Introdução
O contexto global pós-2020 recolocou, de maneira enfática, múltiplas desigualdades no centro das agendas de diferentes pesquisador@s (BULL; RIVERA, 2020) e, em menor medida, das discussões de política educativa (UNESCO, 2020; OLIVEIRA; PEREIRA JUNIOR; CLEMENTINO, 2021). Revisando as perspectivas e as discussões dessas agendas, reafirmamos a importância de considerar, a partir de Amartya Sen (2008), que as noções de “desigualdade e bem-estar” precisam ser compreendidas contextualmente já que são construídas e entendidas de maneira diferenciada. Em contextos federativos, a perspectiva de Sem (2008) é imprescindível porque ressalta a importância de considerar as variações internas que podem agudizar desigualdades e demarcar as possibilidades de qualidade de vida das pessoas. Os sistemas educativos do Brasil e dos Estados Unidos da América (do Norte)1 (EUA) são casos emblemáticos de desigualdades, que não podem ser compreendidos sem considerar as políticas federais, subnacionais dos estados, e mesmo dentro dos estados, as diferenças e as desigualdades entre municípios/distritos (ARAUJO, 2018; DARLING-HAMMOND, 2019; KURBAN; GALLAGHER; PERSKY, 2012).
A centralidade da “questão docente” nos debates sobre como atender às desigualdades educacionais se apresenta como elemento comum a esses dois países, embora com características distintivas que precisam considerar a história dos sistemas de ensino, as forças internas em disputa, as características burocráticas que ancoram os sistemas. Reconhecendo as dificuldades de qualquer cotejamento, este texto busca contribuir para os debates sobre a questão docente, a partir de um foco específico: a remuneração do trabalho d@s professor@s da Educação Básica do setor público nos dois países.
Em uma perspectiva exploratória, procuramos construir o cotejamento dos casos tendo como referência uma perspectiva (quase) antropofágica sobre pesquisa comparada (explicamos isso na segunda seção). Estamos procurando uma análise que, ainda que investigue uma situação nacional, possa entrar em um diálogo comparado não valorativo, o que significa dimensionar que o olhar sobre um outro caso não pretende ser conclusivo, mas permite aprofundar o conhecimento sobre o próprio contexto (MARCONDES, 2005).
Nessa mesma direção, colocamos o desafio de construir uma pergunta de pesquisa em diálogo com perspectivas pós-coloniais (TAKAYAMA; SRIPRAKASH; CONNEL, 2016) a partir do “Sul” (MURH; AZEVEDO, 2019). A nossa proposta é tomar uma demanda que é pertinente no debate brasileiro, a necessidade de valorização salarial dos professores (TORMES; FARENZENA, 2019), no intuito de analisar as propostas locais em diálogo com ideias que vêm do “Norte”. O objetivo central é refletir sobre como as condições desiguais de remuneração, ainda que em escalas diferentes no Brasil e nos EUA, contribuem para desestimular os jovens a procurar a docência como uma profissão viável.
Para responder a essas questões, analisamos dados da Relação de Informações Sociais (RAIS) de 2020, do Ministério do Trabalho no Brasil, e dados do U.S. Department of Education, National Center for Education Statistics, Schools and Staffing Survey (SASS), disponibilizados em 2021, e da National Education Association (NEA) também disponibilizados em 2021. O artigo está organizado em cinco seções. A primeira apresenta notas metodológicas sobre nossa abordagem (quase) antropofágica em diálogo com a noção de Sul Global e as perspectivas pós-coloniais. A segunda aborda sinteticamente o tema da remuneração docente e a sua importância na discussão das ideias de valorização e de profissionalização docente. A terceira propõe um diálogo que explora informações de fontes estadunidenses, assim como a literatura sobre a dimensão da remuneração no processo de profissionalização docente nos EUA. A quarta problematiza como o tema da remuneração docente nos EUA chega ao debate brasileiro de forma parcial e dissociada das desigualdades persistentes em termos de valorização. Tomamos, para isso, dados da RAIS de 2020, último registro administrativo sobre trabalho formal no Brasil para ilustrar nosso argumento. Por fim, em caráter de conclusão, propomos reflexões sobre aspectos potencialmente relevantes e que condições seriam necessárias para a melhora da qualidade da profissionalização docente.
A construção do problema a partir do Sul: notas metodológicas
Os debates sobre a necessidade da internacionalização da pesquisa no Brasil têm sido intensos, especialmente pela incorporação de métricas relacionadas como componentes da avaliação nos Programas de Pós-Graduação, assim como por políticas específicas de fomento a partir das agências nacionais, especialmente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (PAIVA; BRITO, 2019).
Esses processos implicam grandes polêmicas, já que, por um lado, há razões científicas que justificam um mundo global desafiar pesquisador@s para a ampliação dos diálogos para responder aos desafios atuais para além dos nacionalismos metodológicos (BECK, 2007); e, por outro, esses processos não podem ignorar que a internacionalização da pesquisa está condicionada às geopolíticas epistemológicas, cruzadas por poderes econômicos, políticos e científicos na produção e na disseminação do conhecimento (ALPERIN; FISCHMAN, 2015; MURH; AZEVEDO, 2019).
Nesse contexto, uma análise que envolve refletir sobre experiências educacionais no Brasil e nos EUA precisa partir de uma abordagem metodológica que reconheça os riscos dessa tentativa, considerando, especialmente, as agendas globais que promovem a imposição de modelos de boas práticas educativas sem muito esforço de contextualização (BARBIERI; AZEVEDO, 2019; ROBERTSON; DALE, 2017). A proposta aqui apresentada pretende afastar-se dessa lógica, apreendendo as perspectivas antropofágicas e pós-coloniais. No espírito de “Tupi or not Tupi, that’s the question” (ANDRADE, 1928, p. 6), buscamos construir não apenas um diálogo com a experiência do outro, mas buscar, no encontro, olhar o “Norte Global”2 a partir de uma pergunta “do Sul Global”. O conceito de Sul Global tem se construído no âmbito de um conjunto de debates a partir de uma perspectiva crítica. Meneses (2012, p. 199) sintetiza o conceito como “[...] uma metáfora da exploração e exclusão social, agregando lutas por projetos alternativos de transformação social e política”. Podemos considerar que projetos alternativos se constroem também a partir da produção de conhecimento, não apenas na interação com a produção que circula internacionalmente, mas também a partir da relevância de perguntas de pesquisa que partam das tradições de pesquisas produzidas no Sul Global.
