1 INTRODUÇÃO
Ao refletir sobre a relação entre educação e tecnologia na contemporaneidade, são frequentes os debates que buscam dimensionar os limites e as potencialidades que envolvem a mediatização das relações pedagógicas em diferentes níveis, sistemas e modalidades de ensino, tendo em vista a expansão de possibilidades relacionadas à comunicação social, à difusão de informação e à construção de conhecimentos propiciadas pelo avanço técnico no contexto histórico-cultural vigente (Malaggi, 2020). Sobretudo diante das imposições exercidas pela pandemia de Covid-19, relacionadas às medidas de contenção necessárias para frear a disseminação do vírus SARS-CoV-2, a educação nacional foi atravessada por uma crise sem precedentes em razão da necessidade de isolamento social, do regime de quarentena domiciliar e, enfim, da suspensão das atividades de ensino presenciais em todo o território nacional.
Nesse contexto de exceção, a tecnologia assumiu um papel fundante nos processos educacionais, tendo em vista a implementação do ensino remoto emergencial como estratégia contingencial massiva para viabilizar a oferta educacional durante a pandemia, amparada pela Portaria n.º 343, de 17 de março de 2020, que dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto perdurasse a situação de calamidade pública no País (Brasil, 2020b). Desse modo, ao reconhecer os imperiosos desafios que constituem tal processo de transição abrupta do ensino presencial para o ensino remoto emergencial, é necessário considerar que a tecnologia não se restringe ao conjunto de técnicas, instrumentos, dispositivos e invenções que viabilizaram, de maneira estritamente operacional, a realização de atividades pedagógicas durante a crise pandêmica, mas caracteriza-se como um processo social inserido em determinada forma de produção de existência, cujas dimensões políticas, econômicas e sociais que fundamentam organização estrutural da sociedade também constituem a relação entre educação e tecnologia como processos sociais autogerados pelos sujeitos em sua dialética histórica (Marcuse, 1999; Maar, 2003).
Assim, considerando o amplo quadro estrutural em que o ensino remoto emergencial se estabeleceu como solução homogênea para minimizar os impactos provocados pela crise pandêmica no âmbito da educação nacional, bem como as contradições sociais, as disputas políticas e os confrontos ideológicos que permeiam ambos, educação e tecnologia, como processos sociais que comportam em si contradições inerentes ao sistema de vida em que ambos estão inseridos, urge a seguinte inquietação: quais foram as implicações do ensino remoto emergencial sobre o processo formativo de crianças na rede pública de ensino, tendo em vista a relação entre educação e tecnologia no contexto histórico vigente?
Tal problemática se justifica em virtude da compreensão de que, apesar do ensino remoto emergencial se caracterizar como um fenômeno sem precedentes no âmbito da Educação Básica, as contradições inerentes à relação entre educação e tecnologia fazem parte de uma estrutura histórica determinada - ou seja, os elementos que possibilitam a compreensão do objeto em sua profundidade não se limitam ao contexto pandêmico, mas também contemplam as relações sociais, materiais e históricas que constituem o ensino remoto emergencial como produto do sistema social prevalecente e, portanto, como parte de um processo anterior à pandemia. É nessa perspectiva que as reflexões empreendidas aqui nos oferecem subsídios importantes para investigar o processo de transição para o ensino remoto emergencial no âmbito da rede pública de ensino, tendo em vista a relação entre educação e tecnologia no contexto pré-pandemia, bem como as relações que podem ser estabelecidas a partir da compreensão de que o objeto não se constitui como um fenômeno isolado, mas como parte de um processo histórico, inserido em um determinado sistema de produção social.
Nesse sentido, para subsidiar a análise crítica do objeto em sua dimensão concreta, realizamos um estudo de caso a partir de relatos concedidos por professoras que atuaram em turmas de primeiro e de segundo ano do Ensino Fundamental em 2020, período em que o ensino remoto emergencial foi implementado como medida contingencial durante o primeiro ano de pandemia no Brasil. Apesar de tal estudo de caso se caracterizar como um fragmento da realidade, cuja amplitude total não é capaz de ser apreendida pela consciência formada pelo individual, reconhecemos a potência da experiência docente para refletir sobre determinados aspectos relacionados à formação humana no contexto em que as relações pedagógicas assumem um caráter tecnologicamente mediatizado pelo ensino remoto emergencial, dada a necessidade de isolamento social imposta pela pandemia de Covid-19. Desse modo, ao relacionar o campo empírico aos elementos que constituem a materialidade da sociedade moderna, conferimos a possibilidade de desvelar os vínculos históricos, as contradições sociais e as condições concretas que fundamentam a estrutura organizacional da sociedade em que o objeto está inserido a fim contemplar a problemática proposta neste estudo.
2 PERCURSO METODOLÓGICO
Este artigo é o resultado de uma dissertação de Mestrado, concluída em outubro de 2022, cujo objetivo foi analisar as implicações do ensino remoto emergencial sobre o processo formativo de crianças na rede pública de ensino, tendo em vista a relação entre educação e tecnologia no contexto histórico vigente. Trata-se de um estudo de caso exploratório, de caráter qualitativo, de modo que a ênfase da pesquisa está na investigação de um fenômeno social que, sob a ótica do amplo quadro estrutural em que ambos, sujeito e objeto, estão inseridos, conferimos a possibilidade de desvelar a multiplicidade de dimensões que caracterizam o contexto em que tal fenômeno se manifesta. Desse modo, consideramos que o estudo de caso viabiliza a compreensão de uma problemática complexa a partir da investigação de um caso delimitado, cuja análise se fundamenta na realidade elaborada pelos sujeitos em suas práticas sociais (Godoy, 1995).
Com relação ao arcabouço teórico do estudo, reconhecemos que a Teoria Crítica da Sociedade traz contribuições importantes para desvelar as contradições imanentes à realidade que condiciona os fenômenos sociais em seu movimento histórico-cultural. Nessa perspectiva, recorremos à produção intelectual da primeira geração da Escola de Frankfurt para subsidiar as discussões empreendidas neste estudo - entre os principais autores, destacamos Theodor Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse, cujas análises filosófico-sociais permanecem relevantes para dimensionar as imposições exercidas pela racionalidade que condiciona a instrumentalização da educação de acordo com as demandas operacionais do sistema de produção capitalista.
