1 INTRODUÇÃO
As leituras podem ser rigorosas, mas é uma pretensão colocar as coisas nos devidos lugares. O importante é registrar esse movimento de diferentes vozes e leituras que mostram como hoje, na grande temporalidade, a obra de Vygotsky continua viva e mais intensa do que no tempo de sua gestação, porque está sendo vitalizada pelos diálogos e contra-palavras que provocam entre os estudiosos contemporâneos (Freitas, 2004, p. 128).
Para a presente investigação, foi empreendida pesquisa documental que consideramos uma sequência da investigação realizada pela professora-pesquisadora Maria Teresa de Assunção Freitas, então vinculada à Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), publicada em 2004. Freitas (2004) analisou os anais dos trabalhos publicados em dez Grupos de Trabalho (GT) da Reunião Nacional da ANPEd, contemplando seis anos consecutivos, de 1998 a 2003, verificando a presença de Vygotsky1 e discutindo os dados encontrados. Essa investigação teve grande repercussão no Brasil, tornando-se um parâmetro sobre o uso de pressupostos vygotskianos adotados como base teórico-metodológica em pesquisas educacionais. No entanto, não verificamos sequência que contemplasse os anos seguintes, seja pela referida pesquisadora ou por outros cientistas da Educação.
Encontramos os estudos de Silva e Davis (2004), “Conceitos de Vigotski no Brasil: produção divulgada nos cadernos de pesquisa”, e de Mainardes e Pino (2000), “Publicações brasileiras na perspectiva vygotskiana”. O primeiro objetivou identificar como os conceitos de Vygotsky foram apropriados por autores vinculados às áreas da Psicologia e da Educação que divulgaram seus trabalhos no Brasil, bem como suas metas e o momento em que tais ideias foram utilizadas - analisando artigos publicados nos Cadernos de Pesquisa (periódico da Fundação Carlos Chagas). O segundo oferece ao leitor uma visão, mesmo que incompleta, de trabalhos produzidos no Brasil em torno do pensamento de Vygotsky, o que dá uma noção da sua penetração na comunidade acadêmica brasileira.
Passaram-se 18 e 22 anos, respectivamente, desde essas publicações e muito seguiu sendo produzido no país relacionado às ideias de Vygotsky. Desse modo, entendemos que novos trabalhos documentais sobre os estudos deste autor no Brasil seriam necessários, particularmente, aqueles publicados nos anais do evento mais importante do país na área da Educação: a Reunião Nacional da ANPEd. Defendemos ser fundamental termos conhecimento atualizado sobre em que medida conceitos e pressupostos desse autor vêm sendo adotados no país.
Segundo Freitas (2004), a chegada da Teoria Histórico-Cultural em nosso país ocorreu no final da década de 1970, o começo da difusão de suas ideias ocorreu nos anos 1980 e o esforço de apropriação de seus conceitos iniciou nos anos 1990. Para Prestes (2014), o nome de Vygotsky é bem conhecido no Brasil, principalmente entre os que se dedicam aos estudos nas áreas da Pedagogia e da Psicologia, apesar de seus estudos fundamentarem também trabalhos nos campos da Arte, da Filosofia, da Sociologia, entre outros.
Prestes (2014) também nos explica que estudos de Vygotsky estão presentes no mundo inteiro, editados e publicados em vários idiomas. Pesquisas teóricas e experimentais a partir desses estudos levaram a um novo entendimento acerca da origem e da estrutura das funções psicológicas superiores humanas. No âmbito da Educação, a partir da segunda metade do século XX, essa abordagem psicológica passou a ser difundida mundialmente e tem fundamentado práticas educacionais em diversos contextos, desde a Educação Infantil até a Pós-Graduação, como é possível verificar na coletânea internacional de Selau e Castro (2015) - um exemplo de publicação nacional que abrangeu pesquisadores e instituições de diversos países.
No Brasil, não é diferente. Inúmeros programas de pós-graduação, presentes nos centros universitários mais importantes do país, como também em instituições de ensino mais jovens e com menos tradição de pesquisa em Educação, já possuem grupos de pesquisa estudando essa matriz teórica. O número cada vez mais expressivo de pesquisadores vinculados à Teoria Histórico-Cultural é um sinal de expansão, assim como o aumento de produção científica que se baseia em seus pressupostos. Contudo, faltam estudos que nos precisem a dimensão dessa expansão.
Vygotsky é um autor bastante conhecido no Brasil. No entanto, como já apontaram Duarte (1996)2 e Tuleski (2000), Vygotsky estava se tornando famoso no país sem ser estudado com profundidade. Passados 26 anos desde os “alertas” de Duarte (1996), e tendo em vista as implicações dos estudos de Prestes (Prestes, 2014; Prestes e Tunes, 2012) sobre traduções e interpretações equivocadas de conceitos-chave de Vygotsky no Brasil, esta pesquisa apresenta resultados sobre a presença deste autor na ANPEd, bem como sobre os conceitos e pressupostos mais utilizados e as obras mais referenciadas nos artigos, informando que caminhos os pesquisadores brasileiros têm trilhado nos estudos baseados neste autor.
Questionamentos podem e devem ser suscitados. Cabe perguntar se docentes e pesquisadores das áreas da Educação e da Psicologia continuam, ao estudar e “aplicar” Vygotsky, baseando-se nos controversos livros “Pensamento e Linguagem (2015)3” (publicação da edição estadunidense que contém apenas 1/3 da obra original do autor) e “Formação Social da Mente (2015)4” (coletânea organizada por pesquisadores estadunidenses que não levam em consideração o contexto no qual as partes recortadas de seus originais foram produzidas)?
E nas reuniões da ANPEd, de 2004 a 2010, ainda serão esses livros os principais referenciais utilizados pelos pesquisadores brasileiros, como Freitas (2004) averiguou em sua pesquisa? Que conceitos e pressupostos histórico-culturais têm sido mais abordados em investigações comunicadas neste evento? Menções à Vygotsky nos textos refletem, efetivamente, a presença do autor na ANPEd? Dos textos que citam/mencionam Vygotsky, quantos desenvolvem, de fato, algum conceito ou pressuposto do autor? Afinal, desde a pesquisa de Freitas (2004), aumentou ou diminuiu a presença de Vygotsky nos trabalhos publicados nas reuniões da ANPEd?
A investigação que empreendemos seguiu a sistematização metodológica definida por Freitas (2004), com diferenças que serão explicadas ao longo deste texto, que está assim organizado: na sequência, será descrito o processo de pesquisa; depois, serão apresentados e discutidos seus principais achados quantitativos e; para finalizar, serão discutidas implicações deste estudo, com ênfase nos três grupos de trabalho onde verificamos maior incidência de Vygotsky5.
2 PROCESSO DE PESQUISA
No início da presente pesquisa6 7, do tipo documental (Bogdan; Biklen, 1984), selecionamos, organizamos e categorizamos os trabalhos publicados da 27ª a 33ª Reunião da ANPEd, compreendendo os anos de 2004 a 2010, para, então, aferir o volume das publicações baseadas na teoria de Vygotsky neste evento, bem como investigar os conceitos e pressupostos mais abordados pelos autores e as principais obras por eles referenciadas.
