Introdução
A expansão do neoliberalismo, associada ao neoconservadorismo e à ascensão de governos populistas autoritários na América Latina, nas primeiras décadas do século XXI, demarcam o processo de avanço do neoconservadorismo no mundo ocidentalizado, haja vista que esse processo apresenta profunda semelhança com o transcorrido nos Estados Unidos, já no século XX. Como afirma Apple (2002, p. 57), o neoconservadorismo americano decorre da formação de um bloco hegemônico sob liderança dos neoliberais, “[...] o mais poderoso no seio da restauração conservadora”, em aliança aos neoconservadores, à nova classe média profissional e aos populistas autoritários.
Os estudos feitos por Lima et al. (2022) corroboram a compreensão do avanço do neoconservadorismo. Para os referidos autores e autora, o neoconservadorismo avança graças à formação de uma aliança em que a coalisão de forças se dá de modo tenso e não-homogêneo. No contexto brasileiro, essa aliança é demarcada pela predominância dos interesses de fundamentalistas religiosos e neoliberais. Indicam, ainda, que os fundamentalistas religiosos equivalem ao que Apple (2003) chama de populistas autoritários, sendo esse grupo que assume posições preponderantes em relação à política social e à educação, baseando suas ideias na “moralidade cristã”, principalmente quando se trata das questões relativas à gênero, à sexualidade e à família.
No cenário latino-americano, as reformas educacionais levadas a cabo pelos agentes políticos neoconservadores ferem o direito público à educação e colocam sob mira profissionais do ensino e comunidades de pesquisadores/as acusados/as de influenciar desvios de sexualidade e gênero em relação aos/às estudantes e forçá-los/as a conviver com outros sujeitos sem moral.
Políticas neoconservadoras postulam a vigilância sobre o trabalho docente e o ensino efetuado nas escolas, de modo a impedir que profissionais da educação abordem qualquer tema desviante ou conflitante com a moral cristã, a tradição e os valores patrióticos da nação. A defesa da educação domiciliar, entendida como direito das famílias de educar as crianças e os/as jovens sem frequentar às escolas acusadas de não oferecerem um ambiente adequado à conservação de valores morais cultivados pelas famílias de classe média e cristãs, é outra política que tem sido propagada e que tem atingido um número significativo de adeptos, incluindo a nova classe média e grupos religiosos no contexto latino-americano.
Assim, uma certa ordem naturalizada do mundo e da vida social pública e privada, calcada em valores patriarcais, racistas e xenofóbicos (APPLE, 2002, 2004), é constituída com a ascensão política de governos de direita neoconservadores que passaram a promover inúmeras reformas no campo educacional, em nome da retomada de valores tradicionais burgueses e cristãos. Tais discursos e ações de segmentos religiosos, governos populistas e setores midiáticos afetam diretamente a educação.
Contribuir na empreitada de enfrentamento ao neoconservadorismo é o objetivo deste estudo que evidencia a produção científica de análise das políticas educacionais neoconservadoras no que tange à temática da sexualidade. Para tanto, opera-se a análise do funcionamento do dispositivo sexualidade nas discursividades produzidas por autores/as latino-americanos/as que se dedicam ao estudo e à pesquisa do tema.
O estudo traz à tona os resultados de uma metapesquisa na qual se procedeu a identificação das perspectivas teórico-epistemológicas mobilizadas em produções científicas latino-americanas que analisam o tema sexualidade no contexto de avanço do neoconservadorismo. A seleção da amostra dos 35 textos analisados foi feita a partir de um levantamento de 219 publicações sobre o tema do neoconservadorismo, referente ao período de 2012 a 2022, realizado e disponibilizado por Voss (2022a).
Argumenta-se que a produção do dispositivo sexualidade se efetua mediante a formação de um campo político de disputas discursivas. Considera-se que as políticas educacionais em andamento no contexto latino-americano expressam o regime de governamentalidade moral das sexualidades que não se enquadram no padrão de normalidade. Regime que visa a conservação dos padrões morais em adesão às demandas de segmentos reacionários cristãos. Outras demandas estão em jogo, as quais se referem aos grupos sociais que representam diferentes performances sexuais e que escapam aos cerceamentos impostos pela moralidade neoconservadora.