Como última nota metodológica, cabe uma pequena digressão para provocarmos o debate. Ao visitarmos o estrangeiro para pensarmos sobre o nacional, ou, ao olharmos o outro para refletirmos sobre nós, a lembrança ao movimento antropofágico é uma metáfora para exercitarmos o encontro. O manifesto antropófago lançado em 1928 propunha uma abordagem pós-colonial ao pensar que o diálogo com a arte no cenário internacional permitiria novas formas de pensar o próprio Brasil. Nas palavras de Oswald de Andrade: “Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade” (ANDRADE, 1928, p. 7). Essa ideia forte de quem tem um olhar próprio do Sul para fazer perguntas de pesquisa é nosso farol no debate. E, assim, como somos respeitosos da especificidade do movimento antropofágico, denominamos esta tentativa de abordagem (quase) antropofágica.
Considerando todas essas preocupações, aliadas ao compromisso ético com a pesquisa (ANPED, 2019), o percurso aqui proposto é de análise do problema da remuneração de professores no Brasil, cotejando com o caso estadunidense. Denominamos cotejamento aqui dois procedimentos:
1) Uma análise documental de dados similares que permitam entender o contexto de desigualdades de condições de remuneração em dois países federativos. O percurso da pesquisa foi explorar dados de 2020 sobre remuneração docente no Brasil disponível na RAIS, registro administrativo do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Note-se que, como registro administrativo, trata-se de uma base de dados que pode abarcar o universo dos docentes com vínculo formal de trabalho, porém, como o recorte é de professores no setor público, e esse registro não é obrigatório, a base de dados, ainda que representativa, não contempla a totalidade dos casos possíveis. Para o ano de 2020, último dado disponível na plataforma do MTE, temos o registro de 2.714.621 vínculos de trabalho como professores. Observa-se que não são pessoas, mas vínculos, pois uma pessoa pode ter mais de um vínculo de trabalho como professor. No caso estadunidense, os dados são do U.S. Department of Education, do National Center for Education Statistics e do SASS referentes ao ano letivo de 2019-2020, disponibilizados em 2021. É interessante observarmos que a fonte para os dados oficiais é a NEA, uma das federações sindicais de professores. Os dados são agregados por estados, diferentemente da base brasileira que é disponibilizada por vínculo de trabalho. Isso implicou um tratamento específico para o cotejamento. Optamos, por um lado, padronizar os valores em dólares com paridade de compra (dólar PPP); e, por outro lado, padronizar os valores por mês na forma usual de remuneração brasileira.
2) O segundo procedimento foi um cotejamento da bibliografia sobre remuneração docente, em busca de evidenciarmos como o tema da remuneração é tratado no Brasil e nos EUA. A proposta não é de revisão sistemática, pois o volume de dados seria muito grande, mas, sim, selecionarmos artigos que pudessem dimensionar o contexto do debate nos dois países na última década.
A importância da remuneração docente nas políticas educacionais
A questão mais direta e básica da justiça laboral são as condições de remuneração, as quais não são diferentes no caso do trabalho docente. Essa é uma reclamação sistemática das organizações sindicais e profissionais docentes e, dada a envergadura da remuneração nos orçamentos educacionais, é uma questão central nas políticas do setor. Os recursos financeiros usados em pagamento de pessoal respondem por algo em torno de 70% a 80% dos custos educacionais (BAKER; SCIARRA; FARRIE, 2014; GALVÃO, 2021); portanto, pensar a política educacional em âmbito subnacional requer considerar e operar com os limites dos orçamentos, seja federal, dos estados, dos municípios ou dos distritos.
A centralidade da remuneração tem também uma dimensão pedagógica, uma vez que o trabalho d@s professor@s é essencial para efetivar qualquer ação educativa. Não há, por conseguinte, política educacional sem políticas para @s trabalhador@s docentes. Essa centralidade não torna a questão mais fácil, pelo contrário, amplia os embates sobre como dimensionar o controle sobre os resultados do trabalho docente em permanente tensão com outras dimensões e os insumos necessários para uma educação de qualidade.
No caso brasileiro, há pelo menos quatro grandes especificidades no debate sobre a profissão docente: a) desenho de divisão de responsabilidades e imensas desigualdades de uma federação tripartite (TORMES; FARENZENA, 2019); b) ampla participação de professor@s com contratos temporários (CAPUCHINHO, 2019); c) demandas de valorização d@s profissionais da educação inscrita como princípio constitucional na Constituição de 1988 (BRASIL, 1988); d) desigualdade salarial d@s professor@s em relação a outr@s profissionais com a mesma formação (ALVES; SONOBE, 2018), inclusive com o reconhecimento da necessidade da equiparação salarial na meta sobre remuneração docente do Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024 (BRASIL, 2014).
Sobre esse último desafio inscrito no PNE, o Relatório do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) sobre o quarto ciclo de avaliação informa que os professores com formação superior passaram de um percentual médio de remuneração de 65% em relação a outros profissionais de mesma formação, em 2012, para uma média de remuneração de 82% daquela de outros profissionais com a mesma formação, em 2021 (INEP, 2022). Infelizmente, parte desse movimento tem se dado como resultado da crise econômica profunda, desde 2016, que tem diminuído continuamente a média salarial d@s demais profissionais e d@s própri@s professor@s, em ritmo mais lento.
A comparação dos salários entre docentes e outr@s profissionais é importante, mas demanda a compreensão dos outros dilemas das políticas de remuneração internas ao próprio magistério. Além da questão basilar de uma profissão que depende do contexto das finanças públicas dos diferentes entes federados, é uma profissão marcada por segmentações (OLIVEIRA, 2021) que retratam especificidades e desigualdades internas. Dalila Andrade Oliveira (2021) destaca também que são segmentações atravessadas por condições estruturais como as diferenças de oferta entre áreas urbanas e rurais, ou entre as etapas e as subetapas de ensino, as formas de contratação que submetem parte d@s docentes a contratos temporários e diferenças na formação que seguem demarcando hierarquias e desigualdades na profissão.