Desse modo, entre os procedimentos metodológicos utilizados para realizar a coleta de dados, recorremos às entrevistas semiestruturadas com quatro professoras que atuaram em turmas de primeiro e de segundo ano do Ensino Fundamental durante o ano de 2020. A seleção dos participantes ocorreu de forma proposital, por amostragem não probabilística e pela técnica de bola de neve, considerando o critério de atuação em turmas de alfabetização no ensino remoto emergencial da rede pública básica1. A escolha da entrevista semiestruturada como instrumento se justifica em virtude da compreensão de que amplificar a voz das professoras, na condição de autoridade pedagógica responsável pelo processo formativo das crianças no âmbito da escolarização, implica o reconhecimento e a valorização da experiência docente como expressão concreta da práxis articulada à teoria, cuja autorreflexão crítica sobre o ensino remoto emergencial confere a possibilidade de desvelar as contradições imanentes à relação dialética entre educação e tecnologia no contexto pandêmico.
As entrevistas ocorreram entre abril e maio de 2022, de forma individual e remota, por meio da plataforma de reuniões em ambientes virtuais Microsoft Teams. Tendo em vista os critérios que fundamentam o roteiro semiestruturado, a entrevista foi dividida em três eixos: a trajetória acadêmica e docente das professoras participantes; a relação entre educação e tecnologia no contexto pré-pandemia, em face das condições materiais das escolas, a oferta de cursos de formação continuada e a maneira como os recursos tecnológicos eram inseridos no processo de ensino-aprendizagem; por fim, a transição do ensino presencial para o ensino remoto emergencial, considerando os subsídios oferecidos pelo Estado e os desafios que envolvem a mediatização das relações pedagógicas no ensino público.
Por fim, considerando os fundamentos teórico-epistemológicos que subsidiam o desenvolvimento da pesquisa, recorremos à dialética negativa (Adorno, 2009) como metodologia de análise crítica sobre o objeto. De acordo com Pucci (2012), dialética negativa pode ser compreendida como uma proposta metodológica potente para interpretar as contradições imanentes à materialidade histórica da sociedade moderna - sobretudo na condição de metodologia de pesquisa em educação, levando em conta suas contribuições para refletir sobre a atualidade e subsidiar pesquisas nas áreas das Ciências Humanas e Sociais, principalmente na interpretação de questões educacionais.
Tal proposta de pensamento, fundamentada na leitura crítica da realidade, indica caminhos para a reflexão sobre as transformações e os desafios que constituem a relação dialética entre educação e tecnologia como processos sociais estabelecidos em determinado modo de produção hegemônico, assentado na estrutura de classes, na lógica industrial e no sofisticado sistema de dominação que compõem o capitalismo tardio - nesse contexto, “[...] podemos buscar um arcabouço substancial de resistência, possibilitando a capacidade de abertura para o pensamento constelativo e para a problemática da formação humana à luz das relações danificadas” (Silva; Oliveira, 2021, p. 13).
A seguir, apresentaremos os relatos concedidos pelas quatro professoras participantes, tendo em vista o processo de transição do ensino presencial para o ensino remoto emergencial, bem como os desafios que envolvem a mediatização das relações pedagógicas no âmbito do ensino público. Na subseção 3.1, discorreremos sobre a relação estabelecida entre educação e tecnologia no contexto pré-pandemia, considerando as condições estruturais e materiais que as escolas dispunham, bem como a oferta de cursos de formação continuada relacionados à apropriação de tais recursos técnicos para a prática pedagógica. Posteriormente, na subseção 3.2, investigaremos como ocorreu o processo de substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais durante o primeiro ano de pandemia no País, tendo em vista as condições de acesso à tecnologia por parte dos agentes sociais envolvidos no processo formativo, bem como os subsídios oferecidos às escolas, às professoras e às crianças para viabilizar o acesso às atividades pedagógicas no ensino remoto emergencial.
3 RESULTADOS E DISCUSSÕES
3.1 A relação entre educação e tecnologia no contexto pré-pandemia
Ao discorrer sobre os dados empíricos que compõem a análise proposta, consideramos pertinente apresentar as quatro professoras alfabetizadoras que participaram da entrevista, sendo elas: Camila, Daniela, Fernanda e Letícia. Cabe destacar que, para preservar o anonimato dos depoimentos concedidos, utilizamos pseudônimos para identificar as participantes no estudo. Nesse sentido, o quadro a seguir apresenta o perfil das professoras supracitadas, considerando as suas respectivas idades, gênero com o qual se identificam, titulação acadêmica máxima, turmas do Ensino Fundamental em que lecionaram durante o ano de 2020 e o tempo total de exercício da docência na Educação Básica:
Quadro 1 Perfil das professoras participantes
Participante | Idade | Gênero | Titulação máxima | Turma do Ensino Fundamental em que lecionou em 2020 | Tempo de exercício da docência |
---|---|---|---|---|---|
Camila | 47 anos | Feminino | Mestra | Primeiro ano | 30 anos |
Daniela | 38 anos | Feminino | Especialista | Segundo ano | 9 anos |
Fernanda | 50 anos | Feminino | Especialista | Primeiro ano | 7 anos |
Letícia | 46 anos | Feminino | Mestra | Primeiro ano | 27 anos |
Fonte: Elaborado pelas autoras (2023).
Com relação à formação acadêmica, as quatro entrevistadas são graduadas em Pedagogia e pós-graduadas em áreas relacionadas à Educação, sendo duas formações no nível de Mestrado. No decorrer da entrevista, ao questioná-las sobre a integração da tecnologia ao processo de ensino-aprendizagem, Camila afirma considerar-se uma professora ‘antenada’: “eu já era uma pessoa que trabalhava bastante nessa área de informática, mas como suporte”. No mesmo sentido, Letícia relata: “sempre fui muito tecnológica, até porque, para a minha geração, eu aprendi a mexer com computador cedo. [...] eu acho muito legal, algumas professoras são bem resistentes de usar, eu acho até estranho”. Daniela, por sua vez, descreve as limitações materiais que restringiam a integração de tais tecnologias na prática pedagógica: “[...] no máximo, era filme e o uso do computador, ainda dentro do possível porque tem escola que eu já trabalhei que nem tinha computador”.