Ao passo que a produção científica latino-americana tem se encarregado de contrapor-se às políticas educacionais neoconservadoras, pois age na desconstrução dos discursos neoconservadores, mobiliza uma crítica contundente aos padrões morais e às interdições políticas e pedagógicas que atingem os interesses e os direitos de grupos sexuais dissidentes na educação. Para tanto, perspectivas teórico-epistemológicas empregam e reverberam novos conceitos em relação aos corpos, aos gêneros e às sexualidades.
O dispositivo sexualidade e o governo dos corpos
Este estudo toma como base teorizações de Foucault (2019a, 2019b) e Butler (2018a, 2018b), filósofo e filósofa caracterizados como precursores do pensamento pós-estruturalista que desconstrói metanarrativas modernas, colocando em questão a produção discursiva e os modos de subjetivação gerados nas relações de poder-saber que definem um modo naturalizado de ser e existir na vida social. Produção de um sujeito moderno que serve de modelo ao conjunto das sociedades, definindo o que é ser e como existir de acordo com os padrões instituídos e reforçados pela cultura ocidentalizada, calcada no elemento europeu, branco, colonizador, capitalista, cis-heterossexual.
É indispensável, nas palavras de Foucault (2019b, p. 10), “[...] distinguir previamente a maneira pela qual, durante séculos, o homem ocidental fora levado a se reconhecer como sujeito”. Foucault explica que, desde o século XVIII, nas sociedades ocidentalizadas, proliferam práticas discursivas e não discursivas envolvidas pelas políticas de governo dos corpos. Segundo o filósofo, não se trata, efetivamente, da proibição das manifestações sexuais, mas, ao contrário, da necessidade crescente de fazer proliferar discursos sobre as sexualidades de maneira que se possa enquadrá-las em uma categorização do que é normal e anormal em termos de manifestação dos desejos e das experiências sexuais. Assim, a sexualidade foi constituída como campo moral, “[...] um conjunto de valores e regras de ação proposto aos indivíduos e aos grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos, como podem ser a família, as instituições educativas, as Igrejas” (FOUCAULT, 2019b, p. 32).
Foucault (2019b) problematiza a “hipótese repressiva” da sexualidade, pois entende que o governo da sexualidade não se limita às interdições das diversas experiências sexuais, mas afirma que a repressão, a censura e a negação são efeitos do regime de poder-saber-prazer pelo qual se passa a governar os corpos, torná-los visíveis, provocando a incitação ao dizer a verdade sobre o sexo como meio de condução das condutas individuais e coletivas, de modo a definir e instituir a normalidade, combater desvios e ajustar os corpos ao código moral verdadeiro.
Nesse sentido, tecnologias da confissão são empregadas no governo dos corpos e das sexualidades. Inicialmente, essas tecnologias fazem funcionar o poder pastoral propagado pelas igrejas cristãs e, posteriormente, essas práticas são incorporadas e se fortalecem mediante os conhecimentos das ciências modernas, criadas no século XIX, diante do surgimento da Medicina, da Psiquiatria, da Justiça Penal, da Pedagogia, entre outros campos científicos encarregados de dizer a verdade do sujeito moderno e de governar para a docilidade das condutas, das mentes e das almas. Entram em ação as confissões da carne que não permitem obscurecer o sexo, já que até sonhos e pensamentos devem ser revelados pela “[...] necessidade de regular o sexo por meio de discursos úteis e públicos e não pelo rigor de uma proibição” (FOUCAULT, 2019a, p. 28).
Governo da infância à velhice que põe em funcionamento normas morais de desenvolvimento sexual, via pastoral cristã, direito canônico e código civil. Todos centrados nas relações matrimoniais, na monogamia heterossexual, aliando família, igreja cristã, escola, Estado, poder judiciário, e demais instituições modernas - quartéis, hospitais, clínicas, fábricas - que formam e fazem funcionar a harmonia do sistema social capitalista, desde então.