Essas especificidades marcam, de maneira contundente, as condições salarias de professor@s brasileir@s e reforçam a importância do Piso Salarial Profissional Nacional (PSPN) como condição de construção de parâmetros mínimos para as políticas locais de remuneração que podem contribuir no processo de profissionalização docente (CRUZ; SILVA; SOUZA, 2021; GOUVEIA; FERNANDES, 2019; VIEIRA, 2012). Contudo, ainda que o PSPN seja uma conquista fundamental nas condições de valorização, é uma regra que atinge apenas as condições iniciais de carreira, sem que exista parâmetros nacionais para o desenvolvimento salarial na trajetória profissional, o que cria efeitos negativos. Por exemplo, a aplicação do valor do piso apenas aos vencimentos iniciais d@s professor@s, com consequente diminuição dos ganhos de remuneração d@s professor@s com mais tempo de trabalho (FERNANDES; FERNANDES, 2016), e o congelamento das carreiras sob pretexto de ajustes fiscais em tempos de austeridade (GOUVEIA; FERNANDES; FERRAZ, 2022). Outro aspecto que se apresenta nas demandas por melhoria da remuneração docente é a relação entre o trabalho docente e a qualidade da escola. Nesse aspecto, as políticas locais de remuneração, em estados e municípios, têm tomado, ao longo dos anos 2000, a direção de modelos de remuneração variável, tais como bônus por desempenho, especialmente a partir de uma relação simplista entre trabalho docente e resultados d@s estudantes em avaliações padronizadas (ASSIS, 2015; CASSETTARI, 2010).
A ideia de avaliação de desempenho de professores foi incorporada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) - Lei No 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996) -, porém de forma pouco específica. Em geral, os sistemas de ensino traduziram a avaliação de desempenho como um processo mais burocrático de cumprimento de metas de assiduidade ou de similares. O Observatório da Remuneração Docente3 reuniu pesquisadores de várias universidades brasileiras por oito anos em torno do tema. Gutierres et al. (2013) apresentam uma síntese dos elementos que compõem a remuneração variável nos Planos de Carreira de 12 estados e 12 capitais brasileiras, os quais compuseram a amostra da pesquisa: difícil acesso; regência; função especializada na educação; elaboração e execução de trabalho técnico-científico; atuação em modalidade específica na Educação Básica; turno; local de trabalho; permanência após direito à aposentadoria.
Ainda que as regras para as gratificações e os abonos estejam compondo os Planos de Carreira em alguns estados, os elementos encontrados na pesquisa do Observatório da Remuneração Docente revelam uma gama grande de componentes que flexibilizam as condições de pagamento isonômico entre professor@s, que aproximam o tema da carreira a uma perspectiva gerencial de controle do trabalho por meio de resultados. O modelo de carreira que tem como eixo estrutural a progressão por tempo de serviço e formação, tomado como burocrático por parte da crítica (MORDUCHOWICZ, 2003), tem sido questionado pela ideia de que é preciso aumentar a prestação de contas ou accountability. A prestação de contas no âmbito de docentes individuais nas escolas assume formas utilizadas em sistemas comerciais, e seus sistemas de gestão de recursos humanos podem ser aplicados diretamente nos sistemas de ensino (BROOKE; REZENDE, 2020).
Nessa chave, os debates sobre a experiência estadunidense têm tido pontos de divergências sobre como valorizar o professor no Brasil. Compreendemos que tal debate tem sido feito apenas pelo olhar sobre a importação da política de bônus, pois pouco se sabe, no Brasil, sobre como essas políticas atuam na construção da profissão. Assim sendo, no próximo tópico, procuramos interrogar a realidade d@s professor@s estadunidenses a partir de variáveis que são usualmente utilizadas para contextualizarmos o trabalho docente no Brasil, dando vazão a nossa perspectiva (quase) antropofágica de reflexão.
O que se sabe das propostas “made in USA” de melhora da qualidade da profissionalização docente?
A influência mais discutida das práticas estadunidenses no debate sobre remuneração no Brasil refere-se ao tema da remuneração variável, especialmente por meio de políticas de bônus decorrentes de diferentes formas de accountability e de avaliação baseados em resultados de estudantes em provas acadêmicas estandardizadas de larga escala (ALEXANDRE; LIMA; WALTENBERG, 2014; CASSETTARI, 2010). Um olhar mais amplo sobre o debate naquele país revela, porém, outras polêmicas e nuances nas propostas “made in USA”.
No caso estadunidense, o percurso histórico sobre as disputas em relação à proteção ao trabalho docente registra a relação entre salário baixo e trabalho feminino desde os inícios da organização dos sistemas públicos de ensino. Goldstein (2014) caracteriza a longa trajetória de lutas dos movimentos feministas e das associações de professores já no final do século XIX, denunciando os baixos salários das professoras, os preconceitos em relação à estereotipação do trabalho feminino supostamente mais ligado às emoções e ao cuidado das crianças. Esses preconceitos juntamente à perspectiva de anti-intelectualismo na organização de sistemas públicos de ensino justificavam, por exemplo, a desigualdade salarial entre professoras e professores e as demissões sumárias em caso de gravidez. A tensão de gênero articula-se também às marcas das tensões raciais nos EUA, resultando em salários mais baixos ainda nos casos de professores negros e de professoras negras (GOLDSTEIN, 2014).
Preconceitos de gênero e de raça não são temas superados, visto que a comparação da remuneração de professor@s com outras profissões com similares níveis de formação revela desigualdades salariais, assim como há diferenças e hierarquias entre professor@s da Educação Básica e do Ensino Superior.
Embora a renda dos professores americanos não pareça tão ruim em comparação à renda dos professores na Europa ou na Ásia, os economistas sabem que as pessoas escolhem carreiras com base menos no salário bruto do que na diferença percebida entre o que eles poderiam fazer em um emprego em relação a outro. Nesse sentido, a crescente desigualdade no mercado de trabalho americano prejudicou indubitavelmente o prestígio do ensino. Na década de 1940, professores homens recebiam mais do que outros graduados, e professoras mulheres chegavam a receber 70% a mais do que outras graduadas. Hoje, os salários dos professores estão no trigésimo percentil em relação aos graduados masculinos e no quadragésimo percentil em relação aos graduados femininos. Essas grandes disparidades salariais entre professores e outros profissionais são exclusivas dos Estados Unidos. Na Coréia do Sul, os salários dos professores de US$55.000 a US$ 155.000 ao longo de uma carreira ampliam 250% o poder de compra local em relação a um professor americano. Isso coloca os professores sul-coreanos entre engenheiros e médicos em termos de remuneração. (GOLDSTEIN, 2014, p. 264, tradução nossa).