Entre os recursos adotados como suporte ao processo de ensino-aprendizagem no contexto pré-pandemia, as professoras elencam, majoritariamente, os recursos técnicos usados para elaborar as atividades pedagógicas - a título de exemplo, Letícia destaca: “[...] nós temos uma impressora que é copiadora excelente, nós temos cópias coloridas para as professoras que precisam, temos plastificadora para fazer material didático, tem encadernadora, tem guilhotina, têm horrores de coisas assim”. Citam também as salas informatizadas com computadores e tablets, as salas de aula equipadas com datashow, a distribuição de notebooks para os professores da rede e a atuação de professores de tecnologia educacional2 que amparam a realização de atividades tecnologicamente mediatizadas em suas respectivas unidades educativas. Além dos recursos empregados para elaborar as atividades pedagógicas, mencionam a utilização de televisores, de jogos on-line, de vídeos, de softwares como Word e PowerPoint, entre outros recursos que servem como apoio ao processo formativo.
Desse modo, os relatos das professoras evidenciam as condições estruturais das unidades educativas que possibilitam o uso de recursos técnicos como suporte ao processo de ensino-aprendizagem. Ao longo de sua fala, Letícia assinala: “[...] a gente tem muito recurso, meu Deus, eu fico assim, maravilhada! Mas então, por isso, na transição ali da pandemia, não vou te dizer que foi fácil, mas não foi tão sofrido assim. Eu consegui migrar bem para o que precisava”. Ao longo de sua fala, Fernanda explica que, apesar das condições precárias de acesso à internet, a escola em que atua passou por reformas durante a pandemia para dispor de melhores condições técnicas: “depois que a escola foi inaugurada [...], a gente tem wi-fi, a gente tem datashow em todas as salas, a gente tem acesso aos computadores, a gente tem sala informatizada. Agora, sim, está bem boa de trabalhar”. Ao identificarmos as condições estruturais que as referidas escolas possuem em termos de recursos técnicos disponíveis, reconhecemos a importância do acesso à tecnologia no sentido de ampliar as possibilidades da práxis educativa orientada para a promoção de experiências formativas revitalizadas, que sejam capazes de dimensionar a transformação emancipadora das relações sociais por meio da autonomia do pensamento crítico (Zuin; Zuin, 2017).
Ainda assim, é necessário considerar que a disponibilização de recursos técnicos nas escolas não implica, necessariamente, a qualidade do processo de ensino-aprendizagem, a apropriação crítica da tecnologia como um processo social repleto de intencionalidade política, tampouco a práxis educativa orientada para a resistência ao caráter ideológico que permeia a tecnologia como sistema de dominação exercido pela racionalidade tecnológica. Para Vieira Pinto (2008), o maravilhamento pode ser considerado, em si, uma expressão do caráter reificado da tecnologia como puro modo de agir sobre a realidade, cujo sujeito, no processo de produção de existência, já não é capaz de reconhecer tal obra como produto de sua própria criação - por isso, o maravilhamento, provocado pelas classes dominantes para ludibriar as classes oprimidas, faz com que nos sintamos na melhor de todas as eras da história humana por termos acesso a um dado tecnológico, atribuindo à sociedade moderna um acréscimo de valor, respeitabilidade, admiração e profunda gratidão pelas benesses propiciadas pelo avanço técnico (Viana, 2010).
Ao dimensionar a relação entre educação e tecnologia para além de uma perspectiva instrumental, cujas formas de ‘pensar’ e de ‘atuar’ na realidade não se reduzem à dimensão subjetiva da razão formalizada - ou seja, ao pensamento operacional que se direciona para coordenar os ‘meios’ de forma eficiente e pragmática, tendo em vista ‘fins’ predeterminados (Horkheimer, 2002) -, torna-se essencial que os sujeitos se apropriem da tecnologia em sua capacidade crítico-reflexiva para que sejam capazes de dimensionar alternativas de superação das relações sociais prevalecentes, assumindo como finalidade a educação para a contradição e para a resistência como condição imperiosa para a emancipação humana (Adorno, 1995). Para tanto, a formação docente continuada assume um papel fundante no processo de apropriação crítica das tecnologias digitais de informação e comunicação - não somente como forma de capacitar o uso operacional de tais recursos como um fim em si mesmo, mas, sobretudo, como meio de mobilizar a experiência formativa em sua integralidade, tendo em vista a tensão entre autonomia e adaptação presente na constituição do sujeito livre e radicado em sua própria consciência (Adorno, 2010).
Ao questionarmos as professoras participantes com relação às atividades formativas ofertadas aos docentes da rede pública de ensino, tendo em vista a apropriação da tecnologia como suporte aos processos de ensino-aprendizagem no âmbito escolar, Camila afirma que tal movimento de apropriação da tecnologia como recurso pedagógico não partia da rede, mas dos próprios professores: “a rede não oferecia formação na área de tecnologia ou, se oferecia, era uma formação muito simplificada”. Durante sua carreira docente, Camila menciona que realizou dois cursos de formação relacionados à tecnologia, em 2006 e 2007 - ambos sobre a produção de material pedagógico utilizando recursos técnicos como hyperlink e stopmotion. Para Camila, as formações eram, “[...] às vezes, muito básicas para o nível de conhecimento que eu já possuía por ser uma pessoa mais ‘antenada’ para esse tipo de coisa”. No mesmo sentido, Daniela afirma diz que nunca realizou um curso de formação continuada relacionado à tecnologia, de modo que apenas recorre à professora de tecnologia educacional quando necessário: “o que tem é a nossa professora que, no caso, ela sabe lidar - então, quando eu preciso, ela que me ajuda”.