O governo das sexualidades funciona, portanto, a partir de uma ordem moral sobre os corpos de indivíduos e grupos. Designa-se por moral a maneira pela qual o indivíduo ou a coletividade se submete a um princípio de conduta, obedece ou resiste a uma interdição ou a uma prescrição, respeita ou negligencia um conjunto de valores. A regulação moral das sexualidades permitiu a definição de normas de decência, a multiplicação de condenações judiciárias das perversões menores, a determinação das doenças mentais e o enclausuramento dos/as loucos/as, doentes e criminosos/as, a educação sexual das crianças no interior das famílias. O problema, segundo Foucault (2019b), é que a moral cerceia o corpo e negligencia pulsões e desejos, instituindo uma visão monolítica daquilo que compreendemos como verdade do corpo.
Butler (2018a) ressalta que o poder exercido sobre os corpos se conforma a uma matriz heterossexual de conceituação de gênero, sexualidade e desejo, um regime epistêmico e ontológico do sujeito sustentados pela “heterossexualidade compulsória”. Corpos são definidos e governados sob a lógica da estrutura binária que estabelece de modo estável a oposição “homem” e “mulher” como natureza e normalidade. Contudo, diz Butler (2018a), que não faz sentido definir gênero e sexo como categorias compulsórias, em outras palavras, entender o gênero como interpretação cultural do sexo vinculado à natureza sexuada ou um sexo natural. O corpo é em si mesmo uma construção e não um instrumento passivo à espera de uma definição de gênero ou sexualidade. Gêneros e sexualidades são constituídos discursivamente por meio de atos performativos que produzem os corpos e os compelem a se posicionarem no interior ou exterior de uma categorização limitadora. Logo, cabe compreender os corpos e as sexualidades como performances que agem na naturalização e na conformação dos códigos artificializados pela imposição de um padrão cultural hegemônico ou que escapam a eles, produzindo sexualidades ditas anormais.
É no intuito de normalizar os corpos desviantes que discursos e políticas tornam alguns corpos dotados de verdade e os transformam em corpos úteis, enquanto outros são considerados desajustados e impelidos ao exterior da vida social, afastados e discriminados por não se adequarem aos códigos morais e sociais hegemônicos. Logo, o direito de existir passa a ser a reivindicação visceral dos corpos precarizados, dos sujeitos e das coletividades abjetados. Como afirma Butler (2018b):
Quando corpos se juntam, na rua, na praça, ou em outras formas de espaço público (incluindo os virtuais), eles estão exercitando um direito plural e performativo de aparecer, um direito de que afirma e instaura o corpo no meio do campo político e que, em sua função expressiva e significativa, transmite uma exigência corpórea por um conjunto mais suportável de condições econômicas, sociais e políticas, não mais afetadas pelas formas induzidas de condição precária. (BUTLER, 2018b, p. 17).
Butler (2018b) sugere que a performance produzida pelos corpos reunidos em assembleias públicas pode ser entendida como expressão nascente e provisória da soberania popular. Corpos que, juntos, formam redes solidárias de resistência, ao exporem a dimensão da carência de apoio a que estão forçados a enfrentar. Combatem, assim, a política perversa de precarização das existências imposta por condições sociais, políticas e econômicas que priorizam o avanço sem precedentes da expropriação dos corpos dissidentes.
E, no atual contexto de avanço do neoliberalismo associado ao neoconservadorismo em que se ampliam e agravam essas contingências de precarização, torna-se fundamental trazer à tona e multiplicar estudos e pesquisas que mobilizam comunidades epistêmicas filiadas às lutas e aos interesses dos grupos subalternizados, descartados, violentados pela expropriação do direito a existir e a gozar da própria condição digna de humanidade que lhe é negada. Comunidades científicas que investem esforços na interpretação/tradução das políticas neoconservadoras circunscritas ao governo moral dos corpos e das sexualidades assumem um posicionamento ético e ontológico politicamente afirmativo do direito de existir e desfrutar dignamente da vida.
Assim, comunidades epistêmicas de pesquisadores/as latino-americanos/as têm contribuído, substancialmente, na análise das políticas educacionais contemporâneas que afetam a educação pública no Brasil, no tocante à liberdade de ensinar, aprender e conviver diferentemente nas escolas.