Em nossa pesquisa, como Freitas (2004) procede, delimitamos o foco nos mesmos dez GT para poder estabelecer comparações entre o estudo predecessor e o nosso: GT 04 - Didática; GT 07 - Educação de Crianças de 0 a 6 anos; GT 08 - Formação de Professores; GT 10 - Alfabetização, Leitura e Escrita; GT 13 - Educação Fundamental; GT 15 - Educação Especial; GT 16 - Educação e Comunicação; GT 18 - Educação de Pessoas Jovens e Adultas; GT 19 - Educação Matemática e GT 20 - Psicologia da Educação.
Cientes da definição dos GT que seriam analisados, estabelecemos o período do recorte da pesquisa, seguindo o objetivo de realizar uma sequência da investigação de Freitas (2004) e levando em consideração nossas possibilidades de tempo e de recursos humanos, entre 2004 e 2010, compreendendo sete anos.
Além do número de reuniões pesquisadas, outra diferença entre a pesquisa de Freitas (2004) e a nossa está no formato dos trabalhos analisados. Enquanto a supracitada pesquisa analisou trabalhos encomendados, minicursos, seções especiais, pôsteres e trabalhos completos apresentados, optamos por analisar somente estes últimos. Nossa decisão se justifica por entendermos que trabalhos neste formato possibilitam maior aprofundamento nas argumentações teóricas e das temáticas pesquisadas do que nos pôsteres e nos minicursos; e, principalmente, por ser mais adequado analisar um único formato quando a intenção é estabelecer comparações entre trabalhos.
A partir dessas definições, nos meses de outubro, novembro, dezembro de 2018, foi iniciada a Primeira Etapa da pesquisa: download dos trabalhos publicados nos anais das reuniões dos anos de 2004, 2005, 2006, 2007, 2008, 2009 e 2010, nos dez GT definidos a priori. Partindo do sítio da ANPEd Nacional8, direcionamo-nos aos sítios de cada reunião. Dentro de cada GT selecionado, fizemos o download de todos os arquivos9 referentes aos trabalhos publicados no período delimitado, totalizando 121310. Na sequência, prosseguimos com a leitura de todos os trabalhos buscando verificar a presença de Vygotsky - menção ou citação - neles.
Na Segunda Etapa, transcorrida em fevereiro, março e abril de 2019, procedemos com a leitura minuciosa de todos os trabalhos em que Vygotsky é mencionado (nos quais consideramos, primeiramente, haver a sua presença) objetivando verificar que conceitos ou pressupostos de sua teoria foram desenvolvidos e que obras foram referenciadas pelos autores desses artigos, organizando esses dados em tabelas e gráficos. Esta Etapa, de maior complexidade, exigiu esforço conjunto de sete membros do grupo de pesquisa ao qual o estudo se vincula: cinco mestrandas em Educação que desenvolviam estudos tendo a Teoria Histórico-Cultural como base de suas pesquisas e dois professores universitários filiados a essa teoria. Coube a cada um analisar os trabalhos de todos os GT de uma reunião (um ano) inteira.
Ao longo de três meses, os pesquisadores envolvidos foram orientados quanto à realização da atividade e receberam tabelas padronizadas para o preenchimento dos resultados coletados visando à sistematização e à uniformização dos achados11 12. Por se tratar de uma definição operacional essencial que fundamentou as análises, cabe esclarecer o que compreendemos e definimos por “desenvolver” um conceito ou pressuposto: utilizar este conceito ou pressuposto de Vygotsky para embasar ou aprofundar alguma argumentação no texto, indo além de apenas citá-lo ou mencioná-lo; expondo, explicando e/ou descrevendo o próprio conceito ou pressuposto e se utilizando dele para expor, explicar ou elaborar outro conceito ou pressuposto.
2.1 Uma análise quantitativa dos dados
Assim como Freitas (2004, p. 113), a partir dos dados organizados em tabelas e gráficos, “[...] foi possível encontrar interessantes indicadores da produção acadêmica sobre Vygotsky nas Reuniões da ANPEd”. Diferentemente do texto desta autora, todavia, apresentaremos as tabelas e os gráficos no corpo do texto, pois compreendemos ser mais didático desta forma, propiciando melhor interação dos leitores com os dados quantitativos.
Cabe, inicialmente, apresentar a dimensão do volume de trabalhos analisados. Nas sete reuniões analisadas (da 27ª a 33ª), foram publicados, entre os anais dos dez GT selecionados, 1213 trabalhos completos, conforme ilustra o Gráfico 1 por número de trabalhos publicados em cada ano:
É possível perceber que o volume de trabalhos publicados, ao longo das sete reuniões, com exceção da reunião de 2005 (231), manteve-se similar: 138 em 2004; 163 em 2006; 173 em 2007; 174 em 2008; 159 em 2009 e; 175 em 2010. Entre os GT selecionados, foi constatada a presença de Vygotsky em 190 trabalhos (15,6%), número próximo ao dobro do percentual constatado por Freitas (2004) entre as reuniões de 1998 e 2003: 87 (8,31%), indicando maior presença de Vygotsky nas reuniões de 2004 a 2010.
Em nossa pesquisa, assim como na de Freitas (2004), em todas as reuniões, foi constatada a presença de Vygotsky, inclusive, de forma relativamente constante: 23 em 2004, 39 em 2005, 25 em 2006, 24 em 2007, 30 em 2008, 23 em 2009 e 26 em 2010. Quantitativamente, devido ao fato de ser uma reunião caracterizada por uma maior quantidade de trabalhos publicados, consequentemente, a Reunião de 2005 foi a que registrou mais trabalhos com a presença do autor, destoando das demais. Proporcionalmente ao número total de trabalhos publicados em cada reunião, no entanto, a Reunião de 2008 registrou maior percentual de trabalhos com a presença de Vygotsky: 17,24% (30 de 178 trabalhos). Por outro lado, o ano de 2007 foi o que publicou em menor proporção trabalhos com a presença do autor: 13,87% (24 de 173 trabalhos). São dados quantitativos muito próximos, entre 13% e 17%, revelando achado interessante da pesquisa relativo à constância percentual de artigos com a presença de Vygotsky ao longo de sete anos de ANPEd.
Com relação aos trabalhos publicados por GT, em nossa pesquisa, assim como em Freitas (2004), os que mais concentraram textos com a presença de Vygotsky foram o GT 20 - Psicologia da Educação, com 35 trabalhos (37,2%); o GT 15 - Educação Especial, com 25 (23,4%) e; empatados, o GT 10 - Alfabetização, Leitura e Escrita, com 24 (21,2%) e o GT 07 - Educação de Crianças de 0 a 6 anos: 24 (20%). O Gráfico 2 ilustra a proporção das publicações por GT:
Para Freitas (2004), Vygotsky é um autor da Psicologia, que criticou os modelos psicológicos de seu tempo e propôs uma teoria sobre o desenvolvimento humano que estava fundamentada no social: na história e na cultura humanas. Muitos pesquisadores, no exterior e no Brasil, vêm colocando a Psicologia e a Pedologia de Vygotsky a serviço da prática educacional (Selau; Castro, 2015; Prestes, 2014). Logo, compreender o desenvolvimento psicológico dos estudantes permite repensar ações pedagógicas com o intuito de impulsionar aprendizagens. Daí se percebe e se justifica a expressiva incidência de trabalhos com a presença do autor no GT 20.
