Introdução
Iniciamos este texto reafirmando que Paulo Freire é referência para educadores no mundo inteiro e está inscrito em muitas obras das ideias pedagógicas do nosso tempo. Assim, celebrar os cem anos desse educador é reafirmar sua voz. Freire dedicou sua vida e defendeu a escola pública, popular e democrática; defendeu a igualdade de direitos; defendeu os direitos humanos; defendeu uma vida sustentável, em que a lógica do ser humano prevalecesse sobre a lógica do mercado. Assim, defendeu um mundo menos malvado e mais amoroso. Celebramos Paulo Freire não somente porque é um dos maiores educadores da humanidade, mas porque buscava celebrar a paz e a convivência entre os seres humanos. Celebramos o educador que defendeu, por toda a vida, uma sociedade justa e democrática onde todos tenham o seu espaço e acreditou na ideia de que é possível a lógica do diálogo, da autonomia e da reflexão crítica.
Celebramos Paulo Freire, especialmente, em um momento crucial, no qual pensar sobre os rumos que a humanidade vem tomando torna-se uma questão de sobrevivência da espécie humana diante do risco de que a vocação ontológica de ser mais, de homens e de mulheres, não seja mais uma possibilidade, face aos desastres ecológicos, sanitários e políticos que nos rondam na segunda década do século XXI.
No decorrer de 2020, a Covid-19, provocada pelo novo Coronavírus, assolou de forma generalizada povos, culturas, diferentes regiões de nosso planeta Terra. Em razão disso, parece ser cada vez mais urgente a reflexão sobre o tipo de sociedade que desejamos em nosso tempo presente e para o futuro da humanidade, uma vez que a pandemia conseguiu, em pouco tempo, dar grande visibilidade às desigualdades sociais latentes na sociedade capitalista, na qual produzimos historicamente nossa existência na contemporaneidade.
A permanência da vida humana no planeta Terra, hoje, encontra-se em sinal de alerta. No momento que concluímos este artigo, o Brasil atingia a marca dos mais de cento e setenta mil mortos, vítimas da Covid-19 (BRASIL, 2020)1. No entanto, a existência dessa vida em condições minimamente “civilizatórias”2 tem sido objeto de denúncia e luta de muitos grupos sociais, ao longo de diferentes processos históricos. A queda da renda dos mais pobres, no Brasil, como no mundo, é proporcional ao aumento de renda dos mais ricos. O Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) da Organização das Nações Unidas (ONU), recentemente divulgado, aponta que o Brasil é o segundo país do mundo com maior concentração de renda pelos mais ricos. Os 1% mais ricos detêm 28,3% da renda total do país. Já os 10% mais ricos concentram 41,9% da renda total (CARTA CAPITAL, 2020). A escandalosa concentração de riqueza é a contraface da extrema desigualdade social e caminha pari passu com a iminente catástrofe ecológica, que enuncia a destruição da vida do planeta.
Segundo dados da ONU Habitat, 1,6 mil milhões de pessoas não tem habitação adequada e 25% da população mundial vive em bairros informais sem infraestruturas nem saneamento básico, sem acesso a serviços públicos, com escassez de água e de eletricidade. Vivem em espaços exíguos onde se aglomeram famílias numerosas. Em resumo, habitam na cidade sem direito à cidade, já que, vivendo em espaços desurbanizados, não têm acesso às condições urbanas pressupostas pelo direito à cidade. (SANTOS, 2020, p. 16).
Tal cenário nos leva a indagar: Paulo Freire pode nos ajudar a encontrar respostas para o contexto que atravessamos? Seu arcabouço teórico-prático pode nos trazer elementos para pensarmos o papel da escola e dos/das educadores/as progressistas, na travessia da tempestade que enfrentamos, contribuindo para nos reinventarmos e reinventarmos a própria sociedade?
Toda a sua obra, com destaque para a Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 2005), nos diz que sim. Defendemos, no presente artigo, que revisitar Paulo Freire, dialogar com seus conceitos em busca de caminhos que inundem de possibilidades as nossas ações militantes, nossas práticas docentes, bem como nosso trabalho de formadores/as de professores/as, atravessados por um contexto especialmente desafiador, mais do que possível, é urgente e necessário.
Diante da conjuntura que se coloca para nós, entendemos que dialogar com Freire, em busca de produzir compreensões mais amplas sobre o cenário sanitário-político-educacional com o que nos defrontamos, nos possibilita praticar “[...] uma pedagogia da esperança, que por meio da educação, da escola, da formação docente mantenha a luta permanente por uma sociedade mais justa, mais solidária e menos excludente” (ARAUJO; TAVARES, 2003, p. 136).
Para esse diálogo com Freire, organizamos nosso artigo, que objetiva contribuir com as reflexões sobre a atualidade do pensamento freireano, no advento de comemoração de seus cem anos de História e Esperança, em três seções: na primeira, estabelecemos um diálogo com Freire a partir do resgate de suas memórias e de elementos de seu contexto histórico que o constituíram docente e intelectual da práxis. Tal articulação busca problematizar o movimento reacionário de educação em curso e entender, por meio da referência a algumaslives, a atuação dos/as docentes em tempos de pandemia, em trabalho remoto, reafirmando, em diálogo com Paulo Freire, sobre a dimensão política e formativa do ato de educar em busca de uma pedagogia problematizadora e dialógica. Na segunda seção, buscamos contextualizar elementos históricos contemporâneos elucidando seus pressupostos conservadores imbricados em uma perspectiva de educação bancária e antidialógica. Elucidamos os desafios enfrentados por estudantes e educadores do Centro Municipal de Referência de Educação de Jovens e Adultos (CREJA) agudizados pelo isolamento social. Suscitamos estratégias e tessituras em andamento realizadas no âmbito do CREJA buscando responder a questões educacionais deste momento complexo, tendo como referência a busca por uma educação libertadora e para a práxis. Na terceira seção, buscamos conjugar o verbo esperançar, elaborando um exercício de pensamento amparados nos conceitos chaves de Paulo Freire sobre situações limites apresentadas ao longo deste trabalho e a necessária construção de um inédito viável para a materialização do processo de humanização e do ser mais, para a construção de uma sociedade outra, com princípios democráticos e emancipatórios.
O ato político de educar em tempos de trabalho remoto: contribuições das lives para pensar o contexto em nossa atualidade
A dimensão política do ato de educar é uma das contribuições centrais da pedagogia freireana. Para o educador, não há como dicotomizar, fragmentar, separar o ato de educar de uma concepção política de ser humano, de sociedade, de humanidade. Na mesma medida, não é possível defender uma suposta neutralidade neste ato. Para Paulo Freire,
[...] não é possível entender-me apenas como classe, ou como raça, ou como sexo, mas, por outro lado, minha posição de classe, a cor da minha pele e o sexo com que cheguei ao mundo não podem ser esquecidos na análise que faço, do que penso, do que digo. Como pode ser esquecida a experiência social de que participo, minha formação, minhas crenças, minha cultura, minha opção política, minha esperança. (FREIRE, 2020a, p. 19).