Discursividades latino-americanas acerca da sexualidade nas políticas neoconservadoras
Em aliança às comunidades científicas empenhadas na leitura dos tempos presentes de avanço do neoconservadorismo associado ao neoliberalismo que afetam o campo educacional, opera-se este estudo. Nele, apresentam-se os resultados alcançados por meio de uma metapesquisa na qual foram analisadas perspectivas teórico-epistemológicas distintas mobilizadas em discursividades latino-americanas que se encarregam da discussão do tema sexualidade. Como afirma Mainardes (2018):
Os resultados da metapesquisa podem contribuir para a compreensão da pesquisa de determinado campo, em um contexto espaço-temporal específico. A partir dela, é possível identificar as tendências teórico-epistemológicas, as lacunas, as fragilidades e os pontos fortes das pesquisas que o envolvem. (MAINARDES, 2018, p. 4).
Mainardes (2021) também salienta que o uso dessa metodologia não visa comparar resultados ou apenas sintetizá-los, mas, sim, compreender os meandros dos estudos e das pesquisas em relação às abordagens, à fundamentação teórica empregada, como as análises desenvolvidas no campo das políticas educacionais sobre uma temática específica, neste caso, a sexualidade engendrada no contexto de avanço do neoconservadorismo nas políticas educacionais contemporâneas.
Outro aspecto referendado por Mainardes (2022) quanto às pesquisas no campo das políticas educacionais se refere à ligação entre as metodologias usadas na pesquisa para construção do conhecimento (epistemologia) e as concepções éticas e ontológicas implicadas nesse processo. Com base em Masson (2022), Barad (2007) e outros, o autor assinala a definição de uma perspectiva ético-ontoepistemológica, a qual tem em vista a indissociabilidade entre ética-ontologia e epistemologia na prática e na produção do conhecimento científico. Mainardes (2022) esclarece que
[...] o desafio colocado aos pesquisadores é integrar a ética, a ontologia e a epistemologia, em termos de conteúdo e forma, em outras palavras, verificar se esses elementos estão coerentes e articulados na pesquisa. Um ponto de partida importante é compreender que a teoria (ou teorias) que fundamenta(m) a pesquisa está articulada a matrizes epistemológicas específicas e a perspectivas ontológicas e éticas. A perspectiva ontológica envolve a cosmovisão do pesquisador, bem como a explicitação de conceitos fundamentais da pesquisa. A clareza do pesquisador a respeito dessas questões é fundamental para que ele possa operar com maior lucidez, discernimento e coerência com as perspectivas ontoepistemológicas. (MAINARDES, 2022, p. 5).
A explicitação das perspectivas teórico-epistemológicas empregadas nas pesquisas e nos estudos científicos quanto ao tema aqui proposto vai, portanto, ao encontro dessas orientações e definições ético-ontoepistemológicas, posto que o material empírico analisado foi extraído dos trabalhos desenvolvidos por Voss (2022a, 2022b). A partir do levantamento feito pela citada autora, o qual reuniu um conjunto de 219 artigos que tratam do tema neoconservadorismo e as políticas educacionais neoconservadoras, publicados em revistas nacionais e internacionais, no período de 2012 a 2022, realizou-se um recorte metodológico para seleção e organização da amostra da pesquisa aqui apresentada sobre a produção científica latino-americana na qual foi identificada a abordagem do tema sexualidade ou temas afins - referentes à gênero, família, religião, moral - relacionados às políticas educacionais neoconservadoras. O que delimitou a composição de uma amostra de 35 artigos. Na Tabela 1, apresenta-se a sistematização da amostra trabalhada no que se refere ao local de edição e ao número de artigos de cada revista usada na pesquisa.
