Considerações iniciais
Sul do Brasil, região historicamente considerada um “vale europeu”, cuja atribuição se deve a ideia de que seu desenvolvimento tenha ocorrido, exclusivamente, por meio da colonização alemã, italiana, austríaca e polonesa, enaltecendo uma falsa superioridade em relação às demais regiões do país. Os três estados que compõem o Sul são marcados pelo projeto de embranquecimento, a partir de políticas de imigração europeia que concederam um conjunto de benefícios a imigrantes trazidos para trabalhar com a intenção de substituir a população escravizada.
Por um lado, o ideário de embranquecimento penetrou as diferentes esferas e os setores sociais, alcançando a ciência e a intelectualidade brasileira que desempenhou papel crucial na fundamentação do racismo científico, permeando a constituição das universidades brasileiras, marcadas por um conhecimento ocidental, racista, eurocêntrico e branco (BENTO, 2002; SCHUCMAN, 2014). Por outro lado, a presença da população negra na formação social, econômica e cultural nunca deixou de ecoar nos três estados mesmo nos momentos de chumbo, nos quais as formas de violência, de repressão e a necropolítica se combinam e se atualizam. Negros e negras atuaram/atuam ativamente no desenvolvimento econômico, cultural e social, integrando a história e a memória das cidades que fazem parte do Sul, destacando-se também pelo protagonismo da intelectualidade negra no interior de universidades públicas dessa região1.
A insurgência de intelectuais negros/as na formulação de perspectivas negras decoloniais atuando em universidades federais do Sul foi premissa da pesquisa pela qual o presente artigo se originou. Assumimos a categoria insurgência a partir dos estudos de bell hooks (2013) para referirmo-nos aos movimentos emergidos por sujeitos e grupos sociais que subvertem as opressões de raça, sexo e classe, por meio de processos de conscientização e libertação coletiva. O/a intelectual negro/a assumido neste trabalho “[...] refere-se àquele profissional que constrói sua trajetória de produção, reflexão e intervenção na interatividade entre o ethos político da discussão da temática racial e o ethos acadêmico-científico adquirido no mundo da ciência moderna” (GOMES, 2010, p. 500). Tal concepção tem consonância com a perspectiva de hooks (1995) que considera o trabalho intelectual parte necessária da luta por libertação dos grupos oprimidos, por meio do envolvimento na realidade social inserida, transcendendo a concepção de intelectual pela produção individual. Logo, a intelectualidade negra é compreendida como o processo de luta autoconsciente da população negra (COLLINS, 2019).
O estudo, realizado em nível de Doutorado, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), teve como objetivo compreender os processos que contribuíram para a institucionalização da Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER) nos currículos dos cursos de Pedagogia de três universidades federais do Sul do Brasil: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), UFSC e Universidade Federal do Paraná (UFPR).2
Neste artigo, apresentamos uma análise dos pressupostos assumidos ao longo do estudo, levantando as lentes teóricas e metodológicas que subsidiaram os caminhos percorridos, além dos principais resultados constatados a partir das diferentes experiências e possibilidades de institucionalização da ERER identificadas nas três universidades foco de nossa pesquisa.
Educação para as Relações Étnico-Raciais: contextos e políticas
Fundamentamos o estudo em um conjunto de políticas e de epistemologias produzidas e praticadas nas/pelas lutas do Movimento Negro, assumido aqui como um ator social educador considerando “[...] as mais diversas formas de organização e articulação das negras e dos negros politicamente posicionados na luta contra o racismo e que visam a superação desse perverso fenômeno na sociedade” (GOMES, 2017, p. 23).
Os movimentos protagonizados pelos diferentes sujeitos e grupos sociais indígenas, quilombolas e negros evidenciam a exploração política e econômica estabelecida pelo colonialismo e mantida pela colonialidade, por meio da dominação social, racial e cultural das populações colonizadas (FANON, 2008). Tais movimentos que abrangem grupos sociais, políticos, culturais, acadêmicos, artísticos e religiosos atuam teórica e politicamente em contraposição à lógica colonial, na construção do que Gomes (2019) intitula de perspectiva negra decolonial brasileira. Nesse sentido, a educação é escolhida como uma das pautas e esferas prioritárias no processo de descolonização dos currículos e emancipação dos sujeitos.
As epistemologias produzidas por negros e negras tiveram origem nas experiências sociais, nas periferias, nos atos, nas marchas, nas ocupações, em outras palavras, na prática cotidiana de sujeitos que não tiveram o devido reconhecimento e legitimidade pela ciência moderna ocidental. A chave central das produções formuladas por esses sujeitos está na ressignificação do termo raça, a partir da destituição do seu sentido biológico para a construção política e social que o termo exprime. Assim, raça torna-se uma categoria para analisar desigualdades sociais, relações de poder e privilégios da branquitude, compreendida aqui como lugar social que atribui historicamente vantagens aos sujeitos brancos, por meio da manutenção da estrutura racial (SCHUCMAN, 2014).
Gomes (2010) e Figueiredo (2017) identificam intelectuais negros/as, dentre eles/as: Lélia Gonzalez, Milton Santos, Guerreiro Ramos, Chiquinha Gonzaga, Edson Carneiro, Abdias do Nascimento e Sueli Carneiro, como alguns/mas dos/as precursores/as da produção científica negra no Brasil que problematizaram os efeitos do racismo, do colonialismo e do imperialismo no continente americano. Tais sujeitos passaram a ocupar espaços e instituições de poder, como as universidades, inaugurando uma nova agenda de pesquisas, tendo como investigadores/as das questões raciais a própria população negra. Se, até então, eram considerados/as somente objeto de estudos, passam a ser produtores/as de conhecimentos, chamando atenção das Ciências Humanas e Sociais para incorporar, em suas análises, outras dimensões que integram o contexto social brasileiro, reconhecendo desigualdades raciais e de gênero.
