Introdução
Esta pesquisa, realizada no âmbito do Mestrado Profissional em Educação Inclusiva em Rede Nacional (PROFEI), na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), tem o objetivo de discutir a aprendizagem escolar de estudantes com deficiência intelectual, nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, em um Centro Estadual de Educação Básica para Jovens e Adultos, no Estado do Paraná. A problemática elencada foi: Quais são os desafios relacionados à aprendizagem escolar apontados pelos estudantes com deficiência intelectual na Educação de Jovens e Adultos (EJA)? Quais as implicações da percepção de alunos com deficiência intelectual e professores, acerca da aprendizagem escolar na EJA?
A fundamentação teórica sustenta-se em Vigotski1 (1997, 2007, 2011, 2021) e em estudos de Leite (2020), Nascimento (2017) e Trentin (2018) sobre aprendizagem escolar de jovens e adultos, com deficiência intelectual. Com base nos pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, que deposita seus elementos fundantes, na visão psicossocial da deficiência intelectual, a presente pesquisa destaca os aspectos da mediação e da compensação, como elementos promotores de aprendizagem, o que coaduna com os princípios da educação inclusiva, de respeito às diferenças humanas.
O procedimento de pesquisa utilizado foi o estudo de caso (LUDKE; ANDRÉ, 1986), realizado em uma escola que atende especificamente jovens e adultos, um Centro Estadual de Educação Básica para Jovens e Adultos, em um município, no Estado do Paraná, com a participação de três alunos com deficiência intelectual e dez professores de diferentes componentes curriculares, dos anos finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. Para a coleta de dados, foram utilizados os seguintes instrumentos: a) entrevista semiestruturada aplicada aos estudantes com deficiência intelectual; e b) questionário aberto, aplicado aos professores(as). Os dados foram analisados por meio da Análise de Conteúdo (BARDIN, 1977).
Este artigo divide-se, então, em três seções. A primeira seção trata do desenvolvimento da aprendizagem da pessoa com deficiência intelectual, na perspectiva biopsicossocial, com ênfase nos preceitos da mediação e da compensação (VIGOTSKI, 1997, 2007, 2011, 2021) e da aprendizagem escolar de jovens e adultos com deficiência intelectual na EJA, a partir de dados de revisão de literatura. A segunda seção delineia os procedimentos metodológicos, e a terceira retrata a aprendizagem escolar de jovens e adultos com deficiência intelectual na EJA, com a análise dos dados e a discussão dos resultados. E, por fim, apresentam-se as considerações sobre o estudo.
O desenvolvimento da aprendizagem da pessoa com deficiência intelectual
De acordo com Vigotski (2011), a deficiência intelectual pode ser classificada em primária e secundária. A primária está relacionada às características biológicas inerentes à deficiência, enquanto a secundária diz respeito à interação social, aos processos de mediação, instrumental ou simbólica, estabelecidos nas relações sociais dos sujeitos, e à leitura feita nas relações concretas de sua vida social acerca da deficiência (VIGOTSKI, 1997, 2011, 2021; VYGOTSKY; LURIA, 1996).
Em relação às possibilidades de desenvolvimento da aprendizagem da pessoa com deficiência intelectual, Vigotski (1997) não despreza o núcleo biológico, mas considera o meio social e cultural como mediadores das relações entre as pessoas com deficiência e o ambiente, para que o contato com os objetos de conhecimento estimule a aprendizagem, visto que o homem não é apenas um ser que se desenvolve de forma orgânica, mas é essencialmente social e cultural (VIGOTSKI, 1997, 2021).
Para a Organização Mundial da Saúde - OMS (2011), coexistem dois modelos sobre as concepções de deficiência: o modelo cuja incapacidade é tida como um problema, causado por doença, trauma ou problemas de saúde, que, no caso da pessoa com deficiência intelectual, afeta o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, como a linguagem, a memória, o pensamento, o raciocínio e a formação de conceitos; e o modelo social da deficiência, que está relacionado ao resultado entre as áreas afetadas e os fatores pessoais e sociais que constituem o ambiente no qual o sujeito vive. A OMS defende o modelo “biológico-psíquico-social” (OMS, 2011), no qual há interação entre os aspectos biológicos e os fatores ambientais e pessoais. Todavia, de acordo com Vigotski (1997), a deficiência é uma condição, não um fator limitante do desenvolvimento e, para que uma pessoa com deficiência intelectual desenvolva a aprendizagem, devem ser consideradas, sobretudo, as oportunidades de estimulação e interação com os seus pares e o meio.