Periódicos | Local de edição | Total de artigos |
---|---|---|
Práxis Educativa | Ponta Grossa (Paraná, Brasil) | 5 |
FAEEBA | Salvador (Bahia, Brasil) | 2 |
Estudos Feministas | Florianópolis (Santa Catarina, Brasil) | 2 |
Revista Brasileira de Educação (RBE) | Brasil | 2 |
Linhas Críticas | Brasília (Distrito Federal, Brasil) | 2 |
Plural | São Paulo (São Paulo, Brasil) | 2 |
Jornal de Políticas Educacionais | Curitiba (Paraná, Brasil) | 1 |
e-Curriculum | São Paulo (São Paulo, Brasil) | 1 |
Educação | Santa Maria (RS, Brasil) | 1 |
Educação | Porto Alegre (RS, Brasil) | 1 |
Ibero-Americana de Estudos em Educação | Araraquara (São Paulo, Brasil) | 1 |
Educação Teoria e Prática | Rio Claro (São Paulo, Brasil) | 1 |
Educação e Formação | Ceará (Ceará, Brasil) | 1 |
Espaço do Currículo | João Pessoa (Paraíba, Brasil) | 1 |
Educar em Revista | Curitiba (Paraná, Brasil) | 1 |
Educação em Revista | Belo Horizonte (Minas Gerais, Brasil) | 1 |
Ciências Sociais e Religião | Campinas (São Paulo, Brasil) | 1 |
Cadernos de Campo | Araraquara (São Paulo, Brasil) | 1 |
Educação & Realidade | Porto Alegre (Rio Grande do Sul, Brasil) | 1 |
Brasileira Estudos Pedagógicos | Brasília (Distrito Federal, Brasil) | 1 |
Revista Educação e Políticas em Debate (REPOD) | Uberlândia (Minas Gerais, Brasil) | 1 |
Religião e Sociedade | Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, Brasil) | 1 |
Sisyphus Journal of Education | Lisboa (Portugal) | 1 |
Mora | Buenos Aires (Argentina) | 1 |
Población y Sociedad | Santa Rosa (Argentina) | 1 |
Exitus | Santarém (Uruguai) | 1 |
Total geral | 35 |
Fonte: Elaborada pelas autoras (2022).
Conforme indica a Tabela 1, a amostra reúne um conjunto de 26 periódicos, dos quais 22 correspondem a revistas brasileiras, duas a revistas editadas na Argentina, uma no Uruguai e uma em Portugal, sendo todas as publicações usadas na pesquisa de autores/as da América Latina. Ressalta-se que a revista brasileira com maior número de publicações sobre a temática analisada é a Práxis Educativa, periódico que se destaca no acúmulo de estudos sobre o neoconservadorismo no campo das políticas educacionais.
Percebe-se que o contingente de artigos produzidos por pesquisadores/as brasileiros/as é maior (31 textos) em relação à produção de outros/as advindos dos demais países latino-americanos (quatro textos). Observou-se ainda que, nos artigos analisados, as autoras argentinas e o autor uruguaio fazem referência às políticas educacionais movimentadas por grupos neoconservadores brasileiros. Indícios que levam a pensar que o contexto brasileiro tem chamado a atenção de comunidades científicas oriundas de vários países, provavelmente em virtude de configurar-se um avanço mais ofensivo do neoconservadorismo no Brasil no que tange aos movimentos de grupos reacionários e de governos de direita que tem promovido políticas educacionais antidemocráticas e excludentes em relação aos diferentes gêneros e sexualidades, como se evidencia nas análises seguintes.
Quanto à identificação e à análise das perspectivas teórico-epistemológicas, levou-se em conta as indicações feitas pelos/as próprios/as autores/as em seus textos e, quando as perspectivas não foram indicadas diretamente, considerou-se o desenvolvimento da discussão, os conceitos trabalhados e o referencial teórico usado por cada autor/a no decorrer do artigo. A análise das perspectivas teórico-epistemológicas se compôs da forma como mostra a Tabela 2.
Fonte: Elaborada pelas autoras (2022).
Nos estudos latino-americanos referentes às políticas educacionais neoconservadoras que abordam a temática sexualidade, observa-se a predominância das teorias pós-estruturalistas, principalmente mediante o uso de conceitos de Foucault e Butler, filósofos reconhecidos mundialmente que oferecem contribuições significativas para a produção do pensamento no campo da análise do discurso e dos estudos de gênero e sexualidade voltada à desconstrução de metanarrativas pautadas na lógica da modernidade. Como afirmado anteriormente, na perspectiva teórico-epistemológica pós-estruturalista interessa compreender que corpo, gênero e sexualidade são produções discursivas e culturais decorrentes das relações de poder-saber criadas na vida social e que disputam um estatuto de verdade e governo dos corpos frente a um padrão de normalização moral.
Destaca-se, também, o uso da perspectiva materialista histórico-dialética nos estudos analisados. Pode-se dizer que essa evidência remete à persistência de uma tradição acadêmica que tende a privilegiar o conceito de ideologia ao conceber que as condições econômicas refletem a expressão de consciência dos sujeitos ou a falta dela, supondo estarem dados a priori e definitivamente “[...] o sujeito humano, o sujeito do conhecimento e as formas de conhecimento neles impressas pelas condições econômicas” (CASTRO, 2016, p. 296). No que tange à questão da sexualidade, os estudos em que se emprega tal perspectiva reforçam a compreensão do avanço do neoconservadorismo como expressão de conflitos deflagrados entre grupos de direita e esquerda que representam demandas sociais opostas em relação ao estado democrático.