De acordo com Gomes (2010), pesquisadores/as negros/as não só admitem a responsabilidade na produção do conhecimento científico nas universidades, mas também passam a integrar o campo político como forma de criar ações capazes de diminuir as desigualdades raciais. Tais sujeitos são reconhecidos pela autora como intelectuais negros, pois assumem o compromisso de atuar na contestação dos estudos científicos ancorados no mito da democracia racial, buscando a emancipação social da população negra. De acordo com a autora:
São intelectuais, mas um outro tipo de intelectual, pois produzem um conhecimento que tem como objetivo dar visibilidade a subjetividades, desigualdades, silenciamentos e omissões em relação a determinados grupos sociorraciais e suas vivências. Para tal configuram-se como um coletivo, organizam-se e criam associações científicas a fim de mapear, problematizar, analisar e produzir conhecimento. É aqui que se localizam os intelectuais negros. (GOMES, 2010, p. 495, grifo nosso).
A partir de um projeto político e educador, o Movimento Negro trouxe para as universidades as temáticas desprezadas pelo cânone acadêmico hegemônico: discriminação racial, populações indígenas e quilombolas, saúde da população negra, ações afirmativas, constituição das infâncias e a juventude negra, religiões afro-brasileiras, mito da democracia racial, acesso e permanência de negros/as na educação, a ideologia de branqueamento e privilégios da branquitude, entre outros assuntos de suma importância para a promoção da igualdade racial e a garantia da democratização do país.
Tais discussões impactaram diretamente na aprovação de políticas educacionais e curriculares para uma educação das relações étnico-raciais, sobretudo a partir da sanção da Lei Federal Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) - Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 -, instituindo a história e cultura africana e afro-brasileira nas instituições escolares (BRASIL, 2003), modificada novamente pela Lei Federal Nº 11.645, de 10 março de 2008, a qual integrou a temática indígena nos currículos (BRASIL, 2008). Em busca de subsidiar a implementação dessas deliberações, foi elaborada uma série de normativas, de âmbito nacional, que orientam o trabalho com a discussão étnico-racial em todas as etapas, modalidades e níveis de ensino. Dentre essas normativas, algumas impactam diretamente na formação de professores/as, como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana -DCNERER (BRASIL, 2004) e o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (BRASIL, 2009).
A Resolução Nº 1, de 17 de junho de 2004, instituiu as DCNERER (BRASIL, 2004), assumidas como uma política de reconhecimento, valorização e reparação dos danos ocasionados pelo racismo e pelo abandono da população negra no pós-abolição. O documento procura orientar, planejar, executar e avaliar as ações desenvolvidas para uma educação das relações étnico-raciais, evidenciando a grande importância de os cursos de formação inicial e continuada assumirem a história e a cultura africana e afro-brasileira e o reconhecimento da diversidade étnico-racial brasileira.
No que tange especificamente à formação de pedagogas e de pedagogos, o Parecer CNE/CP N° 5, de 13 de dezembro de 2005, definiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia - DCNP (BRASIL, 2005). O documento apresenta orientações, destacando como eixo central de formação a docência na Educação Infantil e o Ensino Fundamental de forma articulada e indissociável. É possível percebermos uma articulação entre tal documento e as concepções trazidas pelas DCNERER (BRASIL, 2004), pela presença de expressões como: educação das relações étnico-raciais, diversidade social, étnico-racial e regional e multiculturalidade3. Tais termos, mencionados inúmeras vezes no documento, fundamentam a finalidade do curso, os princípios, o perfil dos/as licenciados/as, a organização curricular e os núcleos de estudos e aprofundamentos que compõem a estrutura do curso de Pedagogia. Enfatizamos a concepção de docência “[...] compreendida como ação educativa e processo pedagógico metódico e intencional, construído em relações sociais, étnico-raciais e produtivas, as quais influenciam conceitos, princípios e objetivos da Pedagogia” (BRASIL, 2005, p. 7) e a atuação do/a professor/a como “[...] agente de (re)educação das relações sociais e étnico-raciais, de redimensionamentos das funções pedagógicas e de gestão da escola” (BRASIL, 2005, p. 8).
Outro documento que delega funções à formação inicial oferecida pelas Instituições de Ensino Superior (IES) é o Plano de Implementação das DCNERER (BRASIL, 2009), o qual orienta aos cursos a inclusão de conteúdos e disciplinas relacionadas à Educação das Relações Étnico-Raciais, o estímulo e a fomento à pesquisa e ao desenvolvimento de atividades acadêmicas de ensino e extensão. Ademais, o Plano destaca a relevância dos cursos de licenciaturas com a construção de atitudes e de habilidades nos/as estudantes, permitindo com que produzam materiais didáticos pautados em uma educação para as relações étnico-raciais nos diferentes níveis e modalidades de ensino (BRASIL, 2009).
Esses documentos integram um conjunto de ações conquistadas pela luta da população negra, permitem uma série de significações na busca de desestabilizar e deslocar a perspectiva eurocêntrica e estabelecem outras conexões com o processo histórico do nosso país, promovendo uma descolonização dos currículos em uma perspectiva negra brasileira (GOMES, 2019). Nesse sentido, compreendemos por perspectiva negra decolonial brasileira as ações e as estratégias de resistências praticadas em oposição à lógica colonial, racista, machista e heteropatriarcal, considerando, principalmente, “[...] a luta política das mulheres negras, dos quilombolas, dos diversos movimentos negros, do povo de santo, dos jovens de periferia, da estética e arte negra, bem como de uma enormidade de ativistas e intelectuais” (BERNARDINO-COSTA; MALDONADO-TORRES; GROSFOGUEL, 2019, p. 10).
As regulamentações educacionais apresentadas propõem deslocamentos políticos, epistemológicos e práticos a fim de “[...] reconhecer negras e negros como sujeitos e seus movimentos por emancipação como produtores de conhecimentos válidos que não somente podem tensionar o cânone, mas também o indagam e trazem outras perspectivas e interpretações” (GOMES, 2019, p. 235). Por meio de leis, de resoluções, de diretrizes e de planos nacionais, a atuação do Movimento Negro pratica uma desobediência epistêmica, considerando modos outros de produção das ciências, a partir dos sujeitos subalternizados, pensando para além do cânone ocidental (MIGNOLO, 2008).
Tais determinações impactam as estruturas curriculares do Ensino Superior, incluindo os cursos de Pedagogia, incidindo na formação de professores/as responsáveis com a perspectiva antirracista. Currículo é aqui assumido como território de disputas (ARROYO, 2013) que integra uma multiplicidade de dimensões envolvidas nas experiências curriculares, transcendendo os elementos formais e escritos dos documentos de um curso. Constituído para além do oficial ou do prescrito, o currículo abrange os aspectos ocultos, negados, silenciados, dominados e vividos nas relações pedagógicas (SACRISTÁN, 2013; SILVA, 2015).