Nesse pequeno trecho, Paulo Freire convoca-nos a pensar sobre diversos elementos que estão relacionados à forma como estamos sendo, como nos construímos enquanto sujeitos históricos, dentro de uma dimensão material e, sobretudo, a nossa capacidade de perceber-nos engendrados nessas relações, nesse conjunto de elementos que nos constroem e nos atravessam. Com suas palavras, ele nos ensina que perceber-nos como um ser histórico, político – cujas crenças e esperanças que alimentam nossa existência e nosso fazer são atravessadas por questões de raça, sexo, classe, dentre tantas outras – é uma dimensão fundamental em nosso processo de autoconhecimento, seja como homens, mulheres, mães, pais, professores, professoras, cidadãos, cidadãs.
Interessa-nos refletir sobre a dimensão política, compreendendo-a como uma dimensão formativa, no sentido de entendermo-nos enquanto sujeitos históricos, cujas relações culturais, relações de crenças, a forma como percebemos o mundo a partir do conhecimento que nos constitui, não é algo dado, mas sim algo que está sendo construído, por isso histórico, material, relacional, tensionado, contraditório. E a forma como aprendemos sobre o mundo passa, sem dúvida nenhuma, pela educação em seu sentido amplo e social e, também, em seus espaços escolares, institucionais. Assim sendo, é parte inerente a um projeto educacional progressista a discussão curricular, os diálogos e as formas de abordagens plurais no chão da escola, a percepção individual e coletiva de como entendemos o ato educativo em sua dimensão política, pois esta dimensão está intimamente relacionada à função social da escola, com a construção de uma sociedade e com a prática do fazer docente.
Continuando nosso diálogo com o processo rememorativo e reflexivo, de Freire, acerca de como vai se constituindo professor, entendemos que a dimensão política do ato educativo se complementa, se amplia nas inquietações e nas compreensões, no que diz respeito à incompletude da natureza do ser/tornar-se docente.
Eu tinha, na verdade, desde menino, um certo gosto docente, que jamais se desfez em mim. Um gosto de ensinar e de aprender que me empurrava à prática de ensinar que, por sua vez, veio dando forma e sentido àquele gosto. Umas dúvidas, umas inquietações, uma certeza de que as coisas estão sempre se fazendo e se refazendo e, em lugar de inseguro, me sentia firme na compreensão que, em mim, crescia de que a gente não é, de que a gente está sendo. (FREIRE, 2020a, p. 93).
Subjacente à percepção de que “a gente não é, de que a gente está sendo”, há uma concepção antropológica que sustenta a compreensão de Freire, de que somos seres humanos inacabados e vivemos “[...] em um processo continuo de desenvolvimento intelectual, moral e afetivo [...] seres que se constroem por meio de suas ações no mundo e na história, seres em busca da conquista de nossa própria humanidade” (TROMBETA; TROMBETA, 2017, p. 221).
A compreensão de sua inconclusão, de se fazer e refazer no sentido histórico, da dimensão material e das condições de opressão engendram em um processo de humanização, ou da constatação de sua desumanização. A compreensão desta última passa, segundo Freire, “[...] não apenas como viabilidade ontológica, mas como realidade histórica. É também, e talvez sobretudo, a partir desta dolorosa constatação que os homens se perguntam sobre a outra viabilidade – a de sua humanização” (FREIRE, 2005, p. 32).
Freire (2005) denuncia a exploração, a injustiça, a opressão e a violência dos opressores como manifestações da desumanização, nunca reconhecida como tal pelos próprios opressores, mas indica que, a partir dessa vocação negada, da falta de consciência dessa desumanização, há a viabilidade para a afirmação do processo de humanização por meio da afirmação da liberdade, da justiça, da luta dos oprimidos. A compreensão desse processo de constituição da humanização ou de sua negação, e também de sua alienação, é um elemento de compreensão de nosso tempo histórico, que também caracterizava o tempo de Paulo Freire, no sentido de que as condições de opressão de desumanização que se faziam presentes no tempo de seu exílio e de quando escreveu Pedagogia do Oprimido, ainda se fazem presentes meio século após a escrita dessa obra. As condições de opressão da sociedade, dita, hoje, hiper capitalista (SANTOS, 2020), não só permanecem como se agudizam cada vez mais em um processo que nos desafia constantemente a pensar nos projetos de educação para a emancipação e a liberdade humana, para a percepção do trabalho como um processo ontológico e criativo e não como uma atividade embrutecedora e alienante, para pensar outras formas de existir menos desiguais e injustas em um cenário que se revela cada vez mais tensionado e embrutecedor.
Santos (2020) refere-se ao hiper capitalismo como o modelo social que cresceu e se fortaleceu nos últimos 40 anos, sobretudo depois da queda do Muro de Berlim, quando então se impõe como modelo
[...] a versão mais anti-social do capitalismo: o neoliberalismo crescentemente dominado pelo capital financeiro global. Esta versão do capitalismo sujeitou todas as áreas sociais – sobretudo saúde, educação e segurança social– ao modelo de negócio do capital, ou seja, a áreas de investimento privado que devem ser geridas de modo a gerar o máximo lucro para os investidores. (SANTOS, 2020, p. 22).
Diante dessa perspectiva de fazer-se histórico, de estar sendo, de perceber-se nessas relações materiais, engendradas, que nos permitem conceber a educação como um processo libertador, humanizador e tão necessário para a construção de uma sociedade mais justa, destacamos a centralidade do/a docente e de seu fazer, de ser e existir enquanto sujeito histórico atravessado por visões de mundo e de educação.
Freire (2020a, p. 93) nos diz que “[...] ninguém nasce feito. Vamos nos fazendo aos poucos, na prática social que tomamos parte. Não nasci professor ou marcado para sê-lo, embora minha infância e adolescência tenham estado sempre cheias de ‘sonhos’ em que rara vez me vi encarnando figura que não fosse professor”. A percepção de que não nascemos marcados, de que vamos nos tornando quem somos a partir de uma relação formativa com o coletivo, com outras pessoas, com a troca de saberes, com a construção de perspectivas de mundo e de sociedade, que está sempre em movimento, em constante aprendizado, em constante exercício de pensar a existência em um espaço tempo, se constitui como um outro legado fundamental da pedagogia freireana.
Não há como dissociar esse movimento formativo que envolve os processos educacionais, sejam os que acontecem nos movimentos populares, sejam os que acontecem no interior da escola. Aqui nos interessa refletir sobre os processos escolares, as relações que se dão na formação da humanização na práxis do fazer docente nos cotidianos educativos e na dimensão de olhar para esse conjunto de saberes, dos quais Paulo Freire reafirma:
Na verdade, não me é possível separar o que há em mim de profissional do que venho sendo como homem. Do que estava sendo como menino no Recife, nascido na década de 20, em família de classe média, acossada pela crise de 29. Menino cedo desafiado pelas injustiças sociais como cedo tomando-se de raiva contra preconceitos raciais e de classe a que juntaria mais tarde outra raiva, a raiva dos preconceitos em torno do sexo e da mulher. (FREIRE, 2020a, p. 94).
