Introdução
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças
Entre eles, considero a enorme realidade
O presente é tão grande, não nos afastemos
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
(Carlos Drummond de Andrade)
A historicidade da educação brasileira está assinalada, de acordo com Saviani (2020b), em linhas gerais, pela precarização, vislumbrada em quatro eixos basilares: protelação, filantropia, fragmentação e improvisação. A protelação implica o adiamento constante do enfrentamento dos problemas educacionais sérios. Como exemplo, pode-se citar a eliminação do analfabetismo. A filantropia diz respeito à manutenção de um Estado mínimo. Entretanto, como regulador, o Estado, nessa perspectiva, é aquele que controla por meio das avaliações e normatizações curriculares, porém transfere à sociedade a reponsabilidade pela manutenção e garantia da qualidade da educação. A fragmentação se verifica pelas incontáveis medidas que se sucedem e se sobrepõem, ou seja, é marcada pela descontinuidade administrativa. A improvisação, por sua vez, se manifesta no fato de que, para cada aspecto relevante, se busca uma resolução imediatista, como aprovação de uma emenda constitucional ou portaria, sem atentar para sua eficaz necessidade e/ou sua correlação com outras medidas. A soma desses quatro aspectos tem como resultado a precarização da educação brasileira (SAVIANI, 2020b).
Saviani (2020b) adverte que essas limitações sinalizadas não passaram ilesas aos profissionais da educação do Brasil que, por meio de uma série de mobilizações, há décadas, inclusive no campo acadêmico, tentam superar esses limites. De acordo com o autor, especialmente a partir do segundo (2007-2011) mandato do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o protagonismo dessas lutas tornou-se mais visível, motivo que culminou na elaboração do Sistema Nacional de Educação (SNE) e do novo Plano Nacional de Educação (PNE). No entanto, quando se criou a expectativa da destinação de parcela considerável dos recursos do pré-sal do petróleo para a educação e respectiva concretização do PNE, sobreveio o golpe civil-midiático-parlamentar-empresarial de 2016, que destituiu e presidenta legitimamente eleita Dilma Vana Rousseff, e a educação se viu em um retrocesso de décadas (SAVIANI, 2020b).
Esse retrocesso pode ser vislumbrado em uma série de políticas, medidas e práticas que permite afirmar que tal fenômeno não é fruto do acaso, mas de ações planejadas de um Estado Neoliberal. Pesquisas mais recentes têm medido o tamanho do fosso: o momento atual inaugura uma nova fase da ofensiva das forças do capital sobre o trabalho, chanceladas pelo interesse financeiro da burguesia brasileira e estrangeira sobre o ensino básico e superior no Brasil, além da aliança dos setores neoliberais e neoconservadores no aparelho estatal, que tem na mercantilização e na moralização a dupla de ataques principais à educação (SILVA; MACHADO; SILVA, 2019).
Batista et al. (2020) veem no Projeto Escola sem Partido, na Reforma do Ensino Médio e na promulgação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) o tripé dos retrocessos. Afinal, trata-se de um projeto neoliberal, estruturado por uma elite que permanece no poder a partir da sustentação e reprodução da desigualdade social. Portanto, o avanço dessas políticas está relacionado não apenas ao domínio de um grupo conservador, mas também e diretamente à manutenção do modo de produção capitalista (BATISTA et al., 2020). Tal conclusão é comungada por Castro Neta, Cardoso e Nunes (2018). Para esses autores, em um Estado Neoliberal, não há interesse na construção de uma sociedade igualitária e emancipada. Ao contrário, o objetivo é subordinar, ainda mais, a classe trabalhadora a um sistema que a explora e subjuga expressiva e cotidianamente. A afinidade entre os interesses do governo e dos empresários não é gratuita. Isso pode ser evidenciado no lugar que esses grupos possuem no centro do poder: com posição beneficiada na disputa dentro do campo educacional, impõem uma dependência da agenda educacional às proposições mercadológicas, que reproduzem, tão-somente, os interesses neoliberais (BEZERRA; ARAÚJO, 2017). Em outras palavras, ao permanecerem nessa posição privilegiada, expandem as possibilidades de atuação e variam as formas de abocanhar os fundos públicos da educação (PIOLLI, 2019).
Em síntese, a atual ofensiva golpista direcionada ao campo da educação é assinalada: a) pelo encalço àqueles que contestam as reformas; b) por severos e contínuos cortes no orçamento da educação; c) pela solidificação da racionalidade mercadológica na gestão escolar, tendo influência direta nos currículos escolares. Desse modo, o capital realiza dois movimentos sincronizados: de um lado, busca elevar seus lucros, por meio da espoliação dos recursos públicos destinados à educação; paralelamente, desempenha o controle ideológico, por meio da desqualificação dos conhecimentos mais desenvolvidos (científico, artístico, filosófico e humanístico) produzidos pela humanidade e que deveriam ser o aspecto nodal na formação qualificada da classe trabalhadora (LOMBARDI; LIMA, 2018).
Diante do exposto, este artigo objetiva elencar uma galeria de perdas para a educação brasileira, após o golpe civil-midiático-parlamentar-empresarial de 2016, que destituiu e presidenta eleita Dilma Vana Rousseff. Reafirma que o conjunto de políticas e práticas listado é fruto de medidas do Neoliberalismo, uma doutrina socioeconômica contrária à democracia e facilitadora da conservação de sistemas políticos totalitários, que prevê o esfacelamento dos direitos sociais (CHAUÍ, 2020; DARDOT; LAVAL, 2016), dentre os quais a educação. Para tanto, as discussões organizam-se da seguinte forma: inicialmente, são apresentados aspectos elementares da racionalidade neoliberal e, em seguida, são analisadas uma série de ações e políticas educacionais do período de 2016 a 2022.
Considerando o contexto atual, demarcado pelas consequências de anos de fragilização democrática, recrudescimento de políticas neoliberais e ultraconservadoras, esta pesquisa justifica-se por ser uma pequena contribuição que segue a contrapelo das estratégias neoliberais e que reitera a educação pública enquanto direito humano, inegociável, que deve permanecer no centro da luta da classe trabalhadora.