A perspectiva pluralista é empregada em um número significativo de estudos. O pluralismo configura-se na perspectiva teórico-epistemológica que engloba correntes teóricas distintas para a construção do ato reflexivo. A produção do pensamento decorre de um posicionamento epistemológico assumido pelo/a investigador/a e de um enfoque epistemetodológico usado como guia nas análises que faz das políticas educativas (TELLO; MAINARDES, 2015).
Alguns estudos caracterizam-se pelo uso de conceitos e teorias distintas. Contudo, o nível da abstração limita-se à descrição de eventos e ideias sem que seja possível identificar neles um alinhamento aprofundado e coerente dos conceitos e das teorias indicadas, o que leva a categorizá-los como estudos sem perspectivas teórico-epistemológicas claramente definidas.
Com relação aos estudos que recorrem às perspectivas dos estudos feministas, multiculturalismo decolonial e intercultural crítica, percebe-se que o número de artigos é bastante reduzido. Talvez, estudos embasados nessas perspectivas ainda não tenham alcançado um desenvolvimento significativo no contingente da produção científica latino-americana que aborda o tema em questão. Contudo, cabe ressaltar que as novas perspectivas são extremamente relevantes por indicarem que “[...] estudos de gênero, sexualidade, etnia, raça constituem uma reviravolta epistêmica e política pela ótica das diferenças, entrecruzando as relações políticas, sociais e culturais de modo mais abrangente e contextualizado” (VOSS, 2022b, p. 14).
Com relação à análise das abordagens do tema sexualidade, foi possível identificar um conjunto de enunciados comuns nas discursividades latino-americanas presentes nos artigos pesquisados. Essa análise permitiu fazer o cruzamento das abordagens a partir da construção de categorias, assim denominadas: (1) Família, fundamentalismo cristão e pânico moral; (2) Escola sem Partido; (3) Movimentos sociais relativos à defesa da pluralidade de gênero e sexualidade; (4) Reformas na legislação educacional; (5) Fóruns internacionais de produção de políticas de combate às desigualdades de gênero e sexualidade, conforme especificado na Tabela 3.
Fonte: Elaborada pelas autoras (2022).
Observa-se que a produção científica efetuada por autores/as latino-americanos/as, alinhada tanto à perspectiva teórico-epistemológica pós-estruturalista, materialista dialética, pluralista quanto às demais identificadas neste estudo, recorre a enunciados comuns, sobressaindo as discussões e as reflexões relativas à influência dos valores morais preconizados pelas demandas provenientes de segmentos que defendem a família tradicional formada pelo matrimônio monogâmico, binário e heteronormativo e os dogmas cristãos. O que é interpretado como efeito do neoconservadorismo e do crescimento de um fundamentalismo religioso altamente excludente nas sociedades ocidentais.
Os estudos também apontam o avanço do neoconservadorismo no campo educacional no que concerne à regulação de políticas de gênero e sexualidade mediante reformas nas legislações educacionais. Reformas que são efetuadas por meio de programas e ações dos Estados. No contexto brasileiro, uma das políticas educacionais mais citadas nos artigos refere-se à ação dos governos neoconservadores de direita na reformulação dos currículos com a retirada dos temas transversais como a sexualidade, o que reflete o endossamento da chamada “ideologia de gênero” preconizada pelo movimento Escola sem Partido1.
Foi possível identificar a tendência à afirmação do caráter repressor das políticas educacionais neoconservadoras. Estudos que apresentam como foco da discussão da temática sexualidade, a interferência do movimento Escola Sem Partido e a preconização da “ideologia de gênero” como ações políticas da direita que visam a defesa de demandas de segmentos religiosos e setores conservadores propagadores da moralidade cristã e de valores tradicionais das famílias heteronormativas e monogâmicas. Discursos que disseminam um clima de pânico moral e a repressão às sexualidades tidas como anormais. Uma dinâmica de controle dos corpos e das populações por meio de diversas instituições, em especial a escola.
