Introdução
Em Portugal é na transição do século XX para a centúria seguinte que a estrutura da rede de escolas do 1º Ciclo do Ensino Básico1 é identificada como fator preditor de insucesso escolar2. Tem sido esse, aliás, o argumento central das políticas educativas adotadas desde 2002 (RODRIGUES; RAMOS; FÉLIX; PERDIGÃO, 2017), designadamente, no que à extinção de escolas em meio rural diz respeito. Em alguma medida, tal extinção era inevitável. Com efeito, basta ter em mente que, no ano de 1981, havia 882 mil estudantes matriculados no 1º Ciclo do Ensino Básico (valor máximo absoluto), assistindo-se, posteriormente, a drástica redução desse quantitativo. Em 2006, por exemplo, o número de alunos matriculados no referido Ciclo era já metade do registado nos anos iniciais da década de 1980; em bom rigor histórico, cifrava-se nos 443 mil (RODRIGUES; RAMOS, FÉLIX; PERDIGÃO, 2017). Também é certo que essa redução não foi linear. De facto, e embora as medidas de política educativa tenham sido tendencialmente universais3, o impacto das mesmas variou de região para região (RODRIGUES; RAMOS; FÉLIX; PERDIGÃO, 2017). Face ao enunciado, no presente artigo procuro perceber se a extinção de escolas e as medidas de concentração escolar (constituição de centros escolares) – mormente nas populações dos meios rurais e de baixa densidade populacional, as mais visadas pelas citadas políticas educativas – obedeceram a razões sociais, económicas e pedagógicas fundadas na ideia de desenvolvimento rural numa perspetiva integrada.4 Responderei à questão analisando os discursos e os argumentos presentes nas cartas educativas dos municípios – instrumentos fundamentais de planeamento da rede de oferta de educação e formação.5 O contexto geográfico é o que corresponde à zona de Portugal Continental denominada Pinhal Interior Sul (PIS), compreendendo os concelhos de Oleiros, Proença-a-Nova, Sertã, Mação e Vila de Rei, num arco cronológico que se estende entre o início do século XXI – quando, de facto, começam a ser visíveis os efeitos das medidas de concentração escolar – e os meados da segunda década dos anos 2000, momento em que o número de escolas com menos de 21 alunos é já, praticamente, residual. Adotarei como fontes as estatísticas oficiais da educação e as cartas educativas dos municípios. O artigo está organizado em três secções. Na primeira propõe-se uma reflexão sobre a escola em meio rural. Uma das questões que emerge é a de saber do que se fala quando se fala de escola em meio rural. O ponto de partida é a definição proposta por Rui Canário (2008), reportando-se o autor a uma escola que apresenta as seguintes caraterísticas: proximidade, pequena escala e heterogeneidade da classe única.6 De resto, essas caraterísticas podem encerrar um sentido prospetivo e de mudança, por exemplo, de reconstrução identitária das comunidades rurais (AMIGUINHO, 2008) e, mesmo, de inovação pedagógica (SANTAMARÍA-CARDÁBA; SAMPEDRO, 2020).7 Impõe-se, por isso, contrapor a escola em meio rural e a sua persistência ao longo de séculos à normatividade do conceito de “gramática escolar”, forjado a partir da historicamente recente difusão mundial do modelo de escola graduada (marcadamente urbano), em que a população escolar é agrupada em graus supostamente homogénos por nível e idade, tendo cada um o seu professor (ROCKWELL; MOLINA, 2014). Na segunda secção analiso alguns dados quantitativos sobre a evolução da rede escolar no Continente português (escolas do 1º Ciclo do Ensino Básico com menos de 21 alunos), procurando contextualizá-los em função da política educativa prosseguida pelo Ministério da Educação. Por fim, caraterizo a zona do PIS, assim como discuto alguns indicadores educacionais e as opções seguidas em matéria de concentração escolar na referida zona. Veremos que a demografia constituiu um fator (diria mesmo, um argumento) importante, mas também as orientações políticas centralmente definidas, as quais, sublimando razões pedagógicas e de qualidade de ensino, legitimaram o encerramento de muitas escolas com menos de 21 alunos; passou-se, assim, de uma “rede de proximidade” para uma “rede rarefeita”, concentrada na sede dos concelhos (LIMA; TORRES, 2020). Tal assunção não obstou a que, na zona geográfica eleita, de concelho para concelho, se tenha assistido a interpretações diferenciadas (de maior ou menor resistência à regulação centralizada) – em causa, a dimensão política da ação local (SIMÃO, 2019). E também é verdade que no período histórico considerado, como em nenhum outro, a rede escolar mudou rapidamente em função das envolventes demográficas, económicas, políticas e sociais.
Escola em meio rural : conceitos, caraterísticas, resiliência e valor pedagógico
Parece-me importante discutir o conceito de “escola em meio rural”. Mas, previamente, entre outras questões, interessa explicar a razão pela qual prefiro essa expressão a “escola rural”. Seguindo José Maria Azevedo (1995, p. 103), a escola não é de um determinado meio (diria eu, por maioria de razão, rural), uma vez que os currículos, os manuais e, amiúde, os professores vêm de fora; considera, por isso, preferível, mobilizando o pensamento de Miguel Ortega, falar em “escola no rural”. E disse por maioria de razão, uma vez que, na linha de argumentação de Aida Terrón Bañuelos e José María Rozada Martínez (2005), existe uma diferenciação entre cultura escolar, cuja origem é urbana, e cultura de contexto, aquela em que submergem os alunos antes de entrar e depois de sair do espaço próprio da escola (em meio rural). Nesse sentido, falar de escola em meio rural significa reportar duas culturas (uma delas hegemónica) que evolucionam em sentido oposto. Mais explicitamente, o triunfo de uma implica o fim de outra:
La escuela se constituyó como un dispositivo institucional y organizativo especialmente destinado al modelamiento sistemático de la conducta infantil. Tuvo un origen urbano para atender a la demanda de unos saberes elementales, pero posteriormente se extendió a todos los ámbitos, penetrando en el medio rural sobre todo a partir de mediado del siglo XIX. En él la escuela contrastaba con la grande fuerza que tenía la cultura rural tradicional, en la que el niño vivía totalmente inmerso antes de entrar y después de salir de la escuela. Pero poco a poco la escuela se va asentando y adquiriendo fortaleza frente a la cultura rural […] Así, paulatinamente, la escuela colabora como un factor más en la transformación del mundo rural, cuyos principios tradicionales se van viniendo debajo de forma acelerada en los últimos tiempos (ROZADA MARTÍNEZ; TERRÓN BAÑUELOS, 2005, s. p.).