Movido pela narrativa de questões que se colocavam como provocadoras em sua infância e reverberaram em sua formação docente, Freire (2020a, p. 94), em suas rememorações, percebe-se “[...] menino cedo desafiado pelas injustiças sociais como cedo tomando-se de raiva contra preconceitos raciais e de classe”. A dimensão política da prática docente defendida pelo educador revela assim suas raízes na existência encarnada.
Retomando o diálogo com os tempos atuais, importante reafirmarmos que, embora direitos tenham sido conquistados em relação às injustiças contra as quais Freire se debatia desde a adolescência, tais como as questões de classe, de raça, de gênero, dentre outras, em função das lutas dos grupos sociais, hoje, além da pandemia, o mundo está atravessado por uma onda ultraconservadora de valores e de ideologias que buscam reafirmar a negação dos direitos das chamadas minorias, que estão à margem do poder. Tensionamentos sociais têm se traduzido no Brasil, como na América Latina, em projetos reacionários de educação e no ataque à educação pública, aos/às docentes e à autonomia do fazer pedagógico.
Os últimos anos têm vindo acompanhados por mudanças no cenário político, econômico, social e, mais especificamente, nas relações de emprego e/ou no aumento considerável da atividade informalizada3. Temos assistido a uma onda ultraconservadora de cunho religioso cristão assumir posições de destaque frente à dinâmica política representativa que se manifesta para além do solo brasileiro4. Como se já não bastasse a complexidade do curso que esse movimento reacionário vem assumindo e a preocupação que ele suscita para a educação pública, nos vimos em meio a um processo de isolamento social, cuja travessia não nos foi possível prever ou mesmo escolher trilhar. Como algumas consequências da crise sanitária que se instaurou – dentre inúmeras outras oriundas da pandemia da Covid-19, como o número crescente de óbitos e tantas desestruturações familiares – nos vimos imersos em uma realidade complexa, inesperada e desafiadora que afetou as relações de sociabilidade e as rotinas escolares com a suspensão das aulas e a inserção do ensino remoto.
Intermediados pelos aparatos tecnológicos, pelas possibilidades que a internet oferece, em meio à agudização dos efeitos do isolamento, destacamos a organização das lives e videoconferências como uma “nova” prática para a sociabilidade, troca de conhecimentos e de aproximação, muito embora não possamos perder de vista que esse acesso não se dá para todos e nem da mesma forma para os que acessam.
Ressaltamos o quanto o movimento das lives e videoconferências trouxe e ainda tem trazido5 para a esfera pública da sociedade uma dimensão de trocas de conhecimentos e de debates, se expandindo para além do lócus de fronteiras e de limites físicos das universidades. Foi possível perceber um movimento contínuo por parte de diversas entidades que discutem a educação, por buscar enfatizar temas relacionados à pandemia e à educação e, sobretudo, publicizar esse debate. Essa reflexão coletiva se debruçou sobre os mais diversos temas; contudo, aqui, interessa-nos destacar o fazer pedagógico em tempos de pandemia, compreendendo e reafirmando o entendimento de Paulo Freire (2005) de ser este um ato político.
O professor Waldeck Carneiro tem veiculado em seu canal de acesso público no Facebook algumas lives chamadas “Diálogos Insubmissos”, convidando diversos intelectuais, cujos temas apresentados se relacionam a um exercício de pensamento para a compreensão do momento que atravessamos. Em um desses diálogos, intitulado “Pandemia e pós-pandemia: desafios à educação”, se referindo à atuação docente na pandemia, afirma: “É como se os/as professores/as estivessem, por causa do trabalho remoto, em um plantão pedagógico de 24 horas por dia” (CARNEIRO, 2020, n.p.).
O ano de 2020 foi mundialmente marcado pela crise sanitária provocada pela Covid-19. A partir dessa realidade, outros desdobramentos se fazem presentes, antes jamais imaginados. Um desses desdobramentos se deu com a suspensão das aulas de forma generalizada, em instituições públicas e privadas, incluindo todas as modalidades de ensino. Contudo, aqui, interessa-nos refletir sobre as instituições públicas, sobretudo as de acesso à Educação Básica.
Diante da suspensão das aulas, muitas redes públicas de ensino tiveram de estabelecer alternativas que tornassem viável a manutenção do vínculo entre instituição escolar e estudantes/comunidade, por meio da atuação dos/as professores/as. Considerando a necessidade de manter o isolamento social para evitar o contágio, esse estabelecimento de vínculo, de contato, se deu de forma “remota”, isto é, mediado pela tecnologia, tendo por articuladores os/as docentes.
A atividade remota deve ser situada como uma prática diferenciada da Educação a Distância (EaD), no que se refere à infraestrutura (ARAÚJO; MARCHON; SERPA, 2020; FREITAS, 2020), muito embora também dependa muito das tecnologias digitais para seja possível executá-la. Freitas (2020) destaca a relevância da atividade remota como forma de contato com as/os estudantes e suas famílias, embora suscite elementos complexos que afetem sua execução, como presença da desigualdade social inerente à composição da sociedade capitalista, na qual uma parte da população não possui a viabilidade desse acesso; as diferentes formas de acesso e recursos tecnológicos; e a questão da valorização do tempo de dedicação e de trabalho docente nesses espaços. No caso mencionado pelo professor Carneiro (2020), ao chamar atenção para o “plantão pedagógico de 24 horas”, ele compartilha o relato de um professor que recebeu uma mensagem no seu WhatsApp6 de madrugada, enviado pela mãe de um estudante para saber qual seria a atividade que o filho teria de realizar.
Frigotto (2020), diante desse cenário, destaca que o trabalho remoto pode revelar outros mecanismos de exploração do/a professor/a, especialmente por dispensar a função clássica de atuação do/a docente no contato presencial com os/as estudantes, esvaziando a possibilidade de uma atuação política e transformadora no ato de educar, considerando esse ato imbuído de aprendizagens pelas trocas e pelas sociabilidades e não como um ato restrito à instrução.
Amparados em Paulo Freire (2005), compreendemos que o momento que se coloca para a educação representa “situações-limites” que precisam ser problematizadas a partir de uma perspectiva de atuação para a “práxis”, no qual o diálogo teoria-prática engendra uma busca da consciência libertadora de “estar no mundo”.
A problematização do contexto histórico que atravessamos se fez presente na fala de diferentes intelectuais em diversas lives e videoconferências (ARAÚJO; MARCHON; SERPA, 2020; FREITAS, 2020; GOUVEIA; FABIA; ARAÚJO, 2020) e nos convida a dialogar com Paulo Freire (2005) no sentido revolucionário que nos traduz a partir de uma pedagogia problematizadora e dialógica. Nesse sentido, a compreensão da publicidade dos debates por meio das lives funcionou e funciona como instrumento potencializador no exercício de pensar o contexto macro no qual estamos inseridos e que nos atravessa, suas implicações para a educação pública e para a carreira docente, além de permitir que o debate possa ser revisitado, possibilitando um contínuo exercício de reflexão e de ampliação da discussão.