A partir das ações compositivas da política nacional de educação das relações étnico-raciais, o propósito do presente estudo foi compreendermos os processos que contribuíram para a institucionalização da educação das relações étnico-raciais nos currículos dos cursos de Pedagogia de três universidades federais do Sul do Brasil: UFPR, UFSC e UFRGS. A seguir, evidenciamos os caminhos metodológicos percorridos no desenvolvimento da pesquisa.
Percursos metodológicos
A escolha por analisarmos a perspectiva racial em currículos de cursos de Pedagogia ocorreu mediante a necessidade em reconhecer possibilidades de descolonização desses cursos. Ao assumirmos como lócus de pesquisa três universidades federais, reconhecemos a relevância dessas instituições na formação de professores/as para atuarem na Educação Básica, ao desenvolver o tripé formado pelo ensino, pesquisa e extensão. Tais instituições agregam um conjunto de núcleos de inovação, estudos e pesquisas que contribuem efetivamente para o desenvolvimento dos conhecimentos em diferentes áreas científicas, dentre eles o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab) e os grupos correlatos que desenvolvem atividades relacionadas à produção do conhecimento e às ações sociais para a promoção da igualdade racial. Por isso, a opção pela UFPR, UFSC e UFRGS ocorreu mediante a confirmação da existência de tais grupos no interior das três instituições e do impacto deles na formação de estudantes da Graduação e de Pós-Graduação, por meio das ações, dos programas e dos projetos voltados à perspectiva racial desenvolvidos por esses núcleos.
A pesquisa no campo da educação das relações étnico-raciais no Brasil tem apresentado crescimento amplo no que diz respeito à variedade de temas, de abordagens teóricas, de procedimentos metodológicos, além da diversidade de pertencimento racial dos/as próprios/as pesquisadores/as (SILVA; REGIS; MIRANDA, 2018). Esse campo de estudo tem exigido cada vez mais o reconhecimento do lócus de enunciação dos sujeitos que realizam as pesquisas como um elemento central na construção de um conhecimento posicionado (HARAWAY, 1995). Compreendemos que o lugar de enunciação social, racial, sexual e de gênero marca a constituição dos sujeitos pesquisadores e incide, diretamente, em suas análises, em suas teorias e em seus resultados (FIGUEIREDO, 2020). Logo, importa reconhecermos que a produção deste estudo esteve marcada a partir do lugar de uma pesquisadora mulher, cisgênero, professora e branca em relação à orientadora e pesquisadoras negras integrantes de grupos de pesquisa4. Demarcar tal posição não significa ocupar o lugar da população negra para produzir resultados sobre suas experiências e seus conhecimentos, como, historicamente, as investigações científicas têm disponibilizado. O pressuposto metodológico assumido nas trilhas percorridas pelo estudo buscou ler, interpretar e analisar com e a partir das ações políticas, experiências sociais e epistemes produzidas pelo Movimento Negro.
Para compreendermos os processos que contribuíram para a institucionalização da educação das relações étnico-raciais nos cursos de Pedagogia da UFPR, da UFSC e da UFRGS, optamos por um percurso metodológico qualitativo, adotando estratégias para reunir informações e estabelecer interlocuções com os diferentes instrumentos de pesquisa. Assumimos um decurso que considerou a realização de levantamento bibliográfico, a análise documental dos materiais articulados com a regulamentação dos cursos de Pedagogia em âmbito nacional/local e entrevistas com docentes dos cursos de Pedagogia das instituições selecionadas. Para analisar os dados, utilizamos elementos da análise de conteúdo por ser um conjunto de técnicas que apreciam as informações inseridas nas mensagens, por meio da descrição e da interpretação do conteúdo emitido nas comunicações (BARDIN, 1979; FRANCO, 2012).
A organização da análise de conteúdo é delineada por Bardin (1979) por intermédio de três etapas importantes: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados que possibilitam a interpretação. A pré-análise considera a organização do material, sob os seguintes aspectos: a escolha dos documentos, a elaboração dos objetivos, a construção de pressupostos que embasam a interpretação final. A definição das abordagens teóricas engloba levantamento bibliográfico de pesquisas anteriores sobre o assunto, contribuindo não só para balizar as análises e as interpretações elaboradas, mas também para o avanço dos desafios e das possibilidades encontradas. E, ainda, a exploração do material que consiste no estudo aprofundado e na descrição analítica do material selecionado balizado pelos referenciais teóricos; e o tratamento dos resultados compreendendo as inferências e as interpretações realizadas de modo reflexivo e crítico5.
Os documentos compositivos das análises foram os Projetos Pedagógicos dos Cursos (PPCs) de Pedagogia, os Planos e os Programas de Ensino das disciplinas integrantes das matrizes curriculares. Além disso, os materiais elaborados por meio das transcrições das entrevistas realizadas compuseram nosso corpus de pesquisa. A partir da definição desse conjunto de documentos, a técnica da análise de conteúdo percorreu a leitura flutuante, a exploração do material com base nos seus contextos de produção e a construção de categorias constituídas a priori, balizadas pelos conceitos que a temática abrange para analisar os documentos6, e, a posteriori, a partir das entrevistas realizadas com docentes.
Admitimos as entrevistas como uma ferramenta metodológica relevante nas pesquisas qualitativas, atentando para a possibilidade de os sujeitos revelarem suas próprias experiências, perspectivas e significados atribuídos à temática investigada (ZAGO, 2011). O propósito da adoção das entrevistas foi agregar informações e experiências que contribuíssem para a análise do processo de inserção das questões étnico-raciais nos currículos dos cursos de Pedagogia das universidades investigadas. A escolha pela entrevista não ocorreu como uma ferramenta meramente de transposição dos dados, mas como parte integrante da construção da pesquisa. Logo, atribuímos centralidade às informações, aos dados e às experiências trazidas durante as entrevistas, evidenciando a potência das narrativas concedidas pelas/os docentes como agentes principais dos conhecimentos elaborados com a pesquisa7.
