Introdução
O boom de escolas públicas estaduais ocupadas por estudantes secundaristas teve início no Brasil no estado de São Paulo, em novembro de 2015, como tática de oposição à reorganização escolar proposta pelo governo Alckmin, atingindo mais de 200 escolas ocupadas em poucos meses (CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016). Logo após, assistimos a uma proliferação de novas ocupações de escolas no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Ceará, Paraná, Rio Grande do Sul, entre outros estados, repercutindo em um movimento efervescente de ocupações secundaristas no país todo.
No cenário gaúcho, as ocupações ganham força por volta de maio de 2016 e se espalham rapidamente pelo estado, chegando a previsões de mais de 150 escolas ocupadas no mesmo mês (SEGUNDO; SEVERO, 2019). No município de Rio Grande, 11 escolas estaduais foram ocupadas e grande parte delas esteve articulada intimamente à deflagração de greve dos professores da rede estadual, decidida em Assembleia pelo Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul - Sindicato dos Trabalhadores em Educação (CPERS/Sindicato) a partir de 16 de maio de 20161.
Em meio a tal processo de contágio, não foi raro notarmos um interesse crescente por parte da imprensa, mídias alternativas, jornais e especialistas do campo da educação e ciências humanas, especialmente, em noticiar, divulgar, comentar e produzir conhecimento sobre o campo educacional, a ação política e seus sujeitos a partir dessa experiência datada e intempestiva de ocupação. Como efeito de uma vontade de saber2 sobre o inédito movimento secundarista no Brasil3, notamos, nos meses e nos anos seguintes, a constituição de uma seara documental dispersa, portando certas dizibilidades recorrentes e um tanto consensuais sobre aqueles dias de mobilização.
Na esteira de Michel Foucault (2014a), nomeamos tal proliferação de saberes como uma explosão discursiva produzida junto e após o movimento secundarista no país, a qual atuou menos representando e interpretando seus motivos e métodos, sujeitos e pautas, e mais constituindo aquela mobilização como objeto conhecível e verdadeiro, instituindo efeitos de subjetivação4 potentes nos estudantes ocupantes e nos seus modos de vida. Assim, mesmo imersos em um desejo entusiasta de compor a luta pela educação junto aos estudantes, mesmo em uma atitude de caráter benevolente à causa e em um desejo de resistência coletiva, sua produção de verdadeiro não cessou de conduzir figuras instituídas e identitárias ao movimento, uma vez que “[...] conhecer é vontade de saber e vontade de saber é vontade de poder” (CORAZZA; SILVA, 2003, p. 48).
Onde há poder, onde é preciso que haja poder, onde se quer mostrar efetivamente que é lá que reside o poder, é preciso haver o verdadeiro. E onde não houvesse verdadeiro, onde não houvesse manifestação de verdadeiro, é que o poder não estaria ali, ou seria fraco demais, ou seria incapaz de ser poder. A força do poder não é independente de algo como a manifestação do verdadeiro, e muito além do que é necessariamente útil ou necessário para governar. (FOUCAULT, 2014b, p. 10).
No exame dessa seara documental e de seus ditos, encontramo-nos com a emergência de três figuras de sentido que mais recorreram em uma dispersão e heterogeneidade mapeadas. Intitulamo-las de slogans de verdade, uma vez que puderam funcionar como espécie de dizibilidade convincente, curta, de grande efeito, acionados de modo quase publicitário ao falar e ao ouvir sobre o movimento secundarista no Brasil. Para esta escrita, dedicamo-nos a demonstrar as operações analíticas e principais achados em torno de um desses slogans, nomeado como uma juventude revolucionária que vai à luta. Assim, na análise de tais ditos, em grande parte dos registros, a menção aos estudantes das ocupações se faz por meio de uma relação direta entre ser estudante e ser jovem, e, aliás, não um jovem qualquer, mas um jovem da mudança, protagonista de seu futuro e que vai à luta - subjetividade privilegiada e universal desse sujeito jovem-estudante das ocupações.
Estudo recente (DORNE, 2018) voltado à análise de enunciações do campo jurídico atuando na produção de sentidos sobre os secundaristas das ocupações pôde evidenciar a constituição de um efeito de normalização sobre as adolescências supostamente sem autonomia, embora protagonistas do emblemático movimento de ocupação de escolas. Com vistas a rachar as investidas de normalização que determinados discursos, sejam eles jurídicos, psicológicos, sociológicos, puderam exercer a seus modos na constituição de um rosto subjetivo a esse jovem (e, nesse caso, adolescente) das ocupações, tomamos a polimorfia de uma explosão de ditos variados. O que nos interessou é entender uma série de ditos como tramados em uma rede discursiva muito mais ampla que um autor ou um campo disciplinar. Uma rede que atualiza “[...] modos de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade” (FOUCAULT, 2001, p. 274)
Nessa esteira, o estudo o qual essa escrita se origina se voltou, também, a um corpus empírico mais narrativo, por meio de entrevistas com estudantes que ocuparam suas escolas em Rio Grande. Tal manobra investigativa deu vida a algumas brechas e fissuras para os slogans mapeados, e, aqui, evidenciamos, também, que, para além dos efeitos massivos de subjetivação produzidos por intermédio do dizer verdadeiro de uma seara documental, a conversação com os estudantes demonstrou a criação de subjetividades singularizadas, em que ser parte de uma juventude que vai à luta passou, necessariamente, e neste caso local, pela incorporação de devires5 adultocêntricos.
Logo, esta escrita constitui um recorte de um estudo de Doutorado que se volta à análise dos efeitos de subjetivação estudantis após as experiências com as ocupações escolares no Brasil e na cidade de Rio Grande/RS, especificamente, demonstrando indícios da produção de subjetividades jovens em meio ao movimento, através dos efeitos de verdade de uma série documental e das relações consigo mesmo extraídas de Rodas de Conversas com estudantes ocupantes.