Em contrapartida, Letícia indica que houve oferta de cursos de formação relacionados à tecnologia - como exemplo, cita um curso de robótica ofertado pela rede de ensino em que atua. De maneira similar, Fernanda afirma que participa de cursos de formação todos os meses e que, no âmbito da tecnologia, realizou um curso sobre o Google Classroom, mas não o utilizava porque “[...] ainda não tinha vindo a pandemia. Mas depois, quando veio a pandemia, aí sim a gente se viu obrigado a trabalhar assim, de uma outra forma”. Desse modo, a partir do relato concedido pelas professoras participantes, é possível identificar como o pensamento instrumental está presente no contexto pré-pandemia ao conceber a tecnologia como um fim em si mesma - tal processo de reificação torna-se evidente no contexto em que as atividades de formação docente relacionadas à apropriação da tecnologia ainda são escassas e, quando ofertadas, são reduzidas a um caráter predominantemente operacional, até mesmo incipiente com relação à bagagem prévia das professoras, tal como destacado ao longo de suas falas.
Mesmo reconhecendo a importância da formação continuada para que os professores se apropriem de forma crítica das tecnologias introduzidas no contexto escolar, é necessário considerar que tal formação, quando ofertada sob uma perspectiva estritamente instrumental, não garante a apropriação crítica e autônoma da tecnologia - pelo contrário, essa perspectiva parcial tende a neutralizar o desenvolvimento de uma consciência crítica sobre as relações conflituosas que caracterizam a tecnologia como sistema de dominação na sociedade regida pelos ditames do capital. Tal possibilidade de transgredir a função de dominação social exercida pela tecnologia reside, justamente, na resistência consciente e deliberada às imposições exercidas pela racionalidade tecnológica, a fim de desvelar as contradições inerentes à tecnologia como forma de perpetuar (ou modificar) as relações sociais nesse determinado modo de produção de existência - assim, na relação entre ‘perpetuar’ ou ‘modificar’, a possibilidade de vislumbrar outras alternativas de mediação tecnológica somente seria possível a partir da consciência sobre as relações históricas e materiais que permeiam a tecnologia como modo de produção capitalista (Marcuse, 1999).
Portanto, apesar do ensino remoto emergencial se caracterizar como um fenômeno excepcional no âmbito da Educação Básica brasileira, tal fenômeno não deve ser compreendido como um processo isolado, tampouco inédito sob o ponto de vista da racionalização dos processos educacionais. Na condição de um processo socialmente determinado pela estrutura organizacional da sociedade administrada, o ensino remoto emergencial é produto das relações sociais, materiais e históricas que fundamentam o sistema de vida estabelecido no capitalismo tardio - ou seja, tal como revelado pelas professoras participantes ao longo da presente subseção, as contradições que permeiam a relação entre educação e tecnologia denotam seu caráter reificado como expressão da racionalidade tecnológica que, por meio de sua ideologia, permanece perpetuando as tendências regressivas da razão instrumental como forma de pensamento predominante no contexto pré-pandemia. Desse modo, tais subsídios são fundamentais para analisar o processo de mediatização das relações pedagógicas no âmbito do ensino remoto emergencial, tendo em vista as contradições da estrutura sócio-histórica que lhe é constitutiva, bem como as possíveis relações que podem ser estabelecidas a partir da compreensão de que o objeto não se caracteriza como um fenômeno isolado, mas como um processo social inserido em um sistema de vida historicamente determinado.
3.2 Do ensino presencial ao ensino remoto emergencial
Com o intuito de desvelar as contradições inerentes ao ensino remoto emergencial como um processo social historicamente situado, destacamos, entre seus aspectos fundantes, a dimensão tecnologicamente mediatizada das relações pedagógicas no âmbito da escolarização. A partir dos relatos concedidos pelas professoras sobre a relação entre educação e tecnologia no contexto pré-pandemia, reconhecemos que as referidas unidades educativas, pertencentes à rede pública de ensino, possuem condições técnicas que viabilizam, ainda que de modo predominantemente operacional e, em algumas, de maneira mais precária do que em outras, o uso de recursos técnicos como suporte ao processo de ensino-aprendizagem no contexto regular da Educação Básica. Por outro lado, a total mediatização das relações pedagógicas, tal como se fundamenta o ensino remoto emergencial, implica em outras questões que são determinantes para compreender a relação estabelecida entre educação e tecnologia no contexto de crise pandêmica - ou seja, como ambos os processos sociais se orientam nesta determinada forma de organização social.
Nesse sentido, para subsidiar esta discussão, recorremos à autorreflexão crítica exercida pelas professoras participantes ao questioná-las sobre o processo de transição para o ensino remoto emergencial e os desafios que envolvem a mediatização das relações pedagógicas no âmbito da rede pública de ensino. Para tanto, buscamos investigar as condições de acesso à tecnologia por parte dos agentes sociais envolvidos no processo formativo, bem como os subsídios oferecidos às escolas, às professoras e às crianças para viabilizar o acesso às atividades pedagógicas no ensino remoto emergencial. Ao discorrer sobre o tema, Camila afirma que:
Foi desesperador porque foi, assim, eram duas ruas paralelas: primeiro porque a gente não sabia o que ia acontecer, a gente não tinha o estudo sobre, então a gente foi muito no ‘chutômetro’, o que fazer, né? O que que vai acontecer? A gente não sabia quando que voltava [as aulas presenciais], era muita insegurança se a gente pensasse de uma forma mais concreta. Então, era muita insegurança: volta semana que vem ou não volta? Volta em setembro ou não volta? Tenho que me planejar para dois meses ou não tenho? Essa era uma questão. Também tinha a questão social que estava pegando bastante, a escola que eu trabalhava era uma escola muito carente, então as pessoas não tinham esse acesso [às tecnologias].
