Introdução: a socialização infantil e a cultura material
A socialização das crianças contemporâneas dos grandes centros urbanos dá-se no seio das complexas dinâmicas sociais de nosso tempo, implicando, entre outras coisas, a coexistência de uma pluralidade de atores e instâncias que medeiam esse processo (DUBET, 1996; LAHIRE, 2002; SIROTA, 2001, 2022). Essa perspectiva ampliada considera não apenas a participação da família e das instituições educativas, mas também o papel de outros agentes na socialização, como a publicidade, as tecnologias de informação e comunicação e os diversos segmentos que compõem o mercado de produtos endereçados ao público infantil (SETTON, 2005).
Na interface entre os estudos sobre a cultura material da infância e aqueles sobre a socialização - uma agenda de pesquisa ainda pouco explorada, não só no Brasil (SETTON; BOZZETTO, 2020) como também em outros países, como a França (GARNIER, 2012) -, este trabalho é especialmente dedicado à análise do mercado de decoração infantil, apresentando parte de uma pesquisa de Doutorado sobre os quartos de crianças socioeconomicamente favorecidas (CARVALHO, 2018). Nele, esses cômodos são tomados como objeto empírico, constituindo uma janela para se descortinar o objeto teórico, a saber: a socialização das crianças desse grupo social.
A escolha desse tema deu-se a partir da percepção da crescente importância dos quartos infantis, fenômeno que vem sendo chamado de “cultura do quarto” (GLEVAREC, 2010). Fruto de um processo histórico de individuação, esse espaço pode ser considerado uma construção da família (SEGALEN; LE WITA, 1993), na medida em que são os pais, mais frequentemente a mãe, que centralizam a escolha e a disposição de móveis e objetos, expressando neles um gosto estético em termos de decoração (BOURDIEU, 2006)1 e, também, as expectativas parentais em relação aos filhos.
No entanto, embora ocorra no âmbito da socialização primária, as dinâmicas internas à família não acontecem sem interferência de outras instâncias, nem mesmo nos primeiros anos de vida da criança, ao contrário do que apontam algumas análises (ver, por exemplo, LAHIRE, 2015). Com suas escrivaninhas, murais de rotina e cantinhos de leitura, os quartos infantis dos estratos favorecidos da sociedade muitas vezes se apresentam como um “anexo da escola” (ESTABLET, 1987). Além disso, na condição de objetos de consumo, os móveis e os objetos decorativos estão fortemente atrelados às dinâmicas do mercado de arquitetura e decoração. Assim, sem deixar de ser uma criação dos pais e da própria criança, que cada vez mais participa diretamente da escolha de compra, além de negociar sentidos para o espaço e seus usos, os móveis e os objetos decorativos compõem um sistema de significados hierarquizados que participa da construção de identidades, permitindo localizar socialmente os consumidores/moradores (BAUDRILLARD, 2009; NUÑEZ; SERRA, 2023).
No que diz respeito às crianças, suas casas, que podem ser comparadas às de vizinhos e colegas de escola, fornecem bases materiais que ajudam a promover a construção da percepção infantil a respeito de sua própria posição no espaço social (LIGNIER; PAGIS, 2012; ZARCA, 1999). Sobre a experiência de andar pelas casas vizinhas na infância, Annie Ernaux (2022, p. 30, grifo da autora) registra que “[...] bastava olhar as grandes fachadas por detrás de um gramado e de caminhos de cascalho para saber que seus moradores não eram como nós”. Por fim, o espaço doméstico, e mais especificamente o quarto, é um ambiente privilegiado para que as crianças experimentem o “sentimento de futuro” típico dessa fase, em que se tem “a vida inteira pela frente” (ERNAUX, 2022, p. 31). No entanto, não se trata da experiência de vislumbrar todos os futuros, mas apenas aqueles possíveis, e que são, de alguma forma, anunciados pela disposição dos móveis no espaço doméstico, terminando por desenhar os trajetos sociais mais prováveis para as crianças de cada meio social, e a forma mais ou menos relaxada com que eles poderão ser percorridos (LE WITA, 1988).
Essa influência do mundo material em nossas vidas, que Miller (2001, 2013) denomina “agência dos objetos”, é acentuada na medida em que os artefatos, imbuídos da “simplicidade das coisas”, jazem silenciosos e se colocam de forma periférica à nossa atenção (MILLER, 2001, 2013). Ademais, quando se trata de móveis e objetos do domínio privado, a rotina, a consciência fraca e a temporalidade que escapa às marcações convencionais (ROCHE, 2000) provocam uma intervenção homeopática e pouco consciente na configuração do habitus (BOURDIEU, 1982; SETTON, 2012), produzindo formas de sentir, pensar e agir que, não obstante serem construídas precocemente, não se encerram nos primeiros anos de vida, mas produzem efeitos futuros (BOURDIEU, 1982).