A ofensiva neoliberal e seu modus operandi
Em A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, Pierre Dardot e Christian Laval (2016) afirmam que o neoliberalismo, gestado ao final da década de 1930 e implementado com contundência a partir da década de 1970, radicalizou ainda mais o modo de produção capitalista, pois adquiriu uma dimensão totalizadora, abrangendo todas as esferas da existência humana. Nessa perspectiva, essa racionalidade não se reduz apenas a uma ideologia ou a um tipo de política econômica: trata-se de sistema normativo que tanto ampliou sua influência no mundo inteiro como expandiu a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida. São pilares do neoliberalismo: o deslocamento do papel do Estado de bem-estar social, agora comprometido exclusivamente com os interesses do capital, as privatizações, o ataque aos direitos sociais, a abstenção eleitoral, a dessindicalização, dentre outros. É uma racionalidade que prevê a destruição da coletividade emancipada, crítica, esta que é a condição sine qua non pela luta contra o próprio neoliberalismo (DARDOT; LAVAL, 2016). Enfim: “O Neoliberalismo, no singular, é uma estratégia política que visa inimigos perfeitamente identificáveis: o socialismo, o sindicalismo, o Estado-providência; tudo o que se assemelhe, de perto ou de longe, a dirigismo e coletivismo” (DARDOT et al., 2021, p. 135).
Vladimir Safatle (2021) argumenta que a ideia corriqueira de que o neoliberalismo arrogue para si menor intervenção do Estado é falsa. Para o autor, o neoliberalismo é uma engenharia social, consiste no triunfo do poder estatal, uma vez que o Estado atua para despolitizar a sociedade, recurso empregado para que a política não interfira na ação da economia. Além disso, segundo o autor, submeter-se a essa racionalidade implica uma recusa ao questionamento a respeito da autonomia do próprio discurso econômico em relação aos interesses políticos (SAFATLE, 2021).
O neoliberalismo ataca direitos sociais conquistados pela classe trabalhadora, alimenta-se de diferentes estratégias de ação e utiliza-se de alianças com as oligarquias locais tendo como alvo coletivos populacionais. Essas práticas almejam a defesa da ordem mundializada do capital, um regime político antidemocrático, com a consolidação de uma liberdade que assegure nada mais que o empreendedorismo e o consumo (DARDOT et al., 2021).
Galeria de perdas
Em face das ponderações do item anterior é que se pode analisar os fenômenos a seguir catalogados. Reitera-se que o objetivo deste estudo é elencar uma galeria de perdas para a educação brasileira, após o golpe de 2016. Argumenta-se que tamanho retrocesso não se dá ao acaso, mas, antes, é fruto da racionalidade neoliberal.
O critério adotado para compor esta galeria foi a abrangência, ou seja, o alcance nacional das políticas e medidas, dentro do limite temporal de 2016 a 2022, que serão, por sua vez, dispostas por afinidade temática e em ordem cronológica para melhor compreensão. Convém salientar, no entanto, que os fenômenos são numerosos e, não raro, ocorrem de forma simultânea. Trata-se, por conseguinte, de um conjunto de ações que se intercambiam e se interrelacionam que desafiam, inclusive, uma organização didática.
Assim, metodologicamente, esta pesquisa está classificada da seguinte maneira: circunscreve-se em natureza básica, com abordagem qualitativa, explicativa quanto aos objetivos e com procedimento bibliográfico-documental. Essa categorização pode ser assim resumida, em conformidade aos estudos de Severino (2007), uma vez que o estudo apresenta uma série de considerações que podem ser usadas em pesquisas futuras; analisa o problema não se restringindo a dados numéricos, mas com especial atenção à interpretação dos fenômenos; ambiciona contribuir com o aprofundamento do conhecimento de uma determinada realidade, neste caso, a interferência da racionalidade neoliberal na educação em um período especifico e, por fim, a junção dos procedimentos foi necessária, uma vez que: a) as fontes do estudo estão nos livros, nas teses, nas dissertações e nos artigos utilizados para a fundamentação da pesquisa; b) os documentos listados constituem corpus para pesquisa, uma vez que não sofreram tratamento analítico semelhante a esta proposta (SEVERINO, 2007).
Infância, alfabetização, leitura e literatura
A formação das crianças foi alvo de ataques das mais diversas esferas. Para que estes sejam mais bem compreendidos, é preciso rememorar um movimento que tomou bastante corpo no Brasil nos últimos anos: a censura. Em 2017, além da extinção do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), consubstancia-se uma verdadeira caça às bruxas à literatura infantil, prática censória que permeia desde as redes sociais ao Ministério da Educação (MEC). O exemplo maior ocorreu na gestão de José Mendonça Bezerra Filho, ex-ministro da Educação do governo Michel Temer, com a retirada do livro Enquanto o Sono Não Vem, de José Mauro Brant das escolas públicas do país, sob alegação de que a obra aborda o tema do incesto inadequadamente (BRASIL, 2017b). Melo (2020) defende que tal fenômeno é consequência de uma sociedade autoritária e que o silenciamento de obras que tocam em temas sensíveis, polêmicos, não redundará no desaparecimento dos problemas tematizados nos livros. Além disso, enfatiza que a sociedade que censura é
[...] a mesma sociedade que não denuncia casos de abusos contra crianças e adolescentes. O resultado é que as meninas e mulheres permanecem silenciadas e com as marcas das violências por baixo dos muros das torres, das cobertas, dos telhados das casas e dos discursos das “famílias do bem”, costumeiramente aliadas ao discurso religioso, prometendo proteção. (MELO, 2020, p. 87).
Em 2018, foi encerrado o Pacto Nacional para a Alfabetização na Idade Certa (Pnaic), política para alfabetização que, duplamente, dirigia uma formação continuada para professores alfabetizadores, por meio de parcerias com universidades federais, bem como ofertava um acervo de obras de literatura infantil de notória qualidade estética.
Em julho de 2019, o MEC extinguiu do Conselho Consultivo do Plano Nacional do Livro e Leitura - PNLL, por meio do Decreto No 9.930, de 23 de julho de 2019 (BRASIL, 2019b), o que fez alterar o Decreto Nº 7.559, de 1 de setembro de 2011, que dispõe sobre o PNLL (BRASIL, 2011). Mais especificamente, abole a representatividade de instâncias que ajudam no planejamento de estratégias para o incentivo à leitura no país. Até julho de 2019, 17 Conselhos tiveram a representatividade solapada. Antes da extinção, esses 17 colegiados somavam 201 vagas com membros das mais variadas instâncias sociais que cooperavam na elaboração e implementação de políticas públicas. Os decretos diminuíram quase pela metade a participação de representantes da sociedade civil, perfazendo um total de 104 vagas (ANDRADE, 2019).