Uma segunda dimensão de desvalorização profissional indicada por Goldstein (2014) é a ausência de ampliação salarial significativa ao longo da carreira, reafirmando a estagnação salarial de professor@s nos EUA. A dimensão da estagnação, ao comparar a docência a outras profissões em diferentes estados, sinaliza que a remuneração se coloca em termos de atratividade inicial e complica a dura tarefa de manter bons profissionais ao longo da carreira (DARLING-HAMMOND, 2019).
Quem são e como identificar os bons docentes é outro debate de longa duração e muita intensidade na literatura dos EUA. Nesse debate, as políticas de remuneração variável e a ênfase nas estratégias de bônus para estimular a produtividade d@s professor@s ganharam muita visibilidade desde a passagem da lei conhecida como No Child Left Behind em 2001. A questão do bônus por produtividade relaciona-se à ideia de que o que se produz na escola pode ser medido nos testes padronizados e que o pagamento isonômico entre os professores premiaria a mediocridade (HOERR, 1998). Nesse sentido, os embates em torno dos testes padronizados implicam um conjunto de problemas que fogem do escopo do debate aqui em foco. Entretanto, essa não é a única polêmica em torno da remuneração variável, pois outras perspectivas de diferenciação salarial também se colocam em combate à ideia das negociações salariais coletivas e, portanto, da isonomia entre @s professor@s.
São muitos os estudos (CANBOLAT, 2021; PARCERISA et al., 2022; SPRINGER et al., 2012; STACEY et al., 2022) que evidenciam as polêmicas e buscam compreender os efeitos dessas políticas de responsabilização baseadas no desempenho e o uso dos bônus. Em 2013, Ravitch analisou os resultados de diferentes estudos que buscaram a relação entre o incremento salarial de professores e a melhora do desempenho dos estudantes, enfatizando análises de experiências em diferentes estados estadunidenses que foram descontinuadas por razões como: ausência de evidências de efetividade dessa política; percentual pequeno que os bônus representam na remuneração; ausência de adesão dos professores para sustentação de práticas de competição por longo tempo, fazendo com que, apesar de melhoras momentâneas em resultados, estas não têm longevidade. A autora, entretanto, destaca a fecundidade da defesa dessa alternativa para o pagamento de professores:
Pagamento por mérito é a ideia que nunca funciona e nunca morre. O pagamento por mérito é uma política baseada na fé. Não importa quantas vezes falhe, seus defensores nunca desistem. Eles são verdadeiros crentes. Da próxima vez vai funcionar, eles dizem. Da próxima vez, vamos acertar. Não importa quantas centenas de milhões de dólares sejam desperdiçados sem nenhum benefício para ninguém, sempre será a próxima vez. Sua crença no poder mágico do dinheiro é ilimitada. Sua crença na importância da evidência não é. (RAVITCH, 2013, p. 122-123, tradução nossa).
A tendência identificada por Ravitch (2013) e confirmada também em outros estudos, embora siga sendo um tema polêmico, tende à perspectiva geral de que os bônus e as medidas de accountability não geram melhoras significativas e duradouras na proficiência dos testes d@s estudantes. Os resultados dos estudos empíricos de Springer et al. (2012) e Speroni et al. (2020) não apresentaram, segundo os próprios autores, diferenças significativas entre os resultados d@s estudantes d@s professor@s que tinham bônus e não apresentaram diferença de percepção d@s professor@s sobre seu trabalho com ou sem bônus.
Se a contraposição aos bônus é campo de antagonismos mais explícitos entre as posições a favor e contra, outras formas de flexibilização da composição da remuneração implicam discussões mais complexas ao se articularem com a falta de professor@s em algumas disciplinas, com as dificuldades de alocação de professor@s em certas escolas e com a necessidade de diferenciar @s professor@s por suas habilidades (ODDEN, 2000), o que tem aberto possibilidades de diferenciar o pagamento de professor@s a partir de processos de certificação de competências/habilidades como feito pela National Board Certification of Teachers, organização sem fins lucrativos destinada a avaliar e a certificar @s professor@s de alto desempenho (NEA, 2020). Estudo de Liang et al. (2015), com dados de 2008, mapeou a presença de programas de remuneração flexível e cruzou com os dados sobre a existência ou não de negociação coletiva. Os autores encontraram quatro grupos de incentivos:
[...] dos quatro tipos de programas, os distritos eram mais consistentes em incentivar professores certificados pelo Conselho Nacional, com o apoio dos sindicatos de professores. Em comparação, porcentagens menores de distritos recompensaram disciplinas com escassez de professores; tais recompensas foram contestadas pela NEA, mas apoiadas pela AFT [American Federation of Teachers]. Surpreendentemente, embora a NEA e a AFT estivessem a favor de proporcionar aos professores remuneração adicional pelo trabalho em escolas de difícil provimento, os dados mostraram que esse programa era o menos comumente usado. As porcentagens de distritos que oferecem programas de pagamento por desempenho variaram significativamente entre os três grupos. (LIANG et al., 2015, p. 9, tradução nossa).
Frente a esses elementos, cabe um pequeno olhar sobre os dados recentes estadunidenses a partir de suas desigualdades internas. A Tabela 1 apresenta os dados organizados pela NEA, uma das federações que representam os trabalhadores de Educação. O levantamento anual da NEA é a fonte dos dados disponíveis no Censo Escolar realizado pelo Departamento Nacional de Estatística dos EUA. Optamos, aqui, por iniciar com os dados tabulados e disponibilizados pela entidade para observar a remuneração de professor@s de jornada completa considerando as diferenças de formação. No intuito de possibilitar uma interlocução melhor com a tradição de análise de remunerações no Brasil, os dados foram convertidos em valor por mês. Assim, a Tabela 1 apresenta, em dólares estadunidenses com paridade, os valores mensais de remuneração média declarada agregadas por região nos EUA. Incluímos, ainda, o número de professor@s na coluna 1 para dimensionar o volume de pessoas no exercício do magistério. Podemos observar, ainda, que a última coluna destaca as maiores remunerações para o conjunto de professor@s em cada região.