Também não surpreende o interesse por esse autor no GT 15 - Educação Especial, tendo em vista que, ao campo da deficiência, Vygotsky dedicou grande parte dos seus estudos, elaborando uma concepção que busca compreender o desenvolvimento da pessoa com deficiência de forma a não focar na deficiência em si, mas em transcendê-la, compensando as limitações diagnosticadas mediante outras atividades cognitivas. O estudo sobre crianças com diferentes tipos de deficiência marcou os primeiros anos de pesquisa de Vygotski (1997, p. 12), que defendia a tese de que “a criança, cujo desenvolvimento foi complicado por uma deficiência, não é menos desenvolvida que seus contemporâneos normais, é uma criança desenvolvida de outro modo”.
No GT 10, que trata especificamente de alfabetização, leitura e escrita, os resultados evidenciam a importante contribuição de Vygotsky frente a essas temáticas. Este autor situava a linguagem verbal como central em sua obra, destacando que a relação do homem com o mundo, em um plano psicológico superior, é estabelecida pela relação entre linguagem verbal e pensamento (Vygotsky, 1982; Vygotski, 1995). A escrita, particularmente, apontava Vygotsky, é um conjunto de signos que começa a se desenvolver desde muito cedo, por meio dos primeiros rabiscos e desenhos (pré-história da escrita). Sobre a escrita, o autor foi além ao enfatizar que se trata da “mais poderosa das linguagens, pois obriga a criança a atuar de uma maneira mais intelectual” (Vygotsky, 1982, p. 204). O GT 07 - Educação de Crianças de 0 a 6 anos, na pesquisa de Freitas (2004), havia sido o quarto de maior incidência de Vygotsky e, em nossa investigação, igualou em números inteiros com o GT 10, o que revela a importância de Vygotsky e de sua teoria para as pesquisas direcionadas à Pedologia (primeira infância).
Por outro lado, os GT que publicaram as menores quantidades de trabalhos com a presença de Vygotsky foram: GT 04 - Didática (7), GT 18 - Educação de Pessoas e Jovens e Adultos (13) e GT 19 - Educação Matemática: (13). Percentualmente, a menor presença de trabalhos mencionando o autor esteve nos GT 04 - Didática (7%) e 08 - Formação de Professores (8,9%).
No que se refere ao campo da Didática, os números se justificam, fundamentalmente, porque Vygotsky desenvolveu estudos nos campos da Pedologia e da Psicologia. Sua repercussão e contribuições para a Educação são notórias e algumas das quais já foram aqui destacadas. Contudo, nossa hipótese é de que não se trata de uma obra com orientações didáticas explícitas para a sala de aula, por mais que suas abordagens sirvam de base para práticas pedagógicas. Isso pode explicar, inclusive, o fato de não haver nenhum trabalho com a presença de Vygotsky neste GT em três dos sete anos analisados: 2005, 2007 e 2009.
Quanto aos GT 18 - Educação de Pessoas Jovens e Adultas e GT 19 - Educação Matemática, não consideramos, quando da leitura da pesquisa de Freitas (2004), justificativas suficientes para constarem na investigação, por mais que os estudos de Vygotsky também possam embasar pesquisas nessas áreas. Contudo, mantivemo-los por uma decisão metodológica, permanecendo os mesmos GT analisados por Freitas (2004). Sendo assim, o menor número de trabalhos nesses GT, em comparação aos outros, foi, por nós, considerado normal.
Também chamam a atenção os resultados do GT 08 - Formação de Professores: 8,9%. Mas supomos tal percentual em função da amplitude do campo da formação de professores, no qual muitos autores são estudados, no curso de Pedagogia e em outras licenciaturas. O grande leque de referenciais que podem ser utilizados em pesquisas no campo da Educação pode justificar o percentual menor de trabalhos com a presença de Vygotsky neste GT - comparado aos outros.
Em síntese, relacionando nossos achados com os de Freitas (2004), o GT 20 - Psicologia da Educação segue como o de maior presença de Vygotsky nas reuniões da ANPEd. O GT 10 - Alfabetização, Leitura e Escrita continua entre os que mais registram a presença do autor entre os trabalhos publicados, no entanto, era o segundo na investigação de Freitas (2004), mas, em nossa pesquisa, passa a ser o terceiro, ao lado do GT 07 - Educação de Crianças de 0 a 6 anos. Este último não surpreende, tendo em vista a maior atenção atribuída por Vygotsky (1982), em sua obra, à primeira infância, aos primeiros anos de desenvolvimento da criança. O GT 15 - Educação Especial, passa a ser, entre os anos de 2004 e 2010, o segundo com maior presença do autor.
Adiante na pesquisa, na Segunda Etapa, no período de fevereiro a abril de 2019, foi realizada a releitura dos artigos por um grupo de pesquisadores com a tarefa de verificar se algum conceito ou pressuposto de Vygotsky fora desenvolvido nos trabalhos analisados, que conceitos foram esses e que obras foram referenciadas pelos autores. O Gráfico 3 ilustra os resultados das duas etapas, discriminados por ano/reunião:
Percebe-se a diminuição nos números da Primeira Etapa para a Segunda Etapa. E consideramos significativo o percentual de artigos nos quais este autor é somente mencionado sem que sua teoria seja, mesmo que basicamente, desenvolvida: 53 artigos apenas citam ou mencionam Vygotsky, sem definir ou expandir qualquer conceito ou pressuposto seu. Fazemos nossas as palavras de Freitas (2004, p. 119) sobre esses 53 trabalhos nos quais Vygotsky é apenas mencionado sem que sua teoria seja minimamente aprofundada:
Os autores citam Vygotsky corretamente, apresentam no início do texto sua intenção em trabalhar com suas idéias e assumi-lo como um referencial teórico. No entanto, ao chegarem ao tema do artigo ou na análise dos dados apresentados, Vygotsky não mais aparece. Seus conceitos citados mantêm-se desarticulados em relação aos dados analisados e ao todo do artigo. Talvez isso se dê por carência de uma maior fundamentação e de uma leitura mais extensiva e aprofundada.
