da educação, tiveram sua formação em um contexto diferente, no qual prevalecia uma concepção curricular eurocêntrica e que desconsiderava os conflitos raciais na sociedade. Nesse sentido, é nítida a dificuldade desses profissionais de repensarem um currículo que abarque a Erer (Brasil, 2006). Além disso, nem todos os docentes conhecem as diferentes dimensões de um currículo e a influência que ele pode exercer sobre os valores e hábitos dos alunos.
O conceito de currículo tem uma longa história que precisa ser entendida a partir da análise de diferentes contextos e dimensões: sociais, políticos, culturais ou econômicos. Currículo pode ser entendido como uma mera estruturação e padronização de conteúdos que devem ser abordados nos diferentes níveis escolares. Segundo Sacristán (2013, p. 17):
Em sua origem currículo significava o território demarcado e regrado do conhecimento correspondente aos conteúdos que professores e centro de educação deveria cobrir; ou seja, o plano de estudos proposto e imposto pela escola aos professores (para que o ensinassem) e aos estudantes (para que o aprendessem).
O entendimento do que seria currículo passou por transformações, embora muitos educadores ainda carreguem essa visão simplista que marcou a origem do termo. Para entender o currículo e as forças que impelem sua construção é preciso compreender que ele não é neutro, mas está incutido de valores e interesses, os quais contribuem para a construção de identidade de toda uma comunidade. Vários teóricos, ao longo dos anos, deram suas contribuições para a compreensão da dinâmica e funções do currículo. Nesta pesquisa, será abordada, de forma sucinta, a classificação das teorias curriculares proposta por Silva (2005): tradicionais, críticas e pós-críticas.
A teoria tradicional, também conhecida como teoria técnica, limitava a concepção do currículo a questões voltadas ao ensino, aprendizagem, metodologia, didática, organização, eficiência, objetivo e avaliação (Prado; Alencastro; Almeida, 2017). Foi preconizada por Jonh Franklin Bobbitt e, de acordo com Silva (2009 apudPacheco, 2017, p. 2798):
A atração e influência de Bobbitt devem-se provavelmente ao fato de que sua proposta parecia permitir à educação tornar-se científica. Não havia por que discutir abstratamente as finalidades últimas da educação: elas estavam dadas pela própria vida ocupacional adulta. Tudo o que era preciso fazer era pesquisar e mapear quais eram as habilidades necessárias para as diversas ocupações.
Contudo, quando a finalidade do sistema educacional é voltada apenas para o preparo de mão de obra para o mercado, com base em uma formação tecnicista, o aluno pode permanecer alheio às discussões e lutas presentes na sociedade. Dessa forma, na década de 1960, outros teóricos emergiram para contrapor as concepções tradicionais de currículo. Surgiu, então, a teoria crítica que defendia o currículo em uma perspectiva de libertação intelectual e social, com vistas a uma formação humana mais ampla. A partir das teorias críticas foi possível compreender que o currículo seria também uma construção social (Silva, 2005).
As teorias curriculares pós-críticas, por sua vez, tiveram lugar a partir das décadas de 1970 e 1980. Segundo Silva (2005, p.147), tanto a teoria crítica quanto a pós-crítica apontam “que o currículo é uma questão de saber, identidade e poder.” A diferença entre elas é que, para a primeira, a dinâmica do poder tem como base as classes sociais. Já para a segunda, essa dinâmica se amplia para as relações de raça, etnia, gênero, sexualidade e multiculturalismo. Dessa forma, o autor completa que o “[...] currículo é lugar, espaço, território [...] é texto, discurso, documento. O currículo é documento de identidade” (Silva, 2005, p. 150).
Apple (1994, p. 59), por sua vez, afirma que:
O currículo nunca é apenas um conjunto neutro de conhecimentos [...]. Ele é sempre parte de uma tradição seletiva, resultado da seleção de alguém, da visão de algum grupo acerca do que seja conhecimento legítimo. É produto de tensões, conflitos e concessões culturais, políticas e econômicas que organizam e desorganizam um povo.
Trazendo essa discussão para as questões étnico-raciais no Brasil, Fernandes (2013) aponta que é necessário refletir sobre o conceito de nação e confrontar o mito de origem, que pretende homogeneizar a população brasileira, camuflando as desigualdades raciais sob o manto da democracia racial . Para a autora, a construção de um país mais justo passa pelo reconhecimento e valorização das diferentes culturas presentes na sociedade brasileira. Faz-se necessário, portanto, um olhar mais atento para a seleção de conteúdos curriculares que abarquem a história desses grupos.
Cabe ainda mencionar a necessidade identificada de que os cursos de formação de professores de Ciências ajudem a questionar os processos de seleção de conteúdos. Geralmente, no contexto escolar, tal seleção parte de conteúdos conceituais preestabelecidos, presentes em livros, textos e ementas para a definição de procedimentos de ensino. Analisando as interações entre ensino de Ciências e educação das relações étnico-raciais, verifica-se a necessidade de se inverter tal lógica. Para educar relações étnico-raciais é necessário definir de antemão valores e posturas a serem desenvolvidos pelos estudantes, para depois selecionar conteúdos conceituais e procedimentos de ensino adequados a tal propósito (Verrangia; Silva, 2010, p. 716).
Além do reconhecimento e representatividade das diferentes culturas dentro dos currículos no ensino básico, é importante destacar a necessidade de uma formação docente que leve ao respeito e à tolerância entre os diferentes grupos étnicos existentes na sociedade e que se encontram no espaço escolar. Como afirma Candau (2008, p. 25) “a diferença é constitutiva da ação educativa. Está no ‘chão’, na base dos processos educativos, mas necessita ser identificada, revelada, valorizada.”
Verifica-se, portanto, a importância de uma discussão crítica dos currículos dos cursos de formação inicial de professores quanto às relações étnico-raciais. Nesse contexto, a inversão da lógica durante a escolha dos conteúdos curriculares sugerida por Verrangia e Silva (2010), constitui-se como uma proposta interessante também para o ensino superior, na formação dos professores de Biologia.