Região | Número de Professores | Inicial (graduados) | Final (Graduados) | Inicial (Mestres) | Final (Mestres) | Maiores remunerações |
---|---|---|---|---|---|---|
Meio-Oeste | 630.660 | 3.168 | 4.629 | 3.518 | 5.653 | 5.996 |
Nordeste | 521.153 | 3.890 | 6.155 | 4.216 | 6.848 | 7.289 |
Sul | 1.193.955 | 3.296 | 4.659 | 3.533 | 4.958 | 5.344 |
Oeste | 519.701 | 3.622 | 4.419 | 3.729 | 5.658 | 6.935 |
EUA | 2.865.307 | 3.430 | 5.024 | 3.752 | 5.817 | 6.326 |
Fonte: Adaptada pelos autores do Teacher Salary Benchmark Report (NEA, 2022).
Nota: O total de professores no ano letivo 2019-2020 era de 3.027.564. Os dados abrangem 94% deles.
Duas informações são pertinentes ao debate proposto aqui. A desigualdade de retribuição profissional entre as regiões do país, indicando que o contexto federativo estadunidense replica marcas de desigualdade de renda entre os estados, o que faz a remuneração de um docente no Meio-Oeste ser 23% menor que no Nordeste, por exemplo. Estudo de Carver-Thomas e Patrick (2022), ao analisar estes dados, com um ajuste pela diferença de poder de compra nos estados, indica que essas desigualdades escondem ainda um problema cruel sobre as condições de vida na federação.
Estados como o de Nova Iorque e grandes distritos escolares como o da cidade de Washington DC, que estão na região Nordeste e sem ajustar pelo poder de compra, figuram entre os maiores salários de professor@s e apresentam, em termos reais, uma brutal queda de poder aquisitivo ao serem cotejados com o poder de compra. Por exemplo, a remuneração passa de $6.722, em valores nominais, para $4.209, em valores ajustados ao poder de compra no primeiro caso. No segundo caso, passa de $7.312, em valores nominais, para $3.568, em valores ajustados. Ao termos em conta o mesmo efeito em estados do Oeste, por exemplo, como Arizona e Colorado, a situação é também de perdas: no primeiro, o valor nominal de $4.346 passa a um poder de compra de $3284; e, no segundo, de $5051 para $2.858. A análise de Carver-Thomas e Patrick (2022) corrobora um conjunto de debates recentes sobre o empobrecimento d@s professor@s estadunidenses e a necessidade de est@s procurarem outros empregos fora do magistério para sobreviver (CARVER-THOMAS; PATRICK, 2022; TATE, 2020).
Outro elemento a considerarmos nos dados da Tabela 1 é a questão da carreira, ou pelo menos a retribuição pela titulação. A primeira observação é de que @s professor@s estadunidenses têm uma formação que começa na Graduação e inclui o Mestrado. Cabe considerarmos, entretanto, outro aspecto do problema, ainda que não seja possível aprofundarmos o debate aqui, que, apesar de uma formação em termos de titulação maior que a brasileira, há amplas polêmicas sobre o lócus de formação de professor@s no país e tensões entre modelos universitários e de estratégias de formação alternativas centrado na ideia de busca de talentos como no Teach for America4 (RAVITCH, 2013). Esses percursos alternativos, não universitários, têm influenciado as formas de contratação de professor@s nos diferentes estados.
Importa observarmos as dimensões internas na categoria das diferenças ou das desigualdades na remuneração. Os dados do Departamento Nacional de Educação ou da NEA não apresentam, para o ano de 2020, desagregação por características dos sujeitos. Assim, optamos por utilizar os dados de 2018 como um parâmetro para o debate. A Tabela 2 dedica-se a sintetizar variações de média de remuneração segundo características pessoais, especificamente sexo (não há informações de gênero) e formação com desdobramentos diferentes daqueles sintetizados na Tabela 1. Na Tabela 1, os dados estão escalonados em graduados e mestres; na Tabela 2, com os dados disponibilizados em 2018, foi possível incluirmos especificamente professor@s com Especialização e com Doutorado. Na Tabela 2, optamos por incluir a remuneração anual, forma usual de tratamento do dado nos EUA, e incluir a informação mensal, forma adotada neste artigo para dialogarmos com a percepção brasileira sobre remuneração.
Características | Número de professores | Remuneração base Anual5 |
Mensal |
---|---|---|---|
Escolas Pública | |||
Total | 3.323.200 | $57.950 | 4.829 |
Sexo | |||
Homens | 793.753 | 59.360 | 4.947 |
Mulheres | 2.529.447 | 57.500 | 4.792 |
Formação | |||
Menos que a Graduação | 88 | 55.250 | 4.604 |
Graduação | 1.327 | 49.890 | 4.158 |
Mestrado | 1.628 | 63.120 | 5.260 |
Especialização | 243 | 66.510 | 5.543 |
Doutorado | 37 | 69.520 | 5.793 |
Etapa de ensino | |||
Elementar | 1.639 | 56.640 | 4.720 |
Secundário | 1.685 | 59.220 | 4.935 |
Fonte: Adaptada pelos autores de U.S. Department of Education, National Center for Education Statistics, National Teacher and Principal Survey (NTPS), “Public School Teacher Data File” e “Private School Teacher Data File”, 2017-2018.6
Aqui, novamente, encontram-se conhecidas desigualdades profissionais, homens apresentam médias de remuneração levemente mais altas do que mulheres; professoras e professores de escolas secundárias, médias maiores de remuneração que a de seus colegas nas escolas elementares. Os dados de formação confirmam uma diferença desejável de melhoria da média das remunerações à medida que os professores têm maior formação.
Apesar dos dados serem de há 4 anos, o período recente não indica que o quadro tenha se alterado. O estudo de Hegewisch e Mefferd (2021) mapeou as desigualdades de gênero e de raça entre diferentes profissionais estadunidenses no ano da pandemia e informa que, no caso de professores, a remuneração média das mulheres foi de 86% das médias de seus colegas professores homens.
Essa visita sucinta ao país federativo e continental, organizando os dados sobre ele a partir da nossa forma de olhar para as condições de remuneração docente, permite problematizarmos dilemas para a valorização docente que não são apenas decorrentes da nossa condição na geopolítica, mas pensarmos que há elementos que desafiam a profissão docente de maneira ampla. Também permite constatarmos que as políticas de remuneração docente no Norte também têm complexidades muito além da questão dos bônus por produtividade.