A definição dos sujeitos entrevistados ocorreu pelo nosso interesse acerca dos conhecimentos, da participação, do envolvimento e das responsabilidades institucionais com a problemática da pesquisa. Um dos critérios de escolha ocorreu mediante a participação dos sujeitos no processo de reformulação curricular no momento de proposição de disciplinas específicas/obrigatórias que abordam as questões étnico-raciais no curso. Além disso, entrevistamos os/as professores/as ministrantes da disciplina no momento da pesquisa para perceber como consideravam o trabalho com a educação das relações étnico-raciais na formação para docência.
As entrevistas foram realizadas com um total de nove docentes vinculadas/os às três instituições pesquisadas. Dentre eles/as, entrevistamos sete mulheres cisgêneros, sendo cinco mulheres negras e duas brancas, e dois homens cisgêneros negros8. Participaram da pesquisa os/as seguintes docentes: Paulo Vinícius Baptista da Silva (UFPR), Lucimar Rosa Dias (UFPR), Carolina Anjos de Borba (UFPR), Ida Mara Freire (UFSC), Vânia Beatriz Monteiro da Silva (UFSC), Joana Célia dos Passos (UFSC), Gládis Elise da Silva Kaercher (UFRGS), Dilmar Luiz Lopes (UFRGS) e Carla Beatriz Meinerz9 (UFRGS).
As narrativas concedidas pelas/os docentes durante as entrevistas compuseram um aglomerado de conteúdos, de informações, de experiências e de possibilidades pujantes na compreensão do processo de institucionalização da perspectiva racial nos cursos pesquisados. Tais sujeitos foram assumidos como agentes principais dos conhecimentos elaborados na pesquisa (COLLINS, 2019), contrariando a ideia de objetos passivos ao revelar que “[...] a própria agência das pessoas estudadas transforma todo o projeto de produção de teoria social. De fato, levar em conta a agência dos ‘objetos’ estudados é a única maneira de evitar erros grosseiros e conhecimentos equivocados de vários tipos nessas ciências” (HARAWAY, 1995, p. 36).
Logo, a elaboração das categorias de análise esteve intrinsecamente ligada às interpretações efetuadas acerca dos conteúdos e das informações trazidas pelos/as docentes durante as entrevistas. A partir das análises dos documentos curriculares das instituições e dos discursos narrados pelos/as docentes, identificamos a insurgência de uma perspectiva negra decolonial brasileira protagonizada por intelectuais negros/as atuando no interior dos cursos de Pedagogia da UFPR, da UFSC e da UFRGS. Na próxima seção, apresentamos as especificidades do processo de institucionalização da abordagem racial nos currículos dessas instituições.
Intelectualidade negra insurgente no Sul do Brasil
A partir das análises dos PPCs, dos Programas e dos Planos de Ensino das disciplinas, constatamos a presença da perspectiva racial nos conteúdos que compõem esses documentos. Nos três PPCs analisados, identificamos a referência ao termo étnico-racial ao longo do texto. No projeto da UFPR (2018), um dos princípios que baliza a formação de professores/as é a educação para as relações étnico-raciais, realizando menção a Lei Nº 10.639/2003, a Lei Nº 11.645/2008, o Parecer CNE/CP Nº 3/2004 e a Resolução CNE/CP Nº 1/2004, regulamentadas pelas DCNERER. Na UFSC (2010), identificamos uma única referência à questão étnico-racial no corpo do PPC do curso de Pedagogia sem mencionar os documentos regulamentadores da política de educação das relações étnico-raciais. Na UFRGS (2018), a dimensão étnico-racial é citada no PPC de Pedagogia em articulação às DCNERER e às DCNP.
Sobre as matrizes curriculares, constatamos disciplinas obrigatórias e optativas integrando os projetos dos cursos de Pedagogia. O Quadro 1 sistematiza as informações acerca de tais componentes curriculares em cada instituição.
Universidade | Disciplina | Caráter | Carga-horária | Período/Fase |
---|---|---|---|---|
UFPR |
Diversidade étnico-racial, gênero e sexualidade |
Obrigatória |
60 horas | 6ª fase |
Organização do trabalho pedagógico e reeducação das relações étnico-raciais |
Optativa |
30 horas | Sem etapa | |
UFSC |
Diferença, estigma e educação | Obrigatória | 54 horas | 1ª fase |
Práticas educativas e relações étnico-raciais | Núcleo de aprofundamento e diversificação de estudos (NADE) | 54 horas | Sem etapa | |
UFRGS |
Educação e relações étnico-raciais |
Obrigatória |
30 horas | 7ª Etapa |
Encontro de saberes | Eletiva | 60 horas | Sem etapa |
Fonte: Elaborado pelas autoras, 2022.
Como é possível observarmos no Quadro 1, as três instituições possuem na matriz curricular uma disciplina obrigatória específica de abordagem étnico-racial no curso de Pedagogia, além de um componente curricular eletivo. Observamos a presença de componentes obrigatórios que pautem de modo íntegro e orgânico a perspectiva racial como estratégias pujantes no processo de institucionalização da ERER, embora assumamos que essas discussões devam ocupar espaço em todas as disciplinas do curso de Pedagogia garantindo o enraizamento da questão étnico-racial.
Reconhecendo a importância do lugar ocupado pelas disciplinas obrigatórias de abordagem étnico-racial na estrutura curricular do curso, discorremos sobre o processo de proposição e de implementação de tais componentes nas três instituições pesquisadas como possibilidades de descolonização dos currículos em uma perspectiva negra brasileira.
No curso de Pedagogia da UFPR, identificamos a disciplina “Diversidade étnico-racial, gênero e sexualidade” com a carga-horária de 60 horas, ofertada no 6º semestre do curso, apresentando a seguinte ementa:
Diversidade e educação: dimensões teóricas e políticas. Cultura, identidade e transformações sociais na perspectiva educacional. Introdução às teorias feministas, queer, antirracistas e da colonialidade no campo sociológico. Construção sócio-histórica da ideia de raça, de identidade étnico-racial e das desigualdades de gênero e sexualidade. Heteronormatividade e direitos sexuais. Perspectivas de Interseccionalidades: especificidades em raça, gênero, classe, sexualidade e outras formas de vulnerabilidades sociais. (UFPR, 2018, p. 1).