2.3 Ensino de ciências: contribuições para a educação das relações étnico-raciais
Quando se busca explorar formas de trabalhar a Erer dentro do ensino de ciências é necessário, inicialmente, fazer uma abordagem sobre alguns termos, como raça, e contextualizá-los no tempo e espaço. Historicamente, o termo raça nem sempre teve o mesmo significado. Segundo Munanga (2003), esse conceito veio do italiano razza, com precedência no latim ratio, significando sorte, categoria, espécie. Em ciências naturais, o termo raça foi inicialmente utilizado com a finalidade de classificar espécies de planas e animais. Nos séculos XVI-XVII, contudo, passou a ser utilizado pelos nobres franceses para diferenciá-los daqueles que consideravam inferiores, imprimindo ao termo função de diferenciação entre classes sociais.
A partir do final do século XVIII, a utilização do termo raça para hierarquizar os seres humanos esteve sob o manto da “ciência”, para justificar a dominação de determinados povos pela nova classe social que emergia naquele contexto europeu. Com a ascensão da burguesia no século XIX, a ideia de “raças” era fundamental para legitimar a dominação política e econômica desta classe sobre os demais povos, dos quais precisava explorar a força de trabalho para manter sua forma de produção. Nesse contexto, Robert Knox teve importante papel ao desenvolver estudos com crânios e cadáveres. Em sua obra “Raças Humanas”, afirmou a inferioridade dos negros que deveriam, portanto, serem dominados pela raça superior, a branca (Góes, 2015).
A partir da década de 1970, avanços realizados na bioquímica, genética humana e biologia molecular, levaram os pesquisadores a reconhecerem que “raça humana” não é uma realidade biológica. Trata-se de um conceito histórico, social e político, no qual estava subentendido uma noção de desigualdade social, de hierarquia e superioridade cultural de um povo sobre outro (Munanga, 2003; Santos; Aguiar Neta; Santos, 2014). Importante destacar que, no caso do Brasil, a ideia atual de raça foi ressignificada pelo Movimento Negro que lhe atribuiu uma conotação política e social em torno de uma construção identidária étnico-racial (Gomes, 2017).
Para Munanga (2003), um racista acredita na existência de uma hierarquia dentro da espécie humana que é dada pelas diferentes raças. O discurso racial ainda é observado entre cientistas renomados, como apontado por Vieira e Martins (2015, p. 25):
[...] o ganhador do Prêmio Nobel, James Watson [...] realizou em 2007 polêmicas declarações que revelam a profundidade de suas concepções raciais, alicerçadas em fundamentos epistemológicos históricos, alojados no discurso biológico moderno. Em entrevista ao jornal Sunday Times no Reino Unido, Watson afirmou estar inerentemente pessimista quanto às perspectivas para África, porque as políticas sociais baseiam-se no fato de que a inteligência dos africanos é a mesma que a nossa, e a prática revela que não é assim.
Percebe-se, portanto, que para combater o racismo é necessário enfrentar ideologias que estão imbricadas na sociedade e também no meio científico, o que não é tarefa fácil. Contudo, desmistificar o conceito de “raça humana” derrubando as bases biológicas nas quais ele se apoiou ao longo da história já é um começo (Gould, 1991). Silvério e Motokane (2019, p. 26) complementam ao apontar que entender “as construções históricas da Ciência sobre as relações raciais é fundamental para podermos elaborar maneiras de combater hierarquizações, estereótipos e reproduções negativas para a população negra no ensino de Ciências e Biologia”.
O ensino de ciências, no sistema escolar brasileiro, é organizado de diferentes formas. Para o ensino Fundamental II, tem-se uma organização curricular que inclui a disciplina de Ciências Naturais e, para o Ensino Médio, tem-se uma divisão entre Biologia, Física e Química. Dentro dessa realidade, o número de estudos que abordam as contribuições do ensino de Ciências e/ou Biologia para a Erer ainda é pequeno, mas percebe-se um crescente interesse da comunidade acadêmica por esse tema tão essencial para a concretização de uma sociedade mais democrática e que respeite a diversidade nela existente (Fernades, 2018; Francisco junior, 2008; Leo Neto, 2018).
Alguns trabalhos já demonstraram que diferentes áreas de conhecimento da Biologia, como: evolução, genética, anatomia, etnobiologia, biologia celular, dentre outras, podem contribuir com discussões sobre a questão étnico-racial, valorizando os saberes e conhecimentos acumulados por diferentes povos (Anjos; Roxo, 2014; Baptista, 2015; Castro, 2018; Silvério; Motokane, 2019; Suzart; Baptista; Costa-Neto, 2019; Xavier; Sousa; Melo, 2019).
Teixeira e Silva (2017, p. 63), por exemplo, discutiram como a história da eugenia poderia ser utilizada em sala de aula associada aos conteúdos de biologia, mais especificamente, de genética, com uma abordagem crítica da relação entre ciência e sociedade e um olhar atento “às implicações éticas e morais do trabalho científico”.
Em um estudo sobre a representação do corpo humano em livros didáticos, Silvério e Motokane (2019) observaram uma sub-representação dos corpos negros enquanto modelos anatômicos, o que pode configurar uma normatização do indivíduo branco como o representante legítimo da espécie humana. Esse estudo chamou a atenção para a necessidade de revisão dos livros didáticos e dos conceitos que eles pretendem passar.
Baptista (2015) e Leo Neto (2018) procuraram refletir como a etnobiologia poderia contribuir com uma educação antirracista, atenta às questões de diversidade, promovendo o respeito e valorização das diferenças culturas.
Francisco Júnior (2008, p. 405), por sua vez, destacou em seu estudo que não existe uma receita pronta para se trabalhar a temática racial dentro da sala de aula, mas que é necessário “desvelar as diferenças, valorizando-as como forma integradora dos diferentes povos, nações e grupos sociais, com direitos iguais de acesso aos bens e serviços de que a sociedade dispõe.”