A Tabela 1 apresenta os resultados discriminados por totais e percentuais de artigos publicados em cada GT na Primeira Etapa e na Segunda Etapa, destacando três deles:
Grupos de Trabalho | Total de trabalhos | Presença de Vygotsky | Desenvolvimento da teoria de Vygotsky |
---|---|---|---|
GT 04: Didática | 100 | 7 (7%) | 5 (5%) |
GT 07: Educação de Crianças de 0 a 6 anos | 120 | 24 (20%) | 11 (9,1%) |
GT 08: Formação de Professores | 189 | 17 (8,9%) | 11 (5,8%) |
GT 10: Alfabetização, Leitura e Escrita | 113 | 24 (21,2%) | 16 (14,1%) |
GT 13: Educação Fundamental | 122 | 15 (12,2%) | 9 (7,3%) |
GT 15: Educação Especial | 111 | 25 (23,4%) | 22 (19,8%) |
GT 16: Educação e Comunicação | 146 | 17 (11,6%) | 12 (8,2%) |
GT 18: Educação de Pessoas Jovens e Adultas | 104 | 13 (13,4%) | 9 (8,6%) |
GT 19: Educação Matemática | 114 | 13 (12,2%) | 10 (8,7%) |
GT 20: Psicologia da Educação | 94 | 35 (37,2%) | 32 (34%) |
Total | 1213 | 190 | 137 |
Fonte: Base de dados da pesquisa (2018-2019).
A maior queda da Primeira para a Segunda Etapa ocorreu no GT 07 - Educação de Crianças de 0 a 6 anos: 13 artigos a menos. Outros GT que apresentaram queda significativa foram: GT 10 - Alfabetização, Leitura e Escrita (oito trabalhos a menos); GT 08 - Formação de Professores (seis) e; GT 13 - Educação Fundamental (seis). Podemos inferir, com base na Tabela 1, que, nesses grupos de trabalho, a teoria de Vygotsky é menos desenvolvida entre os trabalhos que o citam ou o mencionam. Por outro lado, o GT 20 - Psicologia da Educação (diminuição de 35 para 32 trabalhos) e o GT 15 - Educação Especial (diminuição de 25 para 22 trabalhos) apresentaram as menores quedas nos números da Primeira para a Segunda Etapa, o que indica, por outro lado, que os artigos publicados nesses GT tendem a desenvolver/aprofundar mais a teoria de Vygotsky.
Na Segunda Etapa da Pesquisa, o GT 20 também se consolidou como o que mais publica trabalhos de autores que desenvolvem algum conceito ou pressuposto de Vygotsky, tanto em números inteiros como proporcionalmente: 32 (34%). Dos 35 trabalhos que mencionam Vygotsky registrados na Primeira Etapa, apenas três não desenvolveram a teoria do autor. Os GT 15 e 10 também se mantiveram entre os de maior incidência da teoria de Vygotsky após a Segunda Etapa, registrando 22 (19,8%) e 16 (14,1%) trabalhos, respectivamente.
Em contrapartida, o GT 04 - Didática, na Segunda Etapa, foi o que apresentou menor quantidade de trabalhos, achado diferente daquele de Freitas (2004), quando fora o GT 16 - Educação e Comunicação o de menor incidência. Em nossa pesquisa, todavia, o GT 16, na Segunda Etapa, só registrou menor incidência do que os três acima referidos (doze trabalhos, 8,2%), estando acima de todos os outros seis GT entre os que mais trabalhos desenvolveram algum conceito ou pressuposto de Vygotsky, revelando achado importante sobre a penetração do autor no campo “Educação e Comunicação”.
Como síntese da análise quantitativa dos dados, podemos afirmar que, mesmo com a diminuição dos números da Primeira Etapa para a Segunda Etapa, ainda é expressivo o percentual de 11,3% dos trabalhos analisados que desenvolveram algum conceito ou pressuposto de Vygotsky - número que ainda supera o percentual de 8,31% verificado por Freitas (2004). Ao analisarmos os achados de Freitas (2014), relativos aos anos de 1998 a 2003, e os nossos, de 2004 a 2010, fica evidente o aumento da presença de Vygotsky nos trabalhos publicados nas Reuniões Nacionais da ANPEd, de 1998 a 2010.
2.2 Obras que fundamentam os textos
Entendemos que o histórico sobre as primeiras publicações da obra de Vygotsky no Brasil já fora abordado de forma competente por Freitas (2004) e, devido à limitação de espaço, passaremos aos resultados referentes às obras que fundamentaram os trabalhos analisados em nossa pesquisa. Foram contabilizadas mais de 150 diferentes obras, entre livros e artigos, utilizadas pelos autores dos artigos que desenvolveram algum conceito ou pressuposto de Vygotsky, inclusive, de outros nomes que não Vygotsky, mas consideradas vinculadas à Vygotsky ou à Teoria Histórico-Cultural.
Os resultados não diferem da pesquisa de Freitas (2004) quanto às duas obras mais referenciadas e cujo alerta fizemos na introdução: Formação Social da Mente (Vigotski, 2015a) e Pensamento e Linguagem (Vigotski, 2015b) seguem sendo as obras mais referenciadas pelos pesquisadores brasileiros13, mesmo com todos os problemas de editoração, autoria e tradução apontados há mais de 20 anos por Duarte (1996) e, alguns desses “problemas”, reiterados por Prestes (Prestes, 2014; Prestes e Tunes, 2012) mais recentemente. O Gráfico 4 mostra as dez obras mais referenciadas pelos autores dos artigos analisados na Segunda Etapa da pesquisa:
Entre as dez obras mais referenciadas pelos autores dos artigos analisados, estão os cinco Tomos das Obras Escogidas de Vygotsky: Tomo I (Vygotski, 1991), Tomo II (Vygotsky, 1982), Tomo III (Vygotski, 1995), Tomo IV (Vygotski, 1996) e Tomo V (Vygotski, 1997) - traduzidas do russo para o espanhol e cuja entrada no Brasil se fortaleceu no início do século XXI, fundamentalmente, entre os grupos de pesquisa dedicados a estudar o autor. Entre eles, o Tomo I foi o mais referenciado, presente nas referências bibliográficas de 23 artigos; o Tomo III nas referências de 21 artigos; o Tomo V em 18 (número que podemos relacionar à expressiva incidência da defectologia entre os pressupostos teóricos mais desenvolvidos pelos autores e aos números também expressivos do GT 15 - Educação Especial); o Tomo IV em 14; e o Tomo II, presente nas referências de doze artigos. O menor número de trabalhos referenciando o Tomo II pode ser justificado pela ainda volumosa utilização do livro Pensamento e Linguagem (31) e pela forte presença do livro A Construção do Pensamento e da Linguagem (Vigotski, 2001), nas referências de onze artigos14. Somadas, as três obras, alcançam um total de 54 referências.
Somente o livro 'The Vygotsky Reader', de René Van Der Veer e Jaan Valsiner (Van Der Veer; Valsiner, 1994), que consta entre os dez mais referenciados, não está atribuído diretamente ao próprio Vygotsky. Todavia, trata-se de uma obra organizada por esses dois pesquisadores constituída por doze artigos escritos por Vygotsky (dois deles em coautoria com Luria), um de Luria, um de Leontiev e um de Leonid Sakharov. Podemos, então, afirmar que, das dez obras mais referenciadas pelos autores textos analisados, todas têm suas origens em materiais produzidos pelo próprio Vygotsky.