Para isso, utilizamos a problematização foucaultiana como ferramenta teórico-metodológica com vistas a potencializar o caráter inventado e contingente das nossas verdades sobre os sujeitos. Tal empreendimento tem por efeito tornar um tanto mais problemáticas as investidas de tomar o sujeito jovem como um a priori dos movimentos de resistência e de rebeldia e como subjetividade privilegiada da ação, uma vez que, nessa perspectiva, são as experiências, sejam elas discursivas, institucionais, de ação política, de sexualidade, entre outras, que vão conduzir práticas de assujeitamento e de resistência às subjetivações dominantes.
Diante disso, deixamos de lado qualquer pretensão de definição conceitual pré-determinada sobre os jovens e suas juventudes. Sintonizamo-nos, pelo contrário, com perspectivas ascendentes, indo ao encontro menos das suas continuidades antropológicas - de uma suposta adequação e linearidade entre conceito e realidade jovem - e mais de seus paradoxos e ambivalências, próprios dos seus fronteiriços e móveis modos de vida6.
Subjetivação, problematização foucaultiana e corpus de análise
A subjetivação é aqui entendida como “[...] o processo pelo qual se obtém a constituição de um sujeito” (FOUCAULT, 2010d, p. 262). Sintonizada teórica e politicamente7 com Foucault, esta análise afasta-se de qualquer pretensão de universalização do sujeito a partir de uma essência conhecida ou interioridade psicológica dada a priori. Não há um sujeito soberano, fundador, que poderíamos encontrar em todos os lugares. “O sujeito se constitui através de práticas de sujeição, ou de liberação, a partir de um certo número de regras, estilos, convenções que podemos encontrar no meio cultural” (FOUCAULT, 2010e, p. 291).
Nessa esteira, os sujeitos são assujeitados8 por práticas de saber e de poder em meio a processos de objetivação, que visam constituir os seus contornos, observá-los, escutá-los, fazê-los falar, pesquisá-los, tomando-os como objetos conhecíveis e dizíveis. Ao mesmo tempo que o sujeito é conduzido por um saber que o objetiva e o identifica, este se relaciona consigo mesmo incorporando ou, ainda, dobrando-se9, aos contornos subjetivos delimitados por tal processo. Essa dobra é a própria subjetividade, que dá luz ao duplo aspecto da noção de sujeito em Foucault: como sujeito e objeto da ação, “[...] o que significa que os processos de subjetivação são também processos de objetivação. O sujeito não pode ser pensado, tematizado, abordado, senão como resultante deste feixe de processos, às vezes, contraditórios entre si” (GALLO, 2017, p. 79).
É o exercício da problematização que nos permite dar luz e visibilidade às formas como estamos sendo conduzidos, e, por meio disso, pensarmos em possibilidades de escape e de fuga aos sutis e estratégicos controles subjetivadores contemporâneos.
Talvez, o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos. Temos que imaginar e construir o que poderíamos ser para nos livrarmos deste duplo constrangimento político, que é a simultânea individualização (da subjetividade) e totalização própria às estruturas do poder moderno. (FOUCAULT, 1995, p. 239).
Assim, problematizando uma série de ditos10 que atravessam nossas falas e vidas é que criamos condições para recusar aquilo que somos, e desarmar os constrangimentos (e perversidades) das subjetivações contemporâneas que exercem forças identitárias e paralisantes aos corpos estudantis em movimento nas ocupações. Trata-se da problematização como ética do pensamento filosófico de Foucault, de seu ethos, que pôde repercutir, em diferentes momentos de sua vida, nos objetos loucura, prisão, sexualidade, cristianismo, etc.
É preciso pensar problematicamente, mais que perguntar e responder dialeticamente. A problematização é, portanto, a prática da filosofia que corresponde a uma ontologia da diferença, ou seja, ao reconhecimento da descontinuidade como fundamento do ser [...]. Qual é a resposta à pergunta? O problema. Como resolver o problema? Deslocando a pergunta. (FOUCAULT, 2005, p. 246).
Assim, a problematização, isto é, a maneira deslocada de construir nossas perguntas, é possibilitada por determinada forma de pensar as coisas deste mundo, suas verdades absolutas, suas morais inquestionáveis e a suposta naturalidade de suas formas e sujeitos. É a partir desse exercício filosófico ou, ainda, de determinado modo de conceber a filosofia na esteira da diferença, que se delineiam os objetos de pesquisa, fontes, arquivos e caminhos investigativos em termos foucaultianos.
Problematização não quer dizer representação de um objeto preexistente, nem tampouco a criação pelo discurso de um objeto que não existe. É o conjunto das práticas discursivas ou não discursivas que faz alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro e do falso e o constitui como objeto para o pensamento (seja sob a forma da reflexão moral, do conhecimento científico, da análise política, etc.). (FOUCAULT, 2010f, p. 242).
Problematizar é, então, suspender as respostas fáceis, as auto afirmativas explicativas, as nossas verdades instituídas, aquilo que nomeamos e conhecemos de forma inquestionável no presente, nosso modo de pensar e de agir, em nossas práticas, em nossas vidas. O que está em jogo é um exercício de inversão das nossas perguntas demasiadamente modernas e iluministas, sedentas por respostas esclarecedoras e universalizantes, para dar passagem à suspensão daquilo que tomamos como problema e solução. “Trata-se de um movimento de análise crítica pelo qual se procura ver como puderam ser construídas as diferentes soluções para um problema: mas também como essas diferentes soluções decorrem de uma forma específica de problematização” (FOUCAULT, 2010a, p. 233).
