Introdução
O presente trabalho objetiva evidenciar o estado da arte de pesquisas brasileiras sobre a formação de professores em uma perspectiva antirracista na Educação Infantil, a fim de traçar um panorama dos estudos nessa área e verificar quais têm sido suas principais tendências após a Lei Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003.
A educação sempre consistiu em uma bandeira de luta primordial do movimento negro no Brasil. Nesse sentido, Gonçalves e Silva (2000) ressaltam a importante mobilização das organizações negras, ocorridas ao longo do século XX, que defendiam o direito à educação. O emprego desses esforços fez com que resultados relevantes fossem alcançados no decorrer dos anos. Um desses avanços foi a Lei Nº 10.639/2003 que trata da obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e Ensino Médio (BRASIL, 2003).
Ao tratarmos da questão étnico-racial no campo da educação, não podemos deixar de destacar a extrema relevância de um trabalho institucional das escolas no combate ao racismo. Assim, é necessário que a escola se abra para a diversidade racial e cultural e para as diferentes realidades vivenciadas por seus atores no intuito de não intensificar ainda mais o seu papel de (re)produtora de desigualdades sociais, discriminações, preconceitos e racismo (TRINDADE, 1994).
Em consonância, alguns estudos defendem a importância de um trabalho sobre as relações étnico-raciais desde a primeira infância (BENTO, 2012; CAVALLEIRO, 1998; ROSEMBERG, 2014). É nessa fase que as crianças iniciam o processo de construção da sua identidade e se relacionam com outros sujeitos para além de sua família e de sua comunidade. Esse é o momento em que as crianças vão elaborando suas impressões e seus saberes sobre o mundo, por isso é crucial que nele haja representações diversas para que as crianças possam ver a si e aos outros como sujeitos/protagonistas.
Desde muito pequenas, as crianças são atingidas pelo racismo, implicando a construção da desigualdade, do preconceito e da injustiça que prejudica o estabelecimento de laços de respeito e de reconhecimento do outro. No que diz respeito a tal fato, é relevante considerarmos que o racismo estrutural nos atravessa em todas as instâncias, e isso faz com que ele seja reproduzido no cotidiano, de maneira inconsciente e não intencional, até mesmo por aqueles que querem combater o racismo.
Além disso, a questão racial no âmbito da escola envolve o papel do professor como agente necessário de parceria na tão emergente luta antirracista. Contudo, para que os professores possam desempenhar tal papel, é preciso que eles sejam sensibilizados para essa pauta e estejam munidos de embasamento teórico e metodológico para, de fato, contribuir na luta contra o racismo incrustado na nossa sociedade.
Desse modo, a formação docente apresenta-se como um ponto extremamente relevante para a atuação dos professores nos cotidianos escolares, fazendo com que eles possam ter um olhar mais atento para as situações de racismo que, muitas vezes, sequer são percebidas devido ao seu alto grau de naturalização na nossa sociedade. Assim sendo, buscamos, neste artigo, trazer como tem se dado as investigações envolvendo a formação de professores e o antirracismo para o trabalho na Educação Infantil nas produções acadêmicas brasileiras.
Metodologia
A presente investigação consiste em uma pesquisa bibliográfica do tipo “estado da arte”, que visa apontar quais caminhos vêm sendo trilhados e quais aspectos tem sido ou não abordados em determinados temas e/ou áreas do conhecimento. Desse modo, o “estado da arte” fornece-nos a possibilidade de contribuir com a organização e a análise na definição de um campo, uma área (ROMANOWSKI; ENS, 2006). Assim, neste estudo, pretendemos colaborar para a ampliação de discussões que circundam a formação docente para as relações étnico-raciais na Educação Infantil, trazendo, a partir da análise de pesquisas anteriores, contribuições que possam fomentar novas possibilidades de abordagem em futuras investigações.
Para o levantamento dos dados, conforme mencionamos anteriormente, buscamos arquivos que envolviam a formação de professores na perspectiva antirracista e tinham como foco a Educação Infantil. Como base de dados, foram usados: o banco de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), a Scientific Electronic Library Online(SciELO) e o Google Acadêmico.