Contudo, Prestes (2014, p. 7) alerta que, atualmente,
as pesquisas em originais russos e edições estrangeiras revelaram um problema muito maior quando se fala das obras de um pensador do porte de Vigotski. Se no início o trabalho se resumia apenas à comparação das traduções de suas obras no Brasil e em outros países com os originais publicados, hoje abrange um trabalho arqueológico, pois não se trata apenas de traduções, mas de verificar se os textos publicados mesmo em russo não são os adulterados durante muitos anos.
Defendemos, cientes deste contexto, que identificar e conhecer os principais referenciais vygotskianos utilizados pelos pesquisadores brasileiros se mostra relevante tendo em vista que “[...] muitas obras de Vigotski sofreram e ainda sofrem adulterações e mutilações mundo afora, inclusive na Rússia” (Prestes; Tunes, 2012, p. 327).
Assim como em Freitas (2004), entre os trabalhos analisados em nossa pesquisa, são intensas as interlocuções da obra de Vygotsky com Luria (1981; 1986; 1990; 1992) e Leontiev (1978; 1983), bem como com outros pesquisadores soviéticos de destaque no século XX, tais quais Bakhtin (1995; 2003), Davydov (1988a; 1988b), Elkonin (1998), Ilyenkov (1984), Kozulin (2002) e Zaporózhets (1984).
Também cabe destacar os pesquisadores brasileiros referenciados pelos autores dos trabalhos analisados, para mencionar os mais citados: Maria Cecília Góes, Marta Kohl de Oliveira, Ana Luiza Bustamante Smolka, a própria Maria Tereza de Assunção Freitas, Angel Pino, Silvana Tuleski, Lígia Martins, Marta Sforni, José Carlos Libâneo, Bernardete Gatti, Dermeval Saviani e Newton Duarte.
2.3 Os conceitos revelados nos textos e as temáticas em destaque nos três grupos de trabalho com maior incidência do autor
Entre os trabalhos nos quais identificamos o desenvolvimento da teoria de Vygotsky, foram registradas 46 ocorrências de diferentes conceitos ou pressupostos ligados ao autor - sendo que mais de um conceito ou pressuposto poderiam ser registrados em um mesmo artigo. Distintamente dos achados de Freitas (2004), os conceitos de Mediação e Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) não estiveram entre os mais utilizados pelos autores dos artigos analisados. Percebemos representativa diversidade entre conceitos e pressupostos de Vygotsky nos resultados. E essa constatação é deveras importante, pois, quando comparada com os resultados de Freitas (2004), sugere estudos mais diversificados da obra do autor, possivelmente, pelo maior e mais variado número de grupos de pesquisadores, com diferentes olhares para a sua obra e maior produção de conhecimento no Brasil com base em suas diferentes ideias.
O pressuposto central teórico-epistemológico de Vygotsky, e também da Teoria Histórico-Cultural, que argumenta pela importância do social (do histórico e do cultural) para o desenvolvimento humano, foi o mais abordado entre autores nos trabalhos analisados. O Gráfico 5, abaixo, destaca os dez de maior incidência:
Os conceitos e pressupostos de maior incidência, dessemelhantemente dos achados de Freitas (2004), foram: sócio-histórico-cultural (presente em 82 trabalhos); sentido e significado (52); defectologia (51); Teoria da Atividade (43); aprendizagem (38); planos de desenvolvimento (37), formação de conceitos (37); método (28), Psicologia da Arte (28) e pensamento e linguagem (23). Mesmo não figurando entre os dez com maior número de ocorrências, os conceitos de Mediação (9) e ZDP (8), além de outros conceitos e pressupostos tradicionalmente estudados no Brasil quando se trata de Vygotsky, foram desenvolvidos pelos autores dos artigos analisados, como: instrumentos e signos (22), funções psicológicas superiores (22), Materialismo histórico-dialético (17) e relações sociais (em 16 trabalhos). Somam-se outros a esses, constituindo a fatia “Outros” do Gráfico 5, com 36 diferentes conceitos e pressupostos de Vygotsky, representando 30,3% do total de artigos analisados.
Dentro dos grupos de trabalho, é possível uma leitura mais direcionada do aprofundamento teórico desenvolvido entre os autores dos artigos analisados, como destacaremos a seguir (enfatizando os três GT com maior incidência do autor, em função do limite de espaço).
No GT 20 - Psicologia da Educação, entre os 32 artigos que aprofundaram algum conceito ou pressuposto de Vygotsky, cabe destacar a variedade entre as temáticas das publicações e o estabelecimento de relações entre Vygotsky e outros autores. Foi interessante constatar que uma parcela considerável dos trabalhos publicados nesse GT poderia ter sido submetida a outros grupos de trabalho, dissertando sobre: processos de escolarização; avaliação; ensino de matemática; tecnologias da informação e comunicação e tecnologias digitais; leitura e escrita; formação de professores; literatura; arte; didática; educação especial; infância; identidade; temporalidade; estágios curriculares; pesquisa educacional; e educação de jovens e adultos. Essa expressiva diversidade destaca o potencial de diálogo da Psicologia da Educação com outras áreas no campo educacional.
Outro achado importante da pesquisa, no GT 20, foi o diálogo entre Vygotsky e outros autores, para além daqueles vinculados à tradição histórico-cultural, como David Tzuriel, Henri Wallon, Jean Piaget, Sigmund Freud, M'hammed Mellouki, Clermont Gauthier, Agnes Heller, Michel Foucault e Yves Clot - para destacar os mais citados. Pesquisadores que se tornaram importantes referências para Vygotsky no desenvolvimento de sua obra, como Baruch de Espinosa e Wilhelm Von Humboldt, também receberam destaque, especialmente, nos trabalhos de Almeida e Antunes (2005) e Gerken (2010), respectivamente.
Almeida e Antunes (2005) discutiram as implicações da teoria vygotskiana sobre memória para a Educação. Segundo os autores, para Vygotsky, é essencial a apropriação pelo indivíduo dos conhecimentos historicamente acumulados pela humanidade, e que essas informações (memorizadas pelo sujeito) são o substrato da ação presente e do planejamento da ação futura, são o fundamento do controle da conduta. Gerken (2010), por seu turno, investigou as matrizes conceituais que sustentam e dialogam com o projeto de construção da Psicologia Histórico-Cultural do pensamento e da linguagem. Para tal, Gerken discorreu sobre as matrizes filosóficas presentes na obra de Vygotsky e verificou a forte tradição humboldtiana na qual se insere sua teoria a partir da influência de teóricos idealistas e pré-revolucionários da antiga União Soviética, como A. Potebnya e G. Shept, ambos interlocutores de Wilhelm Von Humboldt.
Cabem destaque outros trabalhos publicados no GT 20, como o estudo de Cruz (2005) sobre o desenvolvimento cognitivo em Vygotsky, partindo da ênfase nos aspectos lógico-conceituais desse processo e nos modos pelos quais os sujeitos avançam em direção à capacidade de abstração, em sua relação com o outro e com as palavras. Em seu trabalho teórico, Cruz (2005) propôs uma discussão sobre o desenvolvimento cognitivo histórico-cultural, levantando argumentos - no interior da própria teoria de Vygotsky - que possibilitam repensar a racionalidade e a imaginação no desenvolvimento infantil. Para Cruz (2005), é a visão do homem produtor que permite articular essa argumentação que rompe com uma visão teleológica do desenvolvimento cognitivo.