Vigotski (2011, p. 861) afirma que os “[...] caminhos indiretos do desenvolvimento são possibilitados pela cultura, quando o caminho direto está impedido”. Segundo o autor, os caminhos indiretos são adquiridos pela humanidade, no desenvolvimento histórico-cultural, enquanto o caminho direto corresponde ao caminho orgânico, às respostas naturais do desenvolvimento. Os caminhos indiretos surgem quando aparece um obstáculo ao caminho direto e quando se impede a resposta por esse caminho. Dessa maneira, “[...] as formas culturais de comportamento são o único caminho para a educação da criança anormal” (VIGOTSKI, 2011, p. 368), em que, a partir dos elementos produzidos culturalmente, surgem as formas de compensação. Nesse sentido, para Vigotski (1997), nas pessoas com comprometimento intelectual, pode-se compensar as funções superiores, de pensamento e raciocínio, por exemplo, utilizando-se de instrumentos, recursos criados culturalmente, algo como o sistema Braile para os cegos ou a linguagem de sinais para os surdos.
Entretanto, não se trata de pensar que as formas de compensação supririam todas as funções afetadas pela deficiência. O que está em evidência são as possibilidades de desenvolvimento e autonomia à pessoa, a partir da compensação de algumas funções superiores atingidas. Defende-se a convivência na coletividade, como um mecanismo para a apropriação daquilo que é produzido culturalmente e, por meio dessas relações, “[...] criar uma vida dotada de sentido e com trabalho” à pessoa com deficiência (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 389). Por conseguinte, caberia à sociedade, à escola, ao grupo familiar oportunizar formas de compensação, para que pessoas com deficiência intelectual possam se desenvolver, ir além da condição negativa, construída, historicamente, de menos desenvolvida e infantilizada.
No desenvolvimento da aprendizagem escolar, as formas de compensação intercorrem pela mediação, outro conceito defendido por Vigotski (1997, 2021). A mediação funciona como uma tríade, um processo, em que dois elementos necessitam de um terceiro, fazendo uma intervenção para se relacionarem, não sendo relação direta, mas mediada. A mediação utiliza-se de instrumentos, presentes no mundo real e signos, representações mentais da realidade que auxiliam na formação das funções psicológicas, para proporcionar o desenvolvimento de significados e de conceitos (VIGOTSKI, 1997, 2021).
De acordo com Vigotski (2007), a relação de mediação ocorre na área do desenvolvimento denominada de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP). Vigotski (2007) define as zonas do desenvolvimento em: Real, Proximal e Potencial.
A Zona de Desenvolvimento Real corresponde ao “[...] nível de desenvolvimento das funções mentais da criança que se estabeleceram como resultado de certos ciclos de desenvolvimento já completados” (VIGOTSKI, 2007, p. 97), refere-se, assim, àquilo que a pessoa já consegue realizar de forma independente, com autonomia. A Zona de Desenvolvimento Potencial, segundo Vigotski (2007), refere-se às atividades que uma pessoa não consegue realizar sozinha, mas que conseguirá realizar com a ajuda do outro, alguém com mais experiência, que já domine aquela atividade. Logo, a ZDP é definida pela
[...] distância entre o nível de desenvolvimento real que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes. (VIGOTSKI, 2007, p. 97).
Na ZDP, encontram-se funções que ainda não amadureceram, mas que amadurecerão e resultarão no desenvolvimento potencial, que é o desenvolvimento mental prospectivamente, organizado a partir da interação com pares mais capazes. No desenvolvimento da aprendizagem da pessoa com deficiência intelectual, a mediação pelo outro, por alguém mais experiente na cultura, contribui para as trocas e a internalização, a estimulação das funções psicológicas superiores e a formação de conceitos (VIGOTSKI, 1997, 2021).