A proposição da disciplina tem sua história marcada pela atuação e pela resistência de docentes, estudantes e núcleos de pesquisas vinculados ao Movimento Negro. O reconhecimento da abordagem étnico-racial no currículo do curso de Pedagogia da UFPR não ocorreu de modo consensual, demandando um processo de disputas curriculares que envolveram políticas de ações afirmativas na universidade, a criação do Neab/UFPR e o protagonismo de intelectuais negros/as atuando nesse espaço.
Nessa história, destacamos a atuação de um dos sujeitos da pesquisa, o professor Paulo Vinícius Baptista da Silva, responsável pela proposição da disciplina optativa “Educação e relações étnico-raciais” no ano de 2005. Docente da área de Psicologia, desde 1995, no Departamento de Teorias e Fundamentos da Educação, Paulo Vinícius relatou sobre a possibilidade de propor disciplinas optativas no departamento em que atua por meio de ementas “abertas” articuladas com a área da Psicologia da Educação. Para o professor, a alternativa viável de inserção do debate racial no curso foi por meio dessas disciplinas optativas oferecidas regularmente pelo docente, ao mesmo tempo em que articulava a inclusão da discussão racial de modo obrigatório no currículo.
Conforme revela o professor, houve uma tentativa de proposição obrigatória da disciplina na reformulação curricular do curso de Pedagogia iniciada em 2002 e aprovada em 2007. A disciplina “Educação e relações étnico-raciais” proposta como obrigatória pelo professor havia tido aprovação na Comissão de reformulação curricular, mas, na última reunião do departamento, a disciplina foi alterada de caráter obrigatório para optativa. De acordo com o professor Paulo Vinícius, a justificativa apresentada pelo corpo docente para não aprovar a disciplina como obrigatória foi a ausência de um/a professor/a concursado/a para assumi-la.
Considerando o argumento, o professor Paulo Vinícius manteve a oferta da disciplina optativa no curso, buscando, ao mesmo tempo, planejar e propor estratégias de institucionalização do debate. Nesse processo, um fato determinante trata-se da abertura de um concurso público em 2015 com vagas no Departamento de Teorias e Fundamentos da Educação do Setor de Educação da UFPR. O professor Paulo Vinícius vislumbrou no concurso uma possibilidade de contratação de docente que assumisse o debate étnico-racial no currículo da Pedagogia. Por isso, propôs uma parceria com a área de Sociologia do mesmo departamento, considerando o envolvimento de algumas professoras com o debate racial que concordavam com a proposta.
Com essa articulação, foi aberta uma vaga no concurso público para a Área de Conhecimento: “Sociologia da Educação: diversidade étnico-racial, gênero e sexualidade”. A exigência para concorrer ao cargo de professor/a era possuir Doutorado com tema de tese pertinente à área de conhecimento, obtidos na forma da Lei. A estratégia no momento, de acordo com o professor Paulo Vinícius, foi realizar o caminho contrário, abrindo o concurso para a vaga específica, para, posteriormente, aprovar a disciplina como obrigatória. O departamento foi contemplado com a aprovação em concurso da docente Carolina Anjos de Borba, também participante da pesquisa. Admitida em 2016, a professora Carolina assumiu a responsabilidade de atuar na disciplina optativa “Educação das relações étnico-raciais” até a aprovação da disciplina obrigatória no curso.
Destacamos também a inserção da professora Lucimar Rosa Dias, pesquisadora e militante das questões raciais, que, ao integrar o corpo docente do curso de Pedagogia da UFPR em 2014, pautou a dimensão racial como categoria a ser contemplada no processo de formação de professores/as. Com o ingresso da professora Lucimar no curso de Pedagogia, as lutas pela questão étnico-racial ganharam ainda mais força, a partir da defesa da obrigatoriedade da disciplina obrigatória.
Nessa conjuntura, o curso de Pedagogia passava por uma nova reformulação curricular ocorrida entre 2015 e 2018, tendo a questão étnico-racial como temática abordada durante as discussões entre membros do Núcleo Docente Estruturante (NDE), seja por meio da participação de professores/as e das mobilizações de estudantes sobre a necessidade do debate racial na formação. Foi nesse cenário que a disciplina obrigatória “Diversidade étnico-racial, gênero e sexualidade” passou a integrar a matriz curricular do curso de Pedagogia, aprovada em 2018. Para a professora Lucimar, houve uma conjuntura política favorável para a aprovação da disciplina e uma articulação com a área de Sociologia para consentir a abertura de um concurso com o recorte étnico-racial, conferindo outro status para a disciplina de relações étnico-raciais. Em vista disso, a negociação da disciplina no currículo do curso passou a ter uma nova configuração, sendo aprovada como obrigatória incontestavelmente, após a entrada de uma docente responsável por essa área de conhecimento.
O protagonismo de Lucimar no debate racial também motivou a criação da disciplina optativa “Organização do trabalho pedagógico e reeducação das relações étnico-raciais”. A docente aproveitou estrategicamente o processo de reformulação curricular do curso para propor uma disciplina vinculada ao seu departamento, levando em conta a necessidade de abordar como a legislação para as relações étnico-raciais pode configurar-se no espaço educacional, bem como o interesse em ofertar e ministrar tal debate na formação de professores/as.
Um fator relevante na institucionalização da perspectiva racial no curso de Pedagogia/UFPR trata-se da atuação do Neab, tendo com um dos fundadores o professor Paulo Vinícius. Desde sua constituição em 2004, o Núcleo propõe ações para a formação continuada de professores/as das redes públicas; realização de seminários e encontros formativos; elaboração de projetos e programas; inserção nas comunidades acadêmicas; monitoramento das políticas de ações afirmativas; formação de mestrandos/as e doutorandos/as em diferentes áreas; produção acadêmica e promoção de espaços de formação política. Evidenciamos também o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação das Relações Étnico-Raciais (ErêYá), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPR. Fundado em 2018 pela professora Lucimar, o ErêYá é composto por integrantes do Neab e do Observatório de Culturas e Processos Político-Pedagógicos da UFPR, desenvolvendo estudos, pesquisas e ações de extensão que problematizam a estrutura racial e a lógica da branquitude em práticas educacionais, sejam elas escolares ou não escolares.