Até o momento, contudo, a realidade em várias escolas, no Brasil, é a presença de currículos e materiais didáticos que tendem a valorizar o conhecimento, cultura e tradições europeias em detrimento aos demais povos, como se as populações africanas, por exemplo, não tivessem contribuições importantes a serem estudadas. Souza (2014, p. 32) afirma que: “Os africanos trouxeram consigo suas crenças, seus valores, suas linguagens, suas tradições orais, e também trouxeram conhecimentos e saberes significativos no campo científico e das ciências que não devem ser esquecidos ou menosprezados.”
Estudos mostram que já existiam universidades na África quando as primeiras universidades na Europa foram fundadas; que a civilização egípcia possuía conhecimentos científicos sistematizados e bem desenvolvidos em várias áreas: engenharia (construção das pirâmides), medicina (cirurgias de catarata, utilização de substâncias anestésicas), química (procedimento de mumificação) dentre vários outros (Moreira et al., 2011).
Diante do exposto é possível notar que várias são as possibilidades, em diferentes áreas das ciências, para introduzir a discussão e valorização de outras culturas e conhecimentos acumulados, ao longo da história, pela humanidade, rompendo com o racismo epistêmico embasado em um currículo eurocêntrico, que trabalha com uma visão limitada e, por vezes, negativa da cultura e identidade negra, assim como a de outras culturas.
3 PERCURSO METODOLÓGICO
Esse estudo, de cunho exploratório quanto aos objetivos, foi desenvolvido a partir de uma abordagem qualitativa (Severino, 2007). Trata-se de uma pesquisa documental, quanto aos procedimentos técnicos, cujos dados foram coletados a partir da consulta aos Projetos Pedagógicos dos Cursos de Licenciatura em Ciências Biológicas dos cursos selecionados. Algumas informações também foram coletadas junto ao portal e-Mec.
Para compor a amostra dessa pesquisa, foram selecionados, através de consulta no portal e-Mec, os cursos de licenciatura em Ciências Biológicas, modalidade presencial, ofertados em instituições públicas localizadas no estado de Alagoas. Os critérios de inclusão foram, portanto: o grau, a modalidade e a gratuidade do curso, bem como a localização geográfica da IES. Foram excluídos da pesquisa os cursos que estão em extinção e os que ainda não foram iniciados.
Procurou-se avaliar se questões condizentes com o que preconizam as DNCERER - Parecer CNE/CP 03/04 e Resolução CNE/CP 01/04 estavam presentes nos PPC’s e/ou ementas dos componentes curriculares. Algumas palavras-chave foram selecionadas para auxiliar nessa busca: etnia, racial, racismo, diversidade cultural, multiculturalismo, etnobiologia, etnociências, etnoecologia, tradicional, saberes populares.
Os dados coletados foram examinados mediante análise de conteúdo, segundo Bardin (2011). Esse processo de análise pode ser dividido em três fases: i) pré-análise (organização do material), ii) exploração do material (escolha das unidades de categorização da pesquisa) e iii) inferência e interpretação (o tratamento dos resultados através das categorias). As categorias de análise criadas (Quadro 1) foram analisadas quanto à contextualização regional e pertinência das propostas frente às orientações das DNCERER.
Categorias de análise | Critérios comuns de agrupamentos |
---|---|
Caracterização do curso | Município onde a unidade acadêmica estava localizada, início de funcionamento do curso, vagas ofertadas, carga horária do curso, ano de atualização do Projeto Pedagógico do Curso vigente. Relação da IES com o contexto sócio-cultural do município e/ou do Estado. |
Perfil do egresso | Características e competências almejadas para o licenciado, com foco na educação para as relações étnico-raciais e formação cidadã. |
Abordagens das questões raciais no ensino de Ciências | Concepção da organização curricular e componentes curriculares que versam sobre questões de diversidade cultural, multiculturalismo, conhecimento tradicional, valorização das diferentes etnias. |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Entende-se que os documentos que serviram de base para esta pesquisa são frutos de um esforço coletivo de profissionais da educação conscientes de todas as legislações vigentes, bem como das demandas apresentadas pela sociedade. Contudo, análises que possam contribuir para o aprimoramento destes documentos são pertinentes. Os resultados alcançados com esta pesquisa documental estão dispostos, seguindo-se as categorias de análise selecionadas.
4 RESULTADOS E DISCUSSÃO
4.1 Contextualização e caracterização dos cursos
As três IES públicas que ofereciam cursos de licenciatura em Ciências Biológicas, modalidade presencial, no estado de Alagoas possuíam campus ou unidades educacionais em diferentes municípios (Quadro 2). A Universidade Federal de Alagoas (Ufal) ofertava o referido curso no Campus A.C. Simões, localizado em Maceió; no Campus Arapiraca, localizado em Arapiraca e na Unidade Educacional Penedo, localizada em Penedo, sendo essa última vinculada ao Campus Arapiraca. Embora pertencessem a uma mesma IES, cada uma dessas unidades acadêmicas possuía seu próprio PPC para o curso de Ciências Biológicas.
O mesmo não aconteceu com a Universidade Estadual de Alagoas (Uneal) que contava com um único PPC para os três campi nos quais ofertava o curso: Campus I, localizado no município de Arapiraca; Campus II, em Santana do Ipanema, e Campus III, em Palmeira dos Índios. Por fim, analisou-se o projeto pedagógico do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas ofertado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Alagoas (Ifal), localizado em Maceió.
IES/ Campus ou Unidade Educacional (UE) | Início do funcionamento | Vagas anuais autorizadas | Carga horária (horas) | Código - Ano de atualização do PPC |
---|---|---|---|---|
Ufal/ Campus A.C. Simões | 1974 | 75 | 3.581 | PPC1 - 2019 |
Ufal/ Campus Arapiraca | 2006 | 50 | 3.547 | PPC2 - 2018 |
Ufal/ UE Penedo | 2014 | 50 | 3.496 | PPC3 - 2018 |
Uneal/ Campus I | 1992 | 80 | 3.500* | PPC4 - 2017 |
Uneal/ Campus II | 2006 | 40 | 3.500* | PPC4 - 2017 |
Uneal/ Campus III | 1996 | 40 | 3.500* | PPC4 - 2017 |
Ifal/ Campus Maceió | 2011 | 40 | 3.340** | PPC5 - 2018 |
Fonte: Elaborado pelos autores a partir dos dados do Ministério da Educação disponíveis em: https://emec.mec.gov.br. Acesso em: 26 abr. 2021.