Entre os aspectos fundamentais para pensar sobre a transição para o ensino remoto emergencial, é possível destacar a imprevisibilidade, a angústia e a desorientação que marcaram o ano de 2020 diante de uma crise sanitária sem precedentes, agravada pela omissão do Estado em coordenar um plano de ação nacional para conter a disseminação da Covid-19, bem como para mitigar os impactos econômicos e sociais provocados pela imperiosa necessidade de isolamento social durante a crise pandêmica - omissão esta que, por sua vez, também culminou em efeitos deletérios no contexto educacional, sobretudo no ensino público. Assim como Camila, a professora Daniela menciona a situação de vulnerabilidade social na comunidade escolar em que estava inserida: “a comunidade em que eu trabalho... ela é uma comunidade muito carente. Mais da metade, de 30 alunos, 20 não tinham acesso [à tecnologia]”. Ao relatar o processo de transição para o ensino remoto emergencial, Daniela afirma que “não foi uma coisa que, da noite para o dia, eu tive que dar aula on-line. Em nenhum momento. A nossa escola ficou um tempo para que a gente não tivesse aula on-line porque praticamente não tinha aluno para dar aula on-line, né?”.
Tendo em vista as precárias condições de acesso à tecnologia digital por parte dos estudantes da rede pública de ensino, conforme mencionado pelas professoras participantes, questionamos as entrevistadas quais foram os subsídios materiais e pedagógicos oferecidos pelo Estado para viabilizar a realização do ensino remoto emergencial em meios digitais, tal como preconizam os documentos normativos (Brasil, 2020b). Entre os subsídios ofertados, as quatro professoras elencaram: a formação docente relacionada à tecnologia digital; o empréstimo de notebooks para os docentes; a distribuição de chips de celular às crianças; por fim, a disponibilização do próprio espaço escolar para que os docentes realizassem as aulas on-line, além de viabilizar o uso das impressoras, dos scanners, entre outros recursos técnicos necessários para a elaboração das atividades impressas que seriam ofertadas às crianças que não tinham condições materiais suficientes para participar das aulas em meios digitais.
A partir dos relatos concedidos pelas professoras participantes, conferimos a possibilidade de identificar tendências regressivas que constituem a relação entre educação e tecnologia como forma de precarização do trabalho docente, bem como a intensificação de fragilidades que compõem a estrutura histórica brasileira na condição de uma sociedade marcada pela desigualdade. Em primeiro lugar, as professoras abordam o empobrecimento da formação docente continuada durante o primeiro ano de pandemia no Brasil - entre os pontos criticados, Camila aponta que, “antes da pandemia, ela [a formação] era de 8 horas, hoje a nossa formação é de 2 horas porque é [por meio do Google] Meet3”. Além da redução da carga horária dedicada à formação docente, Camila critica a dissociação das formações relacionadas à tecnologia com a realidade social em que está inserida - em suas palavras, “[...] eles abriram algumas turmas para ensinar, por exemplo, a trabalhar com Google Classroom4, sabe? Mas, por exemplo, na nossa escola não funcionava porque os pais, o máximo que eles tinham, era celular com internet”.
Diante do empobrecimento da formação docente continuada no período pandêmico, as professoras relatam que o suporte mais significativo durante a transição para o ensino remoto emergencial não partiu dos gestores públicos, tampouco das Secretarias de Educação, mas sim do movimento de apoio entre os próprios professores para subsidiar a prática docente em meios digitais. De acordo com Daniela, “eu escutei que teve, sim, em outras escolas, amigas minhas que tiveram [suporte pedagógico], então eu acredito que teve. Mas, na minha escola, a gente não teve nada. Em nenhum momento, alguém veio... foi tudo a gente entre a gente”. As professoras relatam que, para amparar o processo de transição para o ensino remoto emergencial, a própria classe docente organizava reuniões formativas entre pares para auxiliar os colegas que não possuíam domínio das tecnologias requeridas para viabilizar as atividades em meios digitais, tal como o uso de plataformas para aulas on-line ou aplicativos para a elaboração de atividades pedagógicas assíncronas. Diante da omissão dos gestores públicos e da mobilização docente, Camila menciona que “[...] a gente não tinha essa preparação, a gente foi pensando e foi fazendo com muita proatividade, não tivemos orientação da Secretaria [de Educação]”.
Outro aspecto problematizado pelas professoras foi a dificuldade de acesso aos recursos técnicos necessários para realizar o ensino remoto emergencial, cujas limitações não se restringiam às famílias dos estudantes da rede pública de ensino, mas a própria classe docente também foi afetada pela precariedade dos subsídios oferecidos pelo governo. Ao longo de seu relato, Camila destaca que “[...] nem para os professores a formação remota era obrigatória porque podia acontecer do professor não ter computador em casa, não ter internet”. Dessa forma, apesar do Estado oferecer notebooks para prover aos docentes o aparato mínimo para realizar o teletrabalho, é necessário considerar que as devidas condições materiais para viabilizar a transição para o ensino remoto emergencial não estavam relacionadas somente ao equipamento necessário para exercer a docência em meios digitais, mas envolvem outras especificidades próprias da mediatização da prática docente. A título de exemplo, Letícia explica:
[...] a máquina que eles emprestaram não era boa para fazer uma edição de vídeo, então eu usava o meu computador. A iluminação, depois, eu que usei. O microfone, aquele que tu usas para tirar ruído externo, aquele que faz as gravações, fui eu que comprei. A internet banda larga é a da minha casa. [...] eu acho que o governo pecou nesse sentido porque a gente trabalhou de graça e os professores que tinham internet ruim ou que não tinham um bom computador sofreram muito, eu tive uma colega que passou boa parte, até a escola disponibilizar um computador, fazendo atividade pelo celular.
Entre os aspectos que revelam as tendências regressivas da tecnologia como forma de precarização do trabalho docente, além da classe docente arcar com as despesas relacionadas à internet, à eletricidade e ao próprio aparato técnico necessário para viabilizar minimamente o exercício da docência em meios digitais, sem receber qualquer compensação financeira pelas despesas em função do teletrabalho, as professoras também relatam a sobrecarga de trabalho e a desvalorização da docência no contexto do ensino remoto emergencial - nas palavras de Camila, “nós nunca trabalhamos tanto e nunca tivemos uma fama de não trabalhar nada”. Entre as falas que reiteram a sobrecarga de trabalho, Letícia afirma que, para elaborar um vídeo de contação de histórias de quatro minutos, envolvendo digitalização do livro, narração por meio da gravação de voz e sincronização entre áudio e vídeo, tal atividade demorava cerca de dois dias para ser elaborada - para ela, “[...] uma hora de aula demandava muito tempo, assim, muito mesmo”. No mesmo sentido, Fernanda conta que:
[...] o celular era das oito da manhã às cinco da tarde direto. Tinha dias que a gente não parava para almoçar, a gente não conseguia sair nem para ir ao banheiro, sabe? Então, foi bem difícil nesse sentido. Tu estavas em casa, mas a questão de estar o tempo todo disponível para o celular e para responder os pais foi bem, bem intenso.