A partir dos dados apresentados, observamos que o processo de institucionalização da ERER no currículo de Pedagogia da UFPR é resultado da atuação de docentes e núcleos de pesquisas que assumem a perspectiva racial como dimensão intrínseca das áreas de conhecimento, sobretudo professores/as negros/as que protagonizaram e disputaram espaço na estrutura curricular, como revela a professora Lucimar
[...] nós precisamos andar muito ainda para que a gente tenha de fato um currículo que garanta a premissa legal. Mas como a gente sabe que o currículo é um espaço de disputa, não é só uma questão legal. A gente precisa ter muito mais gente disputando o currículo. A gente precisa de muito mais gente convencida de que esse recorte é importante. Então acho que a gente está sempre em luta, e acho que a gente tem avançado. (Professora Lucimar, negra, UFPR, Diário de Campo, agosto de 2019).
O caráter coletivo e contínuo das lutas pela institucionalização da ERER no currículo do curso de Pedagogia é enfatizado pela professora. Estabelecer parcerias e apoios com o corpo docente, grupos e núcleos de pesquisas são premissas para a construção de um projeto institucional que reconheça a abordagem racial como dimensão estruturante da produção do conhecimento.
No que tange à UFSC, o curso de Pedagogia oferece a disciplina obrigatória intitulada “Diferença, estigma e educação” com 54 horas, ministrada na primeira fase do curso. A disciplina possui a seguinte ementa: “Teorias modernas e contemporâneas sobre o juízo perceptivo de si e do outro. Introdução ao estudo sistemático dos conceitos vinculados com os processos de diferenciação individual e social e sua repercussão no contexto escolar. Alteridade, diálogo e ética na Educação” (UFSC, 2018, p. 1).
A história de proposição desse componente curricular tem sua origem articulada ao processo de discussão das questões étnico-raciais no curso ocorrido em 2003. Nesse período, foram convidadas organizações ligadas aos movimentos sociais para compor o Colegiado do Curso de Pedagogia, incluindo a participação de membros do Núcleo de Estudos Negros10 (NEN). Essa organização social, vinculada ao Movimento Negro, teve importância primordial na inclusão do debate étnico-racial no currículo do curso de Pedagogia da UFSC.
A participação do NEN nas reuniões do Colegiado resultou na proposição de um Curso de Extensão realizado durante três semestres no interior da universidade. A atividade de extensão intitulada “Educação das relações raciais e práticas pedagógicas” foi ministrada por uma das professoras participantes da pesquisa, Vânia Beatriz Monteiro Silva, e membros do NEN. A articulação entre professores/as, gestão e organização social foi fundamental para a instauração de uma temática historicamente ausente do currículo do curso.
Paralelamente à oferta do curso de extensão, a professora Vânia, juntamente aos membros do NEN, iniciou um processo de negociação curricular, o qual resultou na aprovação da disciplina optativa intitulada de “Estudos sobre educação dos negros do Brasil”, passando a ser oferecida no segundo semestre de 2005. Estudantes de diferentes cursos realizaram a disciplina optativa, de acordo com a professora Vânia, além de profissionais das redes públicas de ensino interessados/as em discutir as questões étnico-raciais para contribuir com a atuação pedagógica.
Durante a reestruturação curricular do curso de Pedagogia, em 2007, a professora Vânia que já havia proposto a disciplina optativa, dessa vez estabelece uma aliança com a professora Ida Mara Freire, também participante da pesquisa. A partir dessa articulação, as duas professoras escreveram um “Manifesto Curricular” proferido em 2007, durante Assembleia de Colegiado, defendendo a inserção do debate étnico-racial na matriz curricular do curso. A proposta foi amparada nas desigualdades sociais e raciais brasileiras comprovadas por meio de investigações realizadas por pesquisadores/as e intelectuais referenciados/as nacionalmente. Além disso, as professoras defenderam a inserção do debate no curso levando em consideração a recente política de ação afirmativa criada pela UFSC.
Nessa conjuntura, as demandas pela reformulação curricular do curso de Pedagogia, o reconhecimento de estudantes que participaram das discussões no Colegiado e a participação na construção do “Manifesto Curricular” em defesa da inclusão dos conteúdos abordados na disciplina resultaram na aprovação da disciplina “Diferença, estigma e educação” ministrada pela professora Ida Mara.
Durante o processo de aposentadoria da professora Ida Mara, em 2015, a disciplina correu o risco de ser extinta do currículo do curso, sob a justificativa de que a professora responsável havia se aposentado. Nesse contexto, a professora Joana Célia dos Passos, que acabava de integrar o quadro efetivo docente, defendeu a manutenção da disciplina, ante o argumento de as disciplinas não serem responsabilidades de um/a professor/a, mas de integrarem o projeto de curso institucionalmente. Além disso, o argumento pela continuidade da disciplina aconteceu mediante as determinações trazidas pelas DCNERER, as quais exigem a inclusão da questão racial como parte integrante das matrizes curriculares dos cursos de formação de professores/as.
Diante disso, a disciplina foi mantida e a referida professora ficou responsável pelo oferecimento desde 2015. A partir desse ano, a professora iniciou um processo de alteração epistemológica na disciplina, conforme a demanda apresentada pelo curso de Pedagogia em debater com centralidade a dimensão racial na formação dos/as professores/as. Além disso, a professora Joana, juntamente ao Núcleo Docente Estruturante (NDE) propôs a substituição da disciplina “Diferença, estigma e educação” pela disciplina “Educação para as relações étnico-raciais11” durante ajuste curricular do curso. A substituição da disciplina foi aprovada nas reuniões e assembleias de colegiado em 2019, e recentemente aprovado na Câmara de Graduação da UFSC, com possibilidade de implantação no currículo no semestre de 2021/02.
No processo de institucionalização da ERER na UFSC, os eixos ensino, pesquisa e extensão foram imprescindíveis para fundamentar e manter a discussão no curso de Pedagogia, considerando que a temática no currículo teve origem com a proposição de um curso de Extensão com a participação de membros de organização vinculada ao Movimento Negro.
Outro elemento determinante na inserção da temática racial no curso de Pedagogia da UFSC trata-se do trabalho realizado pelo Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Diferença, Arte e Educação (Alteritas), fundado em 1996, pela professora Ida Mara Freire. Após sua aposentadoria, o grupo foi assumido pela professora Joana Célia dos Passos que atua na manutenção de um coletivo de resistência da UFSC, promovendo um conjunto de ações articulando ensino, pesquisa e extensão com vistas a reconhecer o protagonismo negro na construção do patrimônio cultural brasileiro.