As polêmicas e as desigualdades nas políticas de remuneração docente no Brasil
As pesquisas em política educacional brasileiras têm mapeado de forma recorrente, ainda que não exaustiva, as proposições de incorporação de mecanismos de avaliação do trabalho docente articulada a políticas de bônus. Nogueira, Jesus e Cruz (2013) identificaram o uso dos resultados de estudantes para avaliação de professor@s e a bonificação em 16 redes estaduais de ensino e constataram que “[...] tanto na adesão a determinado prêmio quanto na instituição do sistema de bonificação, o caráter remuneratório é pontual, provisório e condicionado, não incidindo nos cálculos dos vencimentos e gratificações que integram os salários dos professores” (NOGUEIRA; JESUS; CRUZ, 2013, p. 30). Em levantamento posterior, Zatti e Minhoto (2019) identificaram iniciativas em 24 estados em 2015, porém com efetivo funcionamento das estratégias em 14 deles.
Brooke e Rezende (2020) constataram que apenas sete estados mantinham, em 2021, programas de bonificação articulados ao desempenho d@s estudantes em exames nacionais ou locais de aprendizagem e analisaram o quanto o debate sobre a incorporação, ou não, dessa estratégia tem sido polêmica no país. Brooke e Rezende (2020) ainda problematizaram a ideia de uso de sistemas de bonificação a partir da experiência estadunidense a partir do reconhecimento de que os arranjos locais e a cultura cívica de cada país alteram os resultados do percurso, mas os autores ainda centram o debate da política de remuneração na ideia do controle de resultados.
Essa pequena digressão dá-nos exemplos de como parte do debate estadunidense chega nas políticas educacionais no Brasil e é tensionada pelas pesquisas em curso. O espraiar dessa lógica nas redes de ensino tem, por vezes, algum estímulo no debate central do Governo Federal. Um exemplo foi o polêmico documento da Secretaria de Assuntos Estratégicos durante a gestão Dilma Rousseff, intitulado “Pátria Educadora”, que, à revelia dos debates em curso naquele momento no Ministério da Educação (MEC) e do próprio PNE, propunha uma reorganização das carreiras de professores sob a perspectiva de resultados:
Esta carreira pode ser construída em etapas. Ela pode começar na forma de carreira especial e suplementar para professores que se comprometam a manter determinadas metas de desempenho. Receberiam adicional ao salário, depois de avaliação, por avaliadores independentes, do cumprimento de tais metas. (BRASIL, 2015, p. 18).
Ainda que esse documento tenha sido superado a partir da crítica do movimento sindical, conforme a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação - CNTE (2015), e de diferentes associações de pesquisa, é relevante considerarmos que a ideia de articular remuneração e metas de desempenho seja um embate também no campo mais progressista7.
A percepção do movimento sindical de que a lógica de bonificação tem uma identidade com uma transposição de práticas estadunidenses, a agenda brasileira fica bastante explicitada no documento da entidade:
Contrariando as resoluções das conferências nacionais de educação - e aproveitando o vácuo no PNE, que se eximiu em estabelecer conceitos sobre a qualidade da educação brasileira - observa-se que a proposta da SAE-PR se sustenta numa lógica de meritocracia empresarial (com premiação de escolas e bonificação para professores e diretores, além da possibilidade de afastar profissionais que não cumprem metas) há muito contestada pela principal idealizadora desse tipo de programa, a Dra. Diane Ravitch, que expôs os malefícios dessas políticas nos sistemas de ensino de Nova Iorque, Chicago, Filadélfia, Denver e San Diego em livro de sua autoria. (CNTE, 2015, n.p.).
De certa forma, a negação daquela direção proposta pelo documento Pátria Educadora pelas entidades neutralizou esse viés na gestão Dilma, porém, como demostra a literatura especializada (ARAÚJO; LEITE; ANDRIOLA, 2019; ESTORMOVSKI; ESQUINSANI, 2022; entre outros), não contiveram as experiências locais em relação à ideia de que melhorar a qualidade da escola passa por estimular o mérito e a competição entre @s docentes.
Em âmbito nacional, a recente aprovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) como uma política permanente no corpo da Constituição Federal, conquista fundamental para as condições de financiamento da educação brasileira, incorporou, pela primeira vez, a ideia de resultados. Destacamos esse tema dado que, no âmbito das políticas de fundos em vigor desde 1998, a questão da valorização d@s professor@s tem sido um dos objetivos estruturantes do mecanismo de redistribuição de recursos, primeiro com uma obrigação de que 60% da receita dos fundos fosse aplicada em remuneração de professor@s, e, agora, a partir de 2021, com a obrigatoriedade de que 70% da receita do fundo seja para o pagamento d@s profissionais da educação.
A ideia de controle de resultados não está nas condições de uso dos recursos do Fundeb em relação à remuneração. Esse tema aparece na regra de redistribuição dos recursos de complementação da União para a composição do Fundeb no que a legislação denominou “Valor Aluno Ano Resultados” (VAAR). A receita do Fundeb é composta predominantemente por impostos arrecadados por estados e municípios no Brasil, e cabe à União complementar os recursos como forma de combater as desigualdades federativas. A partir da Emenda Constitucional Nº 108, de 26 de agosto de 2020 (BRASIL, 2020), essa complementação passou a ser de 23% do total da receita do fundo, sendo 2,5% redistribuídos considerando “condicionalidades de melhoria de gestão” e “[...] evolução de indicadores a serem definidos, de atendimento e de melhoria da aprendizagem com redução das desigualdades, nos termos do sistema nacional de avaliação da educação básica [...]” (BRASIL, 2020, n.p.).
Não pretendemos, aqui, estabelecer uma equiparação simplista entre o VAAR e as políticas de bonificação, inclusive porque seria um equívoco, dado que as regras para a sua redistribuição ainda estão em processo de formulação. O argumento é que, de uma forma inédita, a política de financiamento da educação, no Brasil, incorpora uma dimensão de medida de resultado, e, portanto, todo esse movimento que tem sido disperso e lento em relação a incorporar controle de qualidade às políticas de remuneração docente pode encontrar um novo terreno fértil.
À luz desse contexto, propomos olhar para outras questões sobre a desigualdade de remuneração d@s professor@s brasileir@s cotejadas com os destaques da realidade estadunidense para propor uma mudança de rota. Não se trata de olhar a experiência estadunidense para importar uma fórmula de competição que incremente qualidade da escola, posto que o próprio debate “made in USA” não tem consenso sobre esse rumo, mas, sim, de olhar um país continental que tem políticas de gestão de pessoal descentralizadas no âmbito local e que explicita um conjunto de desigualdades nas condições de trabalho de professor@s. Olhar as mesmas variáveis com as quais organizamos os dados sobre os EUA para os dados brasileiros permite pensarmos que há desafios gerais para o lugar da profissão docente na atualidade.