A despeito do discurso desmoralizante que determinados segmentos sociais veicularam5, relacionado à invalidação do trabalho docente realizado durante o período de suspensão das atividades presenciais em razão da necessidade de isolamento social imposta pela pandemia de Covid-19, é imperioso reconhecer que a classe docente não deixou de exercer seu compromisso com a Educação Básica ao longo de todo o período de emergência de saúde pública no Brasil. Pelo contrário, é notório o compromisso assumido pelos professores para viabilizar, ainda que a partir de seus próprios recursos e por meio de sua própria mobilização, a árdua tarefa de promover o apoio pedagógico às crianças durante o período de isolamento social - ao contrário da gestão omissa do Ministério da Educação que não apenas se eximiu da responsabilidade de coordenar políticas nacionais e de prover condições dignas para a realização do ensino remoto emergencial, mas também negligenciou as desigualdades estruturais do Brasil ao impor um modelo de educação que prescinde a realidade da população mais vulnerável sob risco de aprofundar as raízes de suas contradições históricas6.
Tal negligência perante os grupos sociais mais vulneráveis é evidenciada nos relatos das professoras participantes, cuja angústia envolveu também a fragilização do direito à educação durante o período pandêmico. Entre os elementos centrais problematizados pelas professoras, cabe destacar a distribuição de chips de celular com acesso à internet, dimensionada pelos gestores públicos como uma estratégia para ‘democratizar’ o acesso à educação a todos os estudantes durante a crise pandêmica - por outro lado, é possível desvelar as contradições de tal plano contingencial na medida em que as professoras discorrem sobre os limites que envolvem tal concepção instrumental como solução homogênea para complexos problemas estruturais. Entre os aspectos que merecem atenção, as professoras relatam que a distribuição dos chips de celular foi realizada tardiamente, cerca de sete meses após o início da transição para o ensino remoto emergencial - de acordo com Camila, “absurdamente, no final de 2020, em novembro, começaram a chegar os chips de celular. Só os chips, sem celular. E o chip não pegava na região da comunidade”. Além do desamparo aos estudantes durante a maior parte do primeiro ano de pandemia no País, as professoras relatam a insuficiência de tal subsídio para democratizar o acesso ao ensino remoto emergencial. Nas palavras de Daniela:
Olha, gente, alfabetizar por uma tela... foi algo, assim, impossível. A questão mesmo de não ter aluno, tinha dias que eu dava aula para cinco alunos, daí aqueles cinco são de famílias que têm condições, são os cinco que têm a mãe que ajuda. Naturalmente, aqueles cinco me davam um retorno incrível - escreviam, faziam perguntas, eles me davam retorno. Então, aqueles cinco que estavam comigo são os cinco que têm alguém que ajuda, então era incrível. Só que quando tu escutas o áudio de um pai dizendo “olha, o meu filho não sabe escrever o nome dele, ele não vai entrar na aula porque, no horário da tua aula, ele não tem um celular livre. Eu estou indo trabalhar e estou levando o meu celular, então ele não tem como entrar em aula”. O governo deu o chip, mas, para usar o chip, você precisa de um aparelho sobrando - eu não tenho aparelho sobrando para botar o chip. Então, as crianças ficavam com o chip na mão, sem saber o que fazer. O pai me dizia “o meu filho não consegue fazer as atividades, eu não consigo ensinar, eu não tenho tempo...”, isso foi uma angústia bem pesada para mim.
Diante do exposto, um dos elementos imprescindíveis para dimensionar a transição para o ensino remoto emergencial na rede pública de ensino consiste nas limitações sociais, econômicas e estruturais que atravessam a substituição das aulas presenciais em meios digitais - e, como destacado pelas professoras, tais limitações não estão relacionadas apenas a questões operacionais, mas referem-se às desigualdades abissais que atravessam a realidade da sociedade brasileira. Dada a forma como o ensino remoto emergencial foi concebido no contexto do ensino público, tais medidas contingenciais tendem a reduzir complexos problemas educacionais a simples questões técnicas, propondo soluções superficiais, imediatistas e utilitárias ao atribuir à tecnologia um caráter miraculoso, como se o desenvolvimento técnico fosse capaz de solucionar problemas oriundos da estrutura histórica do País a partir da ‘ilusão tecnológica’ - ou seja, uma espécie de varinha mágica capaz de revolucionar a pedagogia, reconciliar as contradições da escola e resolver a crise da educação no contexto hodierno (Laval, 2019).
Sob tal perspectiva reificada e essencialmente instrumental, a tecnologia não é compreendida como um direito público e universal, tampouco como um processo social repleto de contradições em sua materialidade histórica - no contexto do ensino remoto emergencial, a tecnologia não passa de um paliativo, como meros instrumentos capazes de solucionar, de maneira igualmente instrumental, os graves prejuízos formativos decorrentes da impossibilidade de realizar aulas presenciais em seu formato regular (Malaggi, 2020). Nesse sentido, muito além de oferecer chips de celular como solução massiva para “democratizar” o acesso à educação em tempos de pandemia, é necessário considerar que as desigualdades sociais não são facilmente resolvidas por meio de estratégias simplistas e precarizadas - afinal, sua contradição reside na perspectiva de que, por trás da tentativa de democratizar a educação por meio da tecnologia, evidencia-se o caráter segregador do ensino remoto emergencial no contexto em que nem todos têm as mesmas condições de acesso, tampouco as mesmas oportunidades educacionais. Para evidenciar tais contradições, apresentaremos a seguir o Quadro 2 que sintetiza as implicações do ensino remoto emergencial na rede pública de ensino, conforme os dois eixos mais destacados pelas professoras participantes: a precarização das condições de trabalho docente e a fragilização do direito à educação.