Para a procura das obras que envolviam a temática elencada, foram utilizados os seguintes descritores: “formação docente”, “relações étnico-raciais”, “antirracismo” e “educação infantil”. Tais descritores foram combinados, sendo empregados conjuntamente durante a busca em todos as bases de dados; assim, utilizamos a mesma combinação de palavras para buscar as publicações nas três bases mencionadas. Ademais, como recorte temporal, visando encontrar dados mais recentes, buscamos por trabalhos publicados de 2013 a julho de 2021 no Brasil.
No banco de teses e dissertações da Capes, encontramos apenas três teses que correspondiam aos descritores utilizados. Na SciELO, não encontramos nenhum resultado em nossa busca ao utilizarmos os descritores/palavras-chave elencados. Já no Google Acadêmico, foram localizados um total de 205 trabalhos, dentre artigos, teses, dissertações e trabalhos de conclusão de curso (TCCs). Dessa maneira, somando o total de buscas nas três bases de dados mencionadas, foram encontrados 208 trabalhos entre artigos, teses, dissertações e TCCs.
Certamente, a escolha pela combinação dos descritores impactou nos resultados encontrados, sendo possível que outros trabalhos possam ser obtidos a partir de diferentes combinações. Entretanto, explicitamos que essa foi a combinação que optamos dado ao objetivo da nossa busca: evidenciar o estado da arte de pesquisas sobre a formação de professores em uma perspectiva antirracista no âmbito da Educação Infantil.
Durante a busca, foram selecionados somente os trabalhos que, inicialmente, no seu título, apresentavam indícios de que iam ao encontro da proposta desta pesquisa. Após a análise dos títulos, lemos os resumos verificando os objetivos, as metodologias e os resultados e, também, as palavras-chave. Feito isso, foram selecionados 37 trabalhos para a realização de uma leitura completa, sendo: 18 artigos, três teses, 11 dissertações e cinco TCCs. Durante a leitura dos arquivos completos, decidimos excluir dez trabalhos que não abordavam a Educação Infantil e/ou a formação de professores. Realizamos, assim, o estado da arte a partir de 14 artigos, três teses, sete dissertações (cinco de Mestrado Acadêmico e duas de Mestrado Profissional) e três TCCs.
Após a primeira leitura geral, realizamos uma releitura detalhada para analisar o conteúdo presente nas 27 produções selecionadas, a fim de elaborarmos categorias a partir dos enfoques identificados nas publicações. Dessa forma, elencamos quadro categorias comumente observadas: (1) Práticas pedagógicas antirracistas: possibilidades e limitações no cotidiano escolar; (2) Legislações brasileiras e suas abordagens sobre educação antirracista; (3) Construção da identidade da criança negra; e (4) Mito da democracia racial.
Realizada essa explanação, na qual abordamos, em linhas gerais, o caminho percorrido para o levantamento dos trabalhos, seguimos com a análise e a discussão dos dados encontrados nesta investigação.
Análise e discussão
Os trabalhos analisados foram publicados entre 2013 e junho de 2021. Durante o levantamento dos dados para esta pesquisa, notamos a menor presença de investigações que abrangessem, especificamente, a formação de professores para as relações étnico-raciais na etapa da Educação Infantil, haja vista que, dos 208 trabalhos encontrados, apenas 27 enfocavam essa temática.
Os artigos selecionados foram publicados em diferentes revistas brasileiras da área da educação, conforme pode ser visto na Quadro 1 a seguir. Apenas um dos trabalhos (GOMES; SILVA; GEBARA, 2020) foi oriundo do III Congresso Internacional e V Nacional Africanidades e Brasilidades em Educação realizado na cidade de Vitória, Espírito Santo, no ano de 2020.
Ano | Revista |
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2015 | Revista Eletrônica de Educação |
2016 | Educação, Gestão e Sociedade: Revista da Faculdade Eça de Queirós |
2016 | Scientia Tec: Revista de Educação, Ciência e Tecnologia do IFRS |
2016 | Revista Contemporânea de Educação |
2017 | Revista Humanidades e Inovação |
2018 | Revista Educação Inclusiva |
2019 | Cadernos de Pós-Graduação |
2019 | APRENDER – Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação |
2020 | Cadernos do Lepaarq |
2020 | Revista Cocar |
2021 | REDOC – Revista Docência e Cibercultura |
2021 | Revista Com Censo |
2021 | Revista Científica de Educação |
Fonte: Elaborado pelas autoras, 2021.