O exercício filosófico para Foucault é justamente a utilização da liberdade do pensamento para questionar a si mesmo, tomando distância daquilo que se faz e constituindo nosso modo de pensar como objeto e pensá-lo como problema. Nessa esteira, abandonamos o a priori juventude-dissidente para deslocar-nos de sua aparente evidência na direção de perguntar-nos como é possível que digamos certas coisas sobre e a partir desse movimento secundarista hoje? O que há de, ao mesmo tempo, “não visível e não oculto” (FOUCAULT, 2008) nesses ditos e que é preciso visibilizar? E ainda mais: Como foi possível tornarmo-nos o que somos, como estudantes, através da experiência com as ocupações? Como as ocupações produziram determinados sujeitos estudantes na medida em que esses se dobraram a essa experiência e, talvez, aos próprios slogans mapeados?
Nessa perspectiva, o exame das relações consigo, isto é, da problematização dos modos como os corpos escolares ocupantes relacionaram-se com eles mesmos, produzindo uma outra subjetividade estudantil possível, passa, necessariamente, pelo esboço das condições de possibilidades de um determinado tempo ou, ainda, do nosso a priori histórico (VEYNE, 2011). Não há autonomia, independência e originalidade inerentes a uma suposta naturalidade interna do indivíduo. Somos assujeitados a um determinado aquário de paredes invisíveis ou, ainda, presos a “[...] alguém pelo controle e dependência, e preso a sua própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento” (FOUCAULT, 1995, p. 235).
Assim, somos produzidos por meio das dizibilidades e das visibilidades do nosso tempo, isto é, daquilo que é possível ser enunciado e visto, sobretudo por nós mesmos e acerca de nós mesmos, instituído através das malhas de determinados poderes em jogo. Até mesmo as contracondutas mais estratégicas não deixam de limitar-se às condições de possibilidade de uma dada época. Somos sujeitos produzidos na e a partir da história, a resistência ao aquário se dá, talvez, menos de modo a conseguir pular para fora da bola de vidro e mais borrando suas paredes transparentes e invisíveis tornando-as perceptíveis.
Problematizando o presente que Foucault nos convida a fazer um uso instrumental da história, buscando, na diferença última, de inspiração nietzschiana, as emergências, proveniências e os acontecimentos “[...] lá onde menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo história” (FOUCAULT, 1979). Assim, é olhando para o passado, que é possível diagnosticarmos o caráter inventado das verdades robustas e inabaláveis do nosso presente, em um tempo que sequer elas existiram.
O mundo tal qual nós o conhecemos não é essa figura simples onde todos os acontecimentos se apagaram para que se mostrem, pouco a pouco, as características essenciais, o sentido final, o valor primeiro e último; é ao contrário uma miríade de acontecimentos entrelaçados; ele nos parece hoje “maravilhosamente colorido e confuso, profundo, repleto de sentido”; é que uma “multidão de erros e fantasmas” lhe deu movimentos e ainda o povoa em segredo. (FOUCAULT, 1979, p. 28-29).
Essa história efetiva (FOUCAULT, 1979, p. 27) da constituição do sujeito pelo saber, pelo poder e pela relação consigo produz-se no caminho das descontinuidades, dos modestos começos, dos abalos, das lutas e dos confrontos, dos hábitos e dos modos de ser e de fazer e do “corpo como superfície de inscrição da subjetividade” (FOUCAULT, 1979, p. 22). É regredindo lá onde fazíamos diferente do que fazemos hoje que lançamos visibilidade àquilo que nos condiciona, controla e subjetiva - as nossas paredes de vidro.
Assim, ao recorrermos aos grilhões da história em um exercício de problematização das nossas práticas, não se trata de ir atrás de um modelo ou referência, muito menos de um começo originário, mas da emergência de algo que, em determinado momento histórico e sob determinados arranjos culturais, políticos, econômicos, morais, etc., pôde instituir-se como solução vencedora em uma arena nada homogênea e simétrica de poderes em jogo, neste caso, sobre em quais condições de possibilidade assistimos à emergência de um dizer verdadeiro sobre ser jovem, estudante e revolucionário como estampas de sentido articuladas.
O corpus de análise deste artigo refere-se, então, a uma série de ditos sobre juventude extraídos de uma explosão discursiva mapeada na pesquisa maior, e de falas de cinco estudantes que ocuparam suas escolas na cidade de Rio Grande/RS, sendo eles três meninas e dois meninos, no período de julho a setembro de 2017. Como forma de dar visibilidade à variedade documental da primeira série, de ordem científica, midiática, bibliográfica, musical, apresentamos uma montagem de prints desses materiais, os quais puderam ser selecionados através da potência com que fizeram ecoar ditos sobre o slogan identificado: uma juventude-estudante revolucionária que vai à luta (Figura 1).
Para esta análise, utilizamos excertos de alguns desses registros, entendendo-os como ditos implicados na produção de determinadas verdades legitimadas sobre o movimento secundarista, uma vez que “[...] sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, 2013, p. 9)11. Vale destacarmos também que grande parte desses registros pôde circular junto às ocupações por meio da postagem e da divulgação deles pelos próprios secundaristas nas páginas virtuais das escolas ocupadas. Alguns, inclusive, como a música “Escola de Luta”, do Mc Foice e Mc Martelo (Figura 1) é de autoria de estudantes que ocuparam escolas em São Paulo.