Já o trabalho de Durán (2005) sobre os impactos das tecnologias da informação e da comunicação na Educação, em uma perspectiva vygotskiana, acenava, há 17 anos, que é lícito afirmar que os postulados de Vygotsky colocam em xeque e geram certa desconfiança diante dos pregoeiros que apresentam os computadores ou as redes como instrumentos autossuficientes, capazes de revolucionar a Educação apenas em função do caráter provocativo da linguagem digital em relação à emergência de novas modalidades de pensamento. Na opinião de Durán (2005), à guisa de conclusão, numa abordagem vygotskiana, espera-se que as transformações desencadeadas pelos processos de mediação simbólica não sejam únicas, homogêneas ou imediatas, em outras palavras: a tão sonhada “revolução pedagógica” dependerá não apenas dos impactos da linguagem digital, mas, fundamentalmente, do curso das mediações sociais que são travadas na ambiência escolar e na própria sociedade que a envolve.
Mahoney, Almeida e Almeida (2006), em seu trabalho, suscitaram comparações entre as obras de Vygotsky, Luria e Leontiev e as wallonianas, estabelecendo pontos de ligação e de diferenciação entre as distintas produções, em três dimensões: epistemológica, metodológica e desenvolvimental. Para esses autores, tanto Vygotsky e seus colegas quanto Wallon procuraram construir uma teoria psicológica fundamentada no materialismo histórico-dialético, compromissada com o pleno desenvolvimento da humanização dos indivíduos. Entretanto, explicam que Wallon difere dos soviéticos ao fazer poucas citações das obras de Marx, Engels e Lênin, utilizando seus principais pressupostos teórico-metodológicos sem muitas referências diretas. Isto não significa, complementam Mahoney, Almeida e Almeida (2006), que sua produção seja menos marxista do que a dos soviéticos ou vice-versa, mas se tratar de uma diferença de estilo e de condições culturais e necessidades historicamente determinadas, do que um maior ou menor grau de entendimento ou apropriação do marxismo.
Silva (2006) publicou interessante estudo bibliográfico objetivando estabelecer interlocuções entre psicologia educacional e arte literária, em uma perspectiva histórico-cultural, visando a subsidiar os enfrentamentos de educadores e psicólogos no tocante à relação entre família e escola. Ao longo do texto, a autora argumenta, com base em autores vinculados à referida perspectiva, que a compreensão dessa relação só é possível mediante a compreensão da totalidade histórica que as movimenta e da apreensão de que fazem parte, antes de tudo, de relações sociais. No entendimento conclusivo de Silva (2006), a arte se torna uma de forma de mediação para a psicologia educacional por compreender os conteúdos das relações estabelecidas através da análise de fatos concretos que existem em uma realidade objetiva.
Em “Vigotski: o homem cultural e seus processos criativos”, Barroco e Tuleski (2006) apresentam apontamentos teóricos acerca da criatividade e dos processos criadores/criativos sob a perspectiva histórico-cultural. As autoras entendem que essa abordagem seja pertinente, porquanto já está evidenciada pela literatura a necessidade de a Psicologia atentar à Educação crítica, e de ela mesma também ser crítica, de tal modo que a sua intervenção junto à escola contribua para que os indivíduos possam adquirir maior consciência de si mesmos, do que os leva a serem o que são, bem como acerca do mundo com o qual se relacionam. Barroco e Tuleski (2006) defendem que, para fazer frente a uma escola reprodutivista, é preciso que a educação escolar trabalhe com o não cotidiano. Não que isso leve a uma vida social sem contradições, entretanto, tal realização é fundamental à formação do homem capaz não só de reproduzir, mas também de criar. Para concluir, assim destacam: que a imaginação e a criatividade, para se apresentarem, devem adotar como “[...] premissa indispensável a liberdade interna de pensamento, da ação do conhecimento que têm alcançado tão-somente os que dominam a formação de conceitos. Não em vão que a alteração dessa função reduz a zero a imaginação e a criatividade” (Vygotski, 1996, p. 207).
No GT 15 - Educação Especial, entre os 22 artigos que aprofundaram algum conceito ou pressuposto de Vygotsky, assim como no GT 20, também verificamos uma variedade de temáticas e a relação de Vygotsky com outros autores entre as publicações analisadas. Destacamos as seguintes temáticas mais encontradas: educação infantil; ensino de matemática; educação artística; tecnologias da informação e comunicação; currículo; educação de jovens e adultos; formação de professores; leitura e escrita; e educação intercultural. Outro achado importante no GT 15 foi o constante diálogo de Vygotsky com outros autores filiados à perspectiva histórico-cultural, com destaque para Van Deer Veer e Valsiner, Maria Teresa de Freitas, Paulo Freire, Maria Cecilia Góes, Ana Luiza Bustamante Smolka, Alexei Leontiev, Alexander Luria e, principalmente, a grande incidência da relação de Vygotsky com Bakthin: entre os 22 trabalhos, oito desenvolveram essa relação, especialmente, nos trabalhos de Lopes (2005) e Freitas, Camargo e Monteiro (2007).
Lopes (2005) fez uma interlocução entre Bakhtin e Vygotsky relacionada à arte e à cultura. Para Lopes (2005), ambos os autores consideravam a arte como produção social e criticaram a noção romântica e mística da arte com uma criação individual de genialidade. Na perspectiva que aproxima Vygotsky e Bakhtin, as manifestações artísticas são produções constituídas pelas relações sociais em dado período histórico. No mesmo sentido, Freitas, Camargo e Monteiro (2007) discutiram a linguagem e a formação da identidade e/ou constituição de sujeitos com dificuldade de aprender e as implicações do processo de inclusão. Neste trabalho, as lições sobre a linguagem fundamentadas nas ideias de Vygotsky e Bakhtin, sob a base do materialismo histórico-dialético, que concebem o homem como um sujeito histórico e produto de um conjunto de relações sociais, são reafirmadas. É através da linguagem que o homem vai se comunicando e se constituindo nas suas relações sociais. Por meio da linguagem, o homem categoriza o mundo, generaliza objetos e desenvolve o funcionamento psicológico superior.
No GT 15, também chamamos a atenção para o estudo de Maffezol e Góes (2004), pelo o qual os autores tecem reflexões sobre as concepções e práticas vinculadas à subestimação e caráter eternamente infantil de pessoas com deficiência mental. Fundamentada na teoria de Vygotsky, a crítica visa a questionar as concepções reducionistas e patologizantes que são empregadas às pessoas com deficiência. As autoras defendem, ainda, que o desenvolvimento dos indivíduos com deficiência deve ser pautado nas mesmas leis gerais que valem para os indivíduos típicos. Porém, existem, em termos qualitativos, especificidades em sua organização que afetam seus processos de desenvolvimento que necessitam de caminhos alternativos. Maffezol e Góes (2004) investigaram as matrizes conceituais das concepções voltadas para a pessoa com deficiência e observaram que, mesmo com os esforços em mudar as concepções e iniciativas dos setores oficiais e da sociedade civil, ainda não aparecem indícios fortes que revelem uma ruptura efetiva - o que ainda observamos no início da terceira década do século XXI. Os mesmos conceitos ainda resistem o pensamento de que tais sujeitos estão em uma função de complexo entrelaçamento de cuidado, proteção, subestimação e infantilização. Nesse sentido, Maffezol e Góes (2004) partem dessas conjunturas para denunciar que essa situação pode representar grande parte da realidade de vida da população de deficientes mentais crescidos no país ainda hoje.