Em 2019, a intitulada Política Nacional de Alfabetização (PNA) foi instituída pelo Decreto Nº 9.765, de 11 de abril de 2019 (BRASIL, 2019a). Ela está integrada a um projeto político-ideológico neoliberal e ultraconservador e está estrategicamente convergente a outras medidas de aniquilamento dos avanços democráticos conquistados pela população brasileira nas últimas décadas (MORTATTI, 2019). O documento defende termos como a “literacia” e, sob um superficial discurso dito inovador, ressalta e defende com vigor o método fônico; permanece com o ideário neoliberal das “habilidades” e “competências”; despreza o trabalho docente de mediação e corrói os delineamentos de uma educação democrática, de qualidade, laica e socialmente referenciada. Paralelamente, instituído pela Portaria Nº 421, de 23 de abril de 2020 (BRASIL, 2020b), o programa Conta pra Mim é uma ação da PNA. Trata-se da efetivação do disposto no Art. 8º do referido Decreto, uma vez que a implementação da PNA se dará por meio de programas, ações e instrumentos que abrangem desde a organização curricular, produção de obras literárias, até o fomento a práticas de literacia familiar. Sobre esse último programa, Ramalhete (2020) afirma que o Conta pra Mim apresenta um aspecto nocivo, censório, precário de leitura, de alfabetização, de literatura infantil; expressa uma concepção de criança como um ser que precisa ser constantemente controlado; utiliza o texto para finalidades utilitaristas, imediatistas, que não cooperam com a transformação da sociedade, mas com a sua mera reprodução; despreza a importância do contato da criança com o universo da fabulação proporcionado também pela literatura infantil; impõe obstáculos às crianças para o acesso à arte, para o acesso a sua própria cultura: enfraquece o processo humanizador e atropela as possibilidades transformadoras vivenciadas a partir da experiência estética (RAMALHETE, 2020). Por fim, o Conta pra Mim, além de menosprezar os avanços no campo da literatura infantil, ignora também as discussões e as lutas inerentes à educação para as relações étnico-raciais, por meio de uma política de branqueamento (RAMALHETE; STEN, 2021).
A série de ações elencadas neste item mostram também a interferência do conservadorismo em políticas públicas, sobretudo naquelas direcionadas à infância. Silva Junior (2021) afirma que, no neoliberalismo, o Estado passa a ser concebido como um regulador minimalista do mercado. Em outras palavras, sua função passa a ser o de protetor do mercado, tanto pelo uso da força, quanto pela formulação de leis, mas a racionalidade neoliberal não se esgota aí. O neoliberalismo, continua o autor, “[...] depende da produção de sujeitos que entendam como naturais as formas de precarização social” (SILVA JUNIOR, 2021, p. 266). Trata-se de uma racionalidade que impõe formas de verdade, prevê a formação de um sujeito com valores morais e formas de sociabilidade adequados a ela; desse modo, exige novas formas de subjetivação (SILVA JUNIOR, 2021).
Por isso, políticas tais como a PNA e o Conta pra Mim não são ingênuas, porque, dentro de uma lógica conservadora, propõem a formação, desde a mais tenra idade, forjada em uma tentativa de naturalização daquilo que não é natural. Preparam, assim, o campo para legitimar forças antidemocráticas, a desigualdade, as injustiças, características tão marcantes de uma sociedade dividida em classes. Preveem também a formação do sujeito neoliberal: subserviente, submisso, cativo e alheio às questões de ordem social; contrário, portanto, a seu próprio interesse.
Além daquilo que já foi exposto, é preciso citar a extinção do Programa Brasil Carinhoso. Criado em 2014, consistia “[...] na transferência automática de recursos financeiros para custear despesas com manutenção e desenvolvimento da educação infantil, contribuir com as ações de cuidado integral, segurança alimentar e nutricional, além de garantir o acesso e a permanência da criança na educação infantil” (BRASIL, 2014).
Essa extinção ocorreu em função da Lei Nº 14.284, de 29 de dezembro de 2021, que substitui o Bolsa Família pelo Auxílio Brasil (BRASIL, 2021a). Conforme aponta Madeiro (2022), o Governo Federal prometeu o pagamento direto a creches particulares para que acolhessem crianças de até quatro anos de famílias beneficiárias do Auxílio Brasil. Acrescenta ainda que:
Esse pagamento a instituições privadas fazia parte do conjunto de ações previstas no escopo do Auxílio Brasil, que substituiu de uma vez vários programas sociais federais. No caso, o Auxílio Criança Cidadã substituiu o programa Brasil Carinhoso, que incentivava prefeituras a matricular crianças do Bolsa Família em creches. Para 2022, o governo federal reservou R$ 137 milhões no orçamento para custear esse novo auxílio. Entretanto, nenhum centavo foi gasto nem sequer empenhado. (MADEIRO, 2022, n.p.).
Como consequência, as crianças não são, efetivamente, atendidas por nenhum dos dois programas. Apesar de prevista na lei que instituiu o Auxílio Brasil, a normatização do Auxílio Criança Cidadã foi revogada em março de 2022 pelo Decreto Nº 11.013, de 29 de março de 2022 (BRASIL, 2022), assinado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, a mesma pessoa que ostentou a preservação da integridade das crianças como jargão eleitoreiro. Esse Decreto ainda suprimiu todas as menções ao Auxílio Criança Cidadã. Eis o tamanho do abismo: em 2021, o MEC destinou apenas R$ 101 milhões para obras de creches em prefeituras, valor que equivale a 80% menos em relação a 2018, último ano de governo do ex-presidente Michel Temer (MADEIRO, 2022).