Ora, em Portugal, o recuo do mundo rural ganha forma a partir da segunda metade da década de 1960 (AZEVEDO, 1995). De facto, é a partir desse momento histórico que, anualmente, começa a diminuir a superfície semeada – sintoma de transformação da sociedade rural, cada vez menos alicerçada na atividade agrícola (AZEVEDO, 1995). Essa alteração é acompanhada de outros fenómenos, designadamente: emigração; concentração da população nas zonas urbanas; diminuição da população ativa agrícola (AZEVEDO, 1995). E traz também mudanças profundas na rede escolar do 1º Ciclo do Ensino Básico, dada a supressão de um elevado número de escolas em meio rural, marcadamente, no período compreendido entre o início do século XXI e os meados da segunda década dos anos 2000. A verdade é que esse movimento de sentido único – refira-se que a administração central não criou alternativas dignas desse nome – impediu que as áreas rurais tivessem igualdade de oportunidades no acesso e sucesso escolares. De facto, aquilo a que se assistiu foi à desvalorização dos modos de socialização das crianças que viviam em meio rural, assente no pressuposto (muito vezes assumido também pela administração local) de que a ruralidade é antípoda da modernidade – historicamente, uma ideia bem caraterizada por José António Afonso (2016) na sua análise às escolas rurais na I República portuguesa. Importa questionar se teria sido possível criar novas dinâmicas nas comunidades rurais – a reconstrução identitária de que tanto fala Abílio Amiguinho (2008) – fundadas no valor simbólico da escola e considerando, como refere José Azevedo (1995, p. 104), que a escola em meio rural “é um instrumento de afirmação, um sinal de pertença, um raro benefício de que não se prescinde sem resistência”. Além desse postulado – o de que a instituição escolar pode contribuir “para a revitalização social das zonas rurais”(CANÁRIO, 2008, p. 35) –, do ponto de vista pedagógico afigura-se particularmente interessante analisar a configuração (e a resiliência) da escola em meio rural (falo de escola unitária ou de classe única) frente à normatividade do conceito de “gramática escolar”, forjado a partir da historicamente recente difusão mundial do modelo de escola graduada, em que a população escolar é agrupada em graus supostamente homogéneos por nível e idade, tendo cada um o seu professor (ROCKWELL ; MOLINA, 2014). Uma ideia que vou procurar aprofundar, recuperando, não só, o conceito de escola em meio rural proposto por Rui Canário (2008), que enfatiza a proximidade, a pequena escala e a heterogeneidade da classe única, mas também a perspetiva de outros autores. Por exemplo, Van Zanten (citado por JEAN, 2007, p. 8) reporta-se a uma escola de classe única numa pequena aldeia ou vila (por definição, “escola periférica”) como tendo “une configuration scolaire spécifique du fait des caractéristiques de son publique, de certains traits de son fonctionnement interne et des relations qu’elle entretient avec le centre”. Por outro lado, em meados da década de 1990, R. Boix propõe a seguinte definição.
La escuela situada en un ámbito rural es una institución educativa que tiene como soporte el medio y la cultura rurales, con una estructura organizativa heterogénea y singular (en función de la tipología de escuela) y con una configuración pedagógico-didáctica multidimensional (citado por SAURAS JAIME, 2000, p. 31).
Ora, as caraterísticas enunciadas pelos citados autores, designadamente, a heterogeneidade da classe (menor uniformidade pedagógica), a ligação ao meio, mas também a autonomia curricular e o respeito pela diferenciação dos ritmos de aprendizagem dos alunos (OLIVARES, 2007) – no fundo, a multidimensionalidade de que nos fala Boix – permitem pensar a escola em meio rural como algo não obsoleto. O sentido é mesmo o de se afirmar como referência para questionar o modelo de escola graduada (ROCKWELL; MOLINA, 2014) – se quisermos, o pressuposto de que os alunos, uma vez agrupados por nível de conhecimentos e de idade, teriam, em princípio, a mesma evolução na aprendizagem (SILVA, 2017).
Não obstante as profundas mudanças que no decurso das últimas décadas foram tendo lugar em vários contextos rurais – daí a razão de alguns autores preferirem falar em “diferentes meios rurais” ou em “múltiplas ruralidades”8 (na verdade, a realidade da escola em meio rural é tão diversa como diversos são os territórios em que esta se implanta) –, certo é que a escola unitária assim como as soluções pedagógicas a ela associadas foram persistindo no tempo. Mesmo estando em causa o futuro do mundo rural, a escola unitária não pode deixar de ser considerada alternativa a uma escola mais preocupada com exigências de tipo económico e social do que pautada por valores culturais e pedagógicos. Deve, pois, afirmar-se como modelo alternativo a uma cultura hegemónica e homogeneizadora capaz de produzir/ reproduzir valores sociais e culturais de um meio rural em transformação – é aqui importante a criação de redes sociais e de hibridação cultural (ROCKWELL; MOLINA, 2014). O valor pedagógico da escola unitária reside, em particular, na diversidade, implicando, necessariamente, estratégias de gestão da sala de aula atentas à diferença e ao respeito pelos ritmos de aprendizagem. Aquilo que iremos perceber nas próximas secções é que tanto esse valor como a ideia de que a escola em meio rural pode contribuir para a revitalização das comunidades em que se insere têm estado afastados do pensamento da administração central e, mesmo, do espírito de muitos atores locais.
Evolução da rede escolar do 1º Ciclo do Ensino Básico no Continente português (escolas com menos de 21 alunos)
Antes de me focar nas medidas de concentração escolar adotadas no PIS – associadas a alterações demográficas, ao recuo do mundo rural e à urbanização e litoralização, conduzindo (por imposição normativa) ao encerramento de escolas com menos de 21 alunos e à redefinição da rede escolar –, julgo importante traçar uma panorâmica da situação observada no Continente português. A cronologia é a que se estende entre os primeiros anos da década de 2000 – quando, de facto, começam a ser visíveis tais efeitos (desde logo, a supressão de escolas e a redefinição da rede escolar) – e os meados da década seguinte (momento em que o número de escolas com menos de 21 alunos é já, praticamente, residual). O Quadro 1 elucida-nos quanto à redução do número de escolas básicas do 1º Ciclo com menos de 21 alunos, precisando o período considerado – anos letivos de 2004/05 a 2014/15.
2004/05 | 2005/06 | 2006/07 | 2007/08 | 2008/09 | 2009/10 | 2010/11 | 2011/12 | 2012/13 | 2013/14 | 2014/15 |
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3064 | 2915 | 1383 | 905 | 591 | 602 | 648 | 308 | 323 | 241 | 162 |
Fonte:Perdigão, 2017.