Assim, visando compreendermos como as dinâmicas do mercado de decoração participam da socialização das crianças, neste artigo, apresentamos e discutimos os dados empíricos obtidos no curso da investigação, para o que se estrutura em quatro partes. Na primeira, recorremos à pesquisa bibliográfica, a fim de mostrar como os atributos de uma casa são sócio-historicamente variáveis. Na segunda, descrevemos o universo da pesquisa, caracterizando os sujeitos participantes e apresentando os procedimentos empregados no trabalho com as três ferramentas metodológicas. Em um terceiro momento, apresentamos e analisamos os resultados, evidenciando as contradições entre uma forte incidência do discurso do quarto personalizado e práticas que reforçam estereótipos de gênero; enquanto, na última seção, sumarizamos os dados e os argumentos apresentados, refletindo sobre a socialização contemporânea.
A historicidade dos estilos de decoração
Em seu livro Casa, a pequena história de uma ideia, Witold Rybczynski (1996) mostra como o pequeno significante “casa” abarca uma grande quantidade de formas de habitar que são cambiáveis social e historicamente. Segundo o autor, até o século XVI, os quartos de dormir eram improváveis nas moradias europeias, por onde circulava um sem-número de parentes e empregados, entrando e saindo de cômodos que não tinham funções específicas: à noite, retirada a mobília,2 a sala onde foram fechados negócios durante o dia se tornaria o lugar de dormir.
A cidade italiana de Florença é frequentemente lembrada como exemplar desse movimento de privatização das moradias: as reformas ali empreendidas durante o século XIV apontam para um crescente fechamento das lojas abertas para a rua, para o surgimento de pátios internos e para a alteração dos endereços comerciais, substituídos naquele momento por outros, mais distantes da residência. É na medida em que o trabalho e as atividades comerciais passam a ocorrer em espaços não-residenciais que o espaço domiciliar se transforma em um domínio das mulheres (CASEY, 1992). As crianças, que antes eram responsabilidade da comunidade, tornam-se encargo de suas mães (ARIÉS, 1981), configurando um movimento que conduz à constituição da família burguesa moderna e à transformação do espaço da casa em um ambiente de acomodação dessa nova e compacta unidade social.
Os cômodos da residência, anteriormente multifuncionais, se especializaram: o andar térreo para as atividades diurnas, os andares mais altos para as atividades noturnas, e, pelo menos nas classes privilegiadas, pais e filhos passam a dormir em quartos distanciados dos espaços dos criados. Assim, o deslocamento da sociabilidade do espaço público para o espaço privado terminou por modificar substancialmente a organização do espaço doméstico. Como esclarece Singly (2006):
De forma esquemática, o domicílio se transforma progressivamente em dois tempos. O primeiro tempo é aquele que corresponde à primeira modernidade: é o momento em que a família se separa do resto da sociedade, do bairro, da vizinhança. A intimidade é inicialmente familiar. O segundo momento, que se abre com a segunda modernidade, rompe em parte com essa lógica, a fim de autorizar cada pessoa a ter também sua intimidade pessoal. A segunda não suprime a primeira. Uma e outra se articulam segundo dosagens diferentes de acordo com a idade, o gênero, as culturas pessoais.3 (SINGLY, 2006, p. 33, tradução nossa).
Paralelamente à constituição da individualidade de cada membro da família, a eficiência e a racionalização do serviço doméstico se impõem como uma necessidade nas casas ao final do século XIX e ganham força no século XX, a partir da influência cultural norte-americana. A abolição da escravidão e a mecanização da casa possibilitada pela energia a gás - e depois pela elétrica - criaram a necessidade e as condições para o advento da casa prática. Criticando o virtuosismo dos arquitetos do sexo masculino, que desconheciam a realidade do trabalho doméstico, especialistas do sexo feminino que se autointitulavam “engenheiras domésticas” - como Catherine Beecher, Harriet Beecher Stowe, Ellen H. Richards e Mary Pattison - se dedicaram a redigir manuais em que advogavam pela funcionalidade dos espaços domésticos.
Máquina para morar é a metáfora de Corbusier para definir esse espírito da casa moderna. No entanto, embora haja uma continuidade entre a proposta das “engenheiras domésticas” e a arquitetura de Corbusier, há entre as duas uma diferença que merece ser assinalada. Enquanto as “engenheiras domésticas” priorizavam o aspecto funcional e acreditavam que competia aos moradores definir a aparência da casa, o arquiteto francês fazia crer que não era suficiente ser moderno; era também importante parecer moderno e reafirmar um estilo, vale dizer, um estilo austero. As soluções propostas por ele eram prototípicas, e não individuais, de tal modo que cada morador deveria se adaptar ao espaço da casa e não o contrário (RYBCZYNSKI, 1996).
Contemporaneamente, o espaço doméstico, ao menos nas classes abastadas, tem sido afetado pela estetização do mundo (LIPOVETSKY; SERROY, 2015), sendo definido não só exclusivamente pelo conforto, pela privacidade ou pela funcionalidade, mas também por uma sensibilidade estética que busca a fruição de prazeres sensoriais menos padronizados e mais personalizados. Ainda que seja prudente encarar com precaução o otimismo eufórico de Lipovestky e de Serroy em relação ao consumo, é preciso reconhecer a acuidade da descrição realizada pelos autores, no que diz respeito ao subjetivismo estético que marca a decoração na contemporaneidade.