Currículo e reformas
Por meio de reformas, a educação no Brasil foi duramente atacada após o golpe de 2016. Tal assertiva pode ser verificada em uma sequência organizada de ações, algumas delas, decorrentes da Medida Provisória (MP) N° 746, de 11 de abril de 2016, que estabelece a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) - Lei N° 9394, de 20 de dezembro de 1996) - e a lei que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação e dá outras Providências (Lei N° 11.494, de 20 de junho 2007) (BRASIL, 2016b). Em linhas gerais, essa MP prevê severas alterações na estrutura do Ensino Médio, uma vez que: a) aumenta a carga horária mínima anual, paulatinamente, para 1.400 horas; b) fomenta a criação de escolas em tempo integral, ação instituída pela Portaria No 1.145, de 10 de outubro de 2016 (BRASIL, 2016c); c) torna facultativo o ensino de Arte e da Educação Física; d) consente que os conteúdos do Ensino Médio sejam aproveitados no Ensino Superior; e) faculta a oferta de uma segunda língua estrangeira, para além da língua inglesa; f) permite que pessoas com “notório saber” possam lecionar disciplinas técnicas; g) modifica severamente o currículo, pois a formação geral e básica será composta pelos delineamentos da BNCC e por itinerários formativos; h) concede autonomia aos sistemas de ensino na definição da organização das áreas do conhecimento, das expectativas de aprendizagens preconizadas pela BNCC, além do delineamento das habilidades e competências (BRASIL, 2016b).
Essa sucessão de atos continuou. Em 2017, a MP No 746/2016 foi convertida na Lei Nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017 (BRASIL, 2017a). Essa lei altera as Leis No 9.394/1996, No 11.494/2007, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), e o Decreto-Lei Nº 236, de 28 de fevereiro de 1967; revoga a Lei Nº 11.161, de 5 de agosto de 2005, e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral (BRASIL, 2017a). No mesmo ano, em conformidade com essa lei, foi promulgada a Portaria Nº 727, de 13 de junho de 2017, em que são estabelecidas novos parâmetros, critérios e diretrizes para o Programa de Fomento às Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral - EMTI (BRASIL, 2017c).
No ano de 2018, ainda sob o governo de Michel Temer (2016-2018), mais uma série de providências foram tomadas: a) foi promulgada a Portaria Nº 331, de 5 de abril de 2018, que instituiu o Programa de Apoio à Implementação da Base Nacional Comum Curricular (ProBNCC) e estabeleceu diretrizes, parâmetros e critérios para sua implementação (BRASIL, 2018b); b) de igual modo, foi promulgada a Portaria Nº 649, de 10 de julho de 2018, que instituiu o Programa de Apoio ao Novo Ensino Médio e estabelece diretrizes, parâmetros e critérios para participação (BRASIL, 2018c); c) o governo estabeleceu um acordo de Empréstimo nº 8812-BR e 8813-BR; em outras palavras, por meio do Projeto de Apoio à Implementação do Novo Ensino Médio, buscou dinheiro com o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), no valor de U$ 250 milhões (BRASIL, 2021b); esse mesmo governo promulgou, quase dois anos antes, o Programa “Ponte para o futuro”, que prevê a dissociação de verbas constitucionais que garantiam o repasse de 18% da arrecadação dos impostos para a educação. Esse programa, dentre outros, arou o terreno para a promulgação da Emenda Constitucional Nº 95, de 15 de dezembro de 2016, que impõe um teto para todos os gastos com políticas sociais e, na prática, durante 20 anos, reduz as despesas primárias do orçamento público de acordo com a variação inflacionária (BRASIL, 2016a). Na análise de Cara e Pellanda (2018), essa emenda impossibilita a cumprimento do PNE e adia, ainda mais, a possibilidade de o Brasil garantir o direito à educação pública de qualidade para todos; d) foram publicadas a Portaria No 1.023, de 4 de outubro de 2018 (BRASIL, 2018d) e a Portaria No 1.024, de 4 de outubro de 2018 (BRASIL, 2018e). A primeira delas estabelece diretrizes, parâmetros e critérios para a realização de avaliação de impacto do Programa de Fomento às Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral (EMTI), e seleção de novas unidades escolares para o Programa (BRASIL, 2018d). Já a segunda, em linhas gerais, define as diretrizes do apoio financeiro por meio do Programa Dinheiro Direto na Escola às unidades escolares pertencentes às Secretarias participantes do Programa de Apoio ao Novo Ensino Médio, instituído pela Portaria MEC Nº 649/2018, e às unidades escolares participantes da avaliação de impacto do Programa de Fomento às Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral - instituída pela Portaria MEC Nº 1.023/ 2018 (BRASIL, 2018e); e) em dezembro do mesmo ano, promulgou-se a Resolução N° 4, de 17 de dezembro de 2018, que institui a Base Nacional Comum Curricular na Etapa do Ensino Médio (BNCC-EM), como etapa final da Educação Básica (BRASIL, 2018g) e, ao mesmo tempo, são estabelecidos os referenciais para elaboração dos itinerários formativos conforme preveem as Diretrizes Nacionais do Ensino Médio, por meio da Portaria Nº 1.432, de 28 de dezembro de 2018 (BRASIL, 2018f).
Em 2019, ainda a partir dos delineamentos da Lei Nº 13.415/2017, foram estabelecidas novas diretrizes, novos parâmetros e critérios para o Programa de Fomento às Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral - EMTI, por meio da Portaria Nº 2.116, de 6 de dezembro de 2019 (BRASIL, 2019d). Em 2021, foram publicadas três portarias: a Portaria Nº 411, de 17 de junho de 2021, que institui Grupo de Trabalho, no âmbito do MEC, com a finalidade de discutir a atualização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos - Encceja - (BRASIL, 2021c); a Portaria Nº 521, de 13 de julho de 2021, que instituiu o Cronograma Nacional de Implementação do Novo Ensino Médio (BRASIL, 2021d); e, por fim, a Portaria Nº 733, de 16 de setembro de 2021, que instituiu o Programa Itinerários Formativos, com a finalidade de coordenar a implementação do Novo Ensino Médio (BRASIL, 2021e).
Portanto, dentre outras ações, a Lei Nº 13.415/2017 expande o tempo mínimo do estudante na escola de 800 horas para 1.000 horas anuais e preconiza uma nova organização curricular, sendo composta por dois blocos indissociáveis: formação geral básica, fundamentada na BNCC, e os itinerários formativos, calcados na Portaria No 1.432/2018, que se concentra na oferta de unidades curriculares de teor técnico e profissional, ofertadas supostamente segundo a demanda dos estudantes (os chamados projetos de vida). Há de considerar-se, ainda, a BNC-Formação -Resolução No 2, de 20 de dezembro de 2019 (BRASIL, 2019e) -, uma proposta ancorada na pedagogia das competências que atinge a formação docente e está alinhada à BNCC.