Compreendemos que a ampliação dos debates publicizados pelas lives e videoconferências têm permitido um acesso síncrono e assíncrono e contribuído com reflexões de relevância, no sentido de que o caso específico mencionado pelo professor Waldeck Carneiro (2020) possa representar a realidade de muitos/as outros/as docentes a respeito do plantão docente de 24 horas em tempos de pandemia e de trabalho remoto.
A prática da atuação docente por meio remoto se deu mediante toda a imprevisibilidade que atravessamos e, conforme apontou Carneiro (2020) em sua fala, encontrando eco em outros/as pesquisadores/as (ARAÚJO; MARCHON; SERPA, 2020; FRIGOTTO, 2020; GOUVEIA; FABIA; ARAÚJO, 2020), esse atropelamento, que na prática visava justificar a manutenção do salário dos/as professores/as, colocou-os/as diante de uma situação limite, de uma realidade desafiadora7, que tem gerado sobrecarga de trabalho, e, em muitos casos, o desaparecimento da noção de espaço público (ambiente escolar) e privado (residência dos professores e estudantes) e da noção de temporalidade laboral que nos espaços escolares é definida. A não correspondência dessa temporalidade laboral na atuação remota deixa em aberto o entendimento de uma disponibilidade para um “plantão pedagógico de 24 horas”.
Tais elementos, quando compreendidos dentro da tessitura histórica pré-pandemia8, cuja realidade já apontava para ataques ao fazer e à autonomia docente, começam a representar uma possibilidade concreta a se materializar no pós-pandemia. Preocupação esta que acende os sinais de alerta para as formas e os contornos de exploração do fazer docente agudizados pela pandemia. Contudo, a existência desse debate em plataformas digitais, em redes sociais, favorece a ampliação de consciência ao ganhar contornos coletivos, trazendo, nessa dimensão, um potencial transformador, um potencial revolucionário da educação, ao explicitar as condições de opressão que estão colocadas.
Um outro aspecto a ser discutido quanto ao uso das lives e das videoconferências na Educação diz respeito à exclusão de grande parte da população devido à falta ou precárias condições de acesso a recursos tecnológicos9. As lives e as videoconferências (ou as vídeo chamadas) ganharam destaque e cresceram em número durante o período da pandemia provocada pela Covid-19. No entanto, são práticas que existem há muito mais tempo do que isso, sejam como recurso de comunicação em empresas, a trabalho, hobbies e outras motivações em plataformas de compartilhamento de audiovisual, streaming e nas redes sociais. Tornou-se muito popular entre a juventude com os influenciadores digitais produzindo e veiculando conteúdos. Com a pandemia e o consequente isolamento social, no Brasil, recomendado pelo Ministério e Secretarias de Saúde, esses recursos foram demasiadamente explorados, ganhando uma grande visibilidade, como uma forma de entretenimento, comunicação interpessoal e, também, de trabalho.
Visto como um meio de dar continuidade a muitas das atividades laborais e a atividades de ensino nas escolas e nas universidades, foi propagada como um meio de retomar essas atividades e logo um grande questionamento foi produzido: quem tem as condições ideais para realizar as lives ou videoconferências? Com condições ideais, queremos dizer um aparelho com requisitos técnicos necessários de qualidade (celular/smartphone ou computador); conexão com a internet de qualidade, por meio de planos residenciais ou pacotes de dados móveis, com estabilidade, velocidade, adequadas taxas de download/upload. Não temos. Algumas pessoas possuem condições minimamente necessárias para utilizar esses recursos, poucas possuem realmente boas condições para realizá-las, e muitas pessoas possuem precárias ou nenhuma condição para tal.
Não defendemos um uso acrítico desses recursos, seja qual for o tempo ou ocasião, e, logo, não os defendemos como política de educação substitutiva ao modelo presencial. Pensar criticamente é também questionar, para além do quão pareça empolgante esses recursos à primeira vista, que as desigualdades sociais também se revelam nesse aspecto. Apesar de tudo isso, não deixamos, ao mesmo tempo, de notar possibilidades do uso das tecnologias digitais nesses tempos pandêmicos, como pensávamos alguns usos antes disso. Para nossos encontros de pesquisa, foi fundamental usar a videoconferência como meio pelo qual possibilitamos a manutenção do nosso vínculo e os nossos diálogos – mesmo enfrentando por vezes os limites das condições de acesso e sempre problematizando seus usos e as condições de acesso entre nós e nos inúmeros espaços em que vivemos, especialmente das camadas populares. Lives (interativas) e videoconferências foram importantes para darmos continuidade a nossos diálogos entre pares, inclusive em um intercâmbio com professoras/es do Peru, com quem dialogamos por esse meio digital desde muito antes da pandemia.
Com relação à atuação junto às/aos estudantes, sejam do Ensino Superior ou da Educação Básica, onde lecionamos, em meio ao apelo crescente pelo uso desses recursos, nossa preocupação não esteve em dar aparências de normalidade ao que não era normal – o tempo de pandemia e a quarentena. Podemos mencionar, ainda que brevemente, que, na escola básica, onde parte de nós atua, essas ferramentas foram usadas fundamentalmente para informar as/os estudantes sobre o período vivido, sobre a pandemia, oferecendo um canal seguro de informações em meio às ondas de fake news e fazendo aulas com discussões com eles sobre o tempo presente vivido e suas condições, inclusive na pandemia – os desafios da saúde, o desemprego, a mobilidade urbana e o próprio acesso à tecnologia, entre outros. Nesse caso, para uma melhor interlocução, um aplicativo de mensagens que, desde antes da pandemia era oferecido de forma gratuita e sem consumo de dados por operadoras de telefonia, foi muito útil. Se ainda assim nem todos tinham acesso, na medida do possível para os nossos esforços, dentro de nossos limites e possibilidades, tentamos manter diálogo com quem fosse possível; não foram poucos. Por meio dos feedbacks oferecidos pelos/as próprios/as estudantes, compreendemos que isso foi muito importante para eles/elas; também foi para nós. Entre estudantes do Ensino Superior também foi importante para pensarmos juntos, criticamente, o tempo vivido no presente.
Ser crítico para nós, nesse caso, não se define por não utilizar esses recursos, mas problematizar as possibilidades, formas e condições de seus (não) usos na sociedade. O que exploramos em nossos encontros virtuais, levantamos dados, discutimos e escrevemos sobre o tema. Nas videoconferências, por sua dinâmica própria, o diálogo parece se fazer presente mais facilmente, mas, ao promovermos as lives, investimos em recursos que também possibilitaram interações em diferentes níveis, embora não substituam para nós as condições de diálogo na forma presencial. O legado das ideias freireanas mostra-nos que o diálogo é uma categoria fundamental, para a emancipação, para a significação dos sujeitos e do mundo. Em um primeiro momento, como uma das consequências do isolamento social na pandemia, tememos por uma desarticulação do diálogo principalmente nas frentes que reivindicam a justiça social, já que não era possível o encontro presencial. Procuramos os meios à mão para tentarmos retomar os diálogos e, dentro das condições possíveis, as vozes continuaram a se pronunciar, conversando, resistindo aos silenciamentos e, também, denunciando as condições de desigualdades sociais que destituíram parte da população do acesso aos meios digitais.