Universo da pesquisa e ferramentas metodológicas
Sucinta e linear, a síntese anterior não pretendeu senão evidenciar o fato de que os predicados reivindicados e atribuídos ao espaço doméstico são sócio-historicamente determinados. Com base nesse postulado, neste trabalho, buscamos conhecer as características que vêm sendo atribuídas aos quartos infantis pelo mercado de decoração, na expectativa de que esses discursos, endereçados aos pais, revelem as dinâmicas que participam da socialização das crianças das classes favorecidas dos grandes centros urbanos contemporâneos.
Os dados foram obtidos por meio dos seguintes recursos: (a) análise de uma pesquisa sobre o mercado de brinquedos e de decoração efetuada em 2013 pela Faculdade de Economia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); (b) três entrevistas com vendedoras de lojas de decoração para ambientes infantis; e (c) análise de conteúdo do site <bebe.com.br> realizada em 20164.
A pesquisa sobre o mercado de brinquedos e de decoração
A pesquisa de mercado utilizada neste trabalho foi encomendada, em 2012, à Faculdade de Economia da UFMG por uma arquiteta e empresária que planejava abrir um estabelecimento comercial no ramo de decoração para crianças. Desenvolvida em 2013, pela Consultoria Junior da UFMG, a pesquisa consistiu em: (a) análise de dados secundários, a saber, estudo a partir de matérias de jornais e revistas sobre o mercado de decoração; (b) questionário com “players similares”5; (c) questionário com potenciais clientes.
A pesquisa com os “players similares” foi realizada em 37 estabelecimentos comerciais da Zona Sul de Belo Horizonte, região onde reside majoritariamente uma população oriunda das classes A e B, conforme designação dos pesquisadores sem, contudo, revelar os critérios dessa classificação.
Diante da crise econômica que esboçava seus primeiros sinais, a empresária desistiu de levar o projeto adiante, razão pela qual os dados foram por ela disponibilizados para utilização nesta pesquisa. A respeito do uso de uma pesquisa de mercado em trabalho científico, torna-se pertinente retomar as ponderações de Bourdieu (1981) sobre as pesquisas de opinião pública.6 Para o autor, os maiores problemas desse tipo de pesquisa consistiriam nas fragilidades metodológicas decorrentes da forma como as questões são formuladas e do contexto em que são colocadas ao entrevistado. Em relação à formulação, frequentemente as pesquisas de opinião colocam ao entrevistado questões sobre as quais ele ainda não havia refletido. Assim, essa ferramenta de coleta de dados tende a não refletir com precisão as tomadas de posição em relação ao consumo, uma vez que nem sempre as disposições podem ser formuladas como um discurso racionalizado, consciente e coerente. Além disso, em relação ao contexto, as pesquisas de opinião são condicionadas pela exigência de objetividade e neutralidade, quando seria mais adequado elaborar perguntas que simulassem a prática real.
Para usar um exemplo concernente ao tema desta pesquisa, em vez de perguntar a um potencial consumidor se a praticidade, a segurança ou a originalidade seriam os fatores mais importantes no momento de decisão de compra de produtos de decoração, seria mais revelador de uma verdadeira tomada de posição perguntar se o potencial consumidor preferiria comprar um berço em padrão americano, mais prático, ou um berço oval, mais original7. Ademais, nas condições artificiais de uma pesquisa, o respondente tende a exprimir uma opinião isolada, enquanto nas situações reais, as opiniões são forças, e “[...] as relações entre opiniões são conflitos de força entre os grupos” (BOURDIEU, 1981, p. 147).
Sem perder de vista essas ponderações, os resultados da pesquisa de mercado foram utilizados não como dados científicos incontestáveis e neutros, mas como discurso que, amparado em uma pesquisa secundária com matéria de jornais e revistas, opera com representações de infância que se revelaram de interesse para a pesquisa.
Entrevistas com profissionais do mercado de arquitetura e decoração
Entre as lojas identificadas como “players similares” pela pesquisa de mercado realizada pela Faculdade de Economia da UFMG, escolhemos três para a realização de entrevistas semiestruturadas com suas vendedoras.8 Por meio das entrevistas, esperava-se compreender as diferentes significações no que diz respeito à decoração de quartos infantis para um grupo social que parecia homogêneo diante das estatísticas. Além disso, com um roteiro mais aberto, as entrevistas forneceram a oportunidade de aprofundar a compreensão das qualificações de quartos infantis apontadas pelo questionário da pesquisa da Faculdade de Economia da UFMG. Buscou-se compreender, por exemplo, o que significa “qualidade” em um móvel para crianças, quais eram os produtos mais vendidos, que tipo de conselho a atendente, na maior parte das vezes do sexo feminino, dava às mães no momento da compra etc.
