Introdução
Em pesquisa realizada com professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental, constatou-se que boa parte dos saberes profissionais dessas docentes está encravada na prática, no chão da escola; entretanto, ao adentrar a prática pedagógica e o cotidiano escolar vivenciado por elas, tempo em que acontecimentos, cenas e circunstâncias vêm à tona em seus relatos, um cenário pouco propício ao processo formativo docente se descortina (BATISTA, 2017). Nessa direção, algumas políticas públicas educacionais da última década, das quais podemos destacar a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e as avaliações em larga escala (tais como o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica - SAEB, a Prova Brasil e a Provinha Brasil), marcadas pelo nítido tensionamento entre as crescentes prescrições que invadem as escolas de Educação Básica, o trabalho e a formação docentes impõem-se como pano de fundo para a discussão aqui estabelecida.
Decorrentes dos avanços tecnológicos e científicos, da globalização, das novas configurações do mundo do trabalho e das relações sociais, a sociedade contemporânea vem passando por profundas transformações, que fazem emergir uma série de novas demandas para a escola e para todos os que fazem parte dela. Outros modos de formação, de atuação e de interação passam a ser exigidos na/pela sociedade. As regras políticas e econômicas, derivadas do modo como o atual sistema capitalista se estrutura globalmente e gestadas nos grandes organismos internacionais com o objetivo de ditar a direção que os países devem seguir para não ficarem à deriva da economia global, trazem decorrências para as políticas internas (ALMEIDA, 2008). Nesse diapasão, a escola é atingida pela onda reformista, que busca adequá-la às necessidades hegemônicas.
De acordo com Nörnberg (2020), nas últimas três décadas, vimos observando gradativa mercantilização da educação, inserida nas políticas educacionais reformistas. Para a autora, ao longo desse tempo, a formação de professores passou a ser alvo preferencial dessas políticas. Pacotes didáticos, treinamento docente, currículos padronizados e controle das práticas de ensino por meio de avaliações de larga escala são alguns mecanismos pelos quais as políticas conservadoras fazem uso, sob o argumento de que são necessários para elevar a qualidade da educação. No entanto, de acordo com a autora, quando essas mesmas políticas conservadoras não alcançam as metas projetadas, não se faz uma avaliação crítica sobre elas, mas responsabilizam e culpabilizam os docentes pelo fracasso dessas políticas.
Preocupados com essa lógica de mercado que tem invadido a educação, autores como Ball (2002, 2011), Freitas, L. C. (2012) e Ravitch (2011) alertam para efeitos nefastos que o controle sobre a escola e seus atores têm acarretado para a educação e para o trabalho do professor. Ball (2002) argumenta que as tecnologias políticas da reforma da educação não são simplesmente veículos para a mudança estrutural das organizações, mas são também mecanismos para “reformar” professores e para mudar o que significa ser professor. As análises de Freitas, L. C. (2012) estruturam-se em torno da ideia de que o princípio de mercado vigente no mundo contemporâneo é pouco produtivo para a melhoria da qualidade da educação, pois não é seu interesse promover uma reforma educacional na qual a qualidade prevaleça sobre os aspectos administrativos e reguladores. Ravitch (2011), por sua vez, denuncia os resultados das reformas de mercado no sistema escolar dos Estados Unidos nas últimas décadas, afirmando que elas contribuíram para agravar a crise da educação pública americana e corromper os valores educativos. De forma geral, esses estudos assinalam que o princípio do mercado e a regulação do governo são fortes entraves ao desenvolvimento do conhecimento profissional, levando, inevitavelmente, ao enfraquecimento da profissionalização do magistério.
As análises aqui empreendidas buscam articular, pelo viés da experiência, o processo contínuo de formação docente de professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental e o contexto mais prescritivo com que eles se deparam nas escolas em que atuam. Pressupostos teóricos de Dewey e Larrosa fornecem apoio para a perspectiva compreensiva que, por sua vez, identifica a formação docente como um processo: a) de reconstrução e de reorganização da experiência que aumenta o sentido desta e a aptidão do professor para dirigir o curso das experiências posteriores (DEWEY, 1971, 1975); b) relacionado às possibilidades de atribuição de sentido ou de falta de sentido àquilo que lhe acontece (LARROSA, 2011, 2014). Com perspectivas próprias, esses autores problematizam o papel formativo da experiência, discorrendo sobre seus elementos possibilitadores e impossibilitadores.
Larrosa (2002) provoca-nos a pensar a experiência do ponto de vista da formação e da transformação da subjetividade, em que o sujeito da experiência é “[...] um espaço onde têm lugar os acontecimentos” (LARROSA, 2002, p. 24). Ele é visto para além de um agente ativo (aquele que pratica a ação), mas, sobretudo, como alguém que sofreu uma ação (o sujeito passional, receptivo e aberto), todavia sem ser considerado passivo. Para Larrosa (2011, p. 22), “[...] a experiência não pode ser captada desde a lógica da ação, valendo-se de uma reflexão do sujeito sobre si mesmo como sujeito agente, mas desde uma lógica da paixão, desde uma reflexão do sujeito sobre si mesmo como sujeito passional”. Nesse ponto, Larrosa (2011) quer chamar atenção para o princípio de receptividade, de abertura; enfim, para esse princípio de paixão que é o que faz com que se descubra, na experiência, a própria fragilidade, aquilo que escapa ao nosso saber e ao nosso poder. Contudo, Dewey (1971) diz-nos que a experiência se dá a partir de dois fatores combinados entre si: condições objetivas e condições internas. “Uma experiência é sempre o que é por causa de uma transação acontecendo entre um indivíduo e o que, no momento, constitui seu ambiente” (DEWEY, 1971, p. 44-45). Na visão de Dewey, a experiência depende tanto do desejo, da atitude e do propósito de cada um (condições internas) quanto das circunstâncias ambientais (condições objetivas). Nesse sentido, a experiência não é algo que se passa apenas no interior do indivíduo, em uma perspectiva solipsista, mas é permeada inteiramente pela alteridade, isto é, ocorre a partir da relação com elementos exteriores ao indivíduo.
Desse quadro teórico, pode-se depreender que alguns elementos conferem certa distinção entre as compreensões de Dewey (1971) e de Larrosa (2002, 2011) acerca do fazer experiência pelo sujeito. Enquanto, para Dewey, a experiência ocorre a partir da combinação de condições internas e objetivas do sujeito, em um movimento de interação entre ambas; para Larrosa, o fazer experiência tanto pode implicar a ação e o fazer algo, quanto o ser interpelado, o padecer e o sofrer por algo, não requisitando, necessariamente, condições internas a priori.
Importa sublinharmos premissas comuns a esses dois autores: para Dewey e para Larrosa, uma experiência educativa subentende mudança na condição do sujeito, e a mudança somente terá significação quando o sujeito refletir sobre as consequências da experiência, sobre aquilo que ele fez com a experiência e sobre aquilo que a experiência fez com ele. Na visão desses autores, o que mais importa é a qualidade da experiência que se tem, uma experiência que, relacionada à postura de reflexão, tende a resultar em algum tipo de saber que permitirá ao sujeito uma melhor apreensão da realidade que o circunda.
Trazendo para o universo da formação de professores, trabalhamos, neste estudo, com a noção de que a produção de experiências (o fazer experiência) pelos professores acontece a partir da combinação de condições internas (capacidade de reflexão, abertura e interesse) e de condições objetivas existentes no ambiente escolar (recursos institucionais, equipe gestora, legislação, relação entre os pares, espaços de trocas), sem desconsiderar, contudo, as possibilidades do acontecimento da experiência a partir do princípio da paixão.
Com efeito, este artigo propõe uma aproximação a tais condições, a fim de identificar aspectos relacionados às possibilidades e às impossibilidades para o acontecimento de experiências na prática pedagógica de professores. Em consonância com os autores com os quais dialogamos para desenvolver a noção de experiência, vale esclarecer que, quando utilizamos a expressão fazer experiência, não nos referimos apenas à postura ativa dos sujeitos de fazê-la acontecer, mas também ao ato de sofrer e padecer aquilo que os alcança. Neste estudo, o fazer experiência estabelece-se relacionado ao exercício da docência e à própria autonomia docente.