Os trabalhos (artigos, teses, dissertações e TCCs) foram, majoritariamente, realizados em universidades públicas, das quais destacamos: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal do Ceará (UFC), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Essas instituições apresentaram mais de um trabalho envolvendo a temática investigada, conforme pode ser visto no Quadro 2. Dentre as dissertações, há dois trabalhos oriundos de programas de Mestrado Profissional.
Tipo de trabalho | Instituição | Ano |
---|---|---|
Tese | Universidade Federal do Ceará | 2013 |
Tese | Universidade Federal do Ceará | 2013 |
Tese | Universidade do Estado do Rio de Janeiro | 2018 |
Dissertação | Universidade Tuiuti do Paraná | 2014 |
Dissertação | Universidade do Estado do Rio de Janeiro | 2015 |
Dissertação | Universidade Federal de Ouro Preto | 2019 |
Dissertação | Universidade Federal de Campina Grande | 2019 |
Dissertação | Universidade Federal do Ceará | 2020 |
Dissertação (Mestrado Profissional) | Universidade Federal de Minas Gerais | 2016 |
Dissertação (Mestrado Profissional) | Universidade Municipal de São Caetano do Sul | 2019 |
TCC (Especialização em Educação) | Universidade Federal de Minas Gerais | 2019 |
TCC (Pedagogia) | Universidade Federal de Campina Grande | 2016 |
TCC (Pedagogia) | Universidade Federal de Santa Catarina | 2018 |
Fonte: Elaborado pelas autoras, 2021.
Observamos, também, conforme mostra o Quadro 3, a presença feminina nas investigações sobre as questões étnico-raciais na Educação Infantil, sendo apenas um dos trabalhos exclusivamente construído por um pesquisador, cinco foram realizados conjuntamente, e os outros 21 trabalhos foram feitos somente por pesquisadoras.
Tipo de trabalho | Título | Autoras/Autores | Ano de publicação |
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Artigo | Relações étnico-raciais e formação docente: situações de discriminação racial na Educação Infantil | Márcio Mucedula Aguiar; Débora Cristina Piotto; Bianca Cristina Correa. | 2015 |
Artigo | Educação para as relações étnico-raciais na Educação Infantil em documentos nacionais | Nancy Nonato de Lima Alves; Ivone Garcia Barbosa; Núbia Souza Barbosa Ribeiro. | 2016 |
Artigo | Qual o lugar da criança negra na sociedade brasileira? | Liliam Teresa Martins Freitas | 2016 |
Artigo | Concepções de professoras sobre o ensino para as relações étnico-raciais em uma escola pública do município de Itapetinga-BA | José Valdir Jesus de Santana; Vânia Moreira Santos; Maria de Fátima de Andrade Ferreira. | 2016 |
Artigo | Educação Infantil e desigualdades raciais: tessituras para a construção de uma educação das/nas relações étnico-raciais desde a creche | Ellen Gonzaga Lima Souza; Lucimar Rosa Dias; Flávio Santiago. | 2017 |
Artigo | Afrobrasilidade na Roda de Capoeira: questões raciais no contexto da Educação Infantil | Ana Claudia Ivazaki; Patrícia Cristina de Aragão Araújo. | 2018 |
Artigo | Relações étnico-raciais e formação docente na Educação Infantil | Moacir Silva de Castro | 2019 |
Artigo | Educação Infantil e estudos das relações étnico-raciais: apontamentos de uma crescente produção acadêmica | Vanessa Ferreira Garcia; Maria Walburga dos Santos. | 2019 |
Artigo | Práticas docentes e relações raciais em uma creche do município do Rio de Janeiro | Aline de Oliveira Braga; Maria Alice Rezende Gonçalves. | 2020 |
Artigo | Relações étnico-raciais e formação docente no campo da Educação Infantil: estratégias metodológicas em foco na rede municipal de Belo Horizonte – MG/Brasil | Adriana Bom Sucesso Gomes; Rogério Correia da Silva; Tânia Aretuza Ambrizi Gebara. | 2020 |