À vista disso, conclui-se que a aprendizagem da pessoa com deficiência intelectual, desenvolve-se de forma concomitante ao comportamento social, articulada às interações, evidenciando-se a importância da mediação estruturada e das formas de compensação, para a aprendizagem escolar em jovens e adultos com deficiência intelectual, considerando-se as condições e as inerências da vida adulta.
Produções sobre aprendizagem escolar de estudantes com deficiência intelectual na EJA
Apesar da relevância do tema, o desenvolvimento da aprendizagem escolar, em estudantes, jovens e adultos com deficiência intelectual, é uma questão pouco explorada pelos estudos científicos sobre a inclusão na EJA. Bueno e Oliveira (2022) realizaram levantamento sobre o AEE e a aprendizagem escolar de jovens e adultos com deficiência intelectual, no banco de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), no período compreendido entre 2008, ano de implantação da Política Nacional de Educação Especial até o ano de 2020. Foram identificadas 17 produções (Quadro 1). Para os anos de 2008 e 2009, não foram encontradas publicações.
Temas | Autor e ano de publicação |
---|---|
A educação como direito, política e estruturas. | Freitas (2010). |
Trajetória escolar de jovens adultos com deficiência intelectual. | Souza (2018); Tinós (2010). |
Inclusão de alunos com deficiência intelectual na EJA, Ensino Fundamental ou Ensino Médio. | Araújo (2013); Bins (2013); Cunha (2015); Dantas (2012); Freitas (2014); Gonçalves (2014); Morais (2019); Nascimento (2017). |
Formação de professores sob a perspectiva inclusiva. | Bueno (2019); Cardozo (2015); Leite (2020); Nogueira (2020); Tassinari (2019); Trentin (2018). |
Fonte: Adaptado de Bueno e Oliveira (2022, p. 10).
Verificou-se, no levantamento realizado por Bueno e Oliveira (2022), que a aprendizagem escolar, como um instrumento de articulação para vivência da vida adulta e desenvolvimento social dos estudantes com deficiência intelectual, ainda é um dos desafios da EJA, por diferentes questões que emergem do contexto inclusivo, como a formação dos professores, o currículo, a organização das atividades, a oferta de AEE etc. Os estudos de Bueno (2019), Cardozo (2015), Leite (2020), Nascimento (2017), Nogueira (2020), Tassinari (2019) e Trentin (2018) evidenciaram a importância da formação de professores, para atuação na perspectiva inclusiva, para o desenvolvimento da aprendizagem em estudantes com deficiência intelectual.
Dessa categoria, nos trabalhos de Leite (2020), Nascimento (2017) e Trentin (2018), a questão do desenvolvimento da aprendizagem é mais proeminente, com propostas de pesquisa de cunho interventivo. Nascimento (2017) argumenta, baseando-se nos estudos histórico-culturais, que é necessário superar o pessimismo sobre a EJA, como campo pedagógico, acreditar mais nas possibilidades de aprendizagem dos estudantes com deficiência intelectual e mudar ações pedagógicas. Para Leite (2020, p. 53), geralmente, mesmo após anos de escolarização dos estudantes com deficiência intelectual, os avanços acadêmicos e sociais são poucos, porque “[...]as implicações cognitivas requerem demandas específicas para a aprendizagem que incluem as práticas pedagógicas e de avaliação adequadas a esses estudantes”.
Entretanto, na EJA, essas demandas nem sempre estão presentes no conjunto de elementos que levam à aprendizagem escolar. Trentin (2018) entende que a aprendizagem escolar na EJA, para a pessoa com deficiência intelectual, vai muito além da mera reprodução de atividades e que, independentemente do nível ou da modalidade, requer conteúdos e atividades significativas que levem à elaboração de novos conhecimentos, que visem a avanços, não só à conclusão da escolaridade, mas à formação para a vida, para o desenvolvimento social e o trabalho.
Assim sendo, o exposto evidencia que buscar a compreensão da aprendizagem escolar de jovens e adultos com deficiência intelectual é fundamental para se avançar na produção de conhecimentos sobre a aprendizagem e nas oportunidades para o desenvolvimento social e o trabalho de jovens e adultos com deficiência intelectual.