Assinale-se que, no material empírico, ganham espaço as condições ambientais que marcam o dia a dia dos professores nas escolas, o que nos leva a compreender tais condições como dimensão destacada, associada ao processo de formação e de construção de seus saberes docentes. Referimo-nos a condições relacionadas à estrutura que compõe o ambiente escolar, capaz de inibir ou potencializar a capacidade dos docentes de fazer experiências. Vale destacar que, na seara das condições ambientais que têm caracterizado o espaço escolar, é visível a percepção de um processo de burocratização dos sistemas educacionais, que atinge a formação e o trabalho do professor, em muito devido à crescente efetivação de políticas na prática.
Com base no quadro apresentado, os questionamentos a seguir se impõem e são balizadores da discussão que propomos: quais são as condições de que os professores dos anos iniciais dispõem no espaço escolar para fazer experiências e aprender a profissão por meio delas? Até que ponto essas condições afetam o seu trabalho e as suas possibilidades de aprender pela experiência?
Metodologia
Este estudo é de natureza qualitativa, uma vez que parte do pressuposto de que as pessoas agem em função de suas crenças, suas percepções, seus sentimentos e seus valores, e que seus comportamentos seguem a ordenação de um sentido, de um significado que não se dá a conhecer de modo imediato, necessitando ser desvelado (ALVES, 1991).
Os procedimentos de coleta, análise e interpretação dos dados empíricos buscam uma aproximação com os princípios da entrevista compreensiva (KAUFMANN, 2013), que procura o estreitamento entre a construção da teoria e a pesquisa empírica, no sentido de evitar que o pesquisador caia na armadilha do dualismo entre teoria e empiria. O propósito de Kaufmann (2013) é que o método possa colocar em evidência a construção de uma teoria a partir dos dados advindos do campo empírico, movimento no qual o trabalho de campo deixa de ser tomado como mera instância de verificação da teoria para se tornar lugar de seu nascedouro, como bem assinalaram Glaser e Strauss (1967) em sua obra clássica The discovery of grounded theory. Tendo em vista esse propósito, o autor põe em xeque alguns pressupostos estabelecidos no âmbito científico, como o da impessoalidade e da formalidade na situação de entrevista, sem, contudo, deixar de apontar para a importância de que o pesquisador fique atento em honrar o método e suas diretrizes.
Kaufmann (2013) defende que, nas interações em campo, os dados mais profundos são revelados em situações de maior intensidade, mas, especialmente, de maior naturalidade. Assim, o tom que se busca durante a realização das entrevistas se aproxima mais de uma conversa entre iguais do que, por exemplo, de um questionário administrado de cima para baixo. Na medida em que o estilo interativo vai ganhando corpo, a conversa em torno do tema vai fluindo. É importante considerar, ainda, que, na entrevista compreensiva, o entrevistador precisa estar ativamente envolvido nas questões para provocar o envolvimento do entrevistado.
Para adentrar as questões que se encontram em tela, procuramos assegurar ao estudo a composição de uma amostra intencional de docentes do magistério do primeiro segmento do Ensino Fundamental. Com efeito, localizamos professores cujas trajetórias de formação e de atuação profissionais correspondessem à imagem de docentes comprometidos com a educação e com o processo de ensino e de aprendizagem, exitosos em suas práticas pedagógicas e reconhecidos como tais no espaço escolar, sobretudo pelos seus pares profissionais.
Foram feitas entrevistas em profundidade com 13 professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental, em uma amostra constituída integralmente por mulheres. Todas formadas em Pedagogia, com atuação mínima de quatro anos nesse segmento de ensino e vinculadas à rede pública de ensino (Federal, Estadual e Municipal) . Por esse motivo, quando fizermos referência aos sujeitos participantes da pesquisa, a palavra “professor” será flexionada para o seu feminino.
Este artigo é produto da pesquisa desenvolvida pela primeira autora em seu trabalho de tese (BATISTA, 2017), sob orientação da segunda autora, professora Menga Lüdke. O projeto não foi submetido a um Comitê de Ética, por não ser exigência do Programa de Pós-Graduação na época. Ao desenvolvermos a pesquisa, procuramos considerar atentamente os princípios éticos que norteiam o trabalho que envolve a participação de seres humanos. As convidadas a participar do estudo eram professoras com longa experiência de trabalho com os anos iniciais do Ensino Fundamental, tema central da pesquisa. Sua participação consistiria basicamente em conceder entrevistas sobre sua experiência, que seriam gravadas caso elas autorizassem. As informações obtidas com as entrevistas seriam analisadas ao longo dos trabalhos da pesquisa e, eventualmente, alguns de seus trechos poderiam estar presentes em futuras publicações, como ilustrações de pontos indicados pelas análises. Asseguramos a todas as convidadas que guardaríamos estrito sigilo em relação às participantes da pesquisa e às instituições nas quais trabalhavam. Todas concordaram com a gravação das entrevistas e com a publicação eventual de alguns trechos e aceitaram nosso convite, o que consistiu em fator fundamental para o bom desenvolvimento do estudo.
As professoras entrevistadas são identificadas, na sequência do trabalho, por nomes de flores. Essa foi, talvez, a forma que encontramos de prestar uma homenagem a essas professoras, protagonistas pela qualidade das reflexões que nos proporcionaram e que, esperamos, tenham sido conduzidas à altura neste estudo. Compartilhar suas histórias conferiu-nos o valor de desenvolver uma pesquisa construída a partir da voz, do sentimento e do agir do professor da escola pública.
O contexto das políticas educacionais e a autonomia docente
Ao longo das entrevistas, foi possível compreender que o fazer experiência pelas professoras não se circunscreve apenas internamente (reflexão, abertura e interesse), mas é dependente e fortemente influenciado pelas condições objetivas existentes. Importa esclarecer que a expressão fazer experiência por nós adotada não se refere apenas à postura ativa das professoras de fazê-la acontecer, mas também ao ato de sofrer e padecer aquilo que as alcança.
Encontramos no depoimento a seguir um “pano de fundo” que indica a relevância dos questionamentos em tela.
O professor não se acredita mais, por conta de um histórico de experiência dentro da escola. Disseram para ele “você está subordinado ao currículo, você está subordinado ao sistema”. Ele acaba se descobrindo tão subordinado que não consegue insubordinar, apesar de esse ser o grande boom de sua prática. (Profa. Verbena).
Percebemos que o “sistema” funciona de modo a inculcar a posição de subordinação do professor em relação às instâncias superiores, de tal forma que a força e a confiança necessárias para que ele possa “nadar contra a correnteza” parecem ficar neutralizadas. Gostaríamos de lembrar aqui o bordão de Florestan Fernandes, um dos mais importantes sociólogos brasileiros que completaria 100 anos em 2020: “contra as ideias da força, a força das ideias”. O quadro em tela remete a Ball (2002) ao afirmar que as mudanças ocorridas nas escolas interferem na subjetividade do professor e no significado do que é ser professor, isto é, a reforma da educação também “reforma” o professor. Nesse diapasão, Oliveira (2020) chama atenção para estratégias que estão no bojo das políticas conservadoras que acenam, ao fim e ao cabo, para a naturalização de certos comportamentos, atitudes e valores, tornando aceitável aquilo que não seria aceitável.
Curiosamente, para a Professora Verbena, o grande papel da prática pedagógica docente é resistir a imposições externas, quando compreendidas como impeditivas ao desenvolvimento do “bom trabalho”, na expressão de Lantheaume (2012, p. 375). Segundo a autora, a astúcia do professor mobiliza a engenhosidade para que ele faça um bom trabalho, surgindo como uma capacidade pessoal para encontrar soluções originais para problemas novos.
Esse quadro remete à necessidade de conhecer-se mais de perto o contexto das escolas em que atuam as professoras entrevistadas e as estratégias de que dispõem ou que precisariam dispor para que possam seguir em frente, fazendo experiências e aprendendo a profissão. Temos no depoimento da Professora Dália elementos que retratam bem a dinâmica interna da escola de Educação Básica, marcada, sobretudo, por algumas mudanças que têm afetado o trabalho do professor:
O ranqueamento dos estabelecimentos escolares e as avaliações em larga escala presentes na escola têm acontecido de maneira a excluir quem mais precisa. Geram um estreitamento do currículo que afeta sobremaneira a autonomia do professor. Hoje os professores não trabalham o currículo de forma adaptada à realidade da sala de aula, mas a partir das matrizes geradoras para que o conteúdo seja dado e a escola tenha um bom posicionamento no IDEB. Isso foge ao que eu acredito que seja uma visão mais humanista da educação, a de você formar o ser humano como um todo. (Profa. Dália).