A partir dos elementos apresentados, realçamos a importância do protagonismo de professoras negras na institucionalização e na manutenção da perspectiva racial no currículo de Pedagogia da UFSC, por meio da proposição de cursos, disciplinas, projetos, pesquisas, entre outras ações, em busca de tornar a dimensão racial como estruturante do processo de formação dos/as professores/as. A atuação dessas mulheres negras, articuladas a docentes, a grupos e a organizações sociais, determinou a entrada e a permanência de uma pauta urgente para o curso, a universidade e os/as futuros/as profissionais da educação.
Com relação à UFRGS, a matriz curricular de Pedagogia oferece a disciplina obrigatória “Educação e relações étnico-raciais”, com 30 horas de carga-horária, ofertada na 7ª etapa do curso. A ementa da disciplina considera:
Os processos educativos são instituídos e instituem-se em práticas socioculturais e, no caso brasileiro, as relações étnico-raciais demarcam um modo específico de expressão de preconceitos e discriminações, cotidianamente experimentados nos contextos escolares. Com caráter teórico-prático, compreender a história das relações étnico-raciais no Brasil em suas aproximações com a história da educação e as práticas escolares é o objetivo central dessa disciplina. A interculturalidade como chave de leitura e possibilidade de compreensão da experiência educativa e os povos indígenas e afro-brasileiros como tema central de estudo e reflexão. Inclui atividades práticas voltadas à formação de professores. (UFRGS, 2018, p. 17).
Conforme as entrevistas realizadas com docentes da UFRGS, a proposição e a aprovação da disciplina como obrigatória ocorreu por meio de um conjunto de fatores que envolveram movimentos sociais, professores/as, estudantes, técnicos/as, assim como órgãos do poder judiciário e legislativo do estado. Além disso, o processo articulou diferentes setores da universidade, conferindo ao ensino, à pesquisa e à extensão relevância significativa na mobilização da questão racial.
Destacamos inicialmente a atuação do Departamento de Educação e Desenvolvimento Social (Deds), vinculado à Pró-Reitoria de Extensão da UFRGS. A criação do departamento ocorreu em 1992 e visa ações para garantir o compromisso da universidade pública com os princípios democráticos de igualdades de direitos no âmbito da extensão universitária. De acordo com uma das professoras entrevistadas, Gládis Elise da Silva Kaercher, o departamento inaugurou um Programa de Educação Antirracista anterior a Lei Federal Nº 10.639/2003, desenvolvendo atividades na esfera da extensão. O Deds também engloba alguns núcleos de pesquisas, incluindo o Neab/UFRGS, criado em 2014, desenvolvendo atividades de ensino, pesquisa e extensão.
Foi no âmbito das ações de extensão pelo qual o debate étnico-racial ganhou visibilidade no interior da UFRGS, por intermédio do Programa de Ações Afirmativas para a População Negra nas Instituições Federais e Estaduais de Educação Superior (Uniafro). O programa, criado pelo Governo Federal em 2008, intentava financiar cursos de formação inicial e continuada, bem como produzir e disseminar materiais didáticos para a implementação da Lei Federal Nº 10.639/2003. A professora Gládis submeteu um projeto ao programa, sendo a Faculdade de Educação da UFRGS selecionada para oferecer o Curso de Aperfeiçoamento Uniafro - Política de promoção da igualdade racial na escola.
A professora Gládis relata: “O curso causou um barulho, e esse barulho veio pra dentro da universidade, porque a gente precisou pedir ajuda para a universidade. Esse barulho é tão intenso, esse racismo é tão forte, que ele nos fortalece” (Professora Gládis, negra, UFRGS, Diário de Campo, agosto de 2019). Portanto, a realização do curso de formação continuada mobilizou não somente pessoas idealizadoras do curso, mas também as redes de ensino envolvidas e a própria universidade que precisou responder aos questionamentos quanto à formação inicial dos/as professores/as.
Paralelamente ao Uniafro/UFRGS ocorreu um processo de fiscalização da Lei Nº 10.639/2003, iniciado em 2012, pelo Ministério Público de Contas do Rio Grande do Sul (MPC/RS). A auditoria das Leis Nº 10.639/2003 e Nº 11.645/2008 provocou uma movimentação na universidade que, embora tenha atribuições primordiais na efetivação dessas legislações, se ausentava do debate racial na formação inicial dos mais diversos cursos oferecidos pela UFRGS. Esse processo, para a professora Gládis, desencadeou uma pressão em professores/as da universidade, sobretudo na Faculdade de Educação, que decidiu iniciar um movimento de discussão curricular.
No âmbito do curso de Pedagogia, a reformulação curricular realizada em 2017 é um marco para as questões raciais na formação de professores/as. A proposta da disciplina foi elaborada por quatro professores/as com vínculos na Faculdade de Educação e, segundo as professoras entrevistadas, a disciplina proposta não provocou conflito porque havia um consenso entre os/as professores/as quanto à necessidade de inclusão da questão racial no currículo. Logo, a disciplina “Educação e relações étnico-raciais” foi aprovada como atividade obrigatória na Reformulação Curricular, tendo sua primeira edição no semestre 2018/0212.
Dessa forma, constatamos que o processo de institucionalização da ERER no curso de Pedagogia da UFRGS também ocorreu permeado pelas proposições formuladas por docentes negros/as, entidades e núcleos de ensino, pesquisa e extensão dentro e fora da universidade. Tais sujeitos e coletivos sociais atuaram no sentido de problematizar a estrutura curricular eurocêntrica, buscando descolonizar os conhecimentos ao pautar a perspectiva racial como intrínseca dos conteúdos que abrangem a formação de professores/as.
Perspectivas negras decoloniais no Sul: tecendo algumas considerações
Ao apresentarmos elementos sobre o processo de institucionalização da ERER nos currículos das três instituições, pretendemos visibilizar e reposicionar as possibilidades criadas para pautar a dimensão racial nos currículos atentando para a formação de professores/as antirracistas. As experiências demonstraram a insurgência da intelectualidade negra atuando nos espaços universitários de modo a interrogar e subverter as lógicas acadêmicas, trazendo para o currículo dimensões historicamente ignoradas.