Já o trabalho de Carneiro (2006) discorre sobre a produção social da deficiência mental. Em uma perspectiva histórico-cultural, a defesa da ideia de que, mesmo diante de uma alteração orgânica, é razoável admitir que é por meio das relações sociais que o sujeito poderá se desenvolver, ou não. Carneiro (2006) trabalhou com a história de vida de três adultos com síndrome de Down que se escolarizaram em escolas comuns e que, mesmo com grandes dificuldades e necessidades de apoio, concluíram o ensino médio, em um processo constante de luta e reconhecimento de suas capacidades. Carneiro (2006) conclui que, mesmo com um comprometimento orgânico, pessoas com deficiência podem se desenvolver a partir das relações sociais estabelecidas em seus grupos e das condições materiais de vida. Os achados deste estudo vão ao encontro do que Vygotski (1997) postulava sobre os princípios de desenvolvimento das crianças com deficiência, que são os mesmos das crianças consideradas normais; mas sofrendo certas alterações na organização da estrutura durante o curso desse desenvolvimento.
Outro trabalho que merece destaque é o de Silveira e Fischer (2009), que buscou analisar a concepção de escola inclusiva e a prática pedagógica de artes visuais dos arte-educadores em turmas com estudantes cegos. Silveira e Fischer (2009) revelaram que, desde que sejam devidamente adaptados os materiais pedagógicos, é possível permitir acessibilidade na participação de estudantes cegos nas aulas de Artes. Isso se dá, segundo elas, por intermédio do pressuposto histórico-cultural que entende que é necessária a utilização de outros sentidos, diferentes da visão, para que a criança cega possa compensar a falta deste sentido. Em apreço ao que diria Vigotsky (1997), ele é só cego! As autoras compreendem que a cegueira não é barreira para que o educando seja incluído nas aulas de artes visuais, mas é necessário que ele seja visto como um ser capaz diante dos desafios e limitações apresentadas.
Vygotsky construiu a teoria de que o homem se constitui em relação direta com as condições materiais que vive e faz. França (2010) apregoa que, no contexto de uma sociedade capitalista, as concepções pedagógicas e políticas públicas se originam num contexto histórico-político contraditório de inclusão/exclusão; e que cabe ao professor de educação especial, como um dos profissionais responsáveis por encaminhar a proposta de inclusão no cotidiano escolar, dirigir a educação das pessoas com necessidades educacionais especiais. Em seu trabalho, França (2010) salienta que a obra de Vygotsky nos instiga a refletir sobre o processo de constituição do ser/estar professor, um processo mediatizado pelo grupo social e ressignificado de um modo singular em cada sujeito. A autora, em seu artigo, discorre sobre a necessidade e a importância do professor de educação especial na escola.
No GT 10: Alfabetização, Leitura e Escrita, entre os 16 trabalhos que aprofundaram algum conceito ou pressuposto de Vygotsky, destacamos, primeiramente, a presença de Mikhail Bakhtin (1995; 2003) em doze deles, reforçando, mais uma vez, a profícua relação entre a obra deste pesquisador com a obra vygotskiana - como vem sendo apontado há muitos anos, com especial atenção pela própria Freitas (1994). Além de Bakhtin, obviamente, por se tratar de um grupo de trabalho voltado a temáticas relacionadas à linguagem, é imperiosa a presença de linguistas e gramáticos, brasileiros e do exterior.
A temática mais presente entre os trabalhos analisados neste GT, sem dúvida, é o problema no ensino da leitura e da escrita e do desenvolvimento dessas habilidades pelos estudantes brasileiros, como destacado nas pesquisas de Siqueira (2004), Sopelsa (2005), Piffer (2007), Arena (2008), Becalli (2009) e Cruvinel (2010). Todos os pesquisadores acima são unânimes na defesa de pressupostos histórico-culturais no processo de alfabetização, no ensino da escrita e da leitura, apontando as limitações na Educação Básica e dos métodos hegemônicos no Brasil, principalmente, os pressupostos de Ferreiro e Teberoski (1985), fortemente baseados no construtivismo.
Siqueira (2004) buscou compreender a relação entre professores e fonoaudiólogos no atendimento ao educando que apresenta alteração de leitura e escrita, como esses profissionais entendem seus papéis e qual reflexão fazem sobre o desenvolvimento do sujeito aprendiz. A escola, segundo Siqueira (2004), apesar de contar com uma clientela mais diversificada nos dias de hoje, continua tendendo a homogeneizar os processos de ensino e a diversidade, por vezes, acaba se tornado trabalho para as clínicas: os desajustes são compreendidos como se fossem trazidos pelos estudantes de fora para dentro das escolas e não como se pudessem ser criados na/pela própria escola. Esta pesquisadora afirma que não são as condições internas do sujeito que determinam suas possibilidades de aprendizagem, já que Vygotsky não subordinava o desenvolvimento da criança ao biológico, mas sim ao cultural. Nessa perspectiva, não é descartada a influência do biológico no desenvolvimento do sujeito, mas é enfatizado que este pode ser totalmente transformado por meio das possibilidades de acesso a bens culturais aos quais a criança está exposta. Siqueira (2004), a partir dos enunciados dos sujeitos pesquisados (oito, entre professoras e fonoaudiólogas), revela que há pouco relacionamento entre esses profissionais em suas atuações, no entanto, independente do encontro acontecer ou ser apenas idealizado, a perspectiva é de uma relação assimétrica, unilateral e prescritiva do fonoaudiólogo ao professor.
Sopelsa (2005), por sua vez, discutiu aspectos da mediação pedagógica para a apropriação da linguagem escrita no contexto de uma sala de aula de alfabetização. Este pesquisador observou, a partir da análise dos dados coletados, que as concepções de sujeito, aprendizagem e linguagem escrita que perpassam as enunciações das professoras no contexto da sala de aula de alfabetização representam aspectos importantes para a constituição da mediação pedagógica no processo de apropriação da linguagem escrita. Já na pesquisa de Piffer (2007), intencionou-se averiguar a aproximação do cotidiano escolar com as práticas educativas vivenciadas pelas crianças e professoras para identificar os desafios, as possibilidades e as contradições que permeiam o trabalho com a linguagem escrita nas salas de aula, suscitando reflexões que pretendem contribuir para o avanço da compreensão desses processos na construção de caminhos que permitam, efetivamente, tomar o texto unidade de ensino na alfabetização. Como reflexão final, esta estudiosa salienta que pensar a formação numa perspectiva histórico-cultural implica romper com os modelos predominantes, buscando a implementação de políticas de formação com ações ajustadas aos interesses dos profissionais da educação, às demandas emergentes no cotidiano das práticas educativas e à real valorização do trabalho docente.