A Professora Dália discorre sobre o atual contexto prescritivo que tem assolado as escolas, enfatizando alguns de seus efeitos perversos, como a exclusão dos alunos que mais precisam e o “ataque” à autonomia do professor e ao currículo. Ela afirma que o ranqueamento dos estabelecimentos escolares e as avaliações em larga escala têm acontecido de maneira a excluir quem mais precisa. Expressa-se, assim, a postura crítica da professora frente ao contexto prescritivo ao qual o seu trabalho está submetido. Para além de afetar o professor, Dália mostra que essas medidas afetam os alunos que mais precisam. Disso decorre certo distanciamento entre as medidas (ranqueamento e avaliações em larga escala) e o princípio da equidade (entendido como participação e atenção prioritária aos grupos excluídos). Parece paradoxal, pois, de acordo com Gajardo (2000), a equidade é um conceito quase sempre presente no desenho de políticas e de programas que pretendem assumir as atividades de reforma educativa como tarefas estratégicas.
Como ficam então os alunos que mais necessitam? A preocupação da Professora Dália mantém forte ligação com o que Freitas, L. C. (2012) denomina “corrida para o centro”. Segundo o autor, as avaliações em larga escala, a divulgação pública do desempenho da escola, as recompensas e as sanções são capazes de gerar a “corrida para o centro” em termos de desempenho discente, prejudicando os extremos da curva. Isso porque os professores tendem a se concentrar naqueles alunos que estão mais próximos da média e, com isso, aqueles com alto desempenho e com baixo desempenho ficam à deriva (FREITAS, L. C., 2012).
O “ataque à autonomia do professor e ao currículo”, expresso no depoimento da Professora Dália, é evidenciado quando o sistema educacional brasileiro passa a perseguir padrões de desempenho e patamares a serem alcançados, balizando a qualidade da educação por indicadores externos a ela. Segundo Freitas, L. C. (2012), quando isso vira realidade, é necessário que seja exercido controle sobre os conteúdos a serem ensinados, sobre os resultados a serem obtidos e, como consequência, sobre a “aula” do professor. O resultado disso? Drástico. Com a capacidade de decisão afetada e a competência profissional posta em xeque, o professor é levado a realizar atividades prescritas, contribuindo para que possa ser identificado mais como técnico do que como intelectual da educação. Ao afirmar que hoje os professores não trabalham o currículo de forma adaptada à realidade da sala de aula, mas a partir das matrizes geradoras para que o conteúdo seja dado e a escola tenha um bom posicionamento no IDEB , a Professora Dália coloca-nos diante de uma ambiência que intimida o processo de formação (docente e discente) baseado na/pela experiência.
As reformas educacionais em curso no Brasil parecem ilustrar um cenário preocupante. As avaliações em larga escala, os Projetos de Lei que buscam instituir a “Escola Sem Partido”, a Medida Provisória que impõe a reforma do Ensino Médio (n° 746/2016) e a definição de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) são alguns exemplos. Apesar da variedade de vertentes e de reformas, as avaliações em larga escala ocuparam lugar de destaque nas entrevistas. Referimo-nos a algumas voltadas para os anos iniciais do Ensino Fundamental, como o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB), a Prova Brasil e a Provinha Brasil, além de outras que estão na esteira das iniciativas advindas do âmbito das Secretarias de Educação (Municipal e Estadual).
O SAEB e a Prova Brasil são avaliações desenvolvidas pelo INEP. O SAEB, aplicado pela primeira vez em 1990, foi a primeira iniciativa brasileira, em escala nacional, para diagnosticar o sistema educacional brasileiro em profundidade. A Prova Brasil, criada em 2005 a partir da necessidade de se tornar a avaliação mais detalhada, de modo a oferecer dados para cada município e escola participante, funciona como complemento à avaliação já feita pelo SAEB. Ambas as avaliações focam na qualidade do ensino oferecido pelo sistema educacional brasileiro a partir de testes padronizados e questionários socioeconômicos. São aplicados no 5º e 9º anos do Ensino Fundamental, com o objetivo de avaliar as habilidades em Língua Portuguesa (foco em leitura) e em Matemática (foco na resolução de problemas). No questionário socioeconômico, os estudantes (e seus responsáveis) fornecem informações sobre fatores de contexto que podem estar associados ao desempenho (BRASIL, 2009b). Em suma, o SAEB, inicialmente, não permitia uma visão clara da realidade de cada rede de ensino, menos ainda de cada escola; a Prova Brasil vem para suprir essa lacuna.
Com a implementação do Ensino Fundamental de nove anos, houve a necessidade de verificarem-se as habilidades desenvolvidas pelas crianças na Alfabetização (letramento inicial) e suas habilidades iniciais em Matemática. Assim, em 2007, foi instituída a Avaliação de Alfabetização “Provinha Brasil”. Composta pelos testes de Língua Portuguesa e de Matemática, a Provinha Brasil é aplicada para crianças matriculadas no 2º ano do Ensino Fundamental das escolas públicas. A Provinha Brasil surge para atender ao compromisso do Ministério da Educação (MEC) com uma das metas do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), que prevê que todas as crianças saibam ler e escrever até os oito anos de idade. Foi também nesse contexto que o MEC criou o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC).
Em conformidade com suas proposições, as avaliações em larga escala apresentam como objetivo a verificação das habilidades que os alunos conseguiram desenvolver em um determinado período da escolarização para, a partir daí, oferecer aos professores e aos gestores escolares um instrumento que permita acompanhar, avaliar e melhorar a qualidade da aprendizagem dos alunos, além de balizar o processo de organização de políticas educacionais informadas que visem à melhoria dos resultados de aprendizagem (BRASIL, 2009b). Entretanto, alguns estudos (SILVA; CAFIERO, 2011; CALDERANO; BARBACOVI; PEREIRA, 2013) mostram que a efetivação dessas políticas de avaliação, na prática, é distorcida. Nesse ponto, atemo-nos à Provinha Brasil. Apesar da afirmação do MEC de que “[...] gestores municipais e estaduais de educação acreditam que a Provinha Brasil é eficaz quanto ao diagnóstico do nível de alfabetização das crianças” (BRASIL, 2010a, n.p.), a análise a seguir mostra distorção.
Em sua concepção original, a Provinha Brasil deveria servir apenas como um instrumento balizador para as ações no processo de alfabetização em sala de aula, mas, na prática, os impactos da aplicação desse instrumento nem sempre têm sido positivos, principalmente porque o professor tem sido pressionado por melhores resultados e, até mesmo, responsabilizado na ausência deles. (SILVA; CAFIERO, 2011, p. 221).
Como assinalam as autoras, os efeitos desses instrumentos têm resvalado no professor, sobretudo quando se observa a responsabilização que lhe é conferida pelos resultados alcançados por seus alunos. A distorção nas proposições legais é grave, a ponto de inculcar no professor a ideia de que a sua competência é chancelada pelas avaliações externas. “É como se o professor precisasse de um aval externo para dizer que o trabalho que faz é bom. Não se nega a importância desse aval, mas será que ele pode ser o critério final, considerando as bases em que é feito?” (CALDERANO; BARBACOVI; PEREIRA, 2013, p. 14).
Sobre isso, a Professora Lírio traz o desconforto vivenciado por uma colega durante reunião pedagógica em sua escola, na qual foram apresentados os resultados da Prova Brasil:
O diretor e o coordenador mostram os índices gerais da Prova Brasil e depois da nossa escola: “Dizem que sua turma está nesse ou naquele nível, está ruim, está boa”. E eles colocam isso na frente de todo mundo. Teve um ano em que uma professora se sentiu muito ofendida. Ela dizia: “Eu fiz um trabalho bom”. Eu conheço essa professora e sei que é muito responsável. Ela se sentiu mal porque a turma dela tinha sido a pior. (Profa. Lírio).
Essa cena, notadamente desmoralizadora do trabalho do professor, revela um cenário que mina suas possibilidades de fortalecer a autoconfiança para que, a partir daí, tenha condições de propor alguma mudança na escola ou mesmo de colocar-se em uma postura de fazer valer argumentos que revelem as contradições desse tipo de avaliação. Em um esforço para resguardar sua autoestima, o professor acaba desconsiderando e ignorando a política de avaliação externa, como se ela nada dissesse (CALDERANO; BARBACOVI; PEREIRA, 2013). Outros podem assumir a postura de confrontar aquilo que os afeta com o que pensam ser, de fato, a sua responsabilidade profissional, para desse confronto tentar extrair algo novo.