PPC - Projeto Pedagógico do Curso; Universidade Federal de Alagoas (Ufal); Universidade Estadual de Alagoas (Uneal); Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Alagoas (Ifal). * Informações divergentes daquelas encontradas no PPC4, no qual constam 3.420 horas. **Informação divergente daquela encontrada no PPC5, no qual constam 3.200 horas.
O curso mais antigo era o da Ufal, Campus A.C. Simões e o mais novo da Ufal, UE Penedo. Um total de 375 vagas era ofertado anualmente, considerando todos os campi e unidades (Quadro 2). A unidade acadêmica que ofertava maior número de vagas era a Uneal/ Campus I, distribuídas em dois turnos - matutino e noturno. A oferta do curso no turno noturno era uma realidade compartilhada também pelas demais IES, excetuando-se Ufal/ Campus Arapiraca que ofertava o curso apenas no turno matutino.
Segundo uma pesquisa realizada no ano de 2004, pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a maioria dos alunos que se matricularam em cursos noturnos eram trabalhadores. O curso noturno seria, dessa forma, a única chance desses indivíduos de completarem uma graduação, o que aponta para uma importante oportunidade de acesso ao ensino superior. Outro dado fornecido pelo estudo foi que uma parte significativa desses cursos era voltada para formação de professores (Inep, 2004).
Os cursos ofertados pela Ufal e Uneal possuíam cargas horárias aproximadas. Contudo, o curso ofertado pelo Ifal apresentou um número de horas inferior em relação aos demais e havia uma discrepância entre as informações cadastradas no portal e-Mec e aquelas fornecidas nos PPCs de algumas instituições. Independentemente dessa variação, todos os cursos estavam de acordo com a Resolução CNE/CP 2/2015, que instituiu a carga horária dos cursos de Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, em 3.200 horas (Brasil, 2015). Essa resolução foi atualizada pela Resolução CNE/CP 2/2019, sendo essa carga horária mantida (Brasil, 2020).
Um código aleatório (PPC1 a PPC5) foi atribuído a cada um dos PPCs analisados para facilitar as discussões. Constatou-se que todos os documentos foram atualizados a menos de cinco anos (Quadro 2). Provavelmente, em virtude da Resolução CNE/CP 2/2019, todos eles devem estar com nova atualização em curso.
Considerando a inserção dessas IES no contexto socioeconômico e cultural de Alagoas, no PPC1 havia um destaque para a importância da oferta de cursos de nível superior no referido estado que apresentava elevados indicadores de desigualdades. Nesse sentido, foi apontado que “[...] o papel da Ufal é contribuir de forma inequívoca para uma formação de pessoas que promovam um desenvolvimento social, cultural, econômico que garanta a justiça social (tratando humanamente os seres humanos) [...]”, valorizando a cultura local e regional (Ufal, 2019, p. 6).
A unidade acadêmica da Ufal, localizada na cidade de Arapiraca, apresentou uma linha de contextualização regional próxima daquela apresentada pela unidade de Maceió ao apontar sua missão “enquanto importante agente de desenvolvimento, em seu contexto periférico, de grandes limitações e precariedades, de grandes contrastes e contradições” (Ufal, 2018a, p. 10). Adicionalmente, no PPC2 foi mencionada a importância da interiorização da universidade e seu o papel no desenvolvimento regional, proporcionando acesso ao ensino superior a uma parcela de estudantes que não teriam condições financeiras para se deslocar para a capital.
No PPC3, da UE de Penedo, foi destacada a importância de situar o currículo dentro de um contexto histórico-cultural com diversidade de referências para a formação das subjetividades e identidades dos futuros educadores de Ciências e Biologia. Ademais, a relevância da interiorização e o papel da Ufal no estado de Alagoas ficaram mais evidentes do que nos PPC1 e PPC2, na medida em que as desigualdades existentes foram especificadas e melhor contextualizadas:
O contexto educacional de Alagoas desenvolveu-se em meio a um cenário de grandes desigualdades sociais e econômicas, no qual as oportunidades educacionais nunca foram igualmente distribuídas, o que gerou um elevado número de jovens e adultos, pertencentes aos grupos econômicos, sociais e étnico-raciais menos favorecidos da população, que não conseguiram concluir a escolarização básica (Ufal, 2018b, p. 11).
Como afirma Gomes (2012), um passo importante na descolonização dos currículos, e o primeiro grande desafio, é justamente reconhecer o racismo como um problema estrutural e que a democracia racial não passa de um mito. Nesse sentido, no PPC3 foi possível observar um avanço ao considerar de forma clara os impactos, no contexto educacional, das desigualdades entre os diferentes grupos presentes na população alagoana. Como visto no trecho acima, a desigualdade educacional no estado de Alagoas é um claro reflexo de que brancos, negros e indígenas não tiveram as mesmas oportunidades. Nesse ponto, esse PPC contempla o Parecer CNE/CP 03/04 ao tentar desconstruir o mito da democracia racial no contexto alagoano.
No PPC4, o papel da Uneal foi reforçado no sentido de “[...] resgate e valorização da cultura, possibilitando assim o desenvolvimento das regiões do agreste e sertão do Estado de Alagoas” (Uneal, 2017, p. 10) e assumiu como desafio: “Melhorar os indicadores de qualidade na educação de Alagoas” (Uneal, 2017, p. 21). Tratava-se de um documento único utilizado pelos três campi da Uneal que ofertavam o curso de Ciências Biológicas em cidades distintas, como mencionado anteriormente. A contextualização para cada cidade foi apresentada separadamente.