Desafios contemporâneos para a superação da perspectiva de educação bancária em tempos de pandemia: tecendo diálogos com a experiência dos docentes do CREJA
As memórias de Freire nos trouxeram eventos de seu tempo que repercutiram em sua formação como homem, como cidadão, como professor, como sujeito histórico. Um recorte de outros acontecimentos que têm marcado a sociedade atual confirma a fertilidade e a atualidade de seu pensamento para a ampliação da compreensão sobre as questões contemporâneas.
Vivemos, hoje, no Brasil, na segunda década do século XXI, manifestações crescentes pelo retorno à Ditadura Civil e Militar. O presidente recusa-se a seguir as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) em relação aos protocolos de contenção e combate à pandemia. É, nesse contexto, que a negação da relevância e das contribuições de Paulo Freire para pensar a educação e a sociedade torna-se um indicativo dos tensionamentos sociais que atravessam o momento atual.
Nesse sentido, indagamos: o que a obra de Paulo Freire, seu legado intelectual nos provoca a pensar diante dos recentes ataques a ele por grupos conservadores? O que ela traduz de significativo para a compreensão do momento de agudização da opressão, da uberização das relações de trabalho10, da precarização e da desvalorização docente? Em contrapartida, que contribuições teórico-práticas nos oferece para fortalecer a função social e emancipadora da educação, sua dimensão política e os coletivos de educadores/as, em busca de uma educação humanizadora?
Uma faixa com os dizeres “Chega de doutrinação marxista. Basta de Paulo Freire”, que ganhou as manchetes dos jornais (RAMAL, 2020) e as telas das televisões em 2015, no bojo das manifestações de grupos conservadores, contra o governo de esquerda da presidenta Dilma Rousseff, confirma as articulações entre modelo de sociedade e projeto de escola. Outra faixa, publicada no Twitter, por um movimento autodenominado Dogma, pedia “Pela volta da educação tradicional, basta de Paulo Freire” (MOVIMENTO DOGMA, 2015)11.
No atravessamento das questões políticas, o movimento de derrubada de um governo democraticamente eleito, a partir de um golpe midiático-parlamentar-civil12, com as questões educacionais, a reivindicação de expurgo do legado de Paulo Freire à Educação Brasileira, marcava-se uma guinada, cada vez mais acentuada, na direção de um projeto de sociedade ultraconservador, antidemocrático, profundamente desigual e excludente. No desabafo de Miguel Nicolelis, um dos cientistas brasileiros reconhecidos internacionalmente que estão à frente do Consórcio do Nordeste13, organização que tenta controlar a pandemia, uma pequena amostra de onde essa guinada está nos levando:
Queimamos a maior floresta tropical do mundo. Celebramos teto de gasto que sabota a saúde e a ciência. Assistimos a morte de mais de noventa e dois mil compatriotas em cinco meses. E agora cogitamos mandar professoras e crianças para a escola numa pandemia descontrolada. Que diabo viramos? Que país é esse? (NICOLELIS, 2000, n.p.).
Sem a pretensão de esgotar aqui todo o debate que os conteúdos, tanto dos ataques a Freire quanto das denúncias e das indagações trazidas pelo cientista, nos provocam, podemos afirmar que o legado freireano, mais uma vez, nos ajuda a compreender melhor as estratégias de opressão a que estamos sendo submetidos, como também nos traz pistas sobre os caminhos para a retomada de uma educação emancipadora. Deixemos que Freire (2005) nos fale mais uma vez:
Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor, e se engajam na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si mesmos, superando, assim, sua “convivência” com o regime opressor. Se esta descoberta não pode ser feita em nível puramente intelectual, mas da ação, o que nos parece fundamental é que esta ação não se cinja a mero ativismo, mas esteja associada a sério empenho de reflexão, para que seja práxis. (FREIRE, 2005, p. 58).
Ação-reflexão, engajamento na luta, a libertação da opressão não acontece a partir de uma iluminação intelectual sobre a situação de exploração. É preciso engajamento, mas esse engajamento não pode ser mero ativismo, requer empenho e reflexão. É preciso construir a práxis.
O conceito de “educação bancária”, cuja prática antidialógica se dá esvaziada de sentidos, de reflexão, cuja relação técnica, reprodutora, perpetua práticas opressoras, e os lugares ocupados por seus sujeitos são reproduzidos como lugares estáticos: do/a professor/a como o sujeito que sabe; e do/a estudante como alguém que não sabe. A relação que se estabelece nessa dimensão afasta, nega a educação libertadora, negando na mesma proporção o conhecimento como busca dos sujeitos engendrados no mundo, pois “[...] fora da busca, fora da práxis, os homens não podem ser” (FREIRE, 2005, p. 66). Paulo Freire (2005, p. 67) afirma que “[...] nesta visão da educação, não há criatividade não há transformação não há saber. Só existe saber na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros. Busca esperançosa também”.
A educação bancária, cujos pressupostos estão presentes na educação tradicional, cumpre assim uma função de alienação, de reprodução do status quo dos grupos hegemônicos, mesmo que muitas vezes este tipo de defesa – a da educação tradicional – seja afirmado em diferentes âmbitos sociais, como uma teia de relações complexas, presentes em diversas classes, grupos e até mesmo entre os espaços escolares. Daí a relevância do legado de Paulo Freire, daí a urgência da compreensão e da difusão de sua visão de mundo e de educação, do diálogo e da práxis de seu legado como forma de instrumentalização e de luta.
Retomando nosso diálogo com os processos educacionais em curso no contexto da pandemia e ainda inspiradas/os por Freire, outras questões foram se colocando: no cenário do isolamento social em que vivemos hoje, quais são os desafios que se colocam dentro e fora da escola para construir a práxis? Como superar uma perspectiva de uma educação bancária na pandemia trabalhando remotamente? Questões como essas perpassaram o movimento reflexivo formativo realizado por docentes que atuam no CREJA do Rio de Janeiro.
O CREJA foi inaugurado em 2004, no Centro da Cidade do Rio de Janeiro, e está diretamente articulado à Coordenadoria de Ensino Fundamental da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME-RJ). Ele possui atribuições como uma escola exclusiva de EJA, que é uma escola inteiramente organizada para o público da EJA (não divide o espaço escolar com crianças e adolescentes), tendo atendimento pela manhã, tarde e noite e possui atribuições como Centro de Referência, onde atuam os professores da escola exclusiva e sua equipe gestora-pedagógica, como a formação continuada dos professores da EJA desse município, constituição do acervo de memória da EJA no município, pesquisa sobre a EJA, produção de materiais de orientação do trabalho pedagógico do Portal da Educação de Jovens e Adultos (PEJA), atuação junto aos professores de todo o PEJA nas produção das orientações curriculares do PEJA e acompanhamento pedagógico das outras escolas exclusivas de EJA do município, entre outras
Os desafios enfrentados pelo grupo se antecederam aos momentos do isolamento social, nos quais todos e todas ficamos restritos a utilizar os serviços mais essenciais à sobrevivência humana, e a convivência escolar cotidiana deixou de existir. Assim, o início do ano letivo escolar, na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 2020, aconteceu o tensionamento de outros graves problemas que antecederam a pandemia.