As três lojas foram selecionadas por apresentarem características distintas. A primeira, que aqui será chamada de Joana Hauss, está situada em um bairro recente da Zona Sul de Belo Horizonte e que dispõe de muitos estabelecimentos comerciais. Surgido na década de 1970, em virtude das mudanças na Lei de Uso e Ocupação do Solo, a partir de 1985, o bairro passou por forte processo de verticalização, chegando a constar como o bairro que oferece o maior número de unidades habitacionais, conforme levantamento do Instituto de Pesquisas Administrativas da Universidade Federal de Minas Gerais - IPEAD (2018). Conhecido como “bairro dos filhos da Zona Sul”, a região atrai jovens casais que ainda não têm possibilidade de morar nos bairros ainda mais valorizados, sendo, por isso, apontado pela pesquisa de mercado da Faculdade de Economia da UFMG como propícia para a abertura de lojas de decoração e brinquedos. É classificada como uma região de padrão “alto” (nível 3)9 pela classificação de bairros do IPEAD - região em que a renda mensal do chefe do domicílio é igual ou maior a 8,5 salários-mínimos e menor que 14,5 salários-mínimos. A loja é de rua e trabalha com objetos de decoração e móveis pré-fabricados.
A segunda loja, chamada Conforto e Beleza, está situada em um shopping da Zona Sul da cidade, especializado em vendas de móveis e utilidades domésticas. O bairro é considerado de “luxo” (nível 4) na classificação de bairros feita pelo IPEAD, um bairro cuja renda do chefe do domicílio é igual ou superior a 14,5 salários-mínimos, embora a loja atenda também a diversos clientes de bairros próximos. Segundo as vendedoras entrevistadas, a loja tem um público mais diversificado, uma vez que atrai profissionais de decoração e famílias que vão ao shopping também para usufruir dos equipamentos de entretenimento, como restaurantes, academias e cinema. Além de oferecer móveis pré-fabricados, principalmente berços, a loja executa projetos de arquitetos e decoradores. Segundo o site da empresa, o estabelecimento busca oferecer aos clientes “ambientes personalizados e sob medida”.
A terceira loja, Le Petit, está situada em um dos bairros mais antigos e tradicionais de Belo Horizonte, considerado de “luxo” (nível 4) na classificação de bairros do IPEAD, um bairro cuja renda do chefe do domicílio é igual ou superior a 14,5 salários-mínimos. Trata-se de loja com atendimento com hora marcada, discretamente situada no saguão de um prédio comercial cujo acesso é realizado via interfone. Trabalha com móveis pré-fabricados e enxovais de luxo.
Nas três lojas, fomos atendidas por vendedoras do sexo feminino, embora na loja Conforto e Beleza haja também vendedores do sexo masculino, ali chamados “representantes”. A idade das vendedoras variou entre 18 e 60 anos. Em todos os estabelecimentos, nos apresentamos como pesquisadoras da Faculdade de Educação da UFMG, que estavam desenvolvendo uma pesquisa sobre quartos infantis. As entrevistas foram realizadas a partir de um roteiro e gravadas em um telefone celular. O Quadro 1 traz as características dos três estabelecimentos.
Joana Hauss | Conforto & Beleza | Le Petit |
---|---|---|
Bairro padrão alto. | Bairro padrão luxo. | Bairro padrão luxo. |
Loja de rua. | Loja de shopping (público mais diversificado). | Loja discreta dentro de prédio com campainha e portaria. |
Forte marca de gêneros. | Marcas de gênero menos evidentes. | Marcas de gênero menos evidentes. |
Quartos com temas. | Quartos com estilos. | Ênfase na qualidade, em materiais nobres, ideia de conforto. |
Produtos personalizados artesanais. | Produtos sob medida. Móveis práticos e funcionais. | Produtos personalizados. |
O material é menos nobre e mais econômico (ex.: MDF). | Menção a espaços reduzidos. O preço é um critério importante de compra. | Aproveitamento de espaço e preço não são critérios de compra importantes. |
Fonte: Elaborado pelas autoras, 2017.
Análise de conteúdo de um site de puericultura
A terceira ferramenta metodológica empregada diz respeito à análise de conteúdo de um site de puericultura com amplo acervo de matérias sobre decoração de quartos infantis. Tal escolha metodológica teve como pressuposto o fato de que a imprensa de decoração pode ser considerada como um dos principais veículos de legitimação de preferências, oferecendo uma educação do (bom) gosto, das maneiras legítimas de se apropriar dos espaços e objetos, além de veicular propagandas de produtos e serviços que possuem como público-alvo o mesmo segmento de público (PULICI, 2022).
Após o levantamento de publicações sobre o tema, o site <bebe.com.br>, do portal da Editora Abril, foi o escolhido pelas seguintes razões:
a) o grande volume de informações fornecidas pelo site sobre o próprio público;
b) o alto número de visualizações;
c) o fato de que as matérias de decoração não se restringiam a sugestões para quartos de bebê, mas incluíam quartos de crianças mais velhas;
d) o público-alvo (ver Tabela 1 a seguir);
e) a facilidade de acesso às informações e às imagens;
f) a queda de vendas das revistas impressas;
g) as categorizações do site.
Em novembro de 2014, o site contava com 12.021.474 visualizações e 3.070.779 visitantes únicos10. O perfil do internauta, delineado pela editora e disponibilizado na página para anunciantes, afirma que 53% do público do site é considerado classe B11: 99% são mulheres e 52% estão na faixa etária de 25 a 34 anos12.