Esse rol de mudanças não passou ileso pelas pesquisas acadêmicas. Ferreti e Silva (2017) ponderam que o acirramento de políticas neoliberais a partir do golpe civil-midiático-parlamentar de 2016 criou as condições necessárias para que um conjunto de reformas educacionais que prejudicam o interesse da classe trabalhadora fossem implementadas. Motta e Frigotto (2017) asseveram que essa cadência de ações são um retrocesso para a educação brasileira, porque, orientadas pelos delineamentos do neoliberalismo, negam os fundamentos das ciências que permitem aos jovens compreender, de modo consistente, os fenômenos sociais. Para Gomes (2022), a Reforma do Ensino Médio prevê uma concepção acrítica de educação, visto que ela segue a lógica do capital. Moura e Lima Filho (2017) atribuem a essa reforma uma regressão de direitos sociais, uma vez que, dentre outros, precariza a docência, abrevia o acesso ao conhecimento e reduz a educação à finalidade majoritariamente mercadológica. Avaliação compartilhada por Silva e Scheibe (2017), autores para quem essa reforma segue tributária à logica mercantil. Lima e Maciel (2018) asseguram que a flexibilização e o esvaziamento do currículo do Ensino Médio redundam na corrosão do direito à educação. Silva (2018) tece severas críticas à BNCC, uma vez que, na avaliação da autora, tal documento se sustenta não na oferta do conhecimento, mas na redução deste às habilidades e competências, noções divulgadas com o teor de novidade, mas que recuperam velhos dogmas e práticas de cunho neoliberal. Chaves e Evangelista (2020) alertam que a BNCC, sob forte influência do Instituto Ayrton Senna, incentiva as denominadas competências socioemocionais. Estas que dificultam a práxis consciente, preveem uma formação flexível, cordata e servil, e tentam tornar imperceptíveis as relações de exploração do trabalho na sociedade capitalista. Lavoura, Alves e Santos Junior (2020) argumentam que diretrizes que balizam a BNC-Formação são subservientes ao ideário neoliberal e constituem um esvaziamento simultâneo dos currículos e do processo de formação humana.
Além da BNCC, da Reforma do Ensino Médio e da BNC-Formação, também no ano de 2018, foi lançado o Programa de Residência Pedagógica do MEC, descrito no Edital 6/2018 da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Estando na pauta da Política Nacional de Formação de Professores da Educação Básica, esse edital objetivou selecionar Instituições do Ensino Superior (IES) públicas, privadas sem fins lucrativos ou privadas com fins lucrativos que possuam cursos de Licenciatura participantes do Programa Universidade para Todos, para “[...] implementação de projetos inovadores que estimulem articulação entre teoria e prática nos cursos de licenciatura, conduzidos em parceria com as redes públicas de educação básica” (CAPES, 2018, p. 1). Na avaliação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), o “Programa de Residência Pedagógica” não garante uma integração entre teoria e prática, mas acentua uma dicotomia entre essas duas dimensões, “[...] retomando a velha fórmula observação, participação e regência” (ANPED, 2018, p. 2).
A racionalidade neoliberal prevê que a “[...] única questão autorizada no debate público é a da capacidade de levar a cabo ‘reformas’ cujo sentido não é explicitado, sem que se saiba muito bem quais resultados se tenta obter por essa ação sobre a sociedade” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 380). Convém salientar que tanto a BNCC quanto a Reforma do Ensino Médio têm alcance nacional. Assim sendo, a despeito das críticas, da falta de diálogo com as comunidades escolares e acadêmicas na elaboração de tais documentos, estas possuem teor normativo e preveem a adesão de todo o sistema educacional brasileiro.
Em convergência ao que os estudos já citados apontaram, avalia-se que a reforma do Ensino Médio, a BNCC e seus desdobramentos procuram acirrar uma lógica individualista, predatória, desigual, própria do mercado competitivo. Dessa maneira, além da usurpação de direitos já denunciada, o mercado se instaura não porque “assina” documentos normativos simplesmente, mas porque esses documentos normativos, que balizam a formação humana desde a Educação Básica até a formação de professores, se tornou o oficial para se pensar a educação: a conformação das escolas em empresas e o indivíduo em empreendedor. Dessa forma, empurra anos de formação humana a serviço do rigor mercantil.
Duas gestões, sete Ministros da Educação
Além do que já foi citado, é preciso salientar que, no período de 2016 a 2022, registraram-se sete Ministros da Educação. No governo de Michel Temer, José Mendonça Bezerra Filho e Rossieli Soares da Silva ocuparam a pasta. A gestão do primeiro é lembrada, por exemplo, pela tentativa de proibição da disciplina do professor Luis Felipe Miguel, da Universidade de Brasília (UnB), intitulada “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”, prática que, contraditoriamente, fomentou a eclosão de diversos cursos similares pelo país; e pela suspensão da criação de novos cursos de Medicina, assim como a expansão de vagas em instituições federais pelo mesmo período. Embora Rossieli Soares tenha assumido a pasta por um curto período (06/04/2018 a 31/12/2018), a gestão dele é importante para dar continuidade às políticas iniciadas na administração de Mendonça Filho.
No governo Bolsonaro (2019-2022), [...] os ataques frontais à educação solidificam-se à medida que o exercício de cargos importantes é feito exatamente por aqueles que parecem querer sepultá-la” (RAMALHETE, 2019, p. 17). A gestão do ex-ministro Ricardo Vélez Rodríguez foi caracterizada pela ofensa a brasileiros/as, igualando-os/as a canibais (FOLHA DE SÃO PAULO, 2019); por ataque aos intitulados “marxismo cultural” e “ideologia de gênero” (SALDAÑA, 2019); pela defesa do homeschooling (educação domiciliar) e da intromissão de instâncias religiosas na educação (RONZANI, 2019); pela publicização de um completo desprezo pelos avanços na área da alfabetização e pela defesa do método fônico (MORENO, 2019) ao desequilíbrio acerca das medidas avaliativas na área da alfabetização (MARIZ; FERREIRA, 2019); pela extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão Social (Secadi), que visava à promoção de ações que valorizassem a diversidade e a inclusão, com atuação nas seguintes esferas: Educação Especial, Educação de Jovens e Adultos, Educação do Campo, Educação Escolar Indígena, Educação Escolar Quilombola, Educação para as relações Étnico-Raciais e Educação em Direitos Humanos (BRASIL, 2018a); e pelo revisionismo histórico acerca da Ditadura Militar brasileira (EL PAÍS, 2019).