Logo no início do ano, a cidade enfrentou uma crise hídrica14 de graves proporções que impediu os/as cidadãos/ãs de consumirem a água que chegava às torneiras. Concomitantemente, vivenciamos por duas semanas as fortes chuvas que causaram impactos diretos no cotidiano dos estudantes trabalhadores e, por conseguinte, afetaram o acesso às Unidades Escolares. Em seguida, o recesso para o Carnaval ainda nos distanciou um pouco mais dos/as estudantes.
Pensamos ser relevante pontuarmos esse contexto específico uma vez que não é leviano afirmar que o ano letivo teve seu efetivo início em março e o fechamento das unidades escolares por necessidade do isolamento social se deu também em março, 15 dias após a esse início. Ancorados nas situações descritas anterirmente, somadas às situações cotidianas vivenciadas por docentes e discentes nesse curto período de três meses, uma questão se colocou para nós, no CREJA: como construir de modo remoto uma proposta de educação imbuída dos princípios freireanos de educação de modo a se contrapor a uma educação desumana, conteudista, esvaziada de conteúdos de vida?
Antecedendo a tomada de decisões para construirmos uma proposta de atendimento, foi inevitável rememorarmos as observações cotidianas que apontavam para uma diminuição da frequência dos/as estudantes nesse início de ano letivo. A diminuição da frequência estaria relacionada às problemáticas locais que aconteceram nos dois meses do início do ano? Face ao exposto do cenário social, político e econômico brasileiro, os estudantes estariam com dificuldade de frequentar a Unidade Escolar, além das razões apontadas, porque estavam em situação social ainda mais dificultada pelo aumento dos números de desemprego? Estariam alocados em condições de subemprego?
O primeiro movimento realizado para dar conta dessa questão foi fazer um levantamento junto aos/às estudantes para saber de que meios digitais dispunham ou tinham acesso e, dentre esses meios, quais os que dominavam com maior facilidade – os grupos de WhatsApp foram importantes nisso, aliás alguns grupos nesse aplicativo já funcionavam para a comunicação desde antes da pandemia. Por uma série de razões, como: as possibilidade delimitadas pelo acesso tecnológico que, muitas das vezes, se limitava ao celular (quando há); pelas condições de conexão com a internet (ter/não ter wifi, ter/não ter um plano com pacote de dados); e questões de leitura/escrita pelos estudantes em processo inicial de alfabetização, vimos naquele aplicativo de mensagens uma ferramenta aliada, além do uso do nosso site institucional na internet. O grupo entendia assim que qualquer proposta de trabalho remoto necessitaria partir de um diálogo com as partes envolvidas para levantar os meios efetivos e definir as plataformas a serem utilizadas para dialogar com os/as estudantes. Com o passar do tempo, percebemos que de fato o WhatsApp era o canal mais viável, aquele pelo qual melhor conseguiam interagir e, naquele momento, paralelamente às atividades que estavam sendo desenvolvidas no site, cada professor/a constituiu seu grupo de contato com sua(s) turma(s) nesse aplicativo, tendo como objetivo primordial a manutenção do vínculo afetivo entre estudantes e professores/as da unidade escolar.
Definidos os canais de comunicação, cabia também ao grupo levantar os temas a serem trabalhados. Considerando as características de nosso público, Jovens e Adultos, e inspirados pelos referenciais freireanos, que alertam para que a educação cumpra o papel de contribuir para ampliar a compreensão sobre a realidade, elegemos o contexto da pandemia como tema de reflexão com os/as estudantes. O início da pandemia se configurou em um tempo de muitas dúvidas e incertezas. A temática foi discutida por, aproximadamente, seis semanas. Contudo, com o passar do tempo, as notícias de contágios e óbitos crescendo em larga escala diariamente e a mídia divulgando muitas informações, o grupo foi percebendo que precisávamos variar as temáticas abordadas. Alguns/mas professores/as apontavam a devolutiva dos/das estudantes quanto aos desejos de terem contato com outros assuntos que não tratassem da pandemia, uma vez que a TV e a internet estavam com informações massivas sobre esse assunto. As demandas dos/das estudantes exigiam de nós outras alternativas, que não implicassem abrir mão de uma proposta de educação remota, que pudesse manter um espírito crítico e dialógico. Novos temas que também fazem parte de seus cotidianos começaram a atravessar os diálogos com os/as estudantes.
O isolamento social inicial que era de uma semana, paulatinamente, foi se estendendo de tal modo que completamos oito meses sem o contato físico nas unidades escolares. Nesse contexto, ao logo do isolamento social, o grupo ainda em busca de construir uma educação que se mantivesse crítica, reflexiva e dialógica, mesmo que remotamente, foi sendo desafiado a praticar um planejamento participativo em meio ao isolamento social (o que era uma prática quando presencial) que, de fato, envolvesse todos os sujeitos que compõem o processo educativo.
Não é possível pensar a educação como uma prática isolada de seus sujeitos, não é possível pensar a educação escolar sem considerar a centralidade do/a professor/a nesse processo. Centralidade aqui defendida não como um lugar hierarquicamente superior e antidialógico, criticado por Freire, mas sim como reconhecimento da relevância de seu fazer, do seu pensar, do seu agir no sentido de que tais ações, tais visões de mundo compõem a forma como se estabelecem estratégias de estar no mundo e de atuar no mundo. Tais visões não se dão nas relações educativas e nos cotidianos escolares apenas no âmbito individual, mas no âmbito relacional, coletivo, que implica encontros e também conflitos entre as visões dos pares.
Interessam-nos pensar nessas relações de posições, leituras de mundo, de práticas e visões sobre o papel da educação em sua pluralidade, buscando romper com uma visão ingênua de que as relações pertencentes aos espaços escolares se dão de forma diferenciada ou isolada da sociedade. Têm-se conflitos nos espaços sociais entre perspectivas da educação, onde diferentes projetos de educação coexistem, e têm-se, da mesma forma, visões diferenciadas da dimensão do ato de educar, compreendendo como inerente a dimensão política desse ato. Dessa forma, compreendendo os cotidianos escolares como espaços vivos, tensionados, criativos, reflexivos, únicos, espaços de trocas e fortalecimento do coletivo, seja ele entre educadores/as e/ou escolas e suas comunidades, defendemos o entendimento de Freire que só há transformação na busca, só é possível mudar quando os lugares ocupados não são hierarquizados, cristalizados, fragmentados, onde há espaço para o exercício do diálogo, do pensamento, da ação, da amorosidade e respeito, do processo de construir a existência e nela a própria humanização.
Diante dessa perspectiva, compreendemos os espaços de trocas, de narrativas, os espaços tecidos nos cotidianos escolares em toda sua complexidade de alcance e atuação como espaços genuinamente formativos, onde se torna possível a reflexão sobre a prática docente, sobre o compromisso ético e social da escola com seus sujeitos, com a formação desses sujeitos. Tal dimensão formativa se dá na própria relação entre seus sujeitos, se dá no atravessamento de existir e na percepção de estar no mundo e do próprio mundo e de suas formas de opressão.