Já no que tange à montagem da segunda série, cabe dizer que as rodas de conversa foram realizadas em duas escolas que foram ocupadas na cidade de Rio Grande, com a presença de duas meninas na primeira, e uma menina e dois meninos na segunda. A primeira roda foi realizada no dia 14 de setembro de 2017, às 10h30 da manhã, na sala do grêmio estudantil, com duração de 1h24m. Já a segunda roda foi realizada no dia 5 de outubro de 2017, em uma sala de aula vazia, às 14h, com duração de 1h18m. Nas duas ocasiões, as escolas estavam em greve e os alunos foram até a instituição somente para participação na pesquisa. As escolas escolhidas foram as duas que mantiveram por mais tempo a ocupação, dentro do período de maio e junho de 2016, e os estudantes tiveram participação voluntária mediante Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O convite foi feito na página do Facebook das escolas ocupadas12.
Essa segunda série empírica produziu-se em um movimento de provocar fissuras aos ditos instituídos e um tanto publicitários sobre uma juventude estudante revolucionária que vai à luta, encontrados na outra série. Dar a palavra ao estudante, aqui, não se ancorou em uma convicção democratizante que vê na fala do sujeito da experiência o lugar de acesso ao saber verdadeiro. As falas dos estudantes estão sujeitas às mesmas regras e mecanismos de produção do verdadeiro que a série documental. No entanto, buscamos outros ditos, sobretudo, como possibilidade de abertura a outras dizibilidades possíveis sobre o movimento, as quais, mesmo sob determinado ritual de produção discursiva, puderam disparar vozes de subjetivações em disputa por meio de sentidos híbridos sobre suas próprias juventudes. Olhar para os ditos, então, é diagnosticar como a linguagem pode produzir, através de certos saberes e medidas, uma subjetividade ainda vencedora e inquestionável da ação política (uma juventude estudante revolucionária que vai à luta), e, sobretudo, como o fazer falar sobre as experiências com as ocupações não cessou de produzir fissuras, metamorfoses e ambivalências ao que, historicamente, se convencionou e vem se convencionando chamar de juventudes.
Nas seções seguintes, apresentamos, em primeiro lugar, as análises de como um determinado slogan sobre as juventudes das ocupações pôde ascender como saber verdadeiro por uma série de registros de ordem midiática, científica, jornalística, etc. E, em segundo lugar, analisamos excertos de falas produzidas nas rodas de conversas em que identificamos, de um lado, efeitos de assujeitamento diante de uma relação intrínseca entre ser jovem e protagonista da luta, e, de outro, notamos indícios de sentidos híbridos, ambivalentes, em suas juventudes, metamorfoseados por determinada subjetividade adulta evidenciada. Assim, as experiências com as ocupações puderam constituir, ao mesmo tempo, uma juventude estudante lutadora como o sujeito privilegiado da mudança, e, paralelamente, uma juventude adultizada, combinando elementos atribuídos, por eles mesmos, aos modos de vida adultos.
Nos rastros da explosão discursiva: problematizando uma juventude estudante revolucionária e que vai à luta
Aqui, apresentamos as análises do slogan Uma juventude revolucionária que vai à luta, extraídas de uma série explosiva de ditos sobre o movimento secundarista no Brasil, em especial no Rio Grande/RS mapeada na pesquisa maior. Junto à apresentação dos seus excertos, anunciamos sua proveniência, data, título, e demais informações. Utilizaremos, assim, diferentes fontes para destacar as diferentes proveniências dos ditos. Em Brush Script são falas ditas pelos próprios estudantes e transcritas nesses materiais, já em Courier New são ditos sobre os estudantes e o movimento secundarista por especialistas, comentadores e pesquisadores do movimento.
“As escolas não vão fechar, as escolas são nossas, alunos de todas as quebradas, tamo junto.”
(Documentário: Fala de estudante de escola paulista ocupada em novembro de 2015, filme “Acabou a Paz, isto aqui vai virar o Chile: escolas ocupadas em São Paulo”, de Carlos Pronzato, 2016).
“O Estado veio quente, Nóis já ta fervendo, Quer desafiar, Não to entendendo, Mexeu com o estudante, Vocês vão sair perdendo.”
(MÚSICA. Trecho de música autoral de estudantes que ocuparam escolas em São Paulo, Mc Foice e Mc Martelo, 2015).
“As mobilizações que analisamos surgem do protagonismo dos jovens, e têm sua fonte no impulso de transcendência”
(ARTIGO. Excerto de artigo intitulado “#Ocupatudors: socialização política entre jovens estudantes nas ocupações de escolas no Rio Grande do Sul”, de Severo e Segundo, 2017).
“Os estudantes são fortes, Não temem o carro da morte, E o grito dos comandantes, Sabem que são viajantes, E vão inventando o destino, Que é como eles, menino Que muda todo instante”
(MÚSICA. Excerto da música “Mel da Mocidade”, de Chico César, sobre os estudantes que ocuparam escolas no Brasil).
Tais enunciações, apesar de sua variedade e dispersão, apresentaram-se amarradas por uma linha de conexão potente. Como foi possível que, em diferentes momentos e modos de anunciar, os secundaristas tenham sido tomados como jovens, revolucionários, lutadores e protagonistas de seu futuro? Como estudantes de 15, 16 anos, ao ocuparem suas escolas pedindo por “mais educação, mais conhecimento, menos corrupção”, pudessem ser tomados como uma juventude revolucionária, diríamos, até, nos arriscando, de caráter benevolente, tocando uma revolução do tipo “do bem”?
Na esteira de Foucault, buscamos, nos grilhões da história, traços da emergência de uma manifestação da juventude como aquela que luta pelo bem comum, especialmente pela educação. Encontramo-nos, então, com uma série de proveniências históricas, contidas em determinados registros discursivos e arranjos político-culturais, nos levando a pistas de um movimento maior de mutação da subjetividade estudantil contemporânea, fabricada como lutadora e revolucionária, mais fortemente, a partir da segunda metade do século passado e pós anos 2000.