Quadro 2 As implicações do ensino remoto emergencial na rede pública de ensino
Precarização das condições de trabalho docente | Redução da carga horária dos cursos de formação continuada |
Ausência de compensação financeira pelas despesas do teletrabalho | |
Desamparo em virtude da omissão da gestão pública em coordenar políticas de enfrentamento à pandemia | |
Sobrecarga de trabalho | |
Fragilização do direito à educação | Precariedade dos subsídios oferecidos à comunidade escolar |
Dificuldade de acesso e de permanência por parte dos grupos sociais em situação de vulnerabilidade | |
Iniquidade de condições sociais, materiais e estruturais para participar das atividades pedagógicas ofertadas |
Fonte: Elaborado pelas autoras (2023).
Assim, compreendemos que o ensino remoto emergencial, na forma como foi concebido, tende a legitimar determinadas condições desiguais, produto da estrutura opressiva da sociedade administrada pelo capital, ao assumir tais cisões sociais como algo inerente à realidade educacional - nesse contexto, aos grupos em situação de vulnerabilidade, o acesso à educação não é garantido, somente remediado por meio de subsídios precários e ínfimos do ponto de vista da democratização de direitos constitucionais. Considerando as mazelas sociais decorrentes da estrutura histórica brasileira que culminaram na dificuldade de acesso, de conectividade e de garantia dos direitos das crianças à educação no período pandêmico, compreendemos que a adesão ao ensino remoto emergencial como solução homogênea nesse período de exceção não apenas negligencia a realidade das classes sociais mais vulneráveis, cujas condições de acesso à tecnologia são precárias ou inexistentes, mas, sobretudo, reforça a precarização do trabalho docente e o aprofundamento das disparidades abissais já existentes no sistema educacional brasileiro. Assim, entre os desafios que marcaram a transição para o ensino remoto emergencial, é possível elencar:
[...] tem a dificuldade de acesso das crianças; a dificuldade de acesso da comunidade ali, que a rede não é muito boa; o empobrecimento que acabou acontecendo na pandemia, das famílias não poderem melhorar a internet ou só usavam... eles já tinham dificuldade, antes da pandemia, de acesso ao mundo digital, eles usavam só para WhatsApp, Facebook, essas coisas. E, quando você passa para formatos tipo formulário, acaba dificultando porque no celular fica complicado. No computador... é difícil, às vezes a família tinha computador, mas é um [computador] para a família inteira, né? Aí [a família] tem mais de um filho, a mãe e o pai também trabalham remotamente, essa foi uma das questões. Outra [questão] que também foi muito séria e não pode deixar de ser citada foi a resistência por parte dos professores. Nós temos um grupo, principalmente dos anos iniciais, muito deficitário tecnologicamente. Infelizmente, nós temos alguns profissionais que não sabem e não querem saber, o discurso chegava a dizer “quero ver quem vai me obrigar”. Então, é um discurso de resistência mesmo, sabe? Porque é o medo do novo, isso foi muito marcante (Letícia).
Entre os pontos que evidenciam as contradições que constituem o ensino remoto emergencial, destacamos a questão da resistência dos professores à mediatização das relações pedagógicas - interpretado, por Letícia, como um ‘déficit tecnológico’, fundamentado pelo ‘medo do novo’. Por outro lado, além da crítica ao distanciamento da prática social dos professores com relação ao uso da tecnologia que, por sua vez, poderia ser interpretado como ausência de apropriação autônoma dos recursos técnicos, há de se questionar: dada a falta de condições materiais para garantir a realização do ensino remoto emergencial, tal como foi relatado pelas professoras ao longo de suas falas, a resistência à adesão ao ensino remoto emergencial não seria uma forma de oposição aos mecanismos de reprodução material da sociedade, cujas desigualdades sociais, oriundas de um sistema de vida essencialmente injusto, são escancaradas e aprofundadas pela pandemia de Covid-19?
Conforme denunciado por Adorno e Horkheimer (1985), ao mesmo tempo que a inovação e o avanço técnico consolidam-se como ápice do progresso e do desenvolvimento das forças produtivas, o pensamento instrumental dissocia a relação entre meios e fins como uma redundante adoração fetichista da própria tecnologia, destituída da dimensão histórica, política e social que lhe é constitutiva. Nessa perspectiva, os autores frankfurtianos refutam a ingênua concepção de que o progresso técnico estaria iminentemente relacionado ao progresso social, apesar de reconhecer sua potencialidade para a ação transformadora sobre a realidade. Na forma de organização social administrada pelo capital, “a força libertadora da tecnologia - a instrumentalização das coisas - se torna o grilhão da libertação: a instrumentalização do homem” (Marcuse, 1973, p. 155). Em outras palavras, o progresso técnico assume um caráter regressivo na medida em que o avanço técnico não é orientado para a emancipação humana, tampouco para a realização da justiça social, mas sim para a manutenção da ordem capitalista e expansão do aparato produtivo por meio da reificação dos sujeitos. A partir desse sistema de dominação:
Independência, autonomia e direito à oposição política estão perdendo sua função crítica básica numa sociedade que parece cada vez mais capaz de atender às necessidades dos indivíduos através da forma pela qual é organizada. Tal sociedade pode, justificadamente, exigir a aceitação dos seus princípios e instituições e reduzir a oposição à discussão e promoção de diretrizes alternativas dentro do status quo. A esse respeito, parece fazer pouca diferença o ser a crescente satisfação das necessidades conseguida por um sistema totalitário ou não totalitário. Nas condições de um padrão de vida crescente, o não conformismo com o próprio sistema parece socialmente inútil, principalmente quando acarreta desvantagens econômicas e políticas tangíveis e ameaça o funcionamento suave do todo (Marcuse, 1973, p. 23-24 - grifos do autor).