Demitido em pouco mais de 90 dias de governo (01/01/2019 a 08/04/2019), Vélez foi substituído por Abraham Bragança de Vasconcellos Weintraub, ex-secretário-executivo da Casa Civil. Sua gestão foi marcada pela incitação popular ao desprezo pelo saber elaborado, a hostilidade à área das Humanidades pela tentativa, por exemplo, de extinção dos cursos de Sociologia e Filosofia (BASILIO, 2019), à perseguição e ofensa aos/às professores/as (BOGHOSSIAN, 2019) e às instituições federais de educação. Em pouco tempo de governo, além da inobservância à variante padrão da língua portuguesa (NICOLETI, 2019), ele anunciou a revisão do PNE-Plano Nacional de Educação (MUGNATTO, 2019) e travou verbas destinadas à Educação Básica (ESTADÃO CONTEÚDO, 2019; PALHARES, 2019) e às universidades, como afirma o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior - ANDES (2019). Com isso, o MEC obrigou as instituições, erigidas pelo tripé do ensino, da pesquisa e da extensão, ao funcionamento com a escassez, com a falta. Atrelada a esse sufocamento, além da restrição de bolsas para pesquisa em todo o país (PINHO; SALDAÑA; GENTILE, 2019), medida que ataca a produção científico-tecnológica brasileira, e da extinção do programa “Idioma sem Fronteiras” (FÓRUM, 2019), foi lançado o programa “Future-se” que, sob a alegação de modernização das universidades (BRASIL, 2019c), é um dos indícios das várias tentativas de privatização nas instituições federais, uma vez que prevê, dentre outras diretrizes, o financiamento de empresas privadas em pesquisas realizadas em instituições públicas (MIGUEL, 2019).
O desmonte segue com recrudescimento de movimentos (também antidemocráticos) tais como Escola sem Partido, os ataques à União Nacional dos Estudantes (UNE), ao Professor Paulo Freire (patrono da educação brasileira), e o anúncio de promessa de limpeza (ideológica) em livros didáticos de história (CARTA CAPITAL, 2020). Em meio à pandemia do coronavírus (covid-19), o estabelecimento, sem consulta pública, de novos critérios de distribuição de bolsas para programas de pós-graduação (CAPES, 2020), retirou abruptamente o investimento em pesquisa de centenas de estudantes de Mestrado e Doutorado em todo o país. Em movimento semelhante, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) direcionou as bolsas do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) para as áreas denominadas “tecnologias prioritárias” (CNPQ, 2020). Na prática, em atendimento à Portaria Nº 1.122, de 19 de março de 2020 (BRASIL, 2020e) e à Portaria Nº 1.329, de 27 de março de 2020 (BRASIL, 2020f), é a considerável redução de investimento público para pesquisas nos campos das Ciências Humanas, Ciências Sociais Aplicadas, Linguística, Letras e Artes.
Por outro lado, o MEC, em contínua afinidade ao ideário neoliberal, conferiu acesso, por exemplo, à Associação Nacional de Universidades Particulares (Anup), órgão representativo dos grandes conglomerados educacionais privados, tais como: Universidade Nove de Julho (Uninove), Estácio, Kroton, Anhanguera e Pitágoras; e cuja presidência é exercida por Elizabeth Guedes, irmã de Paulo Guedes, Ministro da Economia do governo Bolsonaro (MORTATTI, 2019).
Em junho de 2020, Abraham Weintraub foi demitido do governo, após polêmicas falas antidemocráticas, proferidas em uma reunião ministerial. Em seu lugar, foi nomeado o professor Carlos Alberto Decotelli. Este, por sua vez, após uma série de inconsistências no Currículo Lattes, não assumiu, efetivamente, a pasta. Em julho de 2020, foi nomeado para o MEC o pastor da Igreja Presbiteriana, teólogo e advogado com Doutorado em Educação, Milton Ribeiro, em um claro sinal à pauta reacionária do setor evangélico.
Além de declarações homofóbicas e avessas a uma educação pública e laica, Ribeiro ressaltou que a universidade pública deveria ser para poucos. Sua gestão foi balizada: a) pela demissão em massa de 37 servidores do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), há menos de três semanas da aplicação do Enem em 2021; b) pela condução de políticas inconsistentes na condução da educação durante a pandemia, ingerência que acentuou as desigualdades na área da Educação no país; c) pelo incentivo à criação de escolas cívico-militares; d) pelo assentimento à proposta do Ministro da Economia Paulo Guedes na inserção de vouchers para a Educação Infantil; d) pela mudança de nomes em programas/instituições que já existem: é o caso, por exemplo, da tentativa de criação de universidades, a partir de campi já existentes, a fim de se criar a falsa ideia de que essas mesmas instituições foram criadas em sua gestão. Propaganda de criação do programa que já existe desde 2007, “Caminho da Escola”, que é mantido pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e, na gestão Bolsonaro, está sendo alvo de investigação pelo superfaturamento de mais de R$700.000.000 nas licitações; e) e, por fim, motivo de sua demissão, por denúncias de corrupção, pela suposta influência de pastores na liberação de verbas pelo MEC. Além do que foi citado, o pastor e ex-ministro envolveu-se em um incidente com disparo de arma de fogo em um aeroporto e chegou a ser preso (DUNDER, 2022).
De 18 de abril a 31 de dezembro de 2022, o MEC foi gerido por Victor Godoy, formado em Engenharia de Redes de Comunicação de Dados pela UnB e pós-graduado em Altos Estudos em Defesa Nacional na Escola Superior de Guerra. Em outubro de 2022, foi anunciado o bloqueio de 2,4 bilhões de reais do MEC. O bloqueio ameaçou o pagamento de energia, de água, inclusive de hospitais e restaurantes universitários. Ameaçou também os pagamentos de profissionais terceirizados, editais de pesquisa e pagamentos de auxílios estudantis. Após pressão popular, o ministro, que havia defendido o que chamou de “contingenciamento”, anunciou o desbloqueio da verba, porém sem sinalizar a data e o valor exato do desbloqueio.