Artigo | A literatura afro-brasileira em um Centro de Educação Infantil do município de São Paulo | Marta Regina Paulo da Silva; Cleia Souza Santos. | 2020 |
Artigo | Práticas educativas no combate ao racismo: discutindo estratégias para Educação Infantil | Leonardo Lacerda Campos; Raissa Santos Soriano. | 2021 |
Artigo | Luta antirracista na Educação Infantil em tempos de pandemia: o que as táticas docentes revelam? | Deise dos Santos Pereira et al. | 2021 |
Artigo | O ensino das relações étnico-raciais a partir de conteúdos geográficos: possibilidades na Educação Infantil | Lorena Francisco de Souza; Ilma Martins Alves de Oliveira. | 2021 |
Tese | Os desafios de uma educação para a diversidade étnico racial: uma experiência de pesquisa-ação | Marcelle Arruda Cabral Costa | 2013 |
Tese | Pretagogia: construindo um referencial teórico metodológico, de base africana, para a formação de professores/as | Geranilde Costa e Silva | 2013 |
Tese | Educação das relações étnico-raciais na creche: espaço-ambiente em foco | Aretusa Santos | 2018 |
Dissertação | A construção da identidade racial de crianças negras | Daniele Cristina Rosa | 2014 |
Dissertação | “Tia, existe flor preta?” Educar para as relações étnico-raciais | Erika Jennifer Honório Pereira | 2015 |
Dissertação | Representações sociais da cultura afro-brasileira, do aluno negro e suas implicações pedagógicas em Fagundes-PB | Valeska Nogueira de Lima | 2019 |
Dissertação | Relações étnico-raciais no âmbito das instituições municipais de Educação Infantil em Governador Valadares-MG | Ludmila Costa Meira | 2019 |
Dissertação | Educação Infantil e relações étnico-raciais: contribuições do curso de Pedagogia da UFC para a formação docente | Bárbara Rainara Maia Silva | |
Dissertação (Mestrado Profissional) | A promoção da igualdade racial e a política pública de formação dos professores da educação infantil em Belo Horizonte | Lisa Minelli Feital | 2016 |
Dissertação (Mestrado Profissional) | A literatura afro-brasileira na creche municipal de São Paulo | Cleia Souza Santos | 2019 |
TCC (Especialização em Educação) | Repensando as práticas pedagógicas voltadas para as relações étnico-raciais na EMEI Palmeiras | Mônica Corrêa dos Santos | 2019 |
TCC (Pedagogia) | O impacto da discriminação racial na construção da identidade negra infantil na cidade de cajazeiras | Josefa Jussara Assis Fernandes | 2016 |
TCC (Pedagogia) | As relações étnico-raciais na lei de diretrizes curriculares nacionais para Educação Infantil: implicações na formação de professores | Juliana de Sousa Barbosa | 2018 |
Fonte: Elaborado pelas autoras, 2022.1
Como havia sido o foco para a seleção dos trabalhos, a importância da formação docente para o trabalho sobre as relações étnico-raciais na Educação Infantil foi um ponto amplamente destacado na bibliografia selecionada para a análise. Dentre as publicações encontradas, notamos apontamentos acerca da formação de professores, tanto inicial quanto continuada, para o ensino sobre a relações étnico-raciais na Educação Infantil (AGUIAR; PIOTTO; CORREA, 2015; CASTRO, 2019; COSTA, 2013; FEITAL, 2016; GARCIA; SANTOS, 2019; GOMES; SILVA; GEBARA, 2020; PEREIRA, 2015; SANTANA; SANTOS; FERREIRA, 2016; SANTOS, A., 2018; SILVA, G. C., 2013; SILVA, B. R. M., 2020). Tais trabalhos ressaltam a relevância do olhar crítico do professor para que este possa identificar e agir diante de situações de discriminação no ambiente escolar. Essas publicações também enfatizam sobre a necessidade de os professores reconhecerem situações de discriminação racial, as quais, muitas vezes, passam despercebidas devido à naturalização do racismo e do preconceito racial em nossa sociedade.