Para chegarmos ao nosso ponto, que novas perguntas fazermos ao debate comparado, cabe uma pequena revisão das desigualdades da profissão docente no Brasil. Entre os elementos que são constitutivos de diferenças de remuneração entre professor@s estão: formação, carga horária de trabalho e tempo de serviço. São diferenças que reconhecem que @s professor@s têm perfis diferentes ao longo de sua inserção profissional, e, portanto, algumas diferenças são esperadas, enquanto outras denunciam desigualdades. A Tabela 3 sintetiza os dados considerando as regiões brasileiras e os dois primeiros aspectos: formação e carga horária média. Incluímos na tabela o “N”, que diz respeito ao número de vínculos com os quais foi calculada a média da remuneração, além de incluirmos a média de carga horária semanal, pois, no Brasil, as jornadas variam entre as redes públicas e entre as formas de contrato de professor@s efetiv@s e de professor@s temporári@s, elementos que impactam os valores de contrato e, por conseguinte, de remuneração.
Regiões | Formação | Remuneração média nominal | Valor em dólar PPP8 | Carga horária semanal | |
---|---|---|---|---|---|
Média | N | Média | Média | ||
Nordeste | Ensino Fundamental | 2.508,75 | 13.160 | 1.061,68 | 32 |
Ensino Médio | 2.496,69 | 115.344 | 1.056,58 | 30 | |
Ensino Superior | 4.026,73 | 487.331 | 1.704,07 | 31 | |
Pós-Graduação | 6.878,18 | 35.806 | 2.910,78 | 34 | |
Centro-Oeste | Ensino Fundamental | 2.918,49 | 1.737 | 1.235,08 | 32 |
Ensino Médio | 2.834,45 | 18.955 | 1.199,51 | 36 | |
Ensino Superior | 4.719,30 | 188.961 | 1.997,16 | 34 | |
Pós-Graduação | 10.355,12 | 13.056 | 4.382,19 | 38 | |
Norte | Ensino Fundamental | 4.304,17 | 553 | 1.821,49 | 34 |
Ensino Médio | 3.676,48 | 21.368 | 1.555,85 | 35 | |
Ensino Superior | 4.206,01 | 447.601 | 1.779,95 | 33 | |
Pós-Graduação | 6.257,11 | 17.388 | 2.647,95 | 32 | |
Sul | Ensino Fundamental | 3.075,61 | 1.354 | 1.301,57 | 29 |
Ensino Médio | 2.906,68 | 25.934 | 1.230,08 | 29 | |
Ensino Superior | 3.691,30 | 358.692 | 1.562,12 | 26 | |
Pós-Graduação | 7.707,03 | 19.680 | 3.261,54 | 30 | |
Sudeste | Ensino Fundamental | 2.449,90 | 6.187 | 1.036,78 | 33 |
Ensino Médio | 3.051,46 | 89.462 | 1.291,35 | 32 | |
Ensino Superior | 3.990,90 | 801.076 | 1.688,91 | 30 | |
Pós-Graduação | 6.997,84 | 50.976 | 2.961,42 | 33 |
Fonte: Adaptada pelos autores de RAIS - 2020 (BRASIL, 2021).
Na Tabela 3, optamos por manter os valores em reais de 2020 e em dólar com PPP para ajudar a construir parâmetros de compreensão. Os dados da Tabela 3 evidenciam um aspecto crônico de desigualdades federativas que é a variação das médias de remuneração entre as regiões, que sintetizam, no fundo, desigualdades entre estados, municípios e Governo Federal. Essas médias são, portanto, a consolidação provisória de um conjunto de políticas operado pelo território nacional.
Esta poderia ser uma forma de cotejar a literatura sobre as políticas educacionais estadunidenses e brasileiras: um padrão similar de desigualdades entre regiões mais e menos desenvolvidas marca as condições de trabalho docente ao longo do território. Longe de buscar soluções no vizinho do Norte, caberia perguntar: Que impasses o desenvolvimento desigual da economia em contextos federativos produzem nas possibilidades da luta pela profissionalização ou pela valorização docente? Sobre essa dimensão, a pesquisa sobre financiamento da educação nos dois contextos e as pesquisas sobre trabalho docente precisam se encontrar, e, quiçá, o diálogo internacional mais amplo pode desvendar novas nuances do desafio de gerir carreiras docentes, em contextos capitalistas desiguais, com políticas públicas descentralizadas.
Ainda na Tabela 3, podemos observar informações sobre formação. Por um lado, é preocupante que, nos vínculos informados na RAIS, ainda constem professor@s com o Ensino Fundamental, provavelmente ainda que sejam menos de 1% do total. Por outro lado, os dados da remuneração indicam que há um reconhecimento do percurso de formação d@s professor@s com uma ampliação consistente, em todas as regiões, dos valores informados entre nível médio, superior e Pós-Graduação9.
A partir desse panorama, cabe explorarmos as desigualdades de remuneração a partir da ideia de segmentações propostas por Oliveira (2021), pois as médias escondem diferentes escalas de desigualdade como fica explícito nos dados da Tabela 4. Na Tabela 4, apresentamos as médias para tipo de vínculo com os sistemas, a etapa da atuação nas redes de ensino e, novamente, a formação, todas controladas pelo sexo10, considerando, portanto, essa primeira característica marcante do mercado de trabalho docente (YANNOULAS, 2011).
Características | Professores | Professoras | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Remuneração Média Dólar PPP |
Horas Contrato Média | N | Remuneração Média Dólar PPP | Horas Contrato Média | N | ||
Vínculo | Temporários | 944,73 | 32 | 61.267 | 982 | 30 | 263.918 |
Estatutários | 2.197,24 | 31 | 381.440 | 1.748 | 30 | 1.522.107 | |
Dependência Administrativa | Federal | 6.019,71 | 39 | 48.524 | 5.537 | 39 | 39.334 |
Estadual | 1.579,20 | 32 | 270.132 | 1.557 | 32 | 681.356 | |
Municipal | 1.574,44 | 30 | 218.922 | 1.613 | 30 | 1.456.353 | |
Etapa de atuação | Educação Infantil | 2.131,15 | 33 | 32.144 | 1.974 | 32 | 347.806 |
Ensino Fundamental | 1.784,48 | 31 | 359.926 | 1.588 | 30 | 1.436.448 | |
Ensino Médio | 2.468,10 | 33 | 105.412 | 1.752 | 32 | 245.934 | |
Formação | Ensino Fundamental | 1.020,00 | 32 | 4.414 | 1.120 | 32 | 18.577 |
Ensino Médio | 1.058,41 | 32 | 38.756 | 1.224 | 31 | 232.307 | |
Ensino Superior | 1.883,70 | 31 | 453.666 | 1.674 | 31 | 1.829.995 | |
Pós-Graduação | 4.007,63 | 35 | 40.742 | 2.697 | 32 | 96.164 |
Fonte: Adaptada pelos autores de RAIS - 2020 (BRASIL, 2021).