Sexo | Classe social | Faixa etária | ||||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
M | F | A | B | C | D | E | Abaixo de 14 | 15-19 | 20-24 | 25-34 | 35-44 | 45-49 | 50+ | |
1% | 99% | 9% | 53% | 37% | 2% | 0% | 0% | 10% | 21% | 52% | 6% | 0% | 0% |
Fonte: Elaborada pelas autoras a partir dos dados da pesquisa de qualificação dos sites da Abril.
Na data da coleta de dados, a seção de decoração estava subdividida em alguns itens/links, dos quais foram selecionados para análise 16 subtítulos:
Quartos da Mostra Bebê 2014
Decoração de quarto de menino
Decoração de quarto de menina
Quarto compartilhado entre menino e menina
Quarto montessoriano
Cores perfeitas (e nada convencionais) para o quarto do bebê
Poltronas para amamentação: qual combina com você?
Quartos de bebê com um toque antigo
Quartos infantis e inteligentes
Monte uma brinquedoteca: o cantinho onde a única regra é se divertir
Almofadas: o toque especial na decoração
Berços ideais para um sono seguro
Decoração na medida certa
Valente (filme da Disney) inspira decoração de quarto infantil
Playground no quarto
O bê-á-bá da decoração
Examinamos os atributos utilizados para designar os quartos, selecionando não só os adjetivos, mas também as qualificações implícitas em outras classes gramaticais. “Alegrar”, por exemplo, foi contabilizado como “alegre”. Por fim, analisamos também algumas imagens e sua relação com os respectivos textos.
Entre a liberdade de escolher o próprio estilo e as injunções sociais
As características atribuídas aos quartos infantis pelas matérias vinculadas no site <bebe.com.br> foram recenseadas e ordenadas segundo a frequência com que apareciam no site (ver Tabela 2 e Figura 2).
Atributos | Valor | % | |
---|---|---|---|
1 | Fugir do tradicional, criativo, personalizado13 | 76 | 23 |
2 | Suave, leve, delicado, fofo | 63 | 19 |
3 | Lindo, bonito, charmoso | 43 | 13 |
4 | Prático, funcional, organizado | 43 | 13 |
5 | Alegre, descontraído14 | 33 | 10 |
6 | Sofisticado, requintado, chique, elegante | 19 | 6 |
7 | Descolado, moderno | 16 | 5 |
8 | Atemporal, clássico | 15 | 4 |
9 | Simples | 14 | 4 |
10 | Aconchegante | 13 | 4 |
11 | Seguro e limpo | 2 | 1 |
TOTAL | 337 | 100 |
Fonte: Elaborada pelas autoras, 2017.
Entre os grupos de atributos encontrados, dois apontam para a possibilidade de se conceber o quarto de dormir das crianças no quadro de um contexto não somente estético (como o do grupo 3 “lindo, bonito, charmoso”), mas também de subjetivação estética que se expressa tanto na recusa da convenção/tradição quanto nas propostas de personalização de objetos ou do espaço (grupo 1). Aponta também, nessa direção a baixa incidência dos atributos “atemporal” e “clássico” (grupo 8), características do que Lipovestky e Serroy (2015) denominam a home personalizada, quer dizer, um estilo contemporâneo de decoração que se define pelo ecletismo estético e pela deslegitimação da impessoalidade, como ilustram os trechos a seguir, retirados do site <bebe.com.br>: “[...] o quarto, planejado pelo Ateliê MR, manteve os tons branco e rosa na decoração. O destaque foi a mistura de elementos clássicos com modernos”; “Você deve se embasar no seu gosto pessoal para decidir, sempre equacionando com o espaço”. Em resumo, busca-se a expressão de um estilo próprio, as possibilidades de personalização e de customização dos objetos, evitando que o gosto pessoal se submeta a regras estéticas ou a estilos puros.
Na pesquisa de mercado desenvolvida na Faculdade de Economia da UFMG, também é reincidente a ideia da personalização. Como mostram as Tabelas 3 e 4, o questionário respondido pelos lojistas continha duas questões específicas sobre a oferta e a demanda de produtos personalizados.
Há oferta de produtos personalizados? | Valor | % |
---|---|---|
Não | 21 | 57% |
Sim | 16 | 43% |
Total | 37 | 100% |
Fonte: Pesquisa de mercado da Faculdade de Economia da UFMG.
Há demanda por produtos personalizados? | Valor | % |
---|---|---|
Sim | 20 | 54% |
Não | 17 | 45% |
Total | 37 | 100% |
Fonte: Pesquisa de mercado da Faculdade de Economia da UFMG.
Cabe salientarmos que a elaboração desse questionário foi precedida de levantamento exploratório de matérias veiculadas na mídia sobre decoração para crianças. Portanto, ao que tudo indica, o próprio questionário reflete o destaque conferido à ideia de personalização dos produtos e dos ambientes pelas matérias veiculadas em revistas e sites especializados.