Destacamos a obra de Arthur Poerner (2004), intitulada O poder jovem, publicada em sua primeira edição em julho de 1968, na Faculdade de Ciências Econômicas e Políticas do Rio de Janeiro (atual Universidade Cândido Mendes), em meio a recente instalação do golpe Militar no Brasil e das agitações estudantis que se prolongaram naquele ano por aqui. Após a edição do Ato Institucional nº 5, em 1969, o livro foi um dos primeiros a serem proibidos no país, pela recorrente incitação à mobilização política das juventudes-estudantes contra a Ditadura Militar, e só pôde ser publicado em edição clandestina, no ano de 1977, por estudantes da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e, após, em 1979, dez anos depois de sua proibição, em uma terceira edição.
Sua quarta edição foi publicada pelo Centro de Memória da Juventude, em São Paulo, em 1995; e sua quinta edição, disponível gratuitamente online, encontra-se na seção de links do sítio virtual da União Nacional dos Estudantes (UNE), bem como da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). O livro propõe-se a constituir uma história da participação política dos estudantes desde o Brasil Colônia até o governo Lula, e, embora sua narrativa se paute em uma perspectiva histórica um tanto linear e evolucionista, cabe destacar essa obra como um potente instaurador de discursividade sobre uma subjetividade juvenil-estudantil participativa e engajada ao longo de seus mais de 50 anos. A seguir, seguem excertos de diferentes colaboradores do livro em diferentes momentos de suas reedições e publicações.
Os estudantes não se conformam em ver a vida passar na janela da sala de aula sem nela interferir. É inerente à juventude a rebeldia, a necessidade de contestar, de gritar seu inconformismo com as injustiças. O movimento estudantil é fiel depositário dessa vocação libertária juvenil. (Lindbergh Farias, junho de 1995). (POERNER, 2004, p. 16).
A mocidade é, assim, sinônimo de generosidade. Quase invariavelmente, ela esposa as boas causas; somente por equívoco poderá desviar-se, temporariamente dos rumos certos, democráticos, patrióticos, cristãos, nacionalistas. (General Pery Constant Beviláqua, junho de 1968). (POERNER, 2004, p. 23).
Em prefácio escrito por Antônio Houaiss, em 1968, intitulado Repto aos estudantes e anti-estudantes, nota-se clara ligação direta entre as condições juvenil, estudantil e revolucionária. Essa produção de sentido dá-se de forma tão potente, que o autor nomeia de “antiestudantes” não aqueles em que não estão em processo de escolarização, ou definitivamente não se consideram estudantes, mas, sim, sujeitos “velhos”, de determinada faixa etária avançada, não revolucionários, não jovens, e, portanto, não estudantes.
Este livro é um repto também aos antiestudantes. Não é enigma nenhum o que seja o antiestudante: são os “velhos”, essas gerações que representam no Brasil a minoria fragorosa da nação, em afunilamento progressivo que principia nos que entram na casa dos trinta anos de idade e principiam a achar sagradas suas “conquistas” pessoais, e se estreitam mais e mais, de tal modo que aí pelos sessenta passam a ser uma porcentagem mínima do todo social a deter os comandos do processo social todo inteiro, já direta, já indiretamente, pelos “velhos” de trinta ou mais anos. (HOUAISS, 2004, p. 33).
Embora a obra de Arthur Poerner se valha de esforços significativos para instituir uma história de continuidades, sobretudo, dos modos como uma juventude estudante que vai à luta pode desbravar, desde o Brasil Colônia, práticas de rebeldia e contestação sociais, nosso interesse aqui é tomá-la em sua vontade de verdade sobre as subjetividades juvenil-estudantis nos confins do século passado, e que pôde constituir-se como verdade vencedora junto ao movimento estudantil contemporâneo organizado.
Em contrapartida, algumas pesquisas (NETO, 2015; SOUZA, 2009) já puderam mapear, historicamente, algumas descontinuidades de discursos sobre os jovens demonstrando um descolamento entre as condições juvenil e estudantil. Os anos de 1980 inauguraram discursos que desqualificavam as juventudes contestatórias, como modelos “caricatos e contraditórios”, ligados politicamente a um partido que lutou pelos trabalhadores e pela população menos favorecida, “[...] ao mesmo tempo que fazem parte de uma classe de famílias abastadas - os próprios opressores dos pobres” (GOULART; SANTOS, 2012, p. 314). Por meio de análises de publicações da revista Veja da época, os autores mencionam imagens de jovens vestindo boinas com o símbolo da estrela vermelha, em alusão à Che Guevara, com barbas compridas e desapego com a vaidade. Essas imagens eram veiculadas de forma a ridicularizar tais sujeitos posicionando-os como “rebeldes sem causa” e “filhos-de-papai”.
Outra condição de possibilidade potente à ascensão de uma juventude revolucionária que vai à luta se refere ao aparecimento de um dispositivo de juventude, em que esta passa a ser “[...] normalizada enquanto grupo populacional (pela biopolítica) e como sujeito, que deve ser ativo nos processos decisórios” (NETO, 2015, p. 67). A atualização de uma subjetividade jovem fortemente marcada pela condição estudantil dá-se em meados dos anos 2000, junto a uma série de políticas públicas, leis, conselhos, fóruns e tratados, que vão modelando sujeitos de determinada faixa etária (dos 15 aos 29 anos), como sujeitos de direitos e de princípios, tendo como marca não tanto o desvio, mas, sobretudo, o protagonismo e a participação (TAVARES, 2012). São direitos dos jovens, segundo o Estatuto da Juventude - Lei Nº 12.852, de 5 de agosto de 2013 (BRASIL, 2013):
I - promoção da autonomia e emancipação dos jovens;
II - valorização e promoção da participação social e política, de forma direta e por meio de suas representações;
III - promoção da criatividade e da participação no desenvolvimento do País;
IV - reconhecimento do jovem como sujeito de direitos universais, geracionais e singulares;
V - promoção do bem-estar, da experimentação e do desenvolvimento integral do jovem;
VI - respeito à identidade e à diversidade individual e coletiva da juventude;
VII - promoção da vida segura, da cultura da paz, da solidariedade e da não discriminação; e
VIII - valorização do diálogo e convívio do jovem com as demais gerações. (BRASIL, 2013, p. 1).