Na mesma toada, houve sucessivos cortes de verbas direcionadas às universidades e aos institutos federais ao longo de 2022. Em síntese, podem ser elencados três marcos:
Junho: corte de R$ 1,6 bilhão no MEC; para universidades e institutos federais, o valor retirado foi de R$ 438 milhões; Outubro: bloqueio temporário de R$ 328,5 milhões para universidades e institutos; verba foi liberada posteriormente; Novembro: bloqueio atual, que chega a R$ 366 milhões considerando verba bloqueada para universidades e institutos federais; não há previsão de liberação. (SANTOS, 2022, n.p.).
Laval (2019) pontua que os administradores do ensino se tornaram novos “capitães da educação”, cuja identidade se molda na forja dos “capitães da indústria”. A gestão deve ser feita a partir de critérios empresariais, tais como utilidade, eficácia e eficiência. Para o autor, o sucesso dessa empreitada é alcançado graças à consolidação da “cultura do comum” do corpo dirigente, calcadas não só em formações, mas em referências similares. Portanto, como visto, a constante troca de ministros não garantiu a descontinuidade de políticas antagônicas aos interesses da classe trabalhadora do Brasil. O que se acompanhou, apesar das polêmicas e, não raro, e em defesa delas, foram tentativas de se minimizar desgastes, o que não garantiu, efetivamente, o avanço da educação pública de qualidade no país.
Cadência de ataques: redução de verbas, vetos, políticas educacionais e afins
É preciso compreender que todos os aspectos citados neste artigo fazem parte de uma agenda política. Desse modo, vale acrescentar: a) os baixos resultados nas avaliações em larga escala; b) a ausência de reajuste salarial aos profissionais da educação da rede federal; c) a escassez de concursos públicos; d) a saída de cientistas do país em busca de melhores condições de trabalho; e) a nomeação de reitores/interventores, sem considerar o resultado de eleições/consultas democráticas em instituições federais; f) o veto, por parte do governo Bolsonaro, do reajuste da merenda escolar, com correção pela inflação, aprovado pelo Congresso (TOMAZELA, 2022); g) a tramitação da Portaria N° 983, de 18 de novembro de 2020 (BRASIL, 2020d), que eleva a carga horária mínima de aulas para os docentes dos Institutos Federais, chancela a precarização do trabalho docente e o desgaste do tripé ensino-pesquisa-extensão; h) a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/2020, do Poder Executivo, que “[...] altera dispositivos sobre servidores e empregados públicos e modifica a organização da administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios” (BRASIL, 2020g). Essa PEC, apta a entrar na pauta de votações no plenário, encontrou amparo tanto na Comissão de Constituição de Justiça e de Cidadania (CCJC) tanto na Comissão Especial (CESP), propõe a abolição de uma série de direitos dos servidores públicos, tais como estabilidade e reajustes salariais retroativos. Considerando que a docência é uma das categorias profissionais mais representativas no Brasil, tal proposta, que é apenas o início da Reforma Administrativa, ataca frontalmente essa categoria e corrói qualquer possibilidade de carreira decente na esfera pública; i) o grande atraso na atualização da Plataforma Sucupira (somente em 29 de dezembro de 2022), lacuna que impactou diretamente a publicação de trabalhos de pesquisadores de todo o país; j) o encarecimento da taxa de inscrição do Enem que, em menos de dez anos, mais que dobrou de preço (de R$35,00, em 2014, para R$85,00, em 2021); k) redução acentuada (cerca de 60%) nas inscrições do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), o programa de acesso às universidades federais (RATIER, 2022); l) desde 2017, não são atualizadas informações de crianças, jovens e o número de matrículas nas escolas quilombolas. Essa ausência de informações sobre as infâncias e adolescências redunda na invisibilidade no planejamento, na alocação de orçamento e na definição de políticas públicas para essa parte (considerável) da população (PELLANDA; FROSSARD, 2022); m) o avanço da devastação do meio ambiente e a consequente ampliação do agronegócio que favorece a “reforma agrária do consenso”, uma parceria entre o agro e os movimentos sociais, mediadas pelo Estado, que agenciam a subordinação, ainda maior, da classe trabalhadora, inclusive com influência na direção de projetos educacionais do campo (SANTOS, 2017).
Pelo menos mais duas modalidades de educação sofreram ataques. Por meio do Decreto Nº 10.502, de 30 de setembro de 2020, que instituiu a Política Nacional de Educação Especial (BRASIL, 2020a), o projeto do governo bolsonarista (2019-2022) ofertou às pessoas com necessidades especiais a “volta ao passado”, o retorno da política de integração. Trata-se de um retrocesso convergente a um projeto de educação nacional de mercantilização: ao transferir recursos públicos para as instituições especiais e não para escolas públicas, o governo terceiriza sua responsabilidade. Além disso, o projeto fundamenta-se em um moralismo conservador, uma vez que, geralmente, essas instituições concebem a educação especial não como um direito, mas como um ato de benevolência, de caridade, de solidariedade ou um serviço a ser prestado (SILVA; MACHADO; SILVA, 2019). E, por fim, por causar segregação de estudantes, infringia o direito à educação inclusiva.
Em 2020, em função da pandemia de covid-19, aumentaram as discussões sobre a Educação a Distância (EaD). É nesse contexto que o Reuni Digital ganha maior notoriedade e é alvo de uma série de ações. Convém salientar, entretanto, que o Reuni (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais) foi criado inicialmente em 2007, por meio do Decreto Nº 6.096, de 24 de abril de 2007, com o objetivo de “[...] criar condições para a ampliação do acesso e permanência na educação superior, no nível de graduação, pelo melhor aproveitamento da estrutura física e de recursos humanos existentes nas universidades federais” (BRASIL, 2007).
A Portaria No 433, de 22 de outubro de 2020, institui “[...] o Comitê de Orientação Estratégica (COE) para a Elaboração de iniciativas de Promoção à Expansão da Educação Superior por meio digital em Universidades Federais, no âmbito da Secretaria de Educação Superior, e dá outras providências” (BRASIL, 2020c). Na prática, essa Portaria implementa o chamado Reuni Digital, que se constitui em um conjunto de ações do MEC para ampliar a oferta do Ensino Superior por meio da EaD e, supostamente, atender à meta 12 do PNE. Na avaliação de Saviani e Galvão (2021), o “ensino” remoto é uma falácia, inviabiliza uma educação crítica e de qualidade, além de contribuir para uma adaptabilidade, perspectiva afim à agenda do capital. Farage (2021), em movimento semelhante, assevera que se trata de um projeto que descaracteriza por completo o que se compreende por educação pública de qualidade, ao buscar a destituição de uma educação crítica.