No lapso de tempo de uma década é manifestamente acentuada a diminuição do número de estabelecimentos de ensino. Na verdade, passamos de uma situação inicial de 3064 escolas para, volvidos dez anos, um cômputo de apenas 162 escolas – representa, na prática, o fim da escola de classe única ou unitária. Mas há momentos em que o decréscimo (que não é linear) é mais expressivo; algo que deve ser perspetivado à luz da implementação de algumas medidas de política educativa. Veja-se, em primeiro lugar, a variação existente na passagem do ano letivo de 2005/06 para o ano letivo seguinte, correspondendo ao encerramento de 47,4% dos estabelecimentos de ensino com as caraterísticas indicadas.9 É consequência do Programa Especial de Reordenamento da Rede de Escolas do 1º Ciclo do Ensino Básico, criado em 2002. Mantendo presente o Quadro 1, até ao ano letivo de 2008/09 regista-se acentuada descida do número de escolas, sendo certo que a maior variação (absoluta, aliás) é observada na transição do ano letivo de 2007/08 para o ano letivo seguinte. É o momento da criação de uma nova tipologia de escola, designada centro escolar, no quadro do Programa Nacional de Requalificação da Rede do 1º Ciclo do Ensino Básico e da Educação Pré-Escolar (2007). São, então, encerrados 65,3% dos estabelecimentos de ensino do 1º Ciclo do Ensino Básico com menos de 21 alunos. Outro decréscimo muito significativo é constatado na passagem do ano letivo de 2010/11 para o ano letivo de 2011/12. Com efeito, nessa transição, são extintos 47,5% dos estabelecimentos de ensino considerados; consequência da Resolução do Conselho de Ministros n.º 44/2010, de 14 de junho, que determinou, designadamente, a extinção de estabelecimentos públicos do 1º Ciclo do Ensino Básico com menos de 21 alunos.
A drástica redução do número de escolas no período em questão e a concentração escolar associada não ficaram apenas a dever-se à implementação de medidas de política educativa central. Na verdade, resultaram também de lógicas de ação localmente desenvolvidas. É, justamente, desse assunto que me ocuparei nas páginas seguintes, tendo por referência a zona geográfica do PIS, depois de a caraterizar e de analisar alguns indicadores educacionais.
Medidas de concentração escolar na zona geográfica do PIS
Caraterização da zona geográfica
A zona geográfica do PIS está parcialmente integrada nas sub-regiões da Beira Baixa e do Médio Tejo, ambas, por sua vez, fazendo parte da Região Centro de Portugal.10 Porém, entre 1986 e 2015 correspondeu territorialmente à NUTS11 III do interior centro de Portugal, sendo constituída pelos concelhos de Mação, Vila de Rei, Proença-a-Nova, Sertã e Oleiros. No ano de 2013, por força de uma alteração legislativa, a nomenclatura PIS foi extinta.12 Não obstante, como referem Helena Cabeleira, Carolina Carvalho e Ana Madeira (2020, p. 142), a designação em causa “continua ainda hoje ativa na linguagem da população local quando se quer referir ao território no qual se inscreve a sua comunidade de pertença” – uma questão identitária. É por esse motivo que a presente análise – cujo arco cronológico se situa entre os anos letivos de 2004/05 e 2014/05 –, mantém como referência metodológica a unidade territorial do PIS, ou seja, os cinco concelhos mencionados. Esta opção obrigou a desagregar algumas informações estatísticas da educação, uma vez que as fontes, a partir do ano letivo de 2013/14, adotam a nova nomenclatura e integram os ditos concelhos nas sub-regiões da Beira Baixa e do Médio Tejo.13
Importa dizer que é na zona geográfica do PIS que se encontra o centro geodésico de Portugal Continental, precisamente, no município de Vila de Rei (Figura 1).
Conforme enunciei, os cinco concelhos que constituem o PIS têm uma identidade comum. De facto, trata-se de um território interior, essencialmente rural, sujeito à litoralização do crescimento económico e ao êxodo populacional; algo que, desde a década de 1950, tem conduzido ao envelhecimento da população (pondo em causa a sustentabilidade demográfica) e à desertificação da zona geográfica em questão (MATEUS, 2008). Por outro lado, sendo baixa a densidade populacional, o povoamento está concentrado em pequenos lugares e freguesias (PENTEADO, 2012).
Significativo é também o facto de os cinco concelhos do PIS apresentarem valores de Produto Interno Bruto (PIB) per capita abaixo da média nacional (MARTINS, 2007).14 De resto, em 2011, o PIS apresentou mesmo as “taxas de atividade” mais baixas do país (PORTUGAL, 2012). Por tudo o que foi sendo mencionado – acrescente-se a baixa “atratividade económico-social e empresarial” da zona (MATEUS, 2008, p. 16), obrigando os jovens a migrar para os centros urbanos em busca de empregos e para prossecução de estudos –, não é, certamente, de estranhar que a população residente apresente baixos níveis de escolaridade e de qualificação. Precise-se o alcance desta afirmação, tendo por referência os Censos de 2011: dos 40705 habitantes do PIS então recenseados, 5368 não possuíam qualquer nível de escolaridade e 16707 tinham apenas o 1º Ciclo do Ensino Básico (PORTUGAL, 2012).
Os dados citados enfatizam a dicotomia litoral-interior do país; traduzem, ao mesmo tempo e ao longo de décadas, a incapacidade de o poder político manter a população residente na zona geográfica considerada. A aposta na via económica em espaço urbano, conduzindo ao êxodo rural, terá, necessariamente, repercussões nos indicadores educacionais.
Análise de indicadores educacionais
Nesta secção analiso alguns indicadores educacionais relativos ao PIS; primeiro, considerando o universo da zona geográfica e, posteriormente, desagregando os dados por cada um dos cinco concelhos. Lembro que, metodologicamente, mantive a unidade geográfica PIS, não obstante as fontes, a partir do ano letivo de 2013/14, seguirem a nova nomenclatura e integrarem os cinco concelhos nas sub-regiões da Beira Baixa e do Médio Tejo. Por outro lado, importa, de modo óbvio, explicar a razão de ser dos indicadores considerados (alunos matriculados, taxas de retenção e desistência e número de estabelecimentos de ensino). Sabendo-se que, para o arco cronológico definido (2004/05 a 2014/15), se observou supressão de estabelecimentos de ensino, muito por via da diminuição da população jovem, afigurou-se-me lógica a escolha dos indicadores “alunos matriculados” e “estabelecimentos de ensino”. Dir-se-ia, por outro lado, não ser tão evidente a seleção do indicador “taxas de retenção e desistência”. A ideia, neste caso, foi a de tentar avaliar se a progressiva diminuição do número de escolas do 1º Ciclo do Ensino Básico ao longo da década – significando, na prática, concentrar os alunos em menos escolas, mas com maior dimensão e, supostamente, com melhores condições pedagógicas (centros escolares) –, teve alguma relação com as taxas de retenção e desistência; sabendo-se, à partida, que se trata de uma questão muito complexa, envolvendo diversas variáveis. A esse respeito, José Maria Azevedo elucida-nos com clareza:
Não é fácil isolar os efeitos das alterações da rede e dos equipamentos na melhoria dos resultados em educação, muito menos estabelecer relações de causa e efeito. As alterações mais imediatas no dia-a-dia escolar – acesso a refeições na escola, redução do número de escolas a funcionar em regime duplo ou usufruto de determinados equipamentos – são mais percetíveis do que o impacto no ensino, nas aprendizagens e nos resultados (AZEVEDO, 2014, 576).