Em relação à Arapiraca, destacou-se que o município era um centro cultural e que o Campus I contribuía, há mais de 40 anos, com a formação de profissionais para Arapiraca e municípios vizinhos, exercendo influencia no agreste e sertão alagoano. Quanto à unidade localizada em Santana do Ipanema, mencionou-se sua importância no sertão, região tradicionalmente habitada por índios e mestiços. Por fim, em relação à Palmeira dos Índios, foi apresentada a história da cidade e a relação estabelecida com os índios de tribos localizadas nas serras que circundavam o município (Uneal, 2017). Embora tenham apresentado um histórico resumido sobre as origens dos municípios, contemplando a diversidade étnica e cultural presente na sociedade alagoana, não foi observada uma reflexão sobre as desigualdades sociais e raciais existentes na região e o impacto da presença dessas IES nesse contexto.
Finalizando as análises dos PPCs quanto à caracterização e contextualização regional, o PPC5 apresentou uma proposta de formação de professores para o ensino básico comprometidos com as questões sociais. Contextualizou a importância do curso em diferentes áreas, com maior ênfase aos aspectos ambientais. Não houve, nesse primeiro momento, uma discussão mais aprofundada sobre as desigualdades sociais existentes na região, mas foi destacado que:
É de responsabilidade também da instituição a formação de cidadãos éticos comprometidos com a construção dos direitos humanos e dos valores da democracia, bem como as políticas de educação ambiental e a história e culturas afro-brasileira e indígena, visando a atender aos atuais desafios da humanidade (Ifal, 2018, p. 15).
Como apontam Gesser e Ranghetti (2011), a elaboração de currículos comprometidos com a formação de indivíduos capazes de intervirem e modificarem a realidade social é fundamental para o processo de elevação de indicadores sociais.
Segundo dados do Instituto do Negro de Alagoas (Ineg/AL) , a taxa de abandono de alunos brancos, no estado de Alagoas, era de 5,4% contra 11,7% para alunos negros, considerando o ano de 2015. Segundo Cavalleiro (2001), os estudantes negros não se reconhecem no sistema de ensino e acabam desmotivados, abandonando a escola. Evidente que existem outros fatores envolvidos na evasão escolar, mas é importante apontar que o racismo presente nas salas de aula e no currículo escolar “eurocêntrico” também faz parte desses fatores.
Investir, portanto, em uma educação que olhe para as demandas da sociedade é essencial. Uma dessas demandas é justamente a mudança de paradigmas que começa nas concepções curriculares com o reconhecimento, valorização e fortalecimento das diversidades que se encontram e convivem no contexto escolar. Essas mudanças precisam estar presentes não somente no currículo da educação básica, mas também do ensino superior.
Todavia, vale salientar que nem a educação e nem a ciência são autônomas frente ao contexto socioeconômico. Como visto no referencial teórico, a conjuntura econômica e as classes sociais dominantes têm forte influência sobre o que deve ser ensinado ou valorizado enquanto ciência. Existe um conflito, portanto, e seria ingênuo pensar que as desigualdades sociais e os preconceitos existentes nas sociedades atuais possam ser combatidos somente no âmbito da educação, mas é importante ressaltar que passa também por ela.
4.2 Perfil do egresso: formação cidadã para as relações étnico-raciais
No PPC1, foi possível verificar a existência de uma lista contendo sete características que deveriam compor o perfil do egresso, dentre as quais, as três listadas abaixo tinham uma aproximação com as capacidades esperadas em um professor de Ciências/ Biologia apto a trabalhar a Erer e formação cidadã:
✓ visão da contribuição que a aprendizagem de Ciências e Biologia pode oferecer à formação dos indivíduos para o exercício de sua cidadania;
✓ reconhecimento de seu papel social enquanto educador na construção de uma sociedade mais justa e democrática;
✓ visão das ciências da natureza e da saúde enquanto construções humanas, geradas dentro de um contexto cultural, social e econômico; [...] (Ufal, 2019, p. 15).
No PPC2, foram elencadas diferentes competências que o professor de Ciências/ Biologia deveria apresentar, dentre as quais as duas abaixo foram destacadas como potenciais interlocutores com a temática racial e direitos humanos. Essas mesmas competências apareceram no PPC3:
a) Possuir não apenas o domínio das Ciências Biológicas, mas também uma visão política e social, colocando dessa forma, o aluno em contato com a realidade global e local;
b) Deverá apresentar formação humanística técnico-científica e prática imprescindível à compreensão interdisciplinar do fenômeno biológico e das transformações sociais e culturais; [...] (Ufal, 2018a, p. 19).
No PPC2 também foram abordadas características inerentes à atividade docente, dentre as quais duas se destacaram por apresentarem alguma associação com Erer: “Assumir e saber lidar com a diversidade existente entre os alunos;” e “Incentivar atividades de enriquecimento cultural;” (Ufal, 2018a, p. 19).
No PPC4, o perfil pretendido para o licenciado foi elaborado vislumbrando as características ligadas à atividade do profissional referenciadas no Parecer Nº CNE/CP 009/2001 (Brasil, 2002), mas uma delas se destacou por estar em consonância com Erer: “Aprender a lidar com a diversidade cultural, de gênero, de raça, e etnia existente entre os alunos; (Uneal, 2017, p. 24)”.
Por fim, segundo informações contidas no PPC5, os licenciados naquela instituição deveriam ser capazes de:
• Identificar questões e problemas socioculturais e educacionais, com postura investigativa, integrativa e propositiva em face de realidades complexas, a fim de contribuir para a superação de exclusões sociais, étnico-raciais, econômicas, culturais, religiosas, políticas, de gênero, sexuais e outras;
• Demonstrar consciência da diversidade, respeitando as diferenças de natureza ambiental-ecológica, étnico-racial, de gêneros, de faixas geracionais, de classes sociais, religiosas, de necessidades especiais, de diversidade sexual, entre outras; [...] (Ifal, 2018, p. 12-13).