Tais ditos ascendem não somente por meio do encontro com esse novo público de direitos e alvo de políticas e leis, com suas necessidades e desejos emergentes, mas, especialmente, em meio a uma arena fértil e povoada de produções bibliográficas do campo da Sociologia, da Antropologia, da Psicologia, ocupando o que viria, nos dias de hoje, consolidar um campo de estudos das juventudes ou, ainda, uma “tematização social das juventudes” (ABRAMO, 1997). Esse movimento crescente de produção de saber sobre às juventudes e às juventudes, vai produzir efeitos de verdadeiro junto ao Estado, dando vida a uma enxurrada de outros saberes de caráter político e institucional, visando reveberar determinados entendimentos e olhares lançados a essa subjetividade emergente juvenil13 ao campo das ações e agendas de escolas, ONGs, secretarias estaduais e municipais, e por aí vai.
Aqui, fica evidente o caráter estratégico das relações de poder (FOUCAULT, 1995), uma vez que, visando responder ao problema do nascimento de um conjunto populacional emergente, em meio a um arsenal de estatísticas de morte, empregabilidade, escolaridade, acesso aos direitos constitucionais, etc., levantados pelo saber, outros perigos vão se esboçar sobre as individualidades juvenis, uma vez que passam a compor objeto e alvo de uma série de práticas institucionais e políticas que, por efeito, os identifica e os governa.
Logo, é em uma exteriordade de forças, no campo dos acontecimentos discursivos e políticos, jurídicos e econômicos, que vai sendo possível que digamos certas coisas desses jovens secundaristas hoje, movidos pelo “impulso de transcendência”, “pelo mel da mocidade”, “pela força que o estudante tem”.
Cabe problematizar, aqui, que, por mais contestatório e revolucionário que se pretenda um discurso sobre as juventudes-estudantes à participação e ao engajamento, é preciso ficar atento aos efeitos de controle das subjetividades e das ações políticas daí decorrentes, uma vez que tais enunciados, aqui capturados como um slogan do movimento secundarista recente no Brasil, se atualizam convocando à mudança para determinados fins e de determinadas formas.
O próprio Foucault, tendo atuado junto às mobilizações de maio de 1968 na Tunísia e de alguns movimentos estudantis na França, alerta que “[...] é preciso liberar a ação política de toda paranóia unitária e totalizante [...] dos militantes sombrios, dos terroristas da teoria, dos burocratas da revolução e dos funcionários da verdade” (FOUCAULT, 2004, p. 5-6), se referindo ao comando das ações de militância através dos rumos de certa revolução programada pelo Partido Comunista na França nos anos de 1960 e 1970 e de forte teorização marxista. Não se trata de abandonar a transformação, mas, sim, de exercitarmos uma crítica constante, que “[...] não consiste em dizer que as coisas não estão bem como estão, mas em ver sobre que tipos de evidências, de familiaridades, de modos de pensamento adquiridos e não refletidos repousam as práticas que se aceitam” (FOUCAULT, 2004, p. 9-10). Nessas condições, a crítica é absolutamente indispensável para toda transformação.
Vozes do movimento secundarista em Rio Grande/RS: subjetivação fora-do-sujeito e lampejos de devires adultocêntricos
Sueli Rolnik (2016), em entrevista intitulada A hora da micropolítica, vai anunciar que vivemos uma tradição em confundir subjetividade com sujeito, de modo que uma figura subjetiva tende a se efetivar tal qual em um sujeito já dado, pré-determinado, com pouca criação e resistência - artimanha da política de subjetivação deste tempo - universalização subjetiva, controle dos efeitos criativos e singularizantes possíveis. Contudo, para além dessas figuras subjetivas, há subjetivação fora-do-sujeito, abrindo passagem para o esboço de outras possibilidades de existir, guiadas por fora das malhas de subjetivações massivas.
É a experiência das forças que agitam o mundo enquanto corpo vivo e que produzem efeitos em nosso corpo em sua condição de vivente. Tais efeitos consistem em outra maneira de ver e de sentir aquilo que acontece em cada momento. Somos tomados por um estado que não tem nem imagem, nem palavra, nem gesto que lhe correspondam e que, no entanto, é real e apreensível por este modo de cognição que denomino “saber-do-corpo”. Aqui já não se trata da experiencia de um indivíduo, tampouco existe a distinção entre sujeito e objeto, pois o mundo “vive” em nosso corpo sob o modo de “afectos” e “perceptos” e faz parte de sua/nossa composição em processo. (ROLNIK, 2016, n.p.).
É o desejo, como motor de ação das forças criativas do viver, que vai agenciar uma nova subjetividade, talvez mais criativa e germinal. No entanto, é preciso ficar atento à política de desejo predominante, contingente ao espaço e tempo em que atua, na medida em que nos faz desejar determinadas coisas, modos de viver, objetos e ações e anestesiar possibilidades outras, tornando inacessível o saber-do-corpo do qual Rolnik (2016) nos fala. Assim, embora essa segunda série empírica tenha ido ao encontro com efeitos inventivos de subjetivação pelos estudantes secundaristas de Rio Grande, por mais que resida, aqui, um anseio de encontrar um saber-do-corpo ou uma experiência de subjetividade fora-do-sujeito, há, também, o encontro com a efetivação das figuras de sentido já mapeadas e com certos usos da voz estudantil para sustentar saberes instituídos sobre seus corpos e suas subjetividades.