Posto isto, comecemos por analisar a evolução do número de alunos matriculados no 1º Ciclo do Ensino Básico (Quadro 2).
Ano letivo | 2004/05 | 2005/06 | 2006/07 | 2007/08 | 2008/09 | 2009/10 | 2010/11 | 2011/12 | 2012/13 | 2013/14 | 2014/15 |
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Alunos matriculados15 | 1646 | 1470 | 1397 | 1362 | 1334 | 1266 | 1221 | 1156 | 1100 | 1048 | 986 |
Taxas de retenção e desistência16 | 4,8 (5,2) | 2,7 (4,3) | 2,6 (3,9) | 2,1 (3,6) | 3,9 (3,4) | 3,6 (3,5) | 2,7 (3,2) | 2,8 (4,2) | 4,6 (4,6) | 4,9 (4,8) | 2,5 (4,0) |
Estabelecimentos de ensino17 | 93 | 89 | 60 | 50 | 45 | 41 | 37 | 36 | 30 | 29 | 28 |
Fonte:Portugal, 2014, 2016 e [2017a].
Nota: Entre parênteses e a negrito média nacional (Portugal Continental).
É visível a progressiva redução desse número no decurso de uma década, que acaba por ser muito significativa no seu todo. Ou seja, entre 2004/05 e 2014/15 há uma quebra de 40,1% no número de alunos matriculados. É evidente que estes dados têm de ser contextualizados com outros indicadores, designadamente, demográficos. Por exemplo, os dados disponíveis permitem constatar que, entre 2001 e 2011, anos em que foram realizados os últimos dois censos de que há dados publicados18, a população residente passou de 44803 para 40705 habitantes (PORTUGAL, 2012), significando um decréscimo de 9,1%.19 Por outro lado, observou-se uma tendência para o envelhecimento da população no universo considerado. Na verdade, no intervalo de tempo indicado, o índice de envelhecimento20 foi duas vezes superior ao nacional (BRANQUINHO, 2011).21 Quanto à estrutura etária, convém ainda afirmar que o decréscimo da população se registou, sobretudo, na população jovem.22 Para melhor contextualizar a redução do número de alunos matriculados, acresce dizer que, entre 2001 e 2011, a taxa de fecundidade23 no PIS foi bastante inferior à nacional e, mesmo, à da Região Centro (BRANQUINHO, 2011).
No decurso da década de 2004/05 a 2014/15, em consonância com o decréscimo do número de alunos matriculados, foi significativa a diminuição do número de estabelecimentos de ensino públicos. Infelizmente, a fonte não desagrega a tipologia dos edifícios escolares. No entanto, entre 2004/05 e 2014/15 a percentagem de encerramento de escolas (30,1%) muito ficou a dever a medidas de concentração escolar e pressupôs, designadamente, a extinção de várias escolas do 1º Ciclo do Ensino Básico com menos de 21 alunos.
Outro aspeto a analisar é o que se prende com as taxas de retenção e desistência. Até que ponto, por exemplo, é possível estabelecer relação entre esse indicador e o número de escolas, pensando que a extinção de escolas unitárias e a concentração escolar trariam, supostamente, melhores condições de ensino e aprendizagem? Trata-se, conforme referi, na referência à investigação de José Maria Azevedo (2014), de uma questão complexa, envolvendo diversas variáveis e exigindo dados de contexto que desconhecemos. Importava, por exemplo, conhecer a condição social, económica, cultural, comportamental e motivacional dos alunos e das famílias e, também, ter informações sobre as escolas enquanto organização. Regressando ao Quadro 2, aquilo que se pode dizer é que não se observa relação de causa e efeito entre a progressiva redução do número de escolas ao longo da década e a observada variação nas taxas de retenção e desistência. É notória, aliás, a flutuação das referidas taxas, apresentando, no entanto, diferenciais na sua maioria negativos; excecionam-se os anos letivos de 2008/09, 2011/12, 2012/13 e 2013/14. São, na sua maioria, os anos em que as taxas igualam ou superam a média nacional. Considerando a taxa de retenção e desistência, o Conselho Nacional de Educação havia já sublinhado a inversão, para o universo do país e a partir de 2011, da tendência de diminuição registada desde 2001/02 (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. ESTADO DA EDUCAÇÃO 2013, 2014). Situação que se inverte a partir do ano de 2014/15 (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. ESTADO DA EDUCAÇÃO 2015, 2016). Note-se, ainda, que a partir de 2010/11 as taxas de retenção e desistência se apresentam em linha (PIS e Portugal Continental).
Interessa, agora, analisar os três indicadores considerados no Quadro 2, mas desagregando os dados por concelho.
Durante a década considerada, em todos os concelhos do PIS se verifica diminuição do número de alunos matriculados. Mas, a quebra não é idêntica. Por exemplo, em Vila de Rei, o concelho menos populoso e, significativamente, com menos superfície, o número em questão decresce 23,7%. Bem inferior à média dos cinco concelhos e, de resto, o mais baixo da zona geográfica. Por outro lado, no concelho mais populoso (Sertã), o decréscimo situa-se nos 28,4%, também bem inferior à média do PIS. Por seu turno, a percentagem mais elevada é registada em Proença-a-Nova (43,5%), o segundo concelho mais populoso. Embora não exclusivamente, estes dados devem ser vistos à luz da evolução da demografia.27
No que ao número de estabelecimentos de ensino diz respeito, o padrão é de redução acentuada em todos os concelhos do PIS, excecionando o concelho de Vila de Rei. De facto, neste último caso, a rede mantém-se estável (apenas duas escolas públicas) ao longo do decénio. Paralelamente, importa acrescentar que, no PIS, a expressão da rede privada é residual. Por exemplo, em Mação, no arco cronológico indicado, não é referenciada qualquer escola privada.28 Conforme antevi na análise ao Quadro 2, questão importante é a de saber em que medida a diminuição do número de estabelecimentos de ensino se reporta a escolas do 1º Ciclo do Ensino Básico (enquanto efeito das medidas de concentração escolar), sendo certo que a fonte utilizada não desagrega tipologias de edifícios. Porém, no caso do concelho de Proença-a-Nova, é possível superar essa dificuldade, recorrendo, para o efeito, a outra fonte. Falamos da Carta Educativa do Concelho de Proença-a-Nova, publicada em 2015 e que dá notícia das escolas do 1º Ciclo do Ensino Básico que foram suprimidas desde a década de 1980. Tendo em conta a cronologia definida, verifica-se que das 13 escolas encerradas entre os anos letivos de 2004/05 e 2014/15 (cf. Quadro 3) 12 eram escolas do 1º Ciclo do Ensino Básico.29 No último ano letivo mencionado existiam apenas duas escolas (centros escolares) dessa tipologia, uma com nove salas de aula e outra com três salas de aula.