A partir destas informações é possível inferir que, nos documentos analisados, existia uma premissa de orientação curricular voltada para educação antirracista ao buscar inserir as questões de identificação e respeito à diversidade étnico-racial dentre as características do perfil de um licenciado em Biologia. Considerando estes dados, nota-se um alinhamento destes PPCs com os pressupostos defendidos pela teoria curricular pós-crítica que, segundo Silva (2005), versa sobre as dinâmicas de poder na sociedade abarcando as relações de raça, etnia, gênero, dentre outras.
4.3 Abordagens das questões raciais na formação do professor de Ciências/ Biologia
4.3.1 Organização e concepções curriculares
Considerando a organização curricular, em aspectos mais gerais, percebeu-se que, em todos os PPCs de todas as IES analisadas, ainda predominava o modelo com a representação de uma matriz curricular dividida em disciplinas com carga horária condizente com o grau de importância a elas atribuído. Os currículos estavam organizados em eixos, ciclos ou núcleos estruturantes, os quais agrupavam disciplinas voltadas para as diferentes dimensões específicas e da formação docente.
As disciplinas organizadas de forma sequencial favorecem a fragmentação dos conteúdos, os quais são transmitidos, dos professores para os alunos, sem relação com a realidade e contexto social (Gesser; Ranghetti, 2011). Esse tipo de currículo induz a uma pedagogia repetitiva, em uma concepção “bancária” da educação, como definiu Paulo Freire (Freire, 1987). Dessa forma, considerando os perfis pretendidos para os egressos, os PPCs analisados pareciam alinhados com a teoria curricular pós-crítica, embora estrutural e metodologicamente ainda estivessem presos à teoria tradicional.
Em relação à Erer, tanto no PPC1 quanto no PPC3, apareceu a proposta de trabalhar a temática étnico-racial de forma transversal. Para Araújo (2020), existem duas concepções de transversalidade na educação. De acordo com a primeira concepção, o eixo vertebrador do currículo seria formado pelas disciplinas, que seriam perpassadas pelas temáticas transversais. A partir desse tipo de concepção, a pesquisadora elenca cinco possíveis formas de se trabalhar os temas transversais: (i) pontualmente (em eventos, datas comemorativas); (ii) em disciplinas específicas para as temáticas, seminários, ciclos de palestras; (iii) enquanto projetos interdisciplinares; (iv) integrados às disciplinas dos cursos; ou (v) como currículo oculto .
Na segunda concepção, o eixo vertebrador do currículo seria constituído pelas temáticas transversais. Nesse tipo de organização curricular haveria uma mudança de paradigma, na medida em que os conteúdos tradicionais deixariam de ser a finalidade da educação e passariam a ser o meio pelo qual os temas transversais seriam trabalhados (Araújo, 2020). Algo parecido com o que Verrangia e Silva (2010) defenderam em relação à inversão da lógica durante as escolhas dos conteúdos a serem contemplados no ensino de Ciências.
Considerando as concepções de transversalidade elencadas por Araújo (2020), percebe-se que os currículos analisados neste trabalho se encaixavam dentro da primeira concepção, com o eixo vertebrador constituído por disciplinas e a temática étnico-racial sendo abordada pontualmente ou em componentes curriculares específicos, como será exposto na próxima seção.
4.3.2 Inserção de conteúdos para a educação das relações étnico-raciais nos componentes curriculares
Constatou-se que os PPCs dos cursos de Licenciatura em Ciências Biológicas das IES de Alagoas apresentavam a inserção da temática étnico-racial em pelo menos um dos eixos fundamentais de todo curso de graduação: ensino, pesquisa e/ou extensão. Praticamente todas as IES indicaram componentes curriculares específicos para abordar a Erer, como pode ser observado no Quadro 3. Embora o tema não estivesse explícito nas ementas de todas as disciplinas, ficou evidente a proposta de trabalhar questões relacionadas à diversidade cultural, relações socioculturais e comunidades tradicionais que são relevantes no contexto da Erer, conforme o Parecer CNE/CP 03/04 e Resolução CNE/CP 01/04.
De forma semelhante, Veras et al. (2021, p. 208) relataram que temáticas voltadas à Erer estavam presentes no currículo dos cursos de licenciatura da Universidade Federal da Bahia, em componentes curriculares que versavam sobre “diversidade, etnia, diferença, pluriculturalismo, história da África e do indigenismo, discriminação e preconceito”, ora de forma direta, ora indireta.
PPC | Disciplina (Carga horária) - Período | Trechos das ementas |
---|---|---|
PPC1 | Desafios para o ensino de Ciências e Biologia (54h) - 9ºP | “A produção do conhecimento científico e suas relações socioculturais. Elaboração de projetos didáticos no ensino de Ciências e Biologia para a pluralidade e inclusão escolar.” (p. 52) |
PPC2 | Sociedade e Cultura (54h) 2ºP | “Discussão sobre a formação sociocultural brasileira. Relações étnico-raciais no Brasil e no Nordeste.” (p. 50) |
Prática de Ciências e Biologia em Comunidades Tradicionais (72h) 5ºP Prática de atividades de campo em Botânica e Ecologia (72h) 6ºP |
“Conceito de povos e comunidades tradicionais. Comunidades tradicionais do estado de Alagoas.” (p. 76) “Visitação à comunidades tradicionais e aulas práticas em campo.” (p. 87) |
|
PPC3 | Educação para Diversidade e Direitos Humanos (54h) - 7ºP | “Os conceitos de diversidade cultural, direitos humanos e sua relação com processos educativos democráticos. Temas contemporâneos em educação, diversidade e direitos humanos e relações étnico-raciais.” (p. 84) |
PPC4 | - | - |
PPC5 | Antropologia Cultural (40h) - 3ºP Sociologia da Educação (60h) - 4ºP Teorias Educacionais e Curriculares (40h) - 5ºP Políticas Públicas da Educação (40h) - 6ºP Educação, Diversidade e Inclusão Social (40h) - 8ºP |
“Teorias sobre cultura e sociedade; os elementos formativos da cultura; formação da cultura brasileira: influência da cultura indígena, influência da cultura africana, influência da cultura europeia; a miscigenação desde a gênese da cultura brasileira; os movimentos culturais de vanguarda.” (p. 67) “Trabalho e educação; Estado e educação; Educação e sociedade no Brasil atual: problemas e perspectivas.” (p. 73) “Fundamentos, princípios e concepções de currículo, com ênfase no currículo integrado numa perspectiva histórico-crítica.” (p. 80) “Análise das relações entre educação, estado e sociedade. Estudo da política educacional no contexto das políticas públicas.” (p. 82) “Estudo dos referenciais teóricos que fazem dialogar educação, diversidade e inclusão social. Neste sentido é preciso analisar e refletir sobre relações de gênero, étnico-raciais, sociais, e inclusivas, bem como as ações afirmativas e política públicas capazes de promovê-la.” (p. 94) |
Fonte: Elaborado pelos autores a partir dos Projetos Pedagógicos dos Cursos (PPCs) de Licenciatura em Ciências Biológicas.