O neoliberalismo, face ainda mais predatória do capital, requer um Estado que assegure simultaneamente a detenção privada dos meios de produção e que seja “[...] capaz de despolitizar a sociedade, tendo força suficiente para intervir politicamente na luta classes, eliminar as forças de sedição a fim de permitir a liberação da economia de seus pretensos entraves sociais” (SAFATLE, 2021, p. 29).
Conforme apresentado neste artigo, todas essas medidas estatais têm um alvo: a classe trabalhadora brasileira. Elas evidenciam em que medida o Estado neoliberal e as elites deste país importam-se com a educação que visa à formação de indivíduos críticos e contrários a todas as formas de opressão. De acordo com Lombardi e Lima (2018), trata-se de uma ofensiva cujas raízes são históricas e, além disso, é antidemocrática, antipopular, antinacional e pró-imperialista. Essa galeria de perdas também reflete que:
Sem dúvida, o capital não tem pátria, e é esta uma das suas vantagens universais que o fazem tão ativo e irradiante. Mas o trabalho que ele explora tem mãe, tem pai, tem mulher e filhos, tem língua e costumes, tem música e religião. Tem uma fisionomia humana que dura enquanto pode. E como pode, já que a sua situação de raiz é sempre a de falta e dependência. (BOSI, 2003, p. 19).
A sociedade brasileira tem a fama de não ter memória. Por isso, esta pesquisa, embora se assemelhe a um roteiro distópico, também visa lembrar, mais uma vez, que a galeria ora apresentada, com gestão do Estado Neoliberal, não se configura “apenas” como medidas que obstam o acesso da classe trabalhadora ao conhecimento elaborado. Mais que isso, antidemocraticamente, acenam para o mundo o lugar que o Brasil ocupa na divisão internacional o trabalho: o da “falta” e da “dependência”.
Considerações finais
A educação não está alheia ao contexto histórico-social e as inúmeras formas de intervenção estatal são concebidas e geridas a partir de uma lógica econômica. Neste percurso, a partir de dados extraídos da realidade, foi elencada uma galeria de perdas para a educação brasileira, após o golpe civil-midiático-parlamentar-empresarial de 2016, que confirma a manutenção dos quatro eixos tão marcantes da historicidade brasileira, explicitados por Saviani (2020b): protelação, filantropia, fragmentação e improvisação.
Desse modo, é possível afirmar que essas perdas tão grandes não se dão ao acaso, mas, antes, são frutos do capital, um sistema que trabalha incessantemente para o acúmulo de riquezas de modo injusto, que se baseia na propriedade privada dos meios de produção. Nessa perspectiva, como um sistema totalitário e antidemocrático, orquestra-se um ataque ao coletivo, aos direitos e às garantias sociais, dentre os quais a educação. Harvey (2014) afirma que o Estado neoliberal se fundamenta na garantia dos direitos individuais à propriedade privada, favorece e protege o regime de direito e as instituições de mercados de livre funcionamento e do livre comércio: “O Estado tem portanto de usar seu monopólio dos meios de violência para preservar a todo o custo essas liberdades” (HARVEY, 2014, p. 75).
Assim, os imensos retrocessos da educação brasileira no período de 2016 a 2022 refletem a concepção neoliberal de educação como um serviço a ser prestado e não como um direito. Escancara um projeto de nação que vê no ataque à educação o caminho para tornar a realidade brasileira ainda mais excludente, predatória, reacionária, conservadora e hostil a qualquer forma de pensamento mais elaborado. Por isso, essa agenda que nega o acesso da classe trabalhadora à educação de qualidade precisa ser negada.
É evidente que o capital e o Estado que o serve têm ciência do valor, da importância da educação para o conjunto da sociedade, em especial para que consigam dar continuidade ao projeto de poder. Eles valorizam a educação. Isso é fato. Não obstante, como é possível inferir a partir dos dados apresentados neste artigo, trata-se de uma educação que visa à adaptação, à conformação aos ditames da ordem social estabelecida cujo escopo é a reprodução, ad aeternum, do esvaziamento do seu potencial crítico-emancipatório, da permanência do caos e da barbárie social.
Em meio a um legado de ruínas (além da destruição da Amazônia, retorno ao mapa da fome, desemprego, orçamento secreto, aumento de políticas armamentistas, quase de 700 mil mortes por covid-19...), talvez o caminho mais fácil seja ceder ao discurso fatalista. Afinal, os ataques contra as conquistas históricas da classe trabalhadora, orquestrados pela ardilosa racionalidade neoliberal, intentam também fragilizar e estancar a organização política progressista que visa à emancipação de nossa classe.
Diante do exposto e diante da concretização da recente vitória de Luiz Inácio Lula da Silva ao posto de presidente do Brasil, reacende-se a esperança em meio aos escombros. No entanto, reerguer-se novamente implica, obrigatoriamente, a negação à racionalidade neoliberal. Prevê, assim, uma não condescendência a instâncias que estão de costas aos interesses de uma educação pública, gratuita, de qualidade, presencial, laica e socialmente referenciada, em todos os níveis, etapas e modalidades da educação brasileira, porque a “[...] educação escolar é o meio mais adequado para a apropriação, pelos trabalhadores, das conquistas históricas da humanidade que lhes aguçarão a consciência da necessidade de intervir praticamente para dar continuidade ao processo histórico conduzindo-o a um novo patamar” (SAVIANI, 2020a, p. 24).
O neoliberalismo prevê a destruição do social, aspecto imprescindível para uma sociedade democrática. Por isso, o poema de Carlos Drummond de Andrade (2022) epigrafado no início deste artigo lembra-nos, apesar de anos de destruição: a necessidade de uma luta contínua por um outro país em que a educação seja prioridade, com as artes, com as ciências, com as tecnologias e com a filosofia em suas formas críticas e mais elaboradas, sem mitos, e de mãos dadas.