As condições desiguais em termos de remuneração d@s docentes em contrato temporário nas redes são evidentes, e agrava-se quando consideramos que ess@s professor@s, em geral, são demitid@s ao final do ano letivo e nem sempre são recontratad@s no início do ano seguinte. Em termos de desigualdade de sexo, a desvantagem de mulheres está especialmente nos vínculos estatutários, o que pareceria uma contradição, dado que são vínculos que dependem de concurso público e são protegidos pelas carreiras. No entanto, os outros elementos da tabela dão pistas para compreender esse construto.
Os vínculos de professores homens estão mais presentes na rede federal (9% dos homens e apenas 2% das mulheres) e estadual (50% dos homens e 31% das mulheres), nas etapas de Ensino Médio, que representam 21% dos vínculos, enquanto as mulheres ocupam apenas 12%. Os vínculos de professores homens também são mais representados na formação de Pós-Graduação (8%), enquanto as mulheres estão mais presentes com formação de nível médio (11%). Isso implica constatar que os planos de carreira têm apresentado telhados de vidro (OLIVEIRA; WOIDA, 2018) importantes para as mulheres que decorrem de critérios para movimentação na carreira, acesso à formação e, até mesmo, submissão ao trabalho em redes que remuneram menos como única opção de serviço.
Novamente, cotejarmos os dados e a literatura brasileira com a estadunidense abrem-nos portas para pensar desafios para a profissão docente a partir das desigualdades de classe e de gênero e fazer novas perguntas aos dados brasileiros sobre desigualdades de raça na remuneração, tema escasso na caracterização dos debates no país. Outra dimensão que pode abrir agendas novas de pesquisa está no cotejamento do tema contratos temporários no Brasil e os problemas estadunidenses de acúmulo de outros empregos juntamente à docência como forma de complementação de salários. Os dados brasileiros, até agora, evidenciam múltiplas jornadas dentro do magistério, porém pouco sabemos sobre outras formas d@s professor@s completarem renda. Na direção oposta, compreender melhor o que são os vínculos em tempo integral d@s professor@s estadunidenses nos diferentes estados poderiam permitir uma compreensão mais alargada das condições de trabalho naquele país.
Esse panorama não esgota o debate da remuneração docente no Brasil, mas permite afirmarmos que, se faz sentido que a produção do conhecimento contemporâneo se beneficie do processo de internacionalização, isso precisa ser feito a partir dos resultados de pesquisa em múltiplas dimensões e não apenas para responder ou refutar propostas de importação de políticas que sempre apresentam idiossincrasias ao serem pasteurizadas e descontextualizadas.
Considerações finais
Retomando a pergunta sobre o que podemos aprender ao analisarmos as desigualdades salariais na docência brasileira ao aproximarmos o olhar sobre as desigualdades estadunidenses, a primeira reflexão é sobre a urgência de pensarmos parâmetros efetivos para atender, urgentemente, ao reconhecimento profissional dest@s trabalhador@s.
O debate que mobiliza as experiências internacionais tem superdimensionado olhar os EUA a partir de uma associação entre poderio militar-industrial e uma suposta superioridade acadêmica, sem muita reflexão sobre os dados, os resultados concretos e as desigualdades internas no país. Só ignorando os dados das grandes desigualdades educativas nos EUA é possível imaginarmos que a perspectiva de concorrência entre colegas e o controle pedagógico baseado na responsabilização exclusiva d@s professor@s por êxito ou por fracasso acadêmico d@s estudantes geram um modelo de reforma bem-sucedido.
Entretanto, há outros debates possíveis a partir do olhar para sistemas tão complexos quanto o brasileiro e o estadunidense em termos de distribuição de responsabilidades sobre o ensino e de condições de trabalho docente. São dois países desiguais, ainda que a escala em que a desigualdade se manifesta seja diferente. São sistemas federativos que regulam grande parte do trabalho docente a partir de decisões locais e que precisam garantir um direito de cidadania aos/às estudantes que ingressam em qualquer ponto dos países. As desigualdades de marca socioeconômica, como evidenciam os dados, marcam também as condições de professor@s viverem suas vidas.
Nesse debate, olhar o outro nos permite intensificar a compreensão de que as políticas de remuneração precisam enfrentar dilemas estruturais da profissão que marcam desigualdades internas, superar desigualdades de remuneração que permita aos/às docentes reconhecer, na trajetória docente, uma perspectiva de vida e resolver a dependência perversa entre arrecadação pública e condições de retribuição, construindo condições de profissionalização docente.
Não há como resolver a atratividade da profissão sem enfrentar os meandros da profissão e das políticas educacionais. As pesquisas em política educacionais sobre remuneração docente nos dois contextos são mais ricas e abrangentes do que as ideias hegemônicas sugerem. Pesquisador@s estadunidenses e brasileir@s têm desvelado desafios para manter professor@s nos sistemas, têm recuperado história da luta pela profissionalização, têm se debruçado sobre as demandas sindicais e as conquistas e/ou as derrotas da categoria. Cotejarmos esses achados tem potencial para atualizar a agenda da pesquisa, porém, se o olhar for a partir da importação de modelos, não faz sentido. Contudo, se compreendermos a escola como um fenômeno moderno e a docência como uma dimensão estruturante desse fenômeno, podemos tratar dos desafios para tornar essa profissão como um lugar de engajamento para nov@s professor@s. Isso requer atualizar o eixo da política. A pesquisa científica tem o que dizer nesse embate, mas ela precisa dialogar a partir de outros faróis.
De volta ao manifesto antropofágico, cabe seguirmos pensando que: “Contra o mundo reversível e as ideias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores” (ANDRADE, 1928, p. 6).