Procedimentos metodológicos
A abordagem metodológica da pesquisa caracteriza-se por sua natureza qualitativa e objetivo exploratório. Quanto aos procedimentos, trata-se de um estudo de caso, que, segundo Lüdke e André (1986, p. 17), é um tipo de pesquisa indicada, para “[...] estudar algo singular, que tenha um valor em si”. Conforme as autoras, esse tipo de estudo pressupõe três fases: 1. Exploratória; 2. Delimitação do estudo e coleta dos dados; 3. análise sistemática e a elaboração do relatório de resultados.
O local escolhido para o estudo foi um Centro Estadual de Educação Básica para Jovens e Adultos, no Estado do Paraná, uma escola que atende, especificamente, jovens, adultos e idosos, nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio da EJA. No período de realização da pesquisa, que compreendeu o segundo semestre do ano letivo de 2021, havia um total de 453 alunos frequentando os turnos vespertino e noturno e 30 professores atuando nos diferentes componentes curriculares.
O Centro Estadual de Educação Básica para Jovens e Adultos, em questão, conta com AEE realizado na Sala de Recursos Multifuncionais (SRM), Tipo I na EJA, nas áreas de deficiência intelectual, deficiência física, neuromotora, transtornos globais do desenvolvimento e transtornos funcionais específicos, com funcionamento nos turnos vespertino e noturno. No momento da pesquisa, contava com 13 alunos, entre os quais cinco são alunos com deficiência intelectual.
O caso em estudo é sobre aprendizagem escolar dos estudantes com deficiência intelectual, discutido a partir da perspectiva dos estudantes com deficiência intelectual e dos professores que atuam nesse Centro Estadual de Educação Básica para Jovens e Adultos. Dos cinco alunos com deficiência intelectual, matriculados na EJA, três concordaram em participar da pesquisa. Quanto às etapas de escolarização, um estava frequentando os anos finais do Ensino Fundamental e dois estavam no Ensino Médio.
Para a participação na pesquisa, os professores foram selecionados a partir dos seguintes critérios: a) estar atuando na EJA há mais de um semestre; e b) estar atuando ou já ter atuado com alunos com deficiência intelectual. Considerando o critério adotado, 22 professores foram convidados e dez concordaram em participar. Os informantes envolvidos no estudo são: a) três alunos com deficiência intelectual, com idade entre 20 e 45 anos; e b) dez professores dos seguintes componentes curriculares: Ciências, Física, Matemática, Química, Língua Portuguesa, Arte, Biologia e Língua Inglesa.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), sob o Parecer Consubstanciado nº 4.825.587. Os sujeitos que concordaram em participar foram informados e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), tendo sido informados da garantia do anonimato, dos riscos e das possibilidades de participação, bem como do direito da desistência em qualquer tempo.
Para a coleta de dados, foram utilizados, como instrumentos, a entrevista semiestruturada, aplicada aos estudantes com deficiência intelectual e questionários abertos, aplicados aos professores. Optou-se pela entrevista semiestruturada para os estudantes com deficiência intelectual por considerar que esse instrumento cria uma relação de interação entre quem pergunta e quem responde, em que “[...] o entrevistado discorre sobre o tema proposto com base nas informações que ele detém e que no fundo são a verdadeira razão da entrevista” (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 33-34) e para evitar que os estudantes se recusassem a participar ou, ainda, que detalhes importantes fossem perdidos, caso tivessem que responder na forma escrita. A aplicação de questionário aberto aos professores considerou possibilitar mais autonomia e engajamento, tendo em vista a disponibilidade de tempo e a familiaridade que esses profissionais apresentam com esse tipo de instrumento de pesquisa.
A entrevista semiestruturada, constituída por dez questões abertas, seguiu o seguinte roteiro: a) trajetória e motivos para buscar a escola de EJA; b) percepção da escola; c) avaliação das aulas e do AEE; d) perspectivas sobre a aprendizagem escolar e a vida social; e) dificuldades encontradas na escola e no processo de aprendizagem. O questionário aberto, por sua vez, com dez questões, adotou as seguintes abordagens: a) concepção de educação inclusiva e deficiência intelectual; b) formação para atuação na perspectiva inclusiva; c) prática colaborativa com o AEE; d) planejamento/desenvolvimento das aulas; e) percepção da aprendizagem e desenvolvimento pedagógico dos estudantes com deficiência intelectual; f) desafios/dificuldades da aprendizagem escolar de jovens e adultos com deficiência intelectual.