No PPC1, a ementa da disciplina direcionada para trabalhar a Erer contemplava parte do que é previsto nas DNCERER ao apresentar a produção do conhecimento científico considerando as relações socioculturais, ao tempo em que procurava incentivar a elaboração de projetos didáticos voltados à pluralidade e inclusão escolar. Ademais, esta disciplina era ofertada no mesmo período que Prática Pedagógica como Componente Curricular 3 (PPCR), destinada à Educação afro-indígena (Ufal, 2019).
Ainda sobre o PPC1, atividades de extensão, voltadas para a valorização das comunidades tradicionais, apareceram integradas às atividades de pesquisa por meio do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão (Nepex), o qual tinha por objetivo, dentre outros:
• Possibilitar auto-identificação de potencialidades e habilidades, visando o resgate e valorização de comunidades afrodescendentes e indígenas;
• Assessorar entidades na organização de programas e projetos de valorização de pessoas com necessidades especiais, idosas, de comunidades afrodescendentes, comunidades indígenas; [...] (Ufal, 2019, p. 85-86)
Com a curricularização da extensão, os projetos já existentes na Ufal/ Campus A.C. Simões tornaram-se parte desse novo componente curricular. As Atividades Curriculares de Extensão (ACE), com 358 horas, foram divididas em sete períodos do curso, iniciando-se no 3º período. Destinou-se, como possibilidade de público alvo para as ACEs de 1 a 5, as comunidades tradicionais (Ufal, 2019). Nesse sentido, embora não houvesse uma indicação clara dessa intenção, esse componente curricular seria uma oportunidade para inserção da Erer ao longo do curso, trazendo a questão racial para discussão, problematizando as vivências a partir do contexto da comunidade.
No PPC2, dentro do tópico que tratava sobre os conteúdos curriculares, destinaram uma seção para abordar especificamente a Erer, no intuito de reforçar o compromisso da Ufal com as políticas de ações afirmativas em parceria com o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (Neab-Ufal). Nesta seção, destacaram as três disciplinas nas quais a Erer seriam trabalhadas, perfazendo um total de 198 horas (Quadro 3). Essas disciplinas estavam distribuídas ao longo do curso, permeando a formação do licenciando em diferentes momentos de aprendizagem. Considerando as informações disponíveis nas ementas, contemplavam o que preconizam as DNCERER. Ademais, no PPC2 foi apresentada uma proposta de trabalhar com o resgate das origens e o saber das comunidades tradicionais na ACE2, um componente curricular de 60 horas, ofertado no 5º período do curso (Ufal, 2018a).
No PPC3 foi elencada uma única disciplina para trabalhar Erer (Quadro 3). Por outro lado, embora não houvesse indicação de relação direta com Erer, foi destacado que as atividades de extensão desenvolvidas pela UE de Penedo, ao lado do ensino e da pesquisa, procuravam valorizar os saberes das comunidades tradicionais da região, “[...] a exemplo de comunidades Quilombola - Oiteiro e Tabuleiro dos Negros (Penedo), Sapê (Igreja Nova) e a Comunidade Indígena Kariri-Xocó (Porto Real do Colégio), nas quais residem alguns dos discentes da Unidade Ufal/Penedo [...]” (Ufal, 2018b, p. 119). Essa interação com a comunidade local, ao longo de todo o curso, pode ser utilizada como fonte de grande aprendizado no tocante à Erer.
No PPC4, apesar de fazerem referência às DNCERER, não foi indicada a forma como as questões ligadas à Erer seriam inseridas no currículo. Contudo, constatou-se a inserção da disciplina de Etnobiologia com carga horária de 60 horas, no 7º período do curso, com uma ementa que direcionava para valorização das tradições e culturas, ao passo que também apontava para atividades de pesquisa experimental na área e legislação correlata. Observou-se, ainda, a presença de grupos de pesquisa que atuavam no campo da etnobotânica e etnofarmacologia (Uneal, 2017). Nesse PPC, havia pouca abordagem sobre a importância da discussão das questões étnico-raciais, sendo o foco maior os aspectos específicos da área das Ciências/ Biologia e formação de professor.
Por fim, o PPC5 foi o que apresentou maior número de componentes curriculares obrigatórios e com maior carga horária (220 horas) para trabalhar a temática em estudo (Quadro 3). As ementas das disciplinas abarcavam tanto aspectos teóricos, sobre cultura e sociedade, quanto reflexões sobre os movimentos culturais e o contexto das políticas públicas (Ifal, 2018). Essas reflexões, bem orientadas, podem contribuir de forma significativa para a Erer na formação de professores de Ciências/ Biologia. Outro ponto que merece destaque é que essas disciplinas perpassavam a matriz ao longo dos períodos, não sendo abordadas apenas no final do curso ou em um único período. Todavia, não houve indicação de abordagens da temática racial em projetos de extensão e nem de pesquisa.