Ano letivo/ Concelho | 2004/05 | 2005/06 | 2006/07 | 2007/08 | 2008/09 | 2009/10 | 2010/11 | 2011/12 | 2012/13 | 2013/14 | 2014/15 |
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OLEIROS | |||||||||||
Alunos matriculados24 | 146 | 126 | 134 | 116 | 116 | 123 | 103 | 101 | 94 | 88 | 88 |
Taxas de retenção e desistência25 | 6,8 | 1,6 | 3,0 | 4,3 | 4,3 | 0 | 1,0 | 1,0 | 6,4 | 2,3 | 4,5 |
Estabelecimentos de ensino26 | 13 | 11 | 7 | 5 | 5 | 5 | 5 | 4 | 4 | 4 | 4 |
PROENÇA-A-NOVA | |||||||||||
Alunos matriculados | 308 | 306 | 268 | 277 | 253 | 222 | 224 | 205 | 205 | 201 | 174 |
Taxas de retenção e desistência | 2,6 | 2,9 | 2,6 | 2,2 | 2,4 | 1,8 | 2,2 | 2,4 | 3,9 | 2,5 | 2,9 |
Estabelecimentos de ensino | 17 | 15 | 12 | 10 | 8 | 8 | 5 | 5 | 5 | 4 | 4 |
SERTÃ | |||||||||||
Alunos matriculados | 683 | 673 | 633 | 612 | 607 | 588 | 583 | 567 | 535 | 503 | 489 |
Taxas de retenção e desistência | 4,2 | 2,2 | 1,9 | 1,3 | 3,1 | 3,7 | 2,9 | 2,6 | 3,4 | 6,8 | 3,1 |
Estabelecimentos de ensino | 37 | 37 | 24 | 22 | 19 | 16 | 15 | 15 | 15 | 15 | 14 |
VILA DE REI | |||||||||||
Alunos matriculados | 114 | 118 | 136 | 133 | 121 | 127 | 113 | 109 | 101 | 98 | 87 |
Taxas de retenção e desistência | 10,5 | 1,7 | 0 | 1,5 | 6,6 | 3,1 | 0 | 1,8 | 7,9 | 8,2 | 1,1 |
Estabelecimentos de ensino | 2 | 2 | 2 | 2 | 2 | 2 | 2 | 2 | 2 | 2 | 2 |
MAÇÃO | |||||||||||
Alunos matriculados | 243 | 247 | 226 | 224 | 237 | 205 | 196 | 173 | 165 | 158 | 148 |
Taxas de retenção e desistência | 5,3 | 4,5 | 6,2 | 3,1 | 5,9 | 7,8 | 5,1 | 5,2 | 6,7 | 2,5 | 0,7 |
Estabelecimentos de ensino | 24 | 24 | 15 | 11 | 11 | 10 | 10 | 10 | 4 | 4 | 4 |
Fonte:PORTUGAL, 2014, 2015 e 2017c.
Por outro lado, a análise das taxas de retenção e desistência por concelho confirma uma ideia anteriormente ponderada, quando considerámos o universo do PIS: a de que não existe relação de causa e efeito entre a progressiva diminuição do número de estabelecimentos de ensino ao longo da década e a observada variação nas referidas taxas. Todavia, julgo importante registar um padrão, que espelha aquilo que observámos no Quadro 2, na passagem do ano letivo de 2011/12 para o ano seguinte. Ou seja, uma subida significativa da taxa de retenção e desistência. Com os dados desagregados, constata-se que em todos os concelhos, na passagem dos anos indicados, se verificou um aumento da mencionada taxa; algo particularmente evidente em Oleiros (1% para 6,4%) e em Vila de Rei (1,8% para 7,9%). São valores para os quais não tenho explicação. Fica a faltar uma leitura de dados locais, por exemplo, relacionados com as políticas municipais de apoios escolares.
Na próxima secção analisarei as opções que, ao longo da década 2004/05 a 2014/15, foram sendo tomadas no respeitante à extinção de escolas com menos de 21 alunos e à consequente concentração escolar. No debate, não emerge apenas a suposta pertinência da extinção de unidades educativas – lembremos, no concelho de Oleiros, no ano letivo de 2005/06, a existência de sete escolas com menos de dez alunos. Na verdade, o que de igual modo se equaciona são diversas soluções em matéria de concentração escolar – por exemplo, localização (apenas na sede do concelho ou em algumas freguesias) e dimensão.
Medidas/opções de concentração escolar
Nos primeiros anos do século XXI, nomeadamente, depois da criação do Programa Especial de Reordenamento da Rede de Escolas do 1º Ciclo do Ensino Básico, em 2002, sobe de tom a contestação à supressão de escolas e às medidas de concentração escolar (sobretudo, nas comunidades rurais). Da parte dos professores, os sindicatos de classe darão expressão a esses protestos, defendendo, fundamentalmente, que o encerramento de escolas se alicerça em critérios de racionalidade económica. Argumentação mais contextualizada pode ser lida nas páginas do Jornal da Fenprof30, nos anos de 2005 e 2006. De facto, uma das críticas que emerge é a da ausência de uma visão estratégica para o 1º Ciclo do Ensino Básico. Note-se, por outro lado, que a Fenprof não preconiza a manutenção de todas as escolas com menos de 21 alunos. Defende, sim, que algumas escolas de pequena dimensão podiam ser encerradas e que a progressiva redução da rede escolar devia prever a construção de centros escolares de média dimensão (JORNAL DA FENPROF, novembro de 2005)31; caso contrário, conforme se adiantava, em vários distritos do país os alunos teriam de passar muitas horas por dia em transportes escolares. Por outro lado, em fevereiro de 2006, novo artigo vem por a nu as fragilidades do funcionamento de muitas escolas do 1º Ciclo do Ensino Básico, sobretudo, em meio rural. Para além do levantamento das dificuldades sentidas, aquilo que se propõe no texto é a revitalização da pequena escola da aldeia. No essencial, argumenta-se que a “a manutenção da escola da aldeia pode contribuir para um saudável desenvolvimento da criança evitando a permanente deslocação e o desenraizamento cultural” (JORNAL DA FENPROF, fevereiro de 2006, p. 20). No entanto, a ser mesmo necessário encerrar algumas escolas, esse processo, segundo a Fenprof, teria de passar: i) pelo estabelecimento de consensos com as populações; ii) pela salvaguarda da segurança e conforto das crianças nos transportes escolares; iii) pelo desenvolvimento de negociações entre o governo e o sindicato, no respeitante ao reordenamento da rede escolar (JORNAL DA FENPROF, fevereiro de 2006). No mês seguinte, com o sugestivo título “O Governo abate escolas, a requalificação do 1º Ciclo pode esperar!”, o assunto volta às páginas do Jornal. O que se pretende é contrariar a ideia, veiculada pelo Ministério da Educação, de que a supressão de escolas tem que ver com razões de natureza pedagógica. Esse princípio é posto em causa pelo facto de não estarem apenas a ser encerradas escolas, mas também centros de saúde, tribunais, maternidades, entre outros serviços públicos – em causa, “reduzir o Estado ao estado mínimo” (JORNAL DA FENPROF, março de 2006, p. 14). Nesse sentido, segundo se argumenta, a manutenção de pequenas escolas em algumas regiões poderia ajudar a combater a desertificação populacional. A este respeito, João Serrão, especialista em Geografia Humana, tece interessantes considerações. Na verdade, em 29 de agosto de 2010, em entrevista ao jornal Público, sugestivamente intitulada “Uma escola que fecha mata uma aldeia ou acelera o inevitável?”, é contundente:
Podemos sempre dizer que o encerramento da escola só acelera a morte do lugar, porque a falta de crianças se encarregaria de conduzir ao mesmo resultado em poucos anos. Mas isso só é verdade porque há muito que o Poder abandonou por completo o mundo rural (PÚBLICO, 29 de agosto de 2010, s. p.).