Com efeito, estamos diante de um cenário em que a escola se preocupa majoritariamente em maquiar o seu contexto para sair-se bem nas avaliações externas, fazendo um “jogo” perigoso que estimula o individualismo entre os professores. Oliveira (2020) alerta para o fato de que as políticas de avaliação têm enfraquecido os projetos políticos pedagógicos das escolas como espaços de construção coletiva, pela necessidade de alcançar as metas de resultados e de elevar o IDEB. A autora diz, ainda, que a escola já não pensa sobre si e o seu entorno, mas gasta a maior parte de seu tempo e sua energia para mostrar-se.
Assumimos a ideia de que o tipo de situação relatada pela Professora Lírio revela a experiência do pior (BATISTA, 2017), expressão que estamos usando para designar uma experiência que está associada a contextos desfavoráveis, como, por exemplo: turmas numerosas, alunos com necessidades educacionais específicas, falta de diálogo na escola entre os pares, mecanismos de controle sobre o trabalho docente. Trata-se de situações em que as circunstâncias podem, de um lado, conspirar contra o processo de aprendizagem profissional das professoras; por outro, ser-lhes úteis, funcionando para desencadear aprendizagens docentes, servindo de âncora para a atribuição de sentido às ações.
Retomando a ideia de que a experiência depende das condições internas e externas (DEWEY, 1959, 1971), é possível encontrar na situação relatada pela Professora Lírio evidências que podem ser interpretadas como relacionadas à “experiência do pior”. Em primeiro lugar, a escola (representada, nesse caso, pela direção e pela coordenação), ao demonstrar publicamente interesse nos escores (condições externas e objetivas), estimula a competitividade entre os professores, desconsiderando os bons professores e as boas práticas ao focalizar apenas os resultados, tal como ocorreu com a colega da Professora Lírio que, a seu ver, é possuidora de competência profissional. Silva e Cafiero (2011, p. 230), ao analisarem alguns impactos de políticas na prática, afirmam que “[...] as classificações ou rankings, seja entre as escolas, seja no seu interior, entre as diversas turmas de alunos, cria uma reputação de excelência dentro e fora das escolas que afasta ou atrai professores, criando mecanismos ocultos de competição”. Essa é, sem dúvida, uma condição externa (objetiva) que enfraquece a autoconfiança do professor (condição interna), podendo inibir a sua capacidade de experienciar, no sentido de tentar promover mudanças no ambiente de trabalho. A cena relatada pela Professora Lírio, em especial a exposição à qual a professora foi submetida, pode também ter comprometido a sua condição interna se, a partir dali, passou a cultivar formas grosseiras de sentir, de pensar e de agir (comunicar).
Ainda sobre a cena relatada pela Professora Lírio, que aponta efeitos perversos da cultura da performatividade (BALL, 2002), recorremos a uma passagem do trabalho de Ravitch (2011):
Os especialistas em políticas que insistem que os professores deveriam ser julgados pelos escores dos seus estudantes em testes padronizados teriam sido frustrados pela Sra. Ratliff. As suas aulas nunca produziam dados quantitativos. Como os especialistas teriam mensurado o que nós aprendíamos? Nós nunca fizemos um teste de múltipla escolha. Nós escrevíamos ensaios e fazíamos testes escritos, nos quais tínhamos que explicar nossas respostas. Se fosse avaliada pelas notas que dava, ela estaria em maus lençóis, pois ela não distribuía muitas notas A. (RAVITCH, 2011, p. 192-193).
Essa passagem remete a Dewey (1959, 1971, 1979) em sua defesa de que a mais importante atitude a ser formada é a do desejo de continuar aprendendo (pelo que parece, a atitude adotada pela Sra. Ratliff).
De que vale obter certa quantidade prescrita de informação sobre geografia e história, conquistar a habilidade de ler e escrever, se nesses processos o indivíduo perde sua própria alma: perde sua capacidade de apreciar o que realmente tem valor; de perceber o valor relativo das coisas; perde o desejo de aplicar aquilo que aprendeu e, acima de tudo, perde a habilidade de dar sentido as suas experiências futuras conforme elas ocorrem? (DEWEY, 1971, p. 50).
Com esses questionamentos, Dewey explicita que a experiência educativa deveria fazer algo para preparar uma pessoa para experiências posteriores de qualidade mais ampla e profunda, pois esse é o sentido próprio de continuidade e de reconstrução da experiência (DEWEY, 1971). Hoje, contudo, temos vivido um “real” na escola que nos coloca distantes do ideal propugnado por Dewey. As necessidades postas pelas reformas educativas para a Educação Básica afastam cada vez mais as possibilidades de a escola e de o professor impulsionar o aluno para o desejo de continuar aprendendo. Sobre isso, a Professora Lírio apresenta uma experiência que nos permite conhecer o mal-estar que as avaliações externas podem causar nos alunos e, também, no professor.
Este ano a minha turma fez o PROALFA [Programa de Avaliação da Alfabetização]. As crianças tiveram um pouco de dificuldade. Elas tentaram fazer, mas o nível da prova ainda traz muita dificuldade para elas. Falaram que não conseguiram fazer, que não sabiam e a gente não pode fazer nada. É muito sofrido para elas. Antes eu conversei com as crianças para que fizessem o que sabiam e quando não soubessem, era para marcar a opção que achassem a melhor. É muito complicado. Eu acho pesado. Eles pedem um nível de alfabetização que a gente não conseguiu atingir. (Profa. Lírio).
Esse relato é rico em elementos que nos permitem entrar em contato com algumas dimensões do sofrimento das crianças ao se submeterem a uma avaliação. É um tipo de teste diferente do que estão acostumadas a fazer na escola, em nível de atividades acima de suas condições reais, criando certo sentimento de incapacidade e abalando sua confiança no trabalho do professor. A interpretação aponta para um sofrimento que é, também, do professor. Ao ressentir-se com o fato de que não pode fazer nada (Professora Lírio) diante das dificuldades das crianças para fazer o teste, e até mesmo diante da condição de ser muito sofrido para elas, a Professora Lírio assume o mal-estar que a acomete.
Essas considerações permitem certa aproximação com o desconforto que é, para um professor comprometido com o seu trabalho, ver-se diante de uma situação em que se sente compelido a orientar seus alunos a fazerem as questões que saibam ou a marcarem a opção que considerem ser a melhor (Professora Lírio). Como uma forma de minimizar esses efeitos negativos, a Professora Lírio, em determinado ano letivo, encontrou um caminho. Embora ela mesma reconheça não ser o melhor, talvez por representar uma estratégia de fuga e não propriamente uma solução para reafirmar o sentido de seu trabalho (LANTHEAUME, 2012), julgou necessário trilhá-lo para que seus alunos não desanimassem com os estudos.
Comecei a fazer provas parecidas com as avaliações do MEC. Fazia montagens para ver como as crianças iam encarar aquilo, para não terem aquele susto ao verem uma prova completamente diferente (uma prova de marcar X). Raramente a gente fazia prova de marcar X. Tinha criança que nem sabia o que era aquilo. (Profa. Lírio).
A Professora Sempre-Viva, tal como a Professora Lírio, também associa a sua experiência com as avaliações em larga escala ao mal-estar que causa a ela e a seus alunos, sobretudo pelo descompasso que existe entre o teor desses instrumentos e os objetivos de aprendizagem trabalhados na escola. Nesse sentido, ela também foi levada a adotar determinada prática, mesmo não sendo totalmente favorável a ela.
O aluno fica nesse fogo cruzado. Então, compete a nós termos um jogo de cintura para ir trabalhando com ele, tentando prepará-lo para uma prova, para uma avaliação que foge totalmente à realidade dele. A gente procura introduzir algumas atividades que possam prepará-lo para o momento dessa prova. Infelizmente. É um tempo perdido porque a criança não está preparada para aquilo ali, aquela prova absurda de 10 páginas. (Profa. Sempre-Viva).
Ao reconhecerem que foi uma perda de tempo (Professora Sempre-Viva) ou que foi constrangedor treinar os alunos (Professora Lírio), essas professoras confirmam que existe um abismo entre a vontade política das propostas do MEC e os impactos sobre sua ação. No caso em tela, percebe-se a pressão que determinada reforma educacional pode provocar na prática do professor, levando-o, muitas vezes, a agir de forma contrária às suas convicções, comprometendo, dentre outras coisas, a luta histórica pela profissionalização do magistério (FREITAS, H. C. L., 2002). Percebe-se que o fortalecimento da profissionalidade docente talvez esteja atrelado à insubordinação sugerida pela Professora Verbena, o que, por sua vez, tem relação com a autoconfiança do professor em sua própria formação e no trabalho que desenvolve junto aos alunos.