Também nas entrevistas que realizamos com as vendedoras das três lojas de decoração, o subjetivismo estético está presente. Na loja Joana Hauss, a vendedora Natália15 afirmou que o produto de maior venda no estabelecimento são os quadros de MDF16 personalizados: “A gente faz o que o cliente quer. A gente tenta entender o que ele quer e faz em cima do que ele gosta”. Ela afirmou também que o perfil estético dos clientes é variado: “Tem quem goste de quartos temáticos, tem quem goste de um quarto básico”. Quando interrogada sobre as qualidades que seu público mais procura, ela respondeu que seus clientes buscavam praticidade, segurança e produtos personalizados, e que não consideravam significativa a demanda por produtos educativos.
Na loja Conforto e Beleza, fomos atendidas por duas vendedoras: Adriana, 46 anos, design de interiores e 17 anos de experiência com o mercado de móveis para criança; e Maria, 64 anos, curso superior completo e sete anos de experiência no ramo. Quando perguntamos sobre o que o público mais procurava em um produto, elas elegeram a segurança e o bom preço. Adriana contou que os produtos de maior vendagem eram os berços (pré-fabricados, em tamanho americano e padronizados de acordo com as regras de segurança do Inmetro). Entre os berços, aqueles com cabeceira em capitonê e em estilo provençal eram identificados pela vendedora como tendências de decoração. Para as crianças mais velhas, no entanto, os pais procuravam móveis sob medida e soluções para aproveitamento do espaço. Essa loja apresentava um perfil um pouco diferente das outras duas, uma vez que oferecia “soluções” em marcenaria, mas não objetos de decoração. O modelo era de um quarto “prático”, mais racionalizado e ascético do que ligado às exigências emocionais do consumidor. Todavia, o subjetivismo aparece aqui na ideia de um móvel “sob medida”, “de acordo com as necessidades do cliente”, sugerindo que a própria necessidade é personalizada.
Na loja Le Petit, fomos atendidas pela vendedora Fabiane, de 28 anos. Ela descreveu o público da loja como “classe AAA”. Ela afirmou que, em geral, a cliente comprava o móvel e ganhava um projeto de decoração em 3D personalizado: “A partir de um desenho, seja ele qual for que a mãe pedir, criamos o enxoval”. Ao apresentar sua linha de produtos, ela enfatizou o material: eram móveis de madeira nobre, colchas de percal 400 fios, almofadas de silicone antialérgico, bordados em veludo importado e talheres infantis de prata. As inspirações eram mais clássicas do que modernas e, quando indagamos sobre as características mais procuradas em um produto, ela respondeu: conforto, design/estética, segurança e produtos personalizados, acrescentando que não havia demanda por produtos educativos. No que diz respeito à dinâmica de troca dos móveis, ela explicou que havia uma preocupação da loja em oferecer móveis “para uma vida toda” e que, por volta dos seis anos, ou seja, depois do berço, que se transforma em minicama, as famílias adquiriam uma cama tamanho viúva17 “que acompanharia a criança até a cama de casal”. Nessa discreta loja de um bairro de luxo, que não era aberta para a rua, mas cujo acesso se dava por interfone, o desejo da mãe, qualquer que fosse ele, podia ser materializado, mas não em um material qualquer: a matéria do desejo importava quase tanto quanto o desejo.
Mais do que propor características estéticas (bonito, harmonioso etc.) ou estilos consagrados (moderno, provençal etc.), o mercado de decoração para crianças tem proposto que cada um siga seu próprio estilo e faça sua escolha pessoal, dentro de um sistema de objetos fundado sobre o princípio da diferença (BAUDRILLARD, 2009).
Mesmo a referência ao estilo provençal e a procura pelas cabeceiras de capitonê - expressões de uma certa nostalgia cultural - não são incoerentes com o estilo pessoal. Cada usuário compõe sua própria bricolage, combinando diferentes estilos; no entanto, cabe observar que o passado e o exótico constituem um refúgio disponível apenas para os indivíduos cuja trajetória social possibilita usufruir do domínio do espaço e do tempo (BAUDRILLARD, 2009). O domínio do tempo é dado àqueles que, vindos de famílias de prestígio, podem contar histórias de sua linhagem a partir de imóveis herdados e móveis antigos. O domínio do espaço, por sua vez, é próprio dos que podem viajar e aprendem a reconhecer a beleza em outras culturas, sobretudo nas culturas dominantes.
Assim, a personalização, que, no jargão do mercado, encontra sua tradução na expressão “produto diferenciado”, opera como um princípio distintivo que atua como resposta a uma padronização dos objetos que é própria da produção em larga escala. Por meio da possibilidade de criar seu próprio estilo, é dada ao consumidor uma escolha, essa espécie de “graça coletiva” e de “signo da liberdade”, que, realizada a partir de um leque de possibilidades, tem por objetivo provocar a ilusão de escapar das necessidades que o restringem (BAUDRILLARD, 2009, p. 149).
Por fim, cabe ressaltarmos que essa “complacência populista” (BOURDIEU, 2006), que atribui ao morador toda a competência em matéria de arquitetura doméstica, parece caracterizar não apenas as matérias de decoração infantil, mas também a imprensa de arquitetura e decoração de forma mais ampla, como mostra o artigo Entre o populismo cultural e a distinção: definições do “bem morar” no Brasil contemporâneo (PULICI, 2022).