E alerta que a decisão de encerrar escolas deve ser tomada no quadro de políticas multissetoriais de ordenamento do território, tendo em consideração casos específicos.32 Nesse sentido, em algumas situações, “o desequilíbrio provocado pelo encerramento de uma escola pode ser fatal para um trabalho de anos, feito a nível local, contra a desertificação” (PÚBLICO, 29 de agosto de 2010, s. p.). Por outro lado, adverte para uma ideia perniciosa, abraçada por muitos municípios: a de que a desertificação populacional se combate com o fortalecimento das sedes de concelho – o efeito, adianta, será o de sucção da população rural (PÚBLICO, 29 de agosto de 2010).
Para a minha investigação, importa perceber como essas questões são abordadas pelos municípios, considerando, designadamente, os que integram a zona do PIS. A esse respeito, as cartas educativas revelam-nos informações importantes. Trata-se, conforme enunciei, de instrumentos privilegiados da política educativa municipal. Na verdade, questões tão relevantes como sejam a definição da rede de oferta de educação e formação, a análise prospetiva do sistema, a gestão dos equipamentos educativos, o processo de agrupamento de escolas, entre outras, encontram-se plasmadas nas cartas educativas.33 Não menos interessante é dizer que permitem a participação de diversos atores locais.34
O corpus de cartas educativas que irei utilizar como fonte é constituído por quatro documentos (relativos aos concelhos do PIS: Oleiros, Vila de Rei, Mação e Proença-a-Nova).35 A maioria desses documentos foi aprovada entre os anos de 2006 e 2007 (continuando, porém, em vigor); exceção é a Carta Educativa de Proença-a-Nova, atualizada em fevereiro de 2015.36 Quanto à estrutura desses cinco instrumentos, há uma matriz comum37, a saber: i) conceito, finalidade e princípios orientadores da carta educativa; ii) caraterização socioeconómica e demográfica do concelho; iii) caraterização e evolução do sistema educativo (incluindo uma visão prospetiva); iv) critérios de reordenamento da rede escolar; v) monitorização da carta educativa. Darei especial atenção à análise prospetiva e aos critérios de reordenamento da rede escolar – o sentido é o de perceber a que luz são adotadas as medidas de concentração.
Dito isto, começo por me centrar na Carta Educativa do concelho de Oleiros, aprovada em outubro de 2006. Um dos tópicos importantes é o que diz respeito à visão prospetiva para o ano letivo de 2010/11, nomeadamente, a oferta-procura no 1º Ciclo do Ensino Básico. Relembro que, em 2005/06, das nove escolas existentes nesse concelho sete tinham menos de dez alunos. A previsão para o ano letivo de 2010/11 aponta para a redução do número de alunos e de estabelecimentos de ensino.38 Consequentemente, face à procura prevista, a Carta Educativa propõe o seguinte reordenamento da rede: cinco estabelecimentos de ensino, sendo notória a concentração na sede do concelho. De facto, o centro escolar aí já existente facultaria cinco salas de aulas, estimando-se que as demais escolas, todas situadas em freguesias diferentes e com uma única sala, teriam uma ocupação entre seis e 15 alunos. Note-se que, no ano letivo em que a Carta Educativa foi aprovada (2006/07), foram encerradas duas escolas (freguesias do Mosteiro e da Madeirã). No primeiro caso, optou-se por transferir a população escolar para a sede do concelho e, no segundo caso, para a freguesia do Sobral. A verdade é que, mesmo considerando a rarefação da população escolar, parece estar ausente a crença na escola como fator identitário e “símbolo de progresso” das comunidades rurais, para adotar a expressão de Rui Canário (2008, p. 34). A aposta é, claramente, na zona urbana do concelho. Mas, entretanto, vale a pena conhecer a argumentação que acompanha as medidas de concentração escolar. Na Carta Educativa refere-se que importa “concentrar a oferta de ensino de 1º Ciclo nos centros populacionais mais relevantes e com maior dinâmica demográfica”; e, a par, “acompanhar essa concentração com uma requalificação da oferta, nomeadamente ao nível das instalações, infraestruturas de apoio e equipamentos das escolas” (CARTA EDUCATIVA DO CONCELHO DE OLEIROS, outubro de 2006, p. 84). Entende-se mesmo, face à demografia e às orientações do governo, ser uma inevitabilidade encerrar escolas do 1º Ciclo. Relevante é também o facto de a crescente concentração urbana da população ser considerada vetor estratégico de desenvolvimento socioeconómico do concelho. Em consequência, são, em boa medida, razões dessa natureza que orientam o reordenamento da rede escolar.