Apesar de as Professoras Lírio e Sempre-Viva serem conhecedoras do que representa uma boa educação, parece que, sob circunstância adversa à qual estavam submetidas, não tiveram condições de pautar suas práticas na ideia de que uma boa formação é muito mais do que saber fazer uma prova (RAVITCH, 2011), e menos ainda no princípio de propiciar a seus alunos experiências que os preparem para experiências posteriores de qualidade mais ampla e profunda (DEWEY, 1971). Trata-se, pois, de uma evidência que confirma que a pressão exercida pelo sistema (as professoras sentem-se compelidas a fazer algo que alivie os alunos da tensão que representa fazer uma avaliação do MEC) é prejudicial a abordagens pedagógicas que levem o aluno a se envolver de forma autêntica com a aprendizagem. Disso podem decorrer ações docentes que rompam com as convicções construídas e com os princípios pedagógicos até então valorizados pelo professor, como ocorreu com as Professoras Lírio e Sempre-Viva. É certo que o rompimento com determinadas convicções pode dar origem a experiências formativas, representando, assim, ganhos para o profissional. Entretanto, treinar os alunos para os testes padronizados representou uma prática estranha a elas, uma prática sem significado, uma vez que consideram, elas mesmas, não ter havido ganho para a aprendizagem dos alunos, nem tampouco para si.
A apropriação que as Professoras Lírio e Sempre-Viva fizeram dos instrumentos externos de avaliação distancia-se da perspectiva das demais professoras entrevistadas, cujas ações rejeitam certas apropriações (tal como a adoção de “treinos”) que possam restringir aquilo que julgam necessário ser aprendido pelos alunos e, sobretudo, que possam afastá-las dos princípios pedagógicos construídos ao longo de suas carreiras e por elas valorizados. A Professora Cravina ilustra bem o raciocínio que é representativo da maioria das professoras entrevistadas. Ao discorrer sobre cobranças advindas da Secretaria de Educação, ela apresenta um discurso exaltado:
Eu vou cumprir metas? Eu não. Vou preparar o meu aluno para aprender. Você tem que fazer aquele trabalho que acha que é sério e necessário. Não tem que se preocupar em cumprir meta. Eu vou cumprir quando der. Acho que quem manda nunca entrou numa sala de aula. Você tem que fazer isso, tem que fazer aquilo, mas quem conhece o meu aluno sou eu. Não me mande cumprir metas! (Profa. Cravina).
Esse depoimento veio à tona quando a professora, em uma fala ressentida, denunciava que as políticas verticalizadas não contemplam aspectos importantes relacionados à aprendizagem do aluno. A Professora Cravina citou, então, o trabalho de psicomotricidade que fazia com seus alunos para desenvolver o princípio espaço-temporal, considerado por ela um aprendizado de base que a criança carrega por todo o seu processo de escolarização. Acumulando mais de 30 anos de docência e reconhecendo a imprescindibilidade de trabalhar determinados aspectos, ainda que lamentavelmente não caibam nas políticas educacionais, a professora não abre mão desse trabalho. O cumprimento de metas fica em segundo plano.
Apesar de as professoras não se colocarem contrárias às avaliações externas, é predominante entre elas a insatisfação com a forma como se dá esse tipo de processo avaliativo. A concepção que elas têm do que seja uma boa educação e do papel do professor no processo educativo as leva a considerar que as avaliações externas não têm sido favoráveis à melhoria da qualidade do ensino. Cada uma delas, no entanto, lida com essas questões a seu modo, de acordo com sua formação, características profissionais e pessoais, experiências e valores, fatores que impulsionam o que pensam sobre uma boa educação. Os extratos a seguir são bastante representativos:
Eu não vejo essas avaliações como negativas, mas a forma como vêm sendo implementadas no Brasil trazem uma distorção da gênese. O ENEM é um exemplo, que em seu princípio era para tentar justamente quebrar esse conteudismo e que os alunos pudessem mostrar um conhecimento mais de vida do que um conteudismo desnecessário. (Profa. Dália).
O problema é que hoje em dia as escolas trazem no planejamento um treinamento para que os alunos façam prova. A gente sabe que as escolas particulares, principalmente, fazem treinamento pesado para os alunos fazerem essa prova e as escolas ficarem bem colocadas. Não é isso que eu acredito por educação, não é isso. (Profa. Camélia).
A gente era obrigada a participar das avaliações. Nossos alunos se saíam muito bem. Algumas dessas provas abriam o horizonte. Para mim abriam porque, apesar de eu ser muito brigona, de não gostar das coisas muito fechadas, eu comecei a ver vantagens em algumas coisas. Isso eu posso aplicar, aquilo eu posso aproveitar na sala de aula, eu posso pegar algo que ache produtivo. (Profa. Cravina).
A questão é que essas avaliações não contribuem. A nossa escola tinha índices melhores, mas depois dos ciclos, ela degringolou de uma forma! Aí o professor sempre fala assim: “A culpa é dessa política”. Olha a falta de compromisso. Não justifica! (Profa. Eufrásia).
Apesar do caos promovido pelo contexto prescritivo que assola a escola, essas professoras dão demonstrações de que realizam o exercício de confrontar as estruturas que as afetam com aquilo que acreditam ser o papel que devem desempenhar como docentes. Esse exercício que é, acima de tudo, reflexivo, parece ser, para elas, verdadeira fonte de conhecimentos profissionais. A capacidade de as professoras avaliarem e manterem-se fiéis aos princípios pedagógicos por elas valorizados, ou mesmo reconstruí-los, está relacionada às deliberações reflexivas e à coragem de agir. O relato a seguir é ilustrativo desse movimento:
Eu reflito para mudar, para mudar uma prática para o outro. Não sou o tipo de professora que vou lá, dou a minha aula e saio. Eu sou uma profissional, sou uma pessoa extremamente antenada com a questão política, com as questões sociais, por isso não consigo me ver enquanto um mero profissional, que vai lá, trabalha, faz o que mandam fazer, recebe o seu salário e volta. Os profissionais da educação lidam com vida, e a vida na infância vai marcar. Então, me pergunto o tempo todo: o que essas políticas trazem de bom para o meu aluno? Faço delas uma miscelânea para melhorar a minha prática para o meu aluno. (Profa. Camélia).
Como se vê, não é apenas a experiência que o professor vivencia no espaço escolar, mas a deliberação reflexiva sobre ela que lhe permite criar estratégias para manter a sua dignidade profissional frente ao contexto adverso que assola o seu cotidiano escolar. Por meio da atividade reflexiva, o professor pode defender ou se confrontar a estruturas que afetam o contexto em que está inserido; pode adaptar a sua prática ou rejeitar essa possibilidade. Importa destacar a disposição reflexiva do docente como condição essencial para que ele possa, pouco a pouco, consolidar a sua docência em bases sólidas. Sobre isso, Dewey (1904) aponta que a inclinação à subserviência intelectual dos professores, que não demonstram uma independência intelectual, pode ser mais uma das dificuldades para que se mantenham em permanente evolução sobre como ser professor, para além da sua capacidade imediata de ensinar. Se o professor possui independência intelectual, será capaz de avaliar as imposições que lhe são direcionadas, buscando encontrar um caminho que melhor responda às suas próprias expectativas e demandas. Caso contrário, corre o risco de ser capturado pelas adversidades do cotidiano e, dessa forma, ter a sua experiência subjetivada como vivência, em outras palavras, como uma experiência mais imediata e pré-reflexiva.
Nessa direção, vale notarmos que a forma como as professoras entrevistadas pensam as políticas ou percebem a sua influência em seu trabalho tem relação, também, com o modo pelo qual são tocadas ou se deixam tocar por aquilo que lhes passa. Portanto, tem relação com experiências singulares, como ensina Larrosa (2014). Ainda que possam receber as mesmas influências, a experiência é, para cada uma, a sua. Para o autor, se a experiência é o que nos passa, cada um faz ou padece sua própria experiência, e isso de um modo único, singular, particular, próprio.