Nessa esteira, as falas aqui expostas - demonstradas como pistas - não se equivalem às suas subjetividades efetivadas de estudantes ou em processo de devir, mas, sim, a experiências de fala, que ora ecoam discursos instituídos e vencedores sobre si mesmos, a escola pública e a ação política, e ora se experimentam a dar vida a outros saberes - pouco privilegiados e silenciados na arena explosiva já analisada.
Não se deve procurar o pensamento apenas nas formulações teóricas, como as da filosofa e da ciência; ele pode e deve ser analisado em todas as maneiras de dizer, de fazer, de se conduzir, em que o indivíduo se manifesta e age como sujeito de conhecimento, como sujeito ético ou jurídico, como sujeito consciente de si mesmo e dos outros. (FOUCAULT, 2005, p. 1398).
A seguir, apresentamos excertos de falas extraídos das entrevistas com os estudantes na ocasião de duas Rodas de Conversas. Assim, as falas estarão identificadas como próprias da Roda de conversa 1 e Roda de conversa 2.
Destacamos, inicialmente, falas que demonstram traços de uma transformação de si mesmos após o envolvimento com as ocupações. Nas duas rodas de conversa, não foi raro escutar que “nunca mais seremos os mesmos”, dos cinco estudantes participantes, dando a ver que, embora as ocupações gaúchas não tenham obtido vitórias significativas junto ao Estado, esses estudantes tiveram oportunidade de vivenciarem uma experiência transformadora de seus corpos, seus desejos e seus afetos.
“Nossas conquistas maiores não foram materiais. Eu não me reconheço mais em quem eu era antes”
“Eu seria outra sem a ocupação”
Roda de conversa 1
“A ocupação foi muito mais que algo em prol da educação. Pra mim ela foi uma progressão pessoal, me fez repensar coisas que eu tinha prontas”
Roda de conversa 2
Ao depararmo-nos com essa percepção de mudança de si mesmos, passamos a provocar-lhes a fala no sentido de nos contarem sobre como se percebem hoje, buscando traços dessa experiência de transformação. Nessa oportunidade, encontramo-nos com vozes sobre uma juventude estudante que vai à luta reverberada nas rodas de conversa, sustentando e dando força aos discursos sobre juventude já percorridos anteriormente, de modo a posicionarem-se, hoje, como jovens, mais críticos, mais conhecedores do mundo, mais engajados e participativos, e que puderam cumprir com sua missão (jovem) de contribuir para uma escola melhor.
“A revolução quem faz é o jovem. Tem uma frase que eu gosto muito, do Che Guevara, que diz que ser jovem e não ser revolucionário é uma contradição genética.”
“Meu posicionamento político mudou. Saímos de uma bolha.”
“Eu comecei a pensar o que você tem, enquanto sistema, e o que você pode ter.”
Roda de conversa 1
“A hora da revolução é do jovem. O que retém o adulto é a responsabilidade, eles têm emprego, filhos, família, fica mais difícil revolucionar.”
Roda de conversa 2
Logo, mesmo sem mencionar a palavra jovem a esses estudantes durante nossa conversa, a relação estudante-jovem da ocupação foi estabelecida com frequência nas duas rodas. É perceptível, também, uma articulação entre juventude e revolução, de modo que esses jovens assumiram a prerrogativa (inclusive, genética) de tomar os rumos da mudança social e, por isso, transformarem a si mesmos como sujeitos jovens, revolucionários, e “fora do sistema”.
Contudo, em uma espécie de relação paradoxal, o mesmo processo de transformação que os “tira da bolha” e os conduz a uma espécie de subjetividade evoluída, que, nesse caso, ampara-se na figura do jovem revolucionário que vai à luta, anteriormente mapeada, esse mesmo processo que liga sua condição estudantil a uma posição juvenil, produz, ao mesmo tempo, efeitos adultocêntricos, já que tomar responsabilidade pela escola e pela vida passa a ser destacado, também, como efeito das experiências com a ocupação. Logo, na contramão de qualquer menção a uma relação dual entre juventude e vida adulta, o próprio secundarista, identificando-se como jovem, pôde se referir aos elementos “responsabilidade, emprego, filhos e família”, como “dificuldades que retém o adulto” (Roda de conversa 2) de revolucionar.
“Com a ocupação tu aprende a ter responsabilidade, fica mais maduro. Tu passa a cumprimentar a moça da limpeza, dar valor a isso, a merenda e a merendeira. Tu passa a se tornar mais responsável pela escola.”
Roda de conversa 2
“Depois da ocupação eu passei a ter uma relação melhor com meus pais, com minha vó, a escutar eles, a ver que o que eu vivo é muito parecido com o que eles vivem.”
“Responsabilidade. Essa é uma das coisas que eu mais aprendi e mudei com a ocupação.”
“Aprendi o respeito. Respeitar o professor que ta ali na frente querendo passar algo pra nós, a tia que limpa, que cuida da escola, porque nós passamos por isso tudo na ocupação.”
Roda de conversa 1
Assim, diante das falas desses estudantes, as figuras jovem e adulto aparecem em uma relação dualista, em que, no primeiro caso, exercem-se os privilégios da revolução em virtude de uma não-responsabilidade com outras estratificações sociais como família e trabalho, marcas atribuídas ao sujeito adulto pelas vozes em jogo. Embora produzidas na mesma experiência de fala, tais sentidos carregam entre si certa ambivalência, uma vez que o mesmo movimento que deu vida a essa juventude lutadora se encarregou também de produzir traços de um devir adultocêntrico nesses estudantes, tornando-os mais “respeitosos, mais responsáveis e mais próximos da família” (Roda de conversa 1). Ou, ainda, como em um ritual de passagem, ter se envolvido com as ocupações puderam transformar estudantes “presos ao sistema” em jovens-estudantes lutadores e engajados, que carregam, como marca e diferencial, traços de subjetividades adultas construídos por eles mesmos por meio das marcas respeito, responsabilidade e cuidado.