Às vezes, ou quase sempre, lamentavelmente, quando pensamos ou nos perguntamos sobre a nossa trajetória profissional, o centro exclusivo das referências está nos cursos realizados, na formação acadêmica e na experiência vivida na área da profissão. Fica de fora como algo sem importância a nossa presença no mundo. É como se a atividade profissional dos homens e das mulheres não tivesse nada que ver com suas experiências de menino, de jovem, com seus desejos, com seus sonhos, com seu bem querer ao mundo ou com seu desamor à vida. (FREIRE, 2020a, p. 94).
Mais uma vez Paulo Freire nos convida a percebermo-nos como seres em nossa ‘(in)completude”, pois somos ao mesmo tempo uma totalidade de memórias, histórias, atravessamentos, sentidos; e uma possibilidade do vir a ser engendrados em uma dinâmica histórica que está em movimento, que se transforma, que é construída cotidianamente por nós seres humanos, sujeitos históricos, conscientes ou não desse fazer.
Algumas inconclusões de existir e educar em tempos de pandemia: dialogando com Freire na urgência do inédito viável
Buscamos tecer aqui um diálogo reflexivo com o pensamento e a obra de Paulo Freire que, em nossa percepção, se traduzem não somente em uma constante denúncia às condições de opressão, mas também uma demarcação de posição em defesa dos perseguidos, explorados, excluídos, desumanizados, esfarrapados e oprimidos pela sua libertação, conscientização e emancipação.
Paulo Freire debruçou-se a refletir, problematizar, criticar as formas de produção da existência humana, sobretudo quando essa existência, em um sistema capitalista, produz em larga escala desumanização, alienação, a inviabilidade da possibilidade ontológica do ser mais, ideologizando uma percepção histórica em uma visão engessada, fatalista da realidade, determinada se fazendo crer ser algo impossível de mudar.
Pensar nos contextos sociais, econômicos, educativos, políticos que se agudizam e se tensionam impulsionados pela pandemia, por meio de alguns elementos trazidos ao longo do texto, é perceber a dinâmica de nossa construção histórica sendo tecida em sua complexidade. Contudo, essa constatação não se apresenta aqui como uma percepção da história enviesada a uma visão fatalista da realidade, mas, sim, da história como uma possibilidade, da história e do tempo de existência, como uma construção humana e, dessa forma, passível de ser transformada. Sobre esse aspecto, convidamos mais uma vez a leitura de palavra de Freire (2020b, p. 50): “Em minha visão, ‘ser’ no mundo significa transformar e retransformar o mundo, e não adaptar-se a ele. Como seres humanos, não resta dúvida de que nossas principais responsabilidades consistem em intervir na realidade e manter nossa esperança”.
A defesa pela transformação do mundo em oposição à adaptação a ele significa, em Freire (2020b), a construção de “sonhos possíveis” que emergem, não como uma idealização ingênua da história, mas como uma construção pautada em uma consciência crítica, coletiva, gerando um duplo compromisso: “o de denúncia, e o da criação de possibilidades democráticas” (FREIRE, 2020b, p. 41).
Trazemos aqui a discussão acerca da história como campo de possibilidades superando uma visão fatalista, alienada, expropriada dos acontecimentos históricos, por considerar relevante retomar esse debate frente aos tensionamentos conservadores, de ataque ao fazer docente mencionados anteriormente, que têm suscitado uma percepção de impotência no campo do fazer docente. Amparados em Freire, gostaríamos de defender a importância da consciência, da educação e da compreensão do homem enquanto sujeito transformador da história em um processo educativo constante. Freire nos diz que “[...] a educabilidade humana se alicerça na finitude de que nos tornamos conscientes. Para que a finitude, que implica processo, reclame educação, é preciso que o ser envolvido se torne dela consciente. É a consciência do inacabamento que torna o ser educável” (FREIRE, 2019, p. 132, grifos do autor).
Em busca de pensarmos a dimensão humanizadora da educação, que anuncie possibilidades de ver além de dentro dos tempos nebulosos que estamos vivendo, dialogamos a seguir com os conceitos de “situação-limite” e “inédito viável”. Sobre tais conceitos, Freire nos diz:
[...] os temas se encontram encobertos pelas “situações-limites” que se apresentam ao homem como se fossem determinantes históricos, esmagadoras em face as quais não lhes cabe outra alternativa, senão adaptar-se. Desta forma, os homens não chegam a transcender a “situações-limites” e a descobrir ou a divisar, mais além delas e em relação com elas, o “inédito-viável”. (FREIRE, 2005, p. 110).
Paulo Freire nos provoca a pensar: diante do caos em que nos encontramos hoje, como temos percebido as situações-limites? Elas têm nos esmagado como se fossem determinantes históricos? Como agiremos diante das determinações oficiais que mandam abrir as escolas, mesmo dentro de um quadro de descontrole da pandemia? Acatamos as determinações oficiais e colocamos professores/as, estudantes/as, funcionários/as em risco ou nos mantemos em uma posição firme de isolamento? Adaptar ou transcender? Transcender, nos lembra Freire, pode nos permitir divisar o “inédito-viável”.
As “situações-limites” colocam-nos algumas alternativas: ou as percebemos como um obstáculo que não somos capazes ou não queremos enfrentar e nos acomodamos ou as enfrentamos para romper com elas e inaugurar um outro possível. Para isso, precisamos mais do que nunca entender essas situações-limites em sua profundidade. Elas implicam sempre a existência dos/das que se beneficiam diretamente e servem a essas situações-limites – os dominantes e os/as que são afetados diretamente por elas – os/as oprimidos/as.
Quando coletivamente nos reunimos para derrubar as situações-limites, abre-se espaço para o inédito-viável, ou seja, algo que até então era inédito, uma sociedade sem racismo, por exemplo, para a concretização do que antes era apenas sonho, um sonho coletivo possível realizado, “[...] uma utopia alcançada que faz brotar outros tantos inéditos-viáveis” (FREIRE, 2005, p. 108).
O exemplo da favela Paraisópolis no combate ao Coronavírus também nos ensina sobre situações-limites e inéditos- viáveis. “Paraisópolis controla melhor a pandemia do que a cidade de São Paulo”15, a notícia que circulou pelas mídias, mostrava o movimento da Associação de Moradores/as para suprir a comunidade da ausência de políticas públicas. A partir da confirmação dos primeiros casos da doença em São Paulo, a associação começou a agir. Organizaram um sistema de atendimento e monitoramento, no qual uma pessoa de cada rua era responsável por orientar sobre os sintomas da doença, distribuir cestas básicas e esclarecer informações. Além disso, conseguiram contratar ambulâncias e recrutar médicos/as e enfermeiros/as para atender 24 horas. Foram treinados moradores/as como socorristas e conseguiram autorização do Governo Estadual para utilizar duas escolas públicas como centro de isolamento de pessoas infectadas. O esforço valeu à comunidade uma taxa de óbitos abaixo da média de outros bairros de São Paulo.