No estudo realizado por Veras et al. (2021), 30 currículos de licenciatura da UFBA foram analisados, considerando apenas disciplinas obrigatórias. Dos 1004 componentes curriculares analisados, 27 traziam algum conteúdo com abordagem da questão étnico-racial. No tocante aos cursos, foi observado que o de História tinha o maior número de componentes curriculares que versavam sobre essa temática, ao passo que os cursos de Ciências Biológicas, Matemática e Química o menor número. Segundo os dados apresentados pelos autores, a única disciplina ofertada, neste contexto, pelo curso de Ciências Biológicas foi “EDCA02 - Organização da Educação Brasileira II”.
Monteiro, Santos e Barduni Filho (2020), por sua vez, analisaram as ementas das disciplinas dos cursos de licenciatura da Universidade Estadual de Minas Gerais, unidade de Carangola. Os autores constataram que todos os seis cursos analisados ofertavam algum tópico ou eixo que contemplava aspectos voltados às questões étnico-raciais. Dentre esses cursos, havia o de Biologia que ofertava duas disciplinas: “Diversidade Sexual, Cultura e Etnia” e “Educação para direitos humanos, diversidade e Inclusão”, mas os autores não apresentaram e nem discutiram a questão da carga horária destinada a esses componentes curriculares e nem sobre a forma de inserção dessas disciplinas no currículo do curso.
Silva, Costa e Silva (2019) analisaram os currículos de 41 cursos de licenciatura ofertados por uma IES pública, localizada em Mato Grosso do Sul, com campi em cidades distintas. Os autores observaram diferentes abordagens com 25 cursos propondo trabalhar Erer em disciplinas obrigatórias, nove em disciplinas optativas e sete não ofertavam componentes curriculares para este fim. Em relação ao curso de Ciências Biológicas, dos quatro ofertados pela IES, dois disponibilizaram pelo menos uma disciplina obrigatória para trabalhar questões referentes às relações étnico-raciais (“Educação das relações étnico-raciais - 34h”), um curso inseriu a temática em uma disciplina optativa (“História da África e cultura afro-brasileira - 51h”) e o outro curso não apresentou componentes curriculares que abrangessem o tema em questão.
Percebe-se, portanto, que as abordagens e orientações curriculares relacionadas à Erer podem diferir entre os campi de uma mesma IES, fato observado tanto na pesquisa conduzida por Silva, Costa e Silva (2019) quanto no presente estudo, refletindo um caráter particular das concepções dos docentes em cada campus.
Ao analisar os currículos dos cursos de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina, Santos (2018) encontrou três disciplinas que abordavam a temática racial, sendo todas elas optativas. Desta forma, segundo a própria autora, a presença da disciplina não era garantia de que o estudante teria acesso à discussão e problematização das questões referentes às relações étnico-raciais, ao longo de seu percurso formativo.
Alguns PPCs das IES localizadas em Alagoas e analisados neste trabalho também apresentaram a temática em disciplinas não obrigatórias. Como destacado por Santos (2018), apenas a presença dessas disciplinas no currículo dos cursos não garante uma formação na direção da Erer. Uma vez que não são obrigatórias, tais disciplinas poderão ou não ser cursadas pelos licenciandos. Ademais, a forma de trabalhar o conteúdo vai depender da formação do professor que for ministrar a disciplina e dos direcionamentos dados pelo próprio PPC.
Como exposto no referencial teórico deste artigo, existem diferentes possibilidades de conexões e diálogos com mais disciplinas, além daquelas elencadas no Quadro 3. Em todos os cursos analisados neste trabalho, a Erer poderia fazer parte da disciplina de Genética ao se discutir o conceito de raça e as formas de discriminação ao longo da história, eugenia e branqueamento, por exemplo. Na disciplina de anatomia humana, em parceria com a disciplina de genética, as características genotípicas e fenotípicas dos diferentes grupos étnicos poderiam ser discutidas e valorizadas. Também seria possível inserir a Erer nas disciplinas de estágio curricular obrigatório, nas disciplinas de gestão escolar e projeto político pedagógico das escolas de forma a estabelecer um diálogo com a prática educacional no ensino básico, desvelando a realidade das desigualdades sociais e raciais. Esses são apenas alguns exemplos de diálogos e inserções possíveis.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presença de algumas disciplinas obrigatórias para trabalhar a Erer configura-se como um avanço na formação inicial de professores de Ciências/ Biologia, em Alagoas. Contudo, a função social do ensino de Ciências, no sentido de contribuir com a temática, foi explorada de forma fragmentada e, algumas vezes, vaga nos PPCs analisados. Considerando apenas as ementas, o docente do ensino superior não terá um direcionamento claro para trabalhar a temática racial com seus alunos, futuros profissionais da educação. Nesse sentido, faz-se necessário, também, uma maior aproximação com os movimentos sociais, a exemplo do Movimento Negro, com o intuito de se estabelecer um diálogo, a partir do qual, as demandas de tais movimentos sejam ouvidas, discutidas e contempladas.
Ademais, considerando os currículos analisados, o não enfrentamento do racismo epistêmico, que se materializou na ausência ou sub-representação dos saberes produzidos por diferentes grupos étnicos, é preocupante, face às transformações e incertezas que a sociedade vem passando. É preciso reverter esse quadro promovendo mudanças nas concepções curriculares e nas práticas pedagógicas, para que avanços concretos, no que diz respeito à luta por igualdade de condições, sejam alcançados.
A reorientação curricular dos cursos visando uma formação humana, que valorize e reconheça todos os bens culturais e conhecimentos acumulados por diferentes etnias, é fundamental no contexto de uma educação antirracista. Não se trata de substituir uma cultura por outra, mas de dar voz àquelas culturas que, por vezes, foram silenciadas em sala de aula. Esse processo de silenciamento, além de contribuir com a discriminação racial, acaba aprofundando as desigualdades. Nesse sentido, é imperativo que as diferenças existentes sejam devidamente reconhecidas e traduzidas em igualdade de oportunidades.