A ampla gama de pequenas diferenças
O convite do mercado para que cada um decida individual e livremente, em outras palavras, a partir unicamente de seu gosto pessoal, é constrangida por duas razões. Primeiro, pelo fato de que o próprio gosto é socialmente constituído (BOURDIEU, 2006); depois, pelo fato de que o mercado projeta e filtra antecipadamente a oferta, impedindo, ele mesmo, a realização dessa promessa de personalização. Para exemplificar essa ideia de Baudrillard (2009), convém observar os dados sobre o mercado de decoração para as crianças sob a perspectiva de gênero.
Na entrevista realizada na loja Joana Hauss, quando a vendedora foi indagada sobre os temas de quartos ali disponibilizados, ela mostrou uma prateleira com diversos catálogos, confeccionados pela loja e separados por etiquetas: quartos de meninos e quartos de meninas. Para meninos, ela explicou, os temas mais procurados são selva, fazenda e meios de transporte; enquanto para as meninas, as mães procuravam pelo estilo provençal.
O discurso da vendedora da loja Le Petit foi menos explícito a esse respeito. Ela afirmou que o rosa não estava mais sendo muito usado e que já chegou até mesmo a decorar quartos de menina na cor azul (embora não tenha mencionado quartos de menino na cor rosa). No entanto, ao mostrar produtos de seu catálogo, ela apontou a possibilidade de escolher entre escrivaninhas e penteadeiras, estas últimas “para as meninas”.
Esses exemplos demonstram que, apesar de um discurso de mercado que faz aporia da liberdade de escolha e do gosto pessoal, na prática, as escolhas estão condicionadas por um universo de oferta limitado e por uma demanda que põe em jogo hierarquias sociais ligadas a gênero (no caso do exemplo anteriormente analisado) e, também, evidentemente, à classe social e raça/etnia. Desse modo, escamoteada por um discurso que convida a fugir do tradicional, fazer diferente e criar seu próprio estilo, a decisão de compra ocorre no bojo de um universo restrito e conservador que atua na manutenção das hierarquias sociais.
Veja-se a seguir outro exemplo de como o mercado filtra antecipadamente as possibilidades de escolha. A Figura 4, retirada do site <bebe.com.br>, pode ser compreendida como uma “imagem franca” (BARTHES, 1990; KRUPICKA; LA VILLE, 2015), na medida em que visa ser rapidamente compreendida pelo maior número de pessoas possível. Nela, vê-se um quarto de bebê com parede cor-de-rosa, berço e cômoda laqueados em branco, kit de berço ornado com laços e babados, além de adereços representando flores e bichos de pelúcia que, vestidos, sugerem um certo controle da cultura sobre os instintos animais. Tal imagem traz a seguinte legenda: “O rosa ainda é a cor predominante nas decorações femininas. Se você é apaixonada por este tom, mas deseja fugir do tradicional, se inspire neste quartinho projetado pelo Atelier X”.
A imagem e a legenda que sugere “fugir do tradicional” expõem um evidente paradoxo, uma vez que a decoração do quarto fotografado é bastante convencional. No entanto, inexiste na proposta apresentada um discurso prescritivo e padronizado sobre como deve ser um quarto de menina (ou de menino). Ao contrário, na legenda da foto, tudo leva a crer que a decoração do quarto proposta é ancorada no desejo pessoal de escapar dos padrões tradicionais.
Essa afirmação fica mais evidente se compararmos o quarto da Figura 4 com o da Figura 5, que traz um trecho de uma matéria da década de 1950 veiculada na Revista Acrópole, periódico de arquitetura e decoração publicado entre as décadas de 1930 e 1970 que compõe o universo da pesquisa de Tereza Dantas (2014) sobre o mobiliário para crianças. Como mostra o exemplo a seguir, na metade do século XX, as matérias muitas vezes prescreviam, textual e explicitamente, a necessidade de generificação dos quartos infantis, a saber: uma decoração mais direcionada e calma para meninas, em geral ligada a atividades como brincar de casinha e ler, ao passo que, para os meninos, as sugestões de decoração eram mais dinâmicas, estimulando-os a usar todo o espaço do quarto e decorar as paredes com cartazes.
Fonte: Adaptada de Acrópole (1954 apudDANTAS, 2014, p. 119-120). Estudo para quartos infantis de Pierre Weckx.
“Para as meninas, as características são bem diferentes e mais calmas; a decoração da peça deve ser mais delicada, os tecidos mais finos, e os móveis mais leves. A personalidade da menina é sensível a tudo que a rodeia. Pode-se colocar no quarto, desde cedo, plantinhas e pequenos bibelôs a fim de que ela os trate com cuidado”. (ACRÓPOLE, 1954 apudDANTAS, 2014, p. 120).