A institucionalização da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), em 2017, é constantemente indicada como política educacional que reporta ao avanço do neoliberalismo associado ao neoconservadorismo nos artigos analisados. Por meio da BNCC, determina-se a execução de reformas nos currículos da Educação Básica brasileira, entre elas, o enxugamento da carga horária dos componentes de humanidades e a expansão das áreas do conhecimento do Português, da Matemática e do Inglês, ênfase na formação de habilidades e competências, na incorporação das Tecnologias da Informação e da Comunicação e em metodologias operacionais no trabalho pedagógico, principalmente no Ensino Médio (BRASIL, 2018). Em alinhamento à BNCC, novas Diretrizes Curriculares de Formação de Professores/as editadas em 2019 e 2020 foram impostas aos cursos de Pedagogia e Licenciaturas de modo a interligar a profissionalização docente aos objetivos de aprendizagem e metas previstas para a Educação Básica.
É recorrente a ideia da existência de embates políticos ocorridos em função de propostas e reivindicações distintas, porém ambas baseadas na defesa da democracia e no papel do Estado como regulador da vida social. São indicados fóruns internacionais promovidos, principalmente, por agências bilaterais como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), que foram precursoras das políticas de igualdade de gênero e sexualidade. Os movimentos sociais dissidentes, principalmente de feministas e de pessoas trans, também são, reiteradamente, apontados como precursores das lutas pelo direito à representatividade social e legal, o combate à violência e uma educação voltada à diversidade de gênero e sexual.
Considerações finais
Buscou-se, nesta pesquisa, analisar como se configura o dispositivo sexualidade nas produções científicas desenvolvidas por pesquisadores/as latino-americanos/as. A partir de Foucault e Butler, compreende-se que o dispositivo sexualidade é produzido e entra em funcionamento na produção científica latino-americana em resposta às políticas neoconservadoras no campo educacional. É no bojo dessas relações de poder-saber que as disputas por veracidade se intensificam entre forças reacionárias e neoconservadoras e forças transgressoras e desviantes de produção normalizadora de gêneros e sexualidades que encerra os corpos em unidades homogêneas e pares antagônicos.
Logo, é preciso perceber que os conflitos são inerentes ao processo político de disputas entre demandas e que estas são produtoras do que se diz e do que se atribui veracidade. Não se trata, por conseguinte, da repressão às sexualidades, mas, sim, da intensificação das práticas discursivas e não-discursivas que incidem na regulação das condutas individuais e coletivas.
O acirramento das relações de poder-saber no campo das políticas educacionais decorre das disputas entre discursos que preconizam o ajuste da educação às demandas neoliberais e neoconservadoras, confrontadas pelos movimentos sociais de grupos dissidentes e comunidades científicas de educadores/as e pesquisadores/as que têm se posicionado firmemente em defesa da autonomia e da democracia, denunciando a precarização das condições de vida e de trabalho, das políticas públicas e o cerceamento dos direitos sociais, como a educação. Voss (2022b) afirma:
[...] agentes sociais, como pesquisadores/as e comunidades científicas diversas e espalhadas pelo mundo, têm empreendido esforços na leitura dos acontecimentos decorrentes de discursos e políticas neoconservadoras. Para isso, operam diferentes perspectivas epistemológicas, enfoques teóricos e procedimentos metodológicos específicos em estudos e pesquisas. (VOSS, 2022b, p. 3).
Entende-se que o estudo realizado e apresentado neste texto corrobora a compreensão de que qualquer movimento para fora das estruturas sociais de dominação deve privilegiar o debate acerca da produção da sexualidade e das políticas que incidem na educação dos corpos de modo a desnaturalizar a organização binária e cis-heteronormativa.
É inegável que, por muitas vezes, os corpos escapam, agenciam novos desejos, novas subjetividades, outras formas de pensar e sentir a vida. Movimentos políticos que colocam em ação novos saberes, novas técnicas, novos comportamentos, novas formas de relacionamento e novos estilos de vida, desestabilizando regimes de verdade cristalizados. Em suma, trata-se de uma desordem cada vez mais perturbadora que evidencia a relevância dos estudos sobre a temática da sexualidade no campo de análise das políticas educacionais.