Os conhecimentos, as teorias e as práticas exercidas pelos/as docentes negros/as participantes da pesquisa provocaram as alterações nos documentos curriculares dos cursos, como também a criação, a viabilização e a condução de propostas teóricas e metodológicas contemplando a abordagem racial no processo formativo de professores/as.
Identificamos nas três instituições disciplinas obrigatórias e optativas com ênfase na perspectiva racial. Ao analisarmos os conteúdos, as metodologias e as bibliografias das disciplinas, percebemos que elas priorizam a discussão das relações raciais no Brasil e os processos de socialização de crianças e de jovens no sistema educacional. Os componentes articulam o debate racial com outras dimensões que estruturam a sociedade, como sexualidade, gênero, classe, religião, entre outras, contribuindo para uma perspectiva interseccional. Sobre isso, a disciplina da UFPR destaca-se por inserir o debate da interseccionalidade como eixo articulador das discussões das marcações sociais. Além disso, as disciplinas também contemplam as legislações sobre as questões étnico-raciais e o ensino de história africana e afro-brasileira, bem como a proposição de criação de metodologias de trabalho com a Educação Básica, por exemplo materiais e intervenções didáticas para trabalhar com as questões étnico-raciais nas instituições.
As experiências de implementação da abordagem racial ocorreram de modos distintos, mas, ao mesmo tempo, apresentando aspectos similares nas três universidades. O protagonismo de intelectuais negros/as na proposição do debate racial no interior dos cursos resultando na criação de disciplinas obrigatórias e optativas com foco na educação das relações étnico-raciais foi constatado na UFPR, na UFSC e na UFRGS. Esse processo foi marcado pela atuação de organizações e grupos sociais disputando espaço curricular para a inclusão da abordagem racial; o trabalho de docentes negros/as e o reconhecimento de professores/as brancos/as assumindo a pauta nos colegiados e reformas curriculares; o ensino, a pesquisa e a extensão como eixos potentes no processo de enraizamento da ERER; e os tensionamentos provocados por estudantes reivindicando a importância da questão racial na sua própria formação. Tais elementos constituem perspectivas negras decoloniais, pensadas, elaboradas e praticadas por docentes negros/as no interior de universidades do Sul do Brasil.
Algumas singularidades caracterizaram as experiências nas três instituições como no curso de Pedagogia da UFPR que, estrategicamente, utilizou uma vaga em um concurso público para admissão de docente exclusivo para a discussão étnico-racial. A UFSC que contou com a participação de membros de uma entidade social vinculada ao Movimento Negro para mobilizar a discussão no interior do curso de Pedagogia, garantindo a oferta de uma atividade de extensão para, posteriormente, a proposição de uma disciplina obrigatória. No caso da UFRGS, a aprovação da disciplina obrigatória esteve ligada aos tensionamentos gerados por auditorias da Lei No 10.639/2003 promovidas pelo MPC/RS, além das atividades de extensão desenvolvidas no interior da universidade.
Outro elemento que aproxima os processos é a presença de mulheres negras atuando como docentes nas instituições. Nas três universidades, a pauta racial tem sido protagonizada por intelectuais negras que rompem com um ciclo subjugado às mulheres negras no Brasil, ocupando um lugar de agentes da produção do conhecimento. Como reconhece Gomes (2010, p. 500), “[...] são intelectuais, mais um outro tipo de intelectual”, uma vez que a produção de conhecimento dessas mulheres se origina na experiência social, articulada às comunidades e ao esforço coletivo de intervir criticamente na vida das pessoas. Considerando a geopolítica da região Sul, o desafio das professoras negras torna-se ainda mais complexo, na medida em que elas ocupam espaços delimitados pela branquitude. De modo contra-hegemônico, a atuação de intelectuais negras na UFRGS, na UFSC e na UFPR provocou alterações na estrutura curricular, nas abordagens teóricas, nas práticas pedagógicas, no próprio curso de Pedagogia, bem como nos demais departamentos e nos centros de ensino da universidade.
Importa realçarmos que o processo de institucionalização da ERER não esteve isento de disputas e de reações contrárias à perspectiva racial no curso ao desconsiderar a raça e o racismo como elementos estruturantes das relações sociais. Entre os obstáculos, destacamos: inserção tardia da questão racial como uma dimensão obrigatória na formação inicial dos/as professores/as das universidades; entraves dos trâmites burocráticos para aprovação de disciplinas nas reformas curriculares; riscos de descontinuidades das disciplinas obrigatórias de perspectiva racial; desconsideração da categoria racial na bibliografia das disciplinas integrantes da matriz curricular do curso mantendo a temática como exclusividade dos componentes específicos.
Embora as universidades em estudo apresentem possibilidades de descolonização dos currículos em uma perspectiva racial, identificamos um predomínio de paradigmas eurocêntricos e universalistas, desconsiderando os contextos raciais como constituintes e constituidores das relações sociais. Tais elementos demonstram a colonialidade enraizada nos currículos por meio da manutenção de uma bibliografia “clássica” que ignora a organização da sociedade, sobretudo a brasileira, erguida pelo trabalho escravo, controlado pela raça e pelo gênero. Logo, não é possível pensarmos as desigualdades sem interseccionalizar as categorias de classe, raça, gênero e sexualidade como mobilizadoras dos processos de opressão.
A despeito dos entraves e das disputas no processo de descolonização dos cursos de Pedagogia, identificamos as proposições e as alterações nas matrizes curriculares da UFPR, da UFSC e da UFRGS, como experiências potentes na mobilização de uma perspectiva de formação de professores/as comprometida com a reeducação das relações étnico-raciais, com a diminuição das desigualdades raciais e com a justiça social.
Nesse sentido, assumimos a educação para as relações étnico-raciais como um eixo estruturante e estruturador dos componentes curriculares e dos processos formativos desenvolvidos pelo curso. A dimensão racial, interseccionada com os demais sistemas de opressão, precisa, necessariamente, atravessar as discussões, as abordagens e os paradigmas definidos pelas diferentes áreas de conhecimento, buscando formar docentes posicionados e responsáveis por uma educação antirracista e emancipadora.