Logo, as vozes secundaristas não somente demonstraram aderência aos ditos sobre juventude mapeados na série documental, como também acabaram produzindo sentidos aos modos de vida adultos, instituindo certas marcas subjetivas a tais sujeitos. Essas puderam incidir, por intermédio de suas falas, em determinadas juventudes transformadas pelas ocupações. Os secundaristas puderam dar vida, então, a uma juventude que estuda, luta e revoluciona, e que, em virtude de tais experiências, incorporou traços adultocêntricos, constituindo uma juventude adultizada.
Assim, entendemos tal processo de devir como marca de singularização dos processos de subjetivação traçados. Olhando para a contribuição que Houaiss faz ao livro de Poerner, em 1968 - esse potente espaço de instauração de uma discursividade verdadeira sobre os jovens estudantes mobilizados -, notamos clara diferenciação entre marcas da juventude e da vida adulta, em um contexto em que a juventude (maioria da população) recebia o título de protagonista da mudança social, e os “velhos”, minoria progressiva populacional, como aponta o autor, nada tinham de jovens, esses velhos que “se principiam de suas conquistas pessoais”.
Os jovens são intermináveis. Isso não deve ser entendido - obviamente - no sentido de que são eliminados. Cada jovem, ou melhor, cada ser humano, cada indivíduo pode perceber sua própria condição de jovem como não-terminada e como não-terminável. [...]. Não se é mais jovem de modo objetivo ou coletivo, mas transitivo. Transita-se ao longo de uma condição variável e indeterminável de acordo com modalidades determinadas pelas individualidades momentâneas do sujeito-jovem. (CANEVACCI, 2005, p. 29-31).
Essa passagem funciona como intercessor potente para pensarmos no caráter provisório e inventado daquilo que nomeamos e não problematizamos como sendo parte, ou próprio de ou, ainda, a própria juventude. Embora o saber em seu desejo de controle e fixação não cesse de produzir dizibilidades sobre quem são os jovens, o que vestem e comem, como se comportam ou deveriam se comportar, onde se manifestam, qual sua faixa etária e principais impulsos, sobre o que ainda não são (sujeitos adultos), vivemos tempos de culturas híbridas, fragmentadas e transculturais. Estas, de certo modo, “[...] acabam virando do avesso as categorias que fixavam faixas etárias definidas e claras passagens geracionais” (CANEVACCI, 2005, p. 28), tornando evidente que os sujeitos jovens nada mais são que efeitos de uma série de ideias que, de forma paradoxal, ambígua e não-terminada, dobram-se em determinados indivíduos, estudantes ou não, de 29 ou 51 anos, envolvidos com a ação política ou não, casados e com filhos ou não.
As juventudes das ocupações, assim como as demais subjetividades contemporâneas, altamente interconectadas, ambivalentes, líquidas, não cessam de se metamorfosear com subjetividades outras. Talvez, nunca tenha feito tanto sentido a citação foucaultiana sobre “[...] recusar o que somos para podermos imaginar e construir o que poderíamos ser” (FOUCAULT, 1995, p. 239). Agir politicamente, assim, é também exercer uma rebeldia radical àquilo que condiciona e identifica nossos corpos e subjetividades a modos historicamente inventados se ser, pensar e agir em meio às barricadas dos movimentos e das multidões.
Considerações finais
Assim, tendo como objetivo investigar como as ocupações secundaristas (maio e junho de 2016), no Brasil, mais especificamente na cidade de Rio Grande, puderam produzir mutações nas subjetividades estudantis envolvidas, destacamos que tais mutações não percorreram linhas homogêneas e subjetivações uniformes, mas, sobretudo, compuseram subjetividades junto a discursos instituídos, atualizando figuras de sentido historicamente mapeadas, e, também, esboçando a si próprios como sujeitos de uma notada transformação.
A pesquisa com uma seara diversa de vozes sobre os sujeitos das ocupações pôde visibilizar juventudes efetuadas em discursos de verdades inventados historicamente e atualizados nos dias atuais, mas também metamorfoseada por devires adultocêntricos. As juventudes das ocupações, assim como as demais subjetividades contemporâneas, por mais que estejam atravessadas por forças sutis e controladoras do saber, da verdade e do poder, constituem-se em meio a correntezas velozes e altamente difusas, que não cessam de borrar tendências universalizantes e identitárias, esquivando-se, forçando vazamentos, ocupando outras searas de sentidos atribuídas a heterogêneos, múltiplos “eus” (CANEVACCI, 2005). Onde há poder há resistência, não apenas como reação, mas condição indispensável ao seu exercício, como nos alerta Foucault.
Para finalizar, anunciamos que tais análises constituem apenas um território possível, um entre tantos, um qualquer, mundano, profano. Convidamos, como pesquisadores em exercício da problematização foucaultiana, a imaginarem um chapéu de guizos sobre as pretensões de verdade que essa escrita pode adotar junto a outros saberes sobre as ocupações secundaristas ou, também, sobre a temática das juventudes. Percorremos a esteira de uma ciência alegre e risonha, que toma o riso como componente do pensamento sério que, simultaneamente, “[...] faz crer e não crer, que se respeita e zomba de si mesmo” (LARROSA, 2003, p, 170), e que não por isso se faz menos rigorosa. Menos rígida, talvez (VEIGA-NETO, 2010). Aliás, ao problematizarmos os efeitos da verdade e do saber na constituição dos sujeitos hoje, estamos colocando em jogo, também, nossas próprias investidas como pesquisadores das ciências humanas.