O movimento da Associação de Moradores nos mostra que “[...] não há o reino do definitivo, do pronto e acabado” (FREIRE, 2005, p. 225). Transcender as “situações-limites” possibilita divisar “inéditos-viáveis”.
Por isso é que, para nós, o “inédito viável” [que não pode ser apreendido no nível da “consciência real” ou afetiva] se concretiza na “ação editanda”, cuja viabilidade antes não era percebida. Há uma relação entre o “inédito viável” e a “consciência real” e entre a ‘ação editanda” e a “consciência máxima possível”. (FREIRE, 2005, p. 124).
Importante destacarmos que a percepção de inédito viável não deve ser confundida na ordem de desejar algo impossível e inacessível, mas sim no convite de que possamos perceber na dimensão do que “ainda não é, mas pode vir a ser”, no convite a uma “ação editanda” de construção histórica, algo viável dentro de seu ineditismo, diante do enfretamento de “situações-limites”.
A percepção do “inédito viável” na educação nos convoca a refletir sobre a força histórica dos sujeitos e de sua consciência nesta construção de permanências e rupturas, na reinvenção deste movimento, nas possibilidades de “vir a ser mais”, superando os condicionantes opressores, que instauram a desumanização, a alienação. A leitura da palavra de Freire nos convida a refletir sobre a possibilidade em uma dimensão de escolha, de mudança, ao afirmar:
Daí que, à linguagem da possibilidade, que comporta a utopia como sonho possível, prefiram o discurso neoliberal, pragmático, segundo o qual devemos nos adequar aos fatos como estão se dando, como se não pudessem dar-se de outra forma, como se não devêssemos lutar, precisamente porque mulheres e homens, para que se dessem de outra maneira. (FREIRE, 1992, p. 90).
Contudo, para que seja possível criar condições para a percepção dos inéditos viáveis nos cotidianos escolares, retomando a discussão sobre a centralidade dos/as professores/as em uma atuação educativa e política, é preciso perceber a relevância da atuação desses/as professores/as ser constantemente problematizada, reflexiva, engajada individual e potencializada coletivamente em uma dimensão de luta política pela educação, pois, segundo Freire (2020c, p. 51), “[...] não há educação fora das sociedades humanas e não há homem no vazio”.
Paulo Freire é um intelectual educador que nos trouxe um legado vasto de conceitos que nos auxiliam a pensar não somente a educação, mas a própria existência humana, o existir e, por isso, pensar a vida e as formas como elas se estabelecem individual e, sobretudo, coletivamente em comunhão com a transformação humana para o “ser mais”.
Paulo Freire nos convida a pensar a vida. A vida que em tempos de pandemia tem se esvaído da humanidade em dimensões e amplitudes globais inimagináveis, trazendo transformações complexas e uma incerteza dos rumos que as vidas que ficarem tomarão, de como passaremos a existir nas relações entre homens e natureza, entre homens e meio ambiente, entre homens e a produção material de sua existência, entre as relações de consumo, de trabalho, de educação, de existir.
Santos (2020, p. 10) considera, defendendo uma pedagogia do vírus, que “[...] ver o modo como for interpretado e avaliado determinarão o futuro da civilização em que vivemos”. Para Santos (2020), a situação que atravessamos no momento da pandemia revela-se uma oportunidade para refletirmos sobre o caminho que a humanidade vinha tomando no sentido da exploração de recursos naturais, na agudização das formas de desigualdade e do avanço do capitalismo, na concentração de riquezas e na destruição do planeta visando o consumo, a exploração inerentes à sociedade capitalista. Para ele, pedagogicamente, precisamos olhar para a experiência e perceber os erros, de maneira a evitar mantê-los e que a forma como vamos conseguir avaliar este momento determinará o futuro da civilização.
Muito embora não tenhamos concluído ainda a travessia deste momento, acreditamos ser possível trazer elementos que nos auxiliem a pensar, a dialogar sobre os tensionamentos em curso provocados pela calamidade pública e crise sanitária decorrentes da Covid-19 e de suas consequências para a educação como ato político e o fazer docente.
Por meio do legado teórico de Freire, cujas obras se debruçaram em fundamentar uma crítica a esta sociedade capitalista e suas formas de opressão, de alienação, de exploração, de desumanização, mas também em seu sentido contrário, indicando que nos constituímos em nossa humanidade, em nosso processo de humanização e ser mais por meio do diálogo, da reflexão e da ação, da “práxis”, foi possível tecer um diálogo para compreendermos o percurso que atravessamos e as “situações limites” que se apresentam diante de toda a imprevisibilidade que esse momento trouxe.
Por meio da experiência do CREJA, trouxemos uma relação com a percepção prática deste momento, buscando compreender e problematizar a reflexão acerca de práticas educativas que não representem práticas bancárias para o público de estudantes da EJA, modalidade tão cara às experiências de educação legadas por Paulo Freire.
Buscamos dialogar também com as experiências formativas em curso intermediadas pelas discussões trazidas pelas lives e videoconferências, nos convidando a organizar o pensamento, a refletir individual e coletivamente sobre os efeitos da pandemia para a educação, para seus sujeitos e para seus fazeres educativos, muito embora o acesso a elas não esteja ao alcance de todos. Destacamos a importância desse movimento das lives e das videoconferências, dentro de uma compreensão de seu ineditismo, tal como se apresentou em tempos de pandemia e que ultrapassou as fronteiras antes estabelecidas em sua grande maioria nos espaços presenciais das universidades, e que agora ganham maior amplitude e visibilidade social, na medida em que aqueles que desejarem podem assistir, compartilhar, refletir sobre as temáticas apresentadas.
Destacamos os conceitos de “educação como ato político”, da crítica à “educação bancária” e do necessário “inédito viável” como conceitos chaves para a compreensão deste momento, sobretudo quando refletimos sobre a atuação docente e o compromisso ético e social inerente a essa atuação, que Paulo Freire nos ilustra por meio das memórias trazidas de sua infância e de como foi se percebendo professor.
Para finalizar, indicamos o caráter intencionalmente provocador dos sentidos do termo “(in)conclusões” trazido no subtítulo deste tópico, pois, na medida em que, por meio das leituras acerca da obra de Paulo Freire podemos elencar algumas “conclusões” sobre este momento tendo como inspiração uma perspectiva de educação libertadora, podemos nessa mesma direção compreender o quanto esse movimento é inconcluso, é mutável, histórico, tensionado. Entretanto, a inconclusão não deve ser percebida como algo estático, justamente por ser inconclusa, mas, sim, o oposto. Em Paulo Freire, a inconclusão, a incompletude se dá no movimento, na ação, na percepção de uma relação contínua entre existir e “ser mais”, em perceber-se sujeito humano, construtor da história e da vida, da existência. Que possamos, no convite instaurado de reflexão por este trabalho, buscar a materialização de um inédito viável e tornar toda essa experiência uma oportunidade de emancipação humana e educacional.