Arena (2008), em sua investigação, realizou observações e entrevistas junto a professores portugueses no intuito de verificar similaridades e dessemelhanças entre os processos de alfabetização brasileiros e lusitanos. Ao contrário do que o senso comum possa sugerir, Arena (2008) aponta que as professoras portuguesas ainda priorizam os traços finos das mãos, em desenhos laboriosos, teimando em manter vivo o conceito de que aprender a escrever é aprender a desenhar com três dedos, em posições historicamente padronizadas. Este pesquisador sugere que, tanto no Brasil como em Portugal, são necessárias alterações profundas no núcleo didático do processo de ensinar a ler e a escrever nos primeiros anos de escolaridade; e que o modo de ensinar seria o de desenvolver a atitude própria do leitor deste novo século, para quem a língua, antes de ser um instrumento de comunicação, seria um instrumento do pensamento, como enunciava Vygotsky (Vigotski, 2001; Vygotsky,1982; Vygotski, 1995).
Já Becalli (2009) analisou especificamente o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (Profa), tomando por base contribuições da Teoria Histórico-Cultural e da perspectiva bakhtiniana de Linguagem. Ao investigar a concepção de alfabetização orientadora do Profa, apontou que esta se fundamentou nas ideias de Ferreiro e Teberosky (1985) sobre o desenvolvimento da linguagem escrita nas crianças. Chegou a essa conclusão por meio da comparação de trechos encontrados ao longo dos textos do kit de materiais escritos que compõem o programa com a produção das autoras no livro Psicogênese da Língua Escrita (Ferreiro; Teberosky, 1985). E também constatou que, apesar de a teoria construtivista estar fundamentada na Psicologia Genética de Piaget e na Psicolingüística de Chomsky, as reflexões desses autores não foram apresentadas e tampouco contempladas no material pedagógico do Profa (Becalli, 2009).
Cruvinel (2010), por fim, apresentou resultados de pesquisa acerca das relações entre o processo de escolarização e o processo de apropriação da leitura a partir da perspectiva das crianças em início da vida escolar. De acordo com essa pesquisadora, a metodologia para o ensino da leitura na educação infantil, por não pressupor situações do ato de ler em contextos de comunicação a partir de vivências em que essa prática se manifeste como objeto de cultura, acaba por direcionar as propostas didáticas referentes ao ler na escola para o estudo do funcionamento do sistema alfabético de escrita. Considerando o percurso dos sujeitos da pesquisa empreendida, Cruvinel (2010) verificou que, no último ano da Educação Infantil, as crianças não lidam com as situações de leitura como prática cultural. Assim como, na escola, o ler não surge como objeto de cultura, mas apenas como objeto escolar com um fim em si mesmo: as crianças afirmam que não leem ou não aprendem a ler nesta instituição - apenas as raras situações com a literatura infantil são reconhecidas como práticas de leitura.
3 CONCLUSÃO
Tratou-se de uma pesquisa que envolveu um grande volume de dados e que exigiu esforço do pequeno grupo de pesquisadores envolvidos. Foram analisados 1213 artigos, publicados em dez grupos de trabalho ao longo de sete Reuniões da ANPEd. Todos os artigos foram selecionados, armazenados, organizados e analisados quanto à presença de Lev S. Vygotsky, totalizando 190 trabalhos identificados na Primeira Etapa. Na Segunda Etapa, esses 190 trabalhos foram reavaliados por um grupo de sete pesquisadores procurando identificar se conceitos e pressupostos de Vygotsky foram desenvolvidos, que conceitos são esses e as obras referenciadas pelos autores dos trabalhos analisados. Foram identificados 137 artigos que desenvolveram 46 diferentes conceitos ou pressupostos vygotskianos e mais de150 diferentes obras foram por eles utilizadas em seus textos.
A maior incidência de trabalhos com a presença e desenvolvimento de conceitos ou pressupostos de Vygotsky foi verificada nos Grupos de Trabalho: 10 - Alfabetização, leitura e escrita (16 trabalhos, 14,1% dos artigos publicados nos anais), 15 - Educação Especial (22 trabalhos, 19,8% dos artigos publicados) e 20 - Psicologia da Educação (32 trabalhos, sendo este GT o de maior incidência, com 34% dos trabalhos publicados). O ano de 2005, por ser o ano com maior volume de trabalhos publicados, registrou mais artigos com a presença de Vygotsky (27). Proporcionalmente ao número de trabalhos publicados, todavia, o ano de 2008 foi aquele em que verificamos a maior incidência de Vygotsky entre os GT analisados: 20%.
Entre os conceitos e pressupostos desenvolvidos pelos autores, os mais presentes foram: sócio-histórico-cultural (desenvolvido 82 vezes nos artigos analisados); Sentido e significado (52 vezes); Defectologia (51); Teoria da Atividade (43); Aprendizagem (38); Planos de desenvolvimento/Desenvolvimento humano (37); Formação de Conceitos/espontâneos e científicos (37); Método (28); Psicologia da Arte (28) e; Pensamento e palavra/linguagem (23). Surpreendeu o fato de os conceitos de Mediação e ZDP não estarem entre os dez mais trabalhados pelos autores (nove e oito ocorrências, respectivamente), diferentemente dos achados de Freitas (2004), quando ambos foram destacadamente os mais incidentes, o que relevou maior diversidade nos estudos baseados no autor.
Na análise das referências utilizadas entre os 137 artigos que desenvolveram algum conceito ou pressuposto vygotskiano, é preocupante o resultado que aponta a manutenção dos livros Formação Social da Mente (Vigotski, 2015a) e Pensamento e Linguagem (Vigotski, 2015b) como, ainda, os mais utilizados pelos pesquisadores brasileiros (63 e 31 ocorrências, respectivamente), situação também verificada e problematizada por Freitas (2004). Por outro lado, destaca-se a salutar presença dos cinco Tomos das Obras Escogidas de Vygotsky, estando todos eles entre as dez obras mais referenciadas pelos autores dos artigos analisados na Segunda Etapa da pesquisa.
A partir desses dados, e levando em consideração a importância da ANPEd como disseminadora das pesquisas educacionais brasileiras, tem-se, agora, um panorama geral sobre a incidência de Vygotsky nesse evento na primeira década do século XXI: em quais grupos de trabalho ele é mais presente, quais de seus conceitos ou pressupostos foram mais utilizados e quais foram as principais obras que embasaram esses trabalhos - apresentando dados relevantes para contribuir com os estudos sobre Vygotsky, tendo em vista a importância deste autor para a pesquisa em Educação no Brasil, sua presença em cursos de formação de professores e em práticas pedagógicas por todo o país.
Como trabalhos futuros, em função das limitações de espaço comuns em periódicos, focaremos as próximas publicações no aprofundamento das obras analisadas na Segunda Etapa da pesquisa por temáticas, grupos de trabalho, conceitos e obras mais incidentes.