Nesse sentido, Santana, Santos e Ferreira (2016) destacam em seu estudo que
[...] o papel do professor é fundamental para a compreensão de como as relações étnico-raciais são desenvolvidas no espaço escolar e, consequentemente para a construção de experiências pedagógicas capazes de enfrentar o racismo e a discriminação racial que se fazem presentes no espaço escolar e na sociedade, de modo geral. (SANTANA; SANTOS; FERREIRA, 2016, p. 7).
Os estudos também apontam que a formação para o trabalho com a questão racial consiste em uma forma de tentar reverter o cenário preconceituoso que atravessa a experiência de socialização da criança pequena (BRAGA; GONÇALVES, 2020).
As Leis Nº 10.639/2003 e Nº 11.645, de 10 março de 2008, esta última tendo acrescentado à obrigatoriedade do ensino da história da cultura indígena nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e de Ensino Médio (BRASIL, 2008), consistem em relevantes respaldos legais para o emprego do antirracismo na educação. Nos trabalhos de Aguiar, Piotto e Correa (2015), Barbosa (2018), Braga e Gonçalves (2020), Freitas (2016), Pereira (2015) e Silva e Santos (2020), foram identificadas menções às referidas Leis, especialmente à Lei Nº 10.639/2003, a qual apareceu com ainda mais frequência, indicando o quanto ela consiste em um marco para as abordagens que discutem o antirracismo no campo educacional. No que tange à formação de professores e às citadas Leis, vale ressaltarmos que “[...] um professor que teve a oportunidade de refletir acerca dos problemas enfrentados historicamente por negros e indígenas poderá ter papel fundamental na desconstrução das imagens depreciativas usualmente associadas a esses povos” (AGUIAR; PIOTTO; CORREA, 2015, p. 384).
A concepção das crianças como sujeitos que devem ter os seus direitos respeitados, inclusive no que tange ao direito à educação, se mostrou um tema bastante debatido nas pesquisas, apontando a associação entre o cuidar e o educar na Educação Infantil. Reconhecer a criança como sujeito, “alguém que é”, na nossa sociedade, implica considerá-la construtora de saberes e conhecimentos nas suas mais diversas especificidades, dentre elas os pertencimentos étnico-raciais. Assim sendo, essa concepção fomenta ainda mais a necessidade de um trabalho que aborde a questão racial desde a mais tenra idade2, a fim de não fortalecermos as disparidades raciais.
Diante das considerações que foram realizadas nos trabalhos, de modo geral, notamos que, apesar de enfoques diferentes – legislações, práticas pedagógicas, construção da identidade de crianças negras, entre outras –, as pesquisas têm evidenciado a relevância da formação docente para que uma educação antirracista de fato ocorra nos espaços escolares (AGUIAR; PIOTTO; CORREA, 2015; ALVES; BARBOSA; RIBEIRO, 2016). Pesquisas como as de Santos, C. S. (2019) e Silva e Santos (2020) esboçaram que os próprios docentes se dizem despreparados para abordar questões étnico-raciais nas salas aulas, apesar de reconhecerem a relevância da temática. Já as pesquisas de Pereira et al. (2021) e Santana, Santos e Ferreira (2016) apresentam esforços empregados por professores para a realização de um trabalho que englobe a diversidade, não deixando de enfatizar, contudo, a necessidade da formação docente em uma perspectiva antirracista
Essas explanações demonstram a importância de reconfigurarmos a formação docente, instrumentalizando e sensibilizando futuros professores para uma educação antirracista. No entanto, como articular esses momentos de formação? Silva, G. C. (2013) apresenta, em sua pesquisa de Doutorado a “Pretagogia”, um referencial teórico metodológico de matriz africana, que se mostrou satisfatório na promoção da formação de professores em uma perspectiva antirracista. Tal resultado mostra a necessidade da criação, da divulgação e da implementação dessa e de outras abordagens e metodologias, visando a formação inicial e continuada de professores.
Além desses apontamentos abordando os aspectos mais gerais, em nosso levantamento bibliográfico identificamos a presença de algumas categorias nos estudos analisados neste artigo, como apresentamos no Quadro 4.