Como destacado por Marcuse (1973), a resistência perante a forma de vida estabelecida na sociedade capitalista pode soar controversa diante da promessa de que, apesar dos processos irracionais e regressivos que constituem tal sistema social injusto, o avanço técnico ainda seria capaz de recompensar a sociedade por meio do progresso da civilização - o que também se aplica ao contexto educacional, dada a expectativa de que a tecnologia seria capaz de modernizar as relações pedagógicas e até mesmo de reconciliar as contradições sociais sob a premissa de democratizar a educação. No entanto, é justamente no caráter ideológico da racionalidade tecnológica que reside a reificação da consciência ingênua, incapaz de apreender as relações conflituosas entre a totalidade do fenômeno social-tecnológico e a utilização massiva de artefatos técnicos como parcialidade deste (Malaggi, 2020). Nesse modo de organização social, a pretensa harmonia entre os interesses individuais e os interesses universais assume o caráter de um engodo ao evidenciar as contradições de um sistema de produção que cria desigualdade e injustiça ao mesmo tempo que também cria condições para superá-las.
Portanto, ao refletir sobre os termos da racionalidade tecnológica que constitui a materialidade histórica da tecnologia, conferimos a possibilidade de desvelar as contradições que compõem a transição para o ensino remoto emergencial ao transformar a educação em um mecanismo segregativo, mesmo que ainda público. Sob a perspectiva de Laval (2019), a privatização dos interesses políticos que regem a educação, fundamentados sob os princípios do capital, tende a neutralizar a politização coletiva de necessidades humanas e direitos legítimos, culminando na sensação de impotência da classe docente, da debilidade de todo ideal coletivo e da ideologia do projeto político que dissocia a relação entre a democratização da educação e a equalização das condições de ensino - dessa forma, o estado se exime da responsabilidade de garantir direitos fundamentais sob a premissa de que “cada um que se vire sozinho, de preferência com ‘soluções locais’” (Laval, 2019, p. 168). No contexto pandêmico, evidencia-se que o ensino remoto emergencial não se caracteriza como uma estratégia de amparo aos sujeitos em um contexto de profundas adversidades, mas como um mecanismo que reproduz as tendências regressivas e irracionais que formam o capitalismo administrado, bem como perpetua os valores a ela pertencentes.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao analisar as implicações que o ensino remoto emergencial traz ao processo formativo de crianças da rede pública de ensino, tendo em vista a relação dialética entre educação e tecnologia no contexto histórico vigente, destacamos a forma como a mediatização das relações pedagógicas se relaciona com a estrutura histórica da injustiça social que caracteriza o capitalismo tardio como sistema de vida hegemônico. Aqui, a relação entre educação e tecnologia não assume um caráter de resistência perante as relações materiais vigentes, a despeito dos documentos normativos (Brasil, 2020a) que preconizam o ensino remoto emergencial sob uma pretensa tentativa de ‘democratizar’ o acesso à educação em tempos de pandemia. Pelo contrário, a experiência das professoras participantes revela que, na realidade, tal estratégia contingencial tende a servir não apenas como um mecanismo de manutenção da ordem social prevalecente, cujas oportunidades educacionais ofertadas no período pandêmico legitimam e perpetuam as condições objetivas desiguais, mas tendem a intensificar o estado de barbárie generalizada que permanece aprofundando os abismos sociais que sustentam a sociedade de classes como um dos pilares do sistema de dominação estabelecido no capitalismo tardio.
Dadas as consequências de um sistema de produção de existência que se fundamenta sobre princípios contrários aos da realização humana, é necessário considerar que as tendências regressivas associadas aos impactos provocados pela pandemia de Covid-19 não representam uma ruptura na ordem social estabelecida, tampouco se caracterizam como uma crise irremediável - na realidade, as profundas adversidades enfrentadas ao longo do primeiro ano de pandemia no País escancaram as mazelas sociais preexistentes na realidade educacional brasileira que, ao legitimar as condições desfavoráveis de acesso ao ensino remoto emergencial como a única possibilidade para dar continuidade aos processos educacionais durante o período de suspensão das atividades presenciais, a mediatização dos processos educacionais tende a exacerbar vulnerabilidades sociais que não se restringem ao contexto pandêmico, mas que constituem a materialidade histórica de uma sociedade que produz e reproduz tais condições objetivas que geram a barbárie.
Portanto, atribuir um caráter reificado à tecnologia, como um fim em si mesma, não apenas negligencia a realidade social dos grupos em situação de vulnerabilidade social, mas também reforça e legitima as desigualdades preexistentes ao assumir tal barbárie como algo inexorável, e não como reflexo de um sistema irracional do ponto de vista da humanidade. Diante da realidade social da rede pública de ensino, cuja materialidade histórica é atravessada por desigualdades abissais e imensos problemas de ordem estrutural, é urgente que os poderes públicos elaborem políticas sociais comprometidas em reduzir as disparidades existentes no sistema educacional brasileiro - o que não se trata de dimensionar medidas paliativas, com soluções simplistas e imediatistas a fim de ‘se adaptar à realidade local’, mas de postular o exercício da autorreflexão crítica sobre a sociedade moderna como condição imperiosa para estabelecer uma compreensão crítica sobre as contradições existentes no sistema capitalista e, desse modo, dimensionar formas de superar seu ímpeto destrutivo e instaurar uma ordem justa para todos.
É nesse sentido que as análises empreendidas até aqui buscam contribuir com o campo dos estudos educacionais: mais do que dimensionar soluções inovadoras e criativas por meio da tecnologia, tal como as diretrizes nacionais sugerem para implementar a mediatização das relações pedagógicas no âmbito do ensino remoto emergencial, é necessário assumir uma perspectiva crítica acerca do sistema de princípios, de interesses e de valores que permeiam ambos, educação e tecnologia, como processos sociais inseridos em determinada estrutura histórica que, por sua vez, condiciona sua intencionalidade sociopolítica - seja como forma de fortalecer a resistência deliberada ou de fortalecer a adaptação conformista. Desse modo, investigar as tendências regressivas que constituem a forma de organização social hegemônica requer um contínuo e inesgotável esforço reflexivo para desvelar as contradições inerentes ao capitalismo tardio, sendo essa uma condição fundante para dimensionar alternativas qualitativamente melhores de organizar a vida e transcender as condições estabelecidas nesse sistema de produção social.