Para Dewey (1971, p. 84), “[...] os indivíduos procedem caprichosamente toda vez que são levados pela compulsão externa ou quando, obrigados ou acostumados a obedecer, agem de acordo com o que mandam fazer, sem ter um fito próprio nem perceber o alcance daquilo que estão fazendo, sobre outros atos”. A atitude caprichosa valoriza atos momentâneos, desprezando as associações de nossa atividade pessoal com as forças do ambiente. Assim, pode-se compreender que as atividades caprichosas, indicando a heteronomia, apontam talvez para a incapacidade de o sujeito dirigir experiências singulares que favoreçam a aquisição de novos conhecimentos, melhorando as suas aptidões, bem como a capacidade de resistir ao que lhe é imposto. Desse modo, por mais que os sistemas educacionais possam transformar as normas profissionais relacionadas ao ofício de ser professor (LANTHEAUME, 2012), de tal forma que o ato, mesmo depois de praticado, não é visível para o professor, ou ele não é levado a perceber a conexão entre o ato e seu resultado (DEWEY, 1959), as professoras em tela dão demonstrações de que têm conseguido, em alguma medida, desviar-se das “armadilhas”, resistindo aos constrangimentos que se lhes apresentam no contexto escolar.
Até aqui foram apresentadas circunstâncias que apontam para um “regime” que tolhe a autonomia do professor, o que gera dificuldades (ou mesmo impossibilidades) de se pensar em um projeto de formação docente que o coloque no centro do processo. Importa destacarmos que, neste estudo, o entendimento de autonomia coaduna-se com Contreras (2002). Para o autor, a autonomia docente é constituída pela combinação de aspectos pessoais (compromissos moral e ético) e sociais (relações sociais e valores que as guiam). Nessa compreensão, não faz sentido afirmar que uma pessoa é ou não autônoma, mas que há situações em que ela pode agir de maneira autônoma. Dessa forma, a atitude autônoma do professor está vinculada à consciência de sua insuficiência e parcialidade, de sua solidariedade e sensibilidade na lida com os seus pares. Na perspectiva de Contreras (2002), a autonomia distancia-se da autossuficiência e aproxima-se mais da ideia de emancipação.
As circunstâncias acima relatadas pelas professoras remetem a mecanismos de expropriação do docente de sua tarefa de buscar soluções para questões educacionais, ou mesmo da tarefa de transformar a própria prática pedagógica em objeto de investigação (STENHOUSE, 1984), de aprender por meio de uma formação clínica (DEWEY, 1904) em espaços de cultivo do ensino e da pesquisa (TEIXEIRA, 1966), é algo que afeta diretamente o seu processo de afirmação e de desenvolvimento profissionais. Ademais, afetam o seu processo de fazer experiência.
As políticas educacionais, portanto, impondo padrões e cerceamento à autonomia docente, podem gerar efeitos perversos, ao mesmo tempo que podem provocar deliberações reflexivas e processos potencialmente formativos para as professoras. Nesse diapasão, acresce-se ao estudo as políticas de ciclos (formas não seriadas de organização da escola) que emergiram nos discursos das professoras e nos permitiram aprofundar as análises sobre as condições de que elas dispõem para fazer experiência e aprender por meio dela.
Barretto e Sousa (2005, p. 660), ao buscarem esclarecer sobre usos e sentidos do termo “ciclo” na educação brasileira, afirmam que ele já teve outros significados, bem como sua ideia básica já esteve presente em propostas que receberam outras denominações. Todavia, a denominação ciclo como alternativa de organização escolar não seriada surge no Brasil em meados dos anos de 1980. A justificativa para a organização escolar em ciclos pode assim ser representada:
Contrapondo-se à seriação, forma tradicional de organização da escola e que está na gênese da exclusão escolar, os ciclos são normalmente justificados pela possibilidade de democratizar a aprendizagem, na medida em que permitem outros modos de organizar os tempos e os conteúdos escolares que sejam mais adequados às necessidades e ritmos de aprendizagem dos alunos. (ALMEIDA, 2008, p. 97-98).
Com a organização da escolaridade em ciclos , espera-se minimizar a evasão que é fruto de sucessivas reprovações, assegurando a possibilidade de permanência do aluno ao longo do Ensino Fundamental, na tentativa de superar o caráter seletivo da escola. Entretanto, a ênfase nesses objetivos varia no tempo e no contexto de uma mesma rede de ensino (BARRETTO; SOUSA, 2005), fazendo com que a política de ciclos assuma características singulares nas redes de ensino (MAINARDES, 2010), indo desde estruturas que rompem radicalmente com o modelo seriado, com características mais progressistas àquelas que rompem parcialmente com tal modelo, tendo como objetivo a redução das taxas de reprovação.
Ao analisarem pesquisas sobre a implementação de políticas de ciclos, Mainardes e Stremel (2011, p. 54) concluem que:
De modo geral, as pesquisas indicam que a implantação de propostas de ciclos tem levado a mudanças nas concepções e práticas de avaliação, tais como: o abandono do uso de notas, a tentativa de incorporar as contribuições da avaliação formativa, a utilização das informações obtidas por meio da avaliação para o planejamento de intervenções e da diferenciação das situações de ensino. Apesar disso, pode-se concluir, a partir do exame dessas pesquisas e de pesquisa de campo realizada pelos autores desse artigo, que as práticas classificatórias ainda não foram superadas e que os princípios da avaliação formativa (presentes em diversas propostas oficiais) têm se efetivado apenas parcialmente e de forma diferenciada em cada contexto. (MAINARDES; STREMEL, 2011, p. 54).
Como vemos, no Brasil, a escola organizada em ciclos presentifica-se ancorada a uma política pública que busca se justificar com o discurso de inclusão social da população marginalizada da vida escolar. Contudo, a reestruturação da escola nesses moldes implica muitos aspectos que requerem especial atenção, dentre os quais destacamos os que dizem respeito aos professores: a compreensão que eles têm sobre o seu trabalho, sobre a escola e seus alunos.
No seio do debate sobre os ciclos, ganha destaque o Bloco Pedagógico, política pública criada pelo MEC para instituir o regime de progressão continuada nas escolas, introduzido em escolas da rede pública de ensino. As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de nove anos - Resolução Nº 7, de 14 de dezembro de 2010 (BRASIL, 2010b) - reconhecem os três anos iniciais como ciclo da alfabetização e letramento, recomendando, portanto, que não haja interrupção nessa etapa.
Mesmo quando o sistema de ensino ou a escola, no uso de sua autonomia, fizerem opção pelo regime seriado, é necessário considerar os três anos iniciais do ensino fundamental como um bloco pedagógico ou um ciclo sequencial não passível de interrupção, voltado para ampliar a todos os alunos as oportunidades de sistematização e aprofundamento das aprendizagens básicas, imprescindíveis para o prosseguimento dos estudos. (BRASIL, 2010b, p. 9).
A proposição é assegurar aos alunos de seis a oito anos de idade, durante os três primeiros anos de escolarização no Ensino Fundamental, o aprendizado dos conteúdos de forma sistêmica. Nesse sentido, a garantia da alfabetização na “idade certa” é pleiteada a partir de uma concepção de aprendizagem que considera as fases de introdução (1º ano), aprofundamento (2º ano) e consolidação (3º ano), sem o prejuízo da reprovação do aluno nesse período que compõe o Bloco Pedagógico. Trata-se de uma política que busca garantir a alfabetização e a numeralização ao aluno por meio da progressão de aprendizagens, o que requer, inevitavelmente, organização e planejamento por parte da escola e dos professores responsáveis pelo Bloco Pedagógico. Um aspecto delicado, que tem causado desconforto entre alguns professores, é a não repetência do aluno.
Nas regulamentações dos sistemas escolares que implantaram ciclos, geralmente a possibilidade de reprovar o aluno tem sido limitada ao final de cada ciclo ou aos alunos que não apresentam a frequência mínima obrigatória às aulas, o que usualmente tem sido contestado por profissionais das escolas. (BARRETTO; SOUSA, 2005, p. 675).
Contradizendo as expectativas, de forma geral, o Bloco Pedagógico tem encontrado dificuldades para alcançar os objetivos pretendidos. Almeida (2008) observa que a permanência do aluno na escola, graças à ausência de reprovação ao longo dos ciclos do Ensino Fundamental, não lhe assegura uma aprendizagem efetiva.
Ao explanar sobre danos que essa política de progressão continuada pode causar à aprendizagem dos alunos da Rede Municipal de Ensino, a professora expõe a sua percepção sobre a principal mudança operada nas escolas:
O Bloco Pedagógico mudou muito a vida dentro da escola pública, principalmente porque muitas professoras se sentiram descompromissadas. Como o aluno não é reprovado, muitos professores consideram que não têm mais essa responsabilidade. Hoje, no 5º ano, eu recebo alunos que não sabem escrever o nome da escola. Chamei a diretora, ela olhou, reconheceu que a situação era caótica mesmo e disse: “Eles são filhos do Bloco Pedagógico”. (Profa. Eufrásia).