Fonte: Elaborado pelas autoras, 2022.
É válido ressaltarmos, porém, que há trabalhos, conforme pode ser visto no Quadro 4, que abrangem as diferentes categorias elencadas, pelo fato de serem temas que se interrelacionam. Todavia, optamos por essa separação por considerarmos tais enfoques relevantes para serem discutidos e problematizados. Por isso, em alguns tópicos, será possível identificarmos a presença de autores citados em outros tópicos. Tendo explicitado isso, a seguir, analisamos cada uma das categorias.
Práticas pedagógicas antirracistas: possibilidades e limitações no cotidiano escolar
De acordo com Silva e Santos (2020, p. 668), é fundamental que “[...] os(as) professores(as) reflitam sobre a questão da diversidade étnico-racial de modo a (re)pensarem suas práticas pedagógicas; o que remete à necessidade de que os cursos de formação docente garantam a temática da diversidade e da igualdade étnico-racial em seus currículos”. As referidas autoras abordam o trabalho com a literatura na Educação Infantil e evidenciam a sua importância. Em seu estudo, Silva e Santos (2020) apontam que, apesar de o trabalho sobre a literatura ser realizado na instituição de Educação Infantil pesquisada, este não tem levado em consideração a diversidade étnico-racial, pois os docentes alegam não ter formação para tal trabalho.
Ivazaki e Araújo (2018) trazem, em seu estudo, a contribuição da roda de capoeira para abordar a afrobrasilidade, enquanto Souza e Oliveira (2021) refletem sobre as possibilidades de um estudo geográfico que envolva a cidadania e a compreensão do espaço e do lugar em uma perspectiva antirracista na Educação Infantil.
Esses estudos apresentam diferentes possibilidades de práticas pedagógicas que visam romper com a visão eurocêntrica tão presente nas nossas instituições escolares. Entretanto, problematiza-se e questiona-se a presença do trabalho esporádico, muitas vezes desenvolvido apenas em datas específicas e/ou que necessitem da construção de um “projeto” para abordagens envolvendo as questões raciais, como se estas não pudessem ser inseridas nas práticas cotidianas das escolas (LIMA, 2019; MEIRA, 2019).
Nesse sentido, vale ressaltarmos que o racismo se faz presente das mais diversas formas nos cotidianos escolares, sendo fundamental, desse modo, que o antirracismo também se faça presente de diferentes maneiras e não somente pontualmente. Uma das formas de fazermos mudanças cotidianas que não demandem a elaboração de um projeto é por meio de materiais pedagógicos, como cartazes e brinquedos de maneira a não reforçar estereótipos que fortalecem as ideias hierarquizantes que colocam as crianças negras em uma posição de subalternidade em relação às crianças brancas. Contudo, para isso, é imprescindível a formação docente para o trato das questões étnico-raciais, a fim de que os professores possam implementar uma educação antirracista no cotidiano escolar a partir da realidade do “chão da escola”.
Legislações brasileiras e suas abordagens sobre educação antirracista
No que tange às Leis Nº 10.639/2003 e Nº 11.645/2008, alguns dos trabalhos analisados (AGUIAR; PIOTTO; CORREA, 2015; BRAGA; GONÇALVES, 2020; FREITAS, 2016; SILVA; SANTOS, 2020) trazem ponderações sobre a não explicitada presença da etapa da Educação Infantil nas citadas Leis. Os autores afirmam a importância dessas Leis na contribuição por uma educação antirracista e defendem a ideia de que não incluir a Educação Infantil mostra o quanto essa etapa ainda é desconsiderada das mais variadas formas.
A Lei Nº 10.639/2003 diz: “Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira” (BRASIL, 2003, p. 1). Do mesmo modo, de acordo com a Nº Lei 11.645/2008: “Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena” (BRASIL, 2008, p. 1). Assim, as leis não contemplam a Educação Infantil e excluem, também, o Ensino Superior.