No caso do concelho de Mação, a respetiva Carta Educativa enfatiza, também, a questão demográfica; o mesmo sucedendo, sem surpresa, nos demais concelhos do PIS. À data de aprovação do documento (janeiro de 2007) existiam oito escolas do 1º Ciclo do Ensino Básico39; apenas uma das freguesias não possuía escola. Admitia-se, no entanto, que a situação nas freguesias pudesse vir a mudar em virtude de movimentos migratórios no próprio concelho. Há alguns pressupostos interessantes, no que ao reordenamento da rede escolar diz respeito. Com efeito, entende-se que devem ser bem avaliados os benefícios efetivos de suprimir escolas, uma vez que, dada a extensão territorial do concelho de Mação (superfície de 400,82 Km2), o recurso generalizado aos transportes escolares comportaria sempre alguns riscos para as crianças. E enfatiza-se a seguinte ideia: “o número de alunos é um indicador importante, mas não deve ser exclusivo ou determinante [para encerrar uma escola]” (CARTA EDUCATIVA DO CONCELHO DE MAÇÃO, janeiro de 2007, p. 75). A proposta de reordenamento da rede vertida na Carta Educativa faz algum eco desse propósito. Efetivamente, nela se propõe a extinção de duas escolas (com cinco e 12 alunos, respetivamente das freguesias de Aboboreira e de Vales de Cardigos). Veja-se, no entanto, que é manifestada a intenção de manter em funcionamento escolas com 14, 16 e 18 alunos.40 Esta última decisão ficou a dever-se à previsível evolução da população escolar (sem alterações significativas a médio prazo, segundo se indica), assim como à boa qualidade das instalações. Por outro lado, interessa dizer que os argumentos para encerrar a escola com cinco alunos não se prendem, unicamente, com a frequência escolar. Na verdade, é valorizado o facto de as crianças se deslocarem todos os dias à Escola de Mação (sede do concelho)41, para frequentarem as atividades de enriquecimento curricular. Assim, com a extinção da escola da Aboboreira, a transferência dos respetivos alunos não faria mais do que consagrar uma prática já existente. De resto, a Escola de Mação assumir-se-ia, “a médio prazo, como polo de referência de toda a parte sul do concelho”, podendo acolher crianças de várias freguesias (CARTA EDUCATIVA DO CONCELHO DE MAÇÃO, janeiro de 2007, p. 79). A ideia não era, pois, concentrar todas as escolas (e alunos) na sede do concelho, mas sim, numa solução mais integrada da que observámos na Carta Educativa de Oleiros, constituir “três polos educativos que preencham de forma homogénea todo o território” (CARTA EDUCATIVA DO CONCELHO DE MAÇÃO, janeiro de 2007, p. 79).
Passando a analisar a Carta Educativa do Concelho de Vila de Rei, aprovada em dezembro de 2007, interessa, como nota prévia, sublinhar que se trata do concelho menos populoso e com menor superfície (zona geográfica do PIS). À data de elaboração do documento, um único estabelecimento de ensino, situado no centro de Vila de Rei, acolhia alunos de todas as freguesias (Vila de Rei, S. João do Peso e Fundada) e dos vários níveis de ensino (do 1º Ciclo do Ensino Básico ao Secundário). Refiro-me à Escola Básica Integrada do Centro de Portugal, na qual seis salas de aula estavam afetas ao 1º Ciclo. À luz do que foi dito, não surpreende que na Carta Educativa a escola em meio rural não seja referência. Por outro lado, é particularmente notória a estabilidade da rede na década de 2004/05 a 2014/15 (cf. Quadro 3). A estimativa da evolução da população escolar para 2011 parte das seguintes premissas: i) natalidade constante; ii) ausência de migrações. Prevê-se uma frequência escolar entre os 157 e os 176 alunos; superior aos 136 alunos registados (matriculados) no ano letivo de 2006/07 (cf. Quadro 3). Também não surpreende a revisão desse número em alta, se pensarmos que no documento em causa se constata um certo otimismo; pressupõe-se mesmo “alguma capacidade de atração da população” (CARTA EDUCATIVA DO CONCELHO DE VILA DE REI, dezembro de 2007, p. 55). Lembro, aliás, que entre 2001 e 2011 Vila de Rei foi o único concelho do PIS a registar crescimento (ainda que tímido) da população residente.42 Nesse sentido, a proposta de reordenamento da rede escolar considera a necessidade de a Escola Básica Integrada do Centro de Portugal ter mais três salas de aula destinadas ao 1º Ciclo. Além do mais, defende-se que a rede do Pré-Escolar deverá estar integrada com a do 1º Ciclo do Ensino Básico, assegurando articulação e complementaridade entre os dois níveis.43 Há, ainda, uma clara aposta nas atividades de enriquecimento curricular e no princípio da “escola a tempo inteiro” (assegurando transportes e refeições aos alunos). Sintetizando, a ideia é continuar a facultar o ensino público a todos os alunos do concelho num único edifício (a Escola Básica Integrada do Centro de Portugal).
Por fim, vejamos a Carta Educativa do Concelho de Proença-a-Nova, conforme se disse, aprovada no ano de 2015. O documento em causa evidencia que o município adotou as linhas mestras da orientação do Ministério da Educação sobre o reordenamento da rede escolar; não se eximiu, contudo, de criticar a tutela tendo em vista a idealização de uma política educativa contextualizada. Com efeito, o município em questão seguiu a Resolução do Conselho de Ministros n.º 44/2010, de 1 de junho, a qual visava alcançar três grandes objetivos, a saber: i) adaptar a rede escolar a uma escolaridade de 12 anos para todos os alunos; ii) adequar a dimensão e as condições das escolas à promoção do sucesso escolar e ao combate ao abandono; iii) promover a racionalização dos agrupamentos de escolas, de modo a favorecer o desenvolvimento de um projeto educativo comum, articulando níveis e ciclos de ensino. Por outro lado, foi sensível a outros tópicos presentes na citada Resolução, designadamente, a erradicação de situações de isolamento de estabelecimentos de ensino, assim como o pressuposto de todos os alunos frequentarem espaços com refeitório, biblioteca e sala de informática, entre outros. De forma mais operacional, aquilo que o município de Proença-a-Nova fez foi atender às dinâmicas demográficas e de desenvolvimento, às distâncias nos trajetos e à rede de transportes, considerando, ainda, o aproveitamento do parque escolar existente (CARTA EDUCATIVA DO CONCELHO DE PROENÇA-A-NOVA, fevereiro de 2015). Porém, teceu críticas (embora pouco consequentes) ao critério mais determinante para encerrar escolas, ou seja, o número de alunos matriculados ser inferior a 21. Veja-se a argumentação aduzida:
Para lá da rigidez do número, que é, por vezes, em função de alguns elementos justificativos, torneável, fica a ideia de se estar a atacar os efeitos e não as causas. O critério parece desajustado tanto para a realidade da generalidade do interior do país como para a realidade concelhia, uma vez que, em muitos casos, apenas a(s) escolas(s) da sede de freguesia conseguem atingir aqueles quantitativos em permanência (CARTA EDUCATIVA DO CONCELHO DE PROENÇA-A-NOVA, fevereiro de 2015, p. 119-120).