O depoimento da Professora Eufrásia é uma espécie de denúncia direcionada a algumas colegas (também à diretora da escola) que se sentem desobrigadas do trabalho de avaliar e de acompanhar o avanço do aluno. Parece que a falta de compromisso assinalada pela Professora Eufrásia tem relação direta com a concepção que essas profissionais possuem sobre o seu trabalho, sobre a escola e os alunos, um tanto distante, por exemplo, da perspectiva de avaliação como processo. Sendo o princípio norteador do Bloco Pedagógico a aprendizagem do aluno, e, portanto, a ênfase na progressão de aprendizagens, essa política impõe ao professor a tarefa premente de organizar e planejar sistematicamente o processo de ensino e de aprendizagem, para um acompanhamento sistêmico que permita conhecer avanços e dificuldades de seus alunos; algo que, de acordo com a visão da Professora Eufrásia, não tem acontecido em sua rede de ensino.
Na visão dessa professora, a situação vivenciada demanda uma ação coletiva no sentido de tentar minimizar efeitos negativos da implementação da política de progressão continuada em sua escola. Assim ela faz: procura a diretora e expõe a situação caótica, a fim de forjar a abertura para um diálogo franco que envolva toda a equipe pedagógica da escola. Para surpresa da Professora Eufrásia, a diretora demonstra falta de clareza em relação ao contexto que assola a escola. Associar o baixo nível de proficiência dos alunos à ideia de que são “filhos do Bloco Pedagógico” é desconsiderar o conjunto de fatores que concorrem para o sucesso ou o fracasso de suas aprendizagens. E mais, esse tipo de postura dificulta que os professores saiam de seus lugares (mexam-se) e encontrem caminhos para superar os problemas detectados, pois, assim como a diretora, parece ser mais conveniente atribuir o caos ao sistema. Sobre esse assunto, vale registrarmos o alerta feito por Barretto e Sousa (2005):
Em virtude da progressão de alunos que apresentam diferentes competências e habilidades, resultante dos ciclos, os professores se defrontam com a necessidade de alfabetizá-los. Seu processo de formação deve, portanto, passar a levar em conta esse desafio, de modo tal que a alfabetização possa constituir efetivamente uma leitura de mundo, impregnada de conteúdos relevantes do ambiente físico e social. (BARRETTO; SOUSA, 2005, p. 674).
Como podemos observar, na política de ciclos, é premente que os professores compreendam a sua reponsabilidade profissional em proporcionar aos alunos aprendizagens essenciais para que tenham condições de fazer uma “leitura de mundo”, de modo a exercer a sua cidadania na vida em sociedade. Por isso, a importância de que o docente considere em sua prática pedagógica o princípio da progressão de aprendizagens.
A Professora Cravina, por sua vez, apresenta um discurso sobre o Bloco Pedagógico que, em princípio, pode colocá-la ao lado das colegas da Professora Eufrásia: Parece que nós viramos babá de luxo! No dia em que falaram que não seria mais permitido reprovar, eu disse: “Babá de luxo! Estudei e fiz concurso para ser babá de luxo” (Profa. Cravina). Segundo Ball (2002), políticas dessa natureza contribuem para retirar o valor do professor e a sua autonomia, levando-o, inclusive, a reformar a sua noção do que significa ser professor. Acresce-se a isso a análise feita por Barretto e Sousa (2005) sobre a percepção dos professores acerca da impossibilidade de reter os alunos ao término de um ano letivo:
Os professores sentem que perdem poder e controle da situação de ensino, alegando que o manejo da classe torna-se bem mais difícil nas escolas com ciclos, especialmente nas turmas de alunos mais velhos. A reprovação é reivindicada por grande parte dos segmentos escolares como um mecanismo necessário para garantir a aprendizagem, sendo a ela atribuído um potencial de motivação para o ensino e para a aprendizagem. (BARRETTO; SOUSA, 2005, p. 675).
Em nossa interpretação - que se difere da percepção dos professores mencionada na citação acima - a impossibilidade de reter o aluno ao término de um ano letivo deveria ser vista pelos professores não como prejuízo ao aluno, mas podendo representar ganho em seu processo de aprendizagem. O problema, a nosso ver, não se assenta na não reprovação, mas naquilo que não se está conseguindo garantir ao aluno no período mais demorado em que ele passa nos ciclos. A possibilidade de o aluno ficar um tempo mais prolongado no ciclo sem que seja despertado para o estigma da reprovação, dá ao professor a condição de realizar um trabalho pedagógico que possa ser considerado inclusivo.
O depoimento da Professora Cravina remete-nos à ideia de “chicote da reprovação” - um recurso que todo professor pode lançar mão para fazer valer o seu papel docente de fazer o aluno aprender (ROLDÃO, 2007). Contudo, talvez a ideia de castigo, implícita na de “chicote da reprovação”, possa ser relativizada em alguma medida. O desabafo que a Professora Cravina faz tem relação com a sua convicção de que quem melhor sabe o momento para promover ou reter um aluno é ela, a professora que acompanha o dia a dia do aluno e que está equipada pedagogicamente para tomar decisões desse tipo.
Essa professora, quando associa a progressão continuada ao professor “babá”, aquele que acompanha a criança, mas não tem poder de decisão (autonomia para decidir) sobre questões voltadas para o seu desenvolvimento, expressa o seu senso crítico, sua preocupação com a aprendizagem dos alunos. Apesar de não ter autonomia para interferir na política de progressão continuada, percebemos que a crítica e a preocupação podem promover experiências de aprendizagem para os seus alunos, mas também para ela.
A defesa da Professora Cravina pelo direito de reter alunos que não se encontrem aptos para prosseguir é justificada por acreditar que esse tipo de medida evita que sejam excluídos e marginalizados. Desse modo, para seguir-se por um caminho, a justificativa é a exclusão, mas, para justificar o caminho diverso, a exclusão é também evocada. Na visão da Professora Cravina, políticas que retiram do professor a autonomia de que precisa para fazer o trabalho que considera ser o melhor para seus alunos prejudicam a qualidade das aprendizagens.
Como podemos notar, ao referirem-se às políticas relacionadas à progressão continuada, no caso em tela, ao Bloco Pedagógico, a Professora Cravina faz associação com o surgimento do professor “babá”; e a Professora Eufrásia, com o incentivo à falta de compromisso docente. Ambas, porém, cada qual com perspectivas próprias, expressam o seu senso de comprometimento com a educação, o que parece preveni-las da possibilidade de caírem em armadilhas que afetem negativamente a sua autonomia e, consequentemente, o trabalho que querem desenvolver na escola. O que depreendemos é que a maior satisfação com a profissão docente não está associada à posse do “chicote da reprovação”, nem à ideia de “lavar as mãos”, mas, acima de tudo, à preservação da autonomia docente. Para Contreras:
Somente se e quando os professores puderem imprimir na docência (nos conteúdos, práticas, avaliações) a reflexão crítica sobre suas aspirações, visões de mundo e experiências é que a autonomia poderia ser entendida como qualidade educativa - mais que um atributo profissional concedido externamente. (CONTRERAS, 2002apudVALÉRIO, 2017, p. 328).
Logo, se o papel dessas professoras está comprometido com fazer o aluno aprender (ROLDÃO, 2007) e incluí-lo, no momento que, por ventura, são expropriadas do poder de decisão sobre questões didático-pedagógicas (por exemplo, reter ou não um aluno em um ano escolar), ocorre uma ruptura que interfere diretamente no exercício docente, no nível de satisfação com a profissão e, consequentemente, em sua autonomia.
Estamos diante de um cenário que acena para a autonomia do professor como algo precioso, embora sua concretização se dê, de fato, pela construção coletiva (já que compreendemos a autonomia docente como uma combinação entre aspectos pessoais e sociais), quando aos sujeitos são respeitados espaço e tempo para a reflexão e a troca entre os pares, assim como sua capacidade de resistir ao que lhe é imposto de fora.
Do quadro apresentado sobre a política de ciclos, depreendemos que o exercício da docência dessas professoras e sua própria autonomia, apesar de ocorrerem em contexto de verticalização (já que o funcionamento da rede de ensino é algo estabelecido), acabam por forjar um espaço com potencial formativo. As possíveis situações de dominação e de conflito que caracterizam o espaço escolar, ao mesmo tempo que colocam em xeque a autonomia dessas professoras, servem de impulsos para elas oporem suas convicções pedagógicas ao sistema e se afirmarem profissionalmente. Nesse movimento, as experiências feitas pelas Professoras Cravina e Eufrásia exemplificam uma autonomia conquistada.