Todavia, outras legislações que substanciam um trabalho para as relações étnico-raciais são citadas nos estudos investigados. Conforme exemplificado por Silva e Santos (2020), a questão étnico-racial no âmbito da Educação Infantil está presente nas Diretrizes Curriculares Nacionais para essa etapa – as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI). As DCNEI determinam que, na elaboração das propostas pedagógicas de creches e pré-escolas, seja assegurado o “[...] reconhecimento, a valorização, o respeito e a interação das crianças com as histórias e as culturas africanas, afro-brasileiras, bem como o combate ao racismo e à discriminação” (BRASIL, 2010, p. 21).
Ademais, não podemos deixar de mencionar que, logo após a homologação da Lei Nº 10.639/2003, foi instituída, em junho de 2004, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCNERER) – Resolução Nº 1, de 17 de junho de 2004 (BRASIL, 2004). As DCNERER abarcam as instituições de ensino que atuam nos diferentes níveis e modalidades da educação brasileira e, em especial, as instituições que desenvolvem programas de formação inicial e continuada de professores.
Após a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) –Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996), como sendo a “lei maior” da educação brasileira –, a discussão sobre a necessidade de valorizar-se a cultura africana e afro-brasileira bem como a indígena foram se intensificando e conseguiram se implementar como legislações, não tendo sido, porém, essas temáticas contempladas pela LDB no final do século XX. Assim, as DCNEI e as DCNERER consistem em um conjunto de normas e de procedimentos obrigatórios fundamentais para a Educação Básica, haja vista que elas atuam na orientação do planejamento escolar das instituições, auxiliando na organização, na articulação, no desenvolvimento e na avaliação de suas propostas pedagógicas. Desse modo, não podemos desconsiderar que as DCNEI e as DCNERER, ao abrangerem o âmbito da Educação Infantil, consubstanciam propostas de combate ao racismo também nessa etapa da Educação Básica.
Assim sendo, no próximo item, apresentamos os trabalhos reunidos na categoria que tratam da identidade da criança negra. É nessa fase que as crianças começam a perceber, de maneira evidente, as diferenças físicas, sociais e culturais entre os seres humanos. Identificar-se e se identificar como negro, no início da vida escolar, tem consequências fundamentais para o desenvolvimento posterior desse sujeito, e os professores podem auxiliar na construção de uma identidade positiva nessa etapa da vida de crianças negras, bem como estimular as crianças não negras a desenvolverem um olhar que valorize as diferenças e qualifique, de maneira positiva, a negritude e as contribuições da cultura afro-brasileira para a sociedade.
Construção da identidade da criança negra
A construção da identidade de uma pessoa começa na infância, e as primeiras vivências são muito significativas para a construção da autoimagem e autoestima. Em uma sociedade excludente e racista como a que vivemos, é preciso ter atenção especial para a construção da identidade da criança negra, tema abordado também nas pesquisas analisadas. Freitas (2016) diz-nos:
A educação infantil constitui-se como a primeira etapa da educação básica e tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança, considerando-se as dimensões física, afetiva, intelectual e social. É durante a infância que se inicia o processo de formação da identidade e o descobrimento do “eu”, onde a criança se vê permeada por referências. (FREITAS, 2016, p. 44).
Considerando essa afirmativa, podemos refletir sobre a importância de um trabalho que envolva uma representatividade positiva que leve em conta a diversidade existente para que as crianças não brancas também possam se enxergar, se valorizar e elevar a sua autoconfiança e autoestima.
Um número significativo dos trabalhos (12 no total) destaca a necessidade de que a Educação Infantil realize esforços para que as crianças, sobretudo as negras, tenham representações que as auxiliem na construção de uma identidade positiva. Essa abordagem foi enfatizada nos seguintes trabalhos: Aguiar, Piotto e Correa (2015); Barbosa (2018); Braga e Gonçalves (2020); Campos e Soriano (2021); Castro (2019); Fernandes (2016); Freitas (2016); Garcia e Santos (2019); Lima (2019); Rosa (2014); Santos, A. (2018); Souza, Dias e Santiago (2017). Lamentavelmente, são comuns representações de pessoas negras na nossa sociedade de maneira estereotipada, subalternizada, tendo suas características fenotípicas muitas vezes associadas ao sinônimo de feiura e falta de higiene.