Há duas ideias dificilmente conciliáveis, segundo se percebe da leitura da referida Carta. Por um lado, importa que a rede escolar garanta uma oferta de proximidade, evitando-se, dessa forma, deslocações incómodas; e, por outro lado, a concentração da oferta nas zonas urbanas (materializada nos centros escolares) surge como forma de assegurar a qualidade dos serviços educativos prestados. As soluções adotadas sobrevalorizam, claramente, a segunda ideia. De facto, defende-se que a reconfiguração da rede escolar deverá acompanhar a dinâmica demográfica do concelho de Proença-a-Nova, cuja tendência era a de crescente concentração urbana. Mais, segundo se indica em função do balanço prospetivo para 2021, o número de alunos matriculados no 1º Ciclo continuaria a decrescer no concelho, não obstante vir a aumentar a procura de ensino nos centros urbanos. Essa tendência é mesmo considerada um vetor estratégico de desenvolvimento do concelho. Consequentemente, são, sobretudo, razões económicas que presidem à reconfiguração da rede escolar. Em síntese, tratar-se-ia de: i) “concentrar a oferta de ensino do 1º Ciclo no centro populacional mais relevante e com maior dinâmica socioeconómica”; ii) requalificar a “oferta, nomeadamente ao nível das instalações, infraestruturas de apoio e equipamentos das escolas” (CARTA EDUCATIVA DO CONCELHO DE PROENÇA-A-NOVA, fevereiro de 2015, p. 126). Em consequência, equaciona-se o encerramento, a prazo, de um dos dois centros escolares existentes no concelho; o que significaria que apenas uma das freguesias (das quatro existentes) ficaria com um estabelecimento de ensino do 1º Ciclo do Ensino Básico. É clara a ausência de uma visão que identifique a rede escolar existente – se quisermos, o efeito simbólico da escola – como factor de criação de novas dinâmicas no meio rural. Na verdade, não só a ideia de progresso e de desenvolvimento económico está associada ao espaço urbano, como impera também o determinismo do número mínimo de alunos para manter uma escola aberta – relembre-se que, entre 2004/05 e 2014/15, foram encerradas no concelho de Proença-a-Nova 12 escolas do 1º Ciclo (justamente, por terem menos de 21 alunos). Em suma, aquilo que se preconiza na Carta Educativa (do mesmo modo, na de Oleiros e na de Vila de Rei) colide com a filosofia do citado Programa Nacional de Requalificação da Rede Escolar do 1º Ciclo do Ensino Básico e da Educação Pré-Escolar (2007). Ou seja, a ideia era combater a sobrelotação em zonas urbanas populosas e evitar a rarefação da rede nos meios rurais (AZEVEDO, 2014).
Considerações finais
No presente artigo procurei acompanhar o processo de redefinição da rede escolar do 1º Ciclo do Ensino Básico na zona geográfica do PIS, num arco temporal bem delimitado (2004/05 a 2014/15). Face ao dramatismo da rarefação da população escolar na zona geográfica considerada – efeito de um padrão de desenvolvimento assente no crescimento económico com base na indústria e no espaço urbano, estrangulando a economia camponesa e promovendo o êxodo rural –, tanto a administração central (inflexível no que respeita ao número mínimo de alunos para manter uma escola aberta) como os atores locais não foram capazes de garantir que as áreas rurais tivessem igualdade de oportunidades no acesso e sucesso escolares. Genericamente, as medidas de concentração escolar advogadas traduziram a ideia de, nos centros urbanos (em particular, nas sedes de concelho), ser possível garantir melhores condições pedagógicas, desconsiderando a importância da ligação às comunidades e os modos de socialização das crianças. Há, assim, um esforço de racionalização do ensino – também da organização científica do trabalho dos docentes (materializada na passagem da escola unitária para os centros escolares) – que deixa de parte valores culturais de um mundo rural em transformação. Efetivamente, aquilo que se defende é que a rede escolar acompanhe as zonas com maior dinâmica demográfica e, consequentemente, com maior potencial económico. Ainda assim, na zona geográfica do PIS, há realidades concelhias diferentes. Por exemplo, os concelhos onde o fator identitário da escola parece ser menor são Oleiros (o encerramento de escolas unitárias é, aliás, considerado uma inevitabilidade) e Proença-a-Nova. Em Mação, pelo contrário, não só se defende que o número de alunos não deve ser critério determinante para encerrar uma unidade educativa (admite-se mesmo manter em funcionamento escolas com 14, 16 e 18 alunos), como também se descarta a ideia de concentrar todas as escolas na sede do concelho. No entanto, é importante sublinhar que estas considerações merecem alguma reserva. De facto, as cartas educativas são, em certa medida, manifestações de interesse. Significa isto dizer que, por vezes, a evolução observada no terreno não corresponde à visão prospetiva plasmada nesses documentos. Mas, o que não deixa dúvidas – e permanece, de resto, como imagem do rápido recuo do mundo rural – é a drástica redução do número de alunos e de escolas unitárias no contexto e na década considerados. Na verdade, considerando também a perda percentual de população total no PIS entre 2001 e 2011 (lembre-se, 22,22% só no escalão etário dos 0 a 14 anos), pode afirmar-se, repetindo um slogan, que uma escola que fecha mata mesmo uma aldeia.
Por outro lado, há questões que ficam por responder e muitas por formular. Em relação às primeiras, uma nota final sobre as taxas de retenção e desistência. Mesmo não sendo percetível qualquer relação entre a diminuição do número de escolas (no fundo, a progressiva supressão de escolas unitárias e a construção de centros escolares) e a variação das mencionadas taxas, indicador, como se disse, complexo e dependente de muitas variáveis, fica a ideia de que a tipologia centro escolar parece não ter aumentado a capacidade pedagógica das escolas. Enfatize-se, ainda, que no PIS, na década considerada, a percentagem de retenção e desistência se situou, frequentemente, abaixo da média nacional. Quanto às questões que ficam por formular (e por investigar), enuncio apenas as seguintes: i) as consequências do encerramento de escolas, a partir de uma determinação central, não comprometeram mais o desenvolvimento do interior do que os custos associados à sua manutenção? ii) alguma entidade fez essa ponderação? iii) foi avaliada a relação do sucesso/ insucesso escolar com as medidas de política educativa implementadas (centros escolares)?
Encerro deixando mais algumas considerações. Importa, certamente, recordar que o lançamento das cartas educativas (e dos conselhos municipais de educação), em 2003, teve em mente criar as bases para uma descentralização eficaz e alargada (CRUZ, 2012; JUSTINO, 2013). No entanto, não se assistiu a uma gestão da rede de ofertas educativas que fosse partilhada entre os serviços centrais do Ministério e as organizações locais (CRUZ, 2012). Por outras palavras, o processo de descentralização não evoluiu no sentido de uma regulação que tivesse em conta maior responsabilização (e acompanhamento) dos níveis periféricos, designadamente, dos municípios. Com efeito, permaneceu uma visão centralista do sistema de ensino – algo que o presente estudo, na referência ao PIS, ilustra cabalmente. Faz todo o sentido, aliás, terminar com uma ideia sustentada por Justino Magalhães. Na verdade, o autor, no quadro da reconstituição histórica da ação dos municípios na educação, fala numa “longa modernização, em que o litoral e o urbano se sobrepuseram de forma irreversível” (MAGALHÃES, 2014, p. 191).