Assim, a comparação das publicações sobre decoração de quartos infantis em diferentes períodos históricos leva a crer que o discurso do subjetivismo estético foi substituído pelo discurso prescritivo. No lugar de uma regra ética e estética para todos, o que se constata é um discurso de liberdade “para ser quem se é”. Contudo, percebe-se que a reprodução dos estereótipos de gênero persiste nas proposições de decoração das revistas e dos sites especializados, bem como nas práticas dos lojistas. Isso mostra que a crença na liberdade para criar o próprio estilo, fundada no princípio da escolha, é mais limitada do que parece. A diferença entre os produtos oferecidos constitui, a bem da verdade, uma diferença acessória e marginal (BAUDRILLARD, 2009), uma vez que as opções oferecidas pela produção em escala industrial só podem produzir pequenas diferenças ou diferenças não essenciais.
Contudo, justamente por serem pequenas e marginais, essas diferenças favorecem a reprodução sociocultural e, simultaneamente, fazem com que o produto e o consumidor sejam classificados dentro de um sistema cultural de oposições baseado na escolha (BAUDRILLARD, 2009; BOURDIEU, 2006). É na medida em que a personalização - embora dirigida pelo mercado - é vivida pelos consumidores como liberdade, que a diferença marginal - expressa em acessórios e detalhes - catalisa seu poder distintivo.
Na desventura do indivíduo descrita por Baudrillard (2009), bem menos otimista do que a perspectiva de Lipovetsky e Serroy (2015, p. 163), a sociedade “[...] realiza todas as revoluções possíveis, contanto que sejam revoluções sobre si mesma. Sua produtividade crescente não leva a qualquer modificação estrutural”. Assim, mesmo os objetos decorativos destinados ao espaço privado se estruturam não apenas em relação às necessidades individuais do consumidor, mas também em função da ordem da reprodução de um determinado sistema simbólico que atua na permanência de relações de dominação, no caso em questão, nas relações de gênero18.
Considerações finais
Neste artigo, buscamos demonstrar como não apenas a família e as instituições educativas se constituem como agentes da socialização das crianças urbanas de classes favorecidas, mas também que há outros agentes, dentre os quais o mercado de decoração infantil e os diversos produtores de artigos para a infância. Além disso, o trabalho explorou as maneiras pelas quais as dinâmicas desse mercado atuam também na socialização das crianças de elite. Sócio-historicamente cambiantes, as tendências em decoração são resultado da disputa pelo significado legítimo de casa, família e criança; tendências marcadas, na contemporaneidade, pela superação da prescrição dos estilos tradicionais e pela decorrente ascensão do “estilo personalizado”. No entanto, embora tenha se verificado nos dados coletados pela pesquisa a marca discursiva do “fazer diferente”, as fotografias e os relatos das vendedoras apontaram para práticas que em nada fogem do convencional, mas que, ao contrário, reafirmam tradicionais formas de dominação social.
Perpassados por questões de classe social, geração e gênero, a composição dos móveis e dos objetos dos quartos infantis estrutura uma espécie de cenário que expressa expectativas sociais relacionadas a um ideal de infância a ser encarnado por meninos e meninas de estratos economicamente favorecidos, podendo ser lidos como uma estratégia de classe para a manutenção de uma determinada posição social.
Evidentemente, essas injunções não devem ser lidas de forma determinista, dado que o mercado de decoração não é o único, tampouco o principal agente de socialização nos primeiros anos de vida. Além disso, levando em consideração a superação das perspectivas tradicionais de socialização, que tomavam os atores sociais como passivos nesse processo, cabe às crianças contemporâneas a difícil tarefa de conferir mais ou menos peso a cada uma dessas influências, reinterpretando os significados previamente dados, mas nem sempre coerentes, oriundos das mais diversas instâncias de socialização que se apresentaram ao mundo ocidental a partir da emergência da cultura de massa e das tecnologias de informação (SETTON, 2005; SIROTA, 2022).
Assim, a lógica da prévia restrição da oferta realizada pelo mercado de decoração - operação que frequentemente ocorre baseada em diversos estereótipos e que contribui para a naturalização das desigualdades - se configura como uma circunstância intransponível e que tem seus efeitos potencializados na medida em que não se restringe a esse segmento comercial, mas que se reproduz também na indústria da moda, dos brinquedos e de outros produtos endereçados a esse público.
Por fim, vale salientarmos que, embora a coleta dos dados aqui tratados tenha sido realizada há alguns anos da publicação deste artigo, consideramos que suas conclusões permanecerão válidas por muito tempo. Ainda que o comércio varejista de decoração seja sujeito a flutuações do mercado, e tendo realmente sido atingido pela crise econômica já prevista pela cliente da pesquisa de mercado encomendada à Faculdade de Economia da UFMG, os significados atribuídos aos produtos e as razões práticas que movimentam a dinâmica entre consumidores e mercado são de lenta transformação. Assim, no lugar de perder seu valor, os dados desta pesquisa se mostram ainda mais oportunos dado que investigações recentes junto aos grupos sociais favorecidos dos centros urbanos têm apontado para uma intensificação da cultura do quarto (GLEVAREC, 2010) que o isolamento social adotado durante a pandemia da covid-19 só fez alargar, potencializando a relação entre crianças e espaços domésticos e seus efeitos na socialização das crianças.