Nessa perspectiva, Gomes (2003, p. 171) aponta que “[...] construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que, historicamente, ensina ao negro, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo, é um desafio enfrentado pelos negros brasileiros”. Assim sendo, a formação docente deve voltar-se para auxiliar os professores nesse processo, contribuindo para que estes possam estimular a construção de uma identidade positiva para as crianças negras bem como fomentar a apreciação e a valorização das diferenças entre todas as crianças.
Mito da democracia racial
Nesta categoria foram reunidos ostrabalhos que evidenciaram a presença do mito da democracia racial como um desafio para o reconhecimento e o enfrentamento do racismo no contexto brasileiro. Por isso, é importante que os professores assumam o compromisso de lutar contra o racismo por meio da implementação de práticas antirracistas.
Conforme apresentado e discutido em alguns estudos analisados, para que possamos implementar uma educação antirracista, é fundamental a superação da ideia de que vivemos em uma democracia racial; afinal, não buscamos soluções para problemas que não existem. Desse modo, a negação do racismo, a consequente defesa e a afirmação da democracia racial mascaram e tendem a aprofundar ainda mais a disparidade racial existente na nossa sociedade. Essa negação da existência do racismo ainda é uma das principais características do racismo à brasileira: ambíguo, contraditório e que se afirma pela sua própria negação (MUNANGA, 2006).
No âmbito da Educação Infantil, a defesa dessa falsa ideia faz com que os docentes não enxerguem situações de discriminação racial tais como são. Nesse sentido, é importante destacarmos que o racismo nem sempre resulta de uma intencionalidade e que a sua presença estruturante pode nos fazer reproduzi-lo ainda que inconscientemente. Dessa forma, os diferentes atores do espaço escolar podem corroborar para o desenvolvimento de práticas discriminatórias ainda que não as percebam (CASTRO, 2019).
Assim como várias outras coisas, o racismo também é aprendido e internalizado, por nós, a partir das nossas relações, na família, na comunidade, na escola e em outros espaços pelos quais circulamos e nos relacionamos. Isso faz com que não estejamos isentos de reproduzi-lo nas nossas vivências. O reconhecimento disso nos provoca a sermos mais vigilantes e atuantes nas nossas práticas cotidianas, a fim de não contribuirmos para o aprofundamento das desigualdades raciais.
Considerações finais
O presente trabalho objetivou evidenciar o estado da arte de pesquisas que abordam a formação de professores em uma perspectiva antirracista na Educação Infantil, a fim de traçar um panorama dos estudos nessa área e verificar quais têm sido suas principais tendências. Os resultados apontaram alguns pontos relevantes que têm sido discutidos. Dentre eles, destacamos a falta de abrangência explícita da Educação Infantil em respaldos legais, como as Leis Nº 10.639/2003 e Nº 11.645/2008. Todavia, não podemos desconsiderar a importância das DCNEI e das DCNERER, para a fomentação de propostas antirracistas, inclusive no âmbito da Educação Infantil.
Ademais, as categorias construídas, discutidas e problematizadas nos estudos analisados – (1) Práticas pedagógicas antirracistas: possibilidades e limitações no cotidiano escolar; (2) Legislações brasileiras e suas abordagens sobre educação antirracista; (3) Construção da identidade da criança negra; e (4) Mito da democracia racial – apontaram desafios que necessitam ser superados para que haja uma educação antirracista desde a primeira infância.
É preciso termos iniciativas no sentido de incentivar, facilitar e promover o combate ao racismo nas instituições escolares, começando pela formação de professores inicial e continuada, com a produção de materiais didáticos, palestras, livros, cursos e toda forma de promoção de práticas antirracistas adequadas para cada idade. Outro ponto relevante é que novas pesquisas sejam feitas, visando, ainda, conhecer melhor como o racismo opera no cotidiano escolar, suas consequências nas inter-relações estabelecidas nesse espaço e como a comunidade escolar pode agenciar práticas antirracistas ao longo do processo formativo. Essas pesquisas são fundamentais no sentido de construirmos caminhos possíveis e urgentes para uma educação inclusiva, que acolha a diversidade humana como valor a ser exaltado e celebrado.