Quanto às condições objetivas, as orientações são para não reter os alunos. Há, porém, alunos que não foram alfabetizados, há colegas e gestores cujas concepções pedagógicas divergem do ponto central da proposta da política de ciclos, conforme os depoimentos das professoras entrevistadas. Não lhes faltam convicção pedagógica, desejo de fazer o que consideram “certo”, valorização da autonomia e a vontade de crescer profissionalmente. Com base na combinação desses fatores, as professoras desenvolveram experiências formativas que estão vivas em suas memórias porque acrescentaram significado às suas aprendizagens como profissionais.
Algo preocupante desse cenário é a exclusão do professor nos processos de elaboração de políticas educacionais como as aqui explanadas. Afinal, a sua capacidade não tem sido reconhecida. Isso tem sugerido tentativas de controle e de intervenção sobre o trabalho docente. Essa tendência tem ganhado força nos últimos anos, inclusive insinuando afirmações infundadas de que o professor dos anos iniciais do Ensino Fundamental é malformado e mal preparado.
Com efeito, a tensão entre a autonomia docente e a prescrição do trabalho leva a pensar nas relações, no cotidiano, na prática; enfim, na experiência do professor. O que justifica, hoje, o encurtamento da possibilidade de o professor agir a partir de sua experiência reflexiva e criativa? Seria a noção de que ele é encarado como um profissional malformado, mal preparado, que não dispõe de tempo para o seu aprimoramento devido à baixa remuneração que o obriga a ter dupla jornada de trabalho? São questionamentos que ressaltam como as novas exigências se concentram em iniciativas a guiar, apostilar e padronizar a prática do professor, abafando suas possibilidades de criação. Observe-se que nos referimos a verbos que arriscam cercear o campo de autonomia, de criação e de experimentação necessários para que o professor possa construir a sua própria prática, a sua própria experiência, produzir subjetividade singular ao dialogar com aquilo que vem de fora e ao resistir ao que lhe é imposto de fora. Felizmente, encontramos práticas pedagógicas que tentam subverter a lógica em vigor (de cerceamento da autonomia do professor), como foi possível extrair ao longo do contato com as nossas entrevistadas. A maioria das professoras da pesquisa mostra-nos que circunstâncias adversas, apesar de inibidoras e de cobrar delas um esforço maior, não têm sido impeditivas para que possam extrair delas aprendizagens, seja para fortalecer práticas já consolidadas, seja para forjar suas mudanças. Ao fim e ao cabo, por meio da deliberação reflexiva e da coragem de agir, as professoras vão, no exercício de suas práticas, aumentando seu repertório de saberes e consolidando sua docência.
Considerações finais
Nos dias de hoje, sob a óptica mercadológica dominante, é compreensível a ideia do gerenciamento de um sistema educacional por meio de indicadores de resultados e que se criem instrumentos para diagnosticar as habilidades que os alunos desenvolveram em um determinado período de escolarização. Esse tipo de medida auxilia na elaboração de políticas educacionais que visam à obtenção de resultados considerados positivos na aprendizagem. Assim sendo, como foi indicado neste texto, um dos pontos mais notáveis na política educacional nos últimos anos tem sido o aumento e o impacto da performatividade e, em consequência, da responsabilização dos professores (BALL, 2002, 2011; FREITAS, L. C., 2012; FREITAS, H. C. L., 2002; NÖRNBERG, 2020). No Brasil, não tem sido diferente. Nos últimos anos, temos assistido a reformas educacionais que desqualificam o trabalho do professor, mantendo-lhe condições de trabalho deficientes, o que, muitas vezes, o obriga a atividades em desacordo com seus princípios. Essa assertiva pode ser ilustrada a partir de experiências relatadas pelas nossas entrevistadas, que, dentre outros aspectos, apontam para a indução a práticas pedagógicas de treinos e de repetições para que os alunos se saiam bem nas avaliações externas e a escola fique bem classificada.
Considerando que as análises aqui empreendidas buscaram articular, pelo viés da experiência, o processo contínuo de formação docente de professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental e o contexto mais prescritivo com que elas se deparam nas escolas em que atuam, partimos da ideia de que a experiência não se processa exclusivamente no interior do sujeito, mas há elementos fora dele que a despertam e a alimentam, como é o caso, neste estudo, da estrutura que compõe o ambiente escolar. Como componentes dessa estrutura, estão os recursos institucionais, a equipe gestora, a implementação de políticas educacionais, a relação entre os pares, os espaços de trocas profissionais na escola e as prescrições advindas das políticas educacionais conservadoras de avaliações em larga escala e de ciclos. Ao mesmo tempo que as professoras da pesquisa reconhecem elementos que interferem em seu trabalho e ameaçam esvaziar a experiência de seu sentido, elas demonstram postura crítica que resiste à alienação e à dominação. Reafirmamos, neste estudo, aquilo que é destacado por Dewey e Larrosa: a importância de condições sob as quais o professor (em permanente formação) seja tocado e sensibilizado, podendo extrair das circunstâncias físicas e sociais tudo que possa contribuir para a construção de experiências válidas, dando continuidade ao processo de crescimento profissional.
Ao buscarem força onde não têm, expressão utilizada por uma das professoras entrevistadas e presente indiretamente no discurso de outras, as professoras dão claras demonstrações de realizarem o exercício de confrontar aquilo que as afeta pelo sistema com o que acreditam ser suas responsabilidades profissionais. Nesse movimento, compreende-se que as professoras fazem as suas opções, buscando coerência entre as convicções pedagógicas que desenvolveram ao longo de suas carreiras e aquilo que o ambiente lhes impõe. Percebemos que elas caminham contra a busca de controle e de redução do poder de decisão do professor, uma lógica que é emanada das reformas educacionais e atinge o espaço escolar. Elas demonstram capacidade crítica e vontade de aprender pelas experiências, apesar do esforço que isso representa.
Os resultados apontam que o cenário de docência dessas professoras é marcado pelo sentimento de luta pela dignidade do seu trabalho: ao mesmo tempo que pressões e restrições características do espaço escolar em que atuam as incomodam, também desvelam oportunidades para se afirmarem profissionalmente, ainda que esse movimento requeira delas esforço constante.
Utilizando a linguagem da “experiência”, é possível dizermos que estamos diante de um quadro que acena para a “experiência do pior” (BATISTA, 2017), que pode ser profícua para o acontecimento de experiências ou apenas subjetivada como algo sem aproveitamento. As circunstâncias adversas relatadas pelas professoras desvelam cenas que remetem para a experiência, que “[...] é sempre impura, confusa, demasiado ligada ao tempo, à fugacidade e à mutabilidade do tempo, demasiado ligada a situações concretas, particulares, contextuais, demasiado vinculada ao nosso corpo, a nossas paixões, a nossos amores e a nossos ódios” (LARROSA, 2014, p. 39). As situações conflituosas, que os mecanismos de controle têm imposto à organização escolar, funcionam para as professoras entrevistadas, cujas práticas pedagógicas se encontram fundamentadas e alicerçadas na autonomia, como um “nicho” para o fazer experiências formativas.
O conjunto de elementos internos e externos, positivos e negativos, que entram no emaranhado de situações por vezes conflituosas que cercam como um nicho o trabalho do professor, não o impedem de desenvolver experiências formativas em seu crescimento profissional. Dentro desse nicho, forças em direções opostas convergem pelo espírito crítico e pela autonomia segura do professor, em reações construtivas, frente a questões que desafiam a unidade e o próprio trabalho efetivo do corpo docente da escola. Como ocorreu no episódio relatado por uma de nossas entrevistadas, sobre o constrangimento sofrido pela colega cujo reconhecido bom trabalho sofreu um processo de “invisibilização”, devido aos baixos resultados de alguns alunos, na atual perspectiva de ranqueamento das escolas pelos seus resultados. Exemplos como esse foram numerosos nas entrevistas reunidas pela pesquisa, indicando experiências vividas pelas 13 professoras do grupo investigado que vão consolidando a base sobre a qual se assenta sua identidade profissional. Assinalamos, contudo, que tais situações acenam para a presença de um cenário marcado pela sobrevivência do trabalho docente, que tem sido visto e sentido, pelas professoras da pesquisa, como uma luta constante. Uma luta pela sobrevivência do trabalho do professor como sujeito autônomo da própria prática.