Para a análise dos dados, optou-se pela Análise de Conteúdo (BARDIN, 1977). As entrevistas foram analisadas a partir da análise da enunciação, uma das técnicas da Análise de Conteúdo, em que “[...] cada entrevista é estudada em si mesma como uma totalidade organizada e singular. Trata-se do estudo dos casos. A dinâmica própria de cada produção é analisada e os diferentes indicadores adaptando-se à irredutibilidade de cada locutor” (BARDIN, 1977, p. 175).
Para a análise dos questionários, utilizou-se a análise por categorias, que funciona, segundo Bardin (1977, p. 153), por “[...] operações de desmembramento do texto em unidades, em categorias segundo reagrupamentos analógicos”. Considerando-se o critério da pertinência (BARDIN, 1977) e, em concordância com as questões de investigação do estudo, os elementos em comum, nas respostas, serviram para definir as categorias iniciais, posteriormente reagrupadas em três categorias finais.
A aprendizagem escolar de jovens e adultos com deficiência intelectual: o que dizem os estudantes com deficiência intelectual
Adotando a análise da enunciação (BARDIN, 1977) e considerando o objetivo da pesquisa, o roteiro da entrevista e os elementos em comum presentes nas repostas dos estudantes, os dados foram delimitados nas seguintes categorias de análise: 1) Motivos para aprender; 2. Participação/envolvimento nas atividades da sala de aula e no AEE; 3) Entendimento dos conteúdos essenciais; 4) Perspectivas sobre a aprendizagem escolar e relação com a vida social; 5) Dificuldades vivenciadas na escola e nos processos de aprendizagem. Os participantes foram identificados por A1, A2 e A3.
Motivos para aprender
Os dados mostraram que, para os estudantes, o motivo principal que os impulsiona a buscar a escola para aprender e terminar os estudos básicos está relacionado ao mundo do trabalho, para, assim, conseguirem adentrar, permanecer ou ascender no emprego.
[...] eu vô continuá na escola, estudando, aprendendo, até terminá os estudo [...] hoje, pra tudo tem que tê segundo grau [...], vai sê muito bom pra mim. (A2).
Quando eu termino uma matéria aqui, eu já ganho um prêmio lá na fábrica [...]; daí, quando terminá tudo, meu pagamento vai subi. (A3).
É bom tá na escola [...], é bom sabê as coisa [...], que quero istudá, pra trabaiá, fazê minhas coisa, casá, compra uma casa pra minha mãe. (A1).
Decorre-se dessas afirmações o que preconiza a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva de Educação Inclusiva - Pneepei (BRASIL, 2008): a escolarização da pessoa com deficiência na EJA deve possibilitar a ampliação de oportunidades de formação para a inserção no mundo do trabalho e efetiva participação social. Vygotsky e Luria (1996) defendem a escola como espaço para a apropriação daquilo que é produzido culturalmente e, por meio dessas relações, ter a oportunidade para uma vida melhor, com sentido e trabalho. Essa busca de oportunidade pode ser observada na fala do estudante A1:
Eu tava muito atrasado, estudei na APAE [Escola de Educação Básica na modalidade de Educação Especial, no Estado do Paraná] e fui ficando atrasado na escola [...], não podia mais ficá estudando lá com as criança [...], não sô mais criança, daí eu vim pra cá, [...] eu quero aprendê as coisa, terminá a escola pra arrumá um serviço. (A1).
Emerge dessa afirmação que a EJA representa não só a possibilidade de aprendizagem escolar e continuidade dos estudos, mas, sobretudo, de ampliação de formação para inserção no mercado de trabalho (BINS, 2013; DANTAS, 2012; SOUZA, 2018). Sobre isso, Trentin (2018) observou que, para os sujeitos com deficiência intelectual que frequentam a EJA, deveria ser oferecida, em consonância com a certificação, uma formação crítico-reflexiva que envolvesse capacitação para o mundo do trabalho, para a vida social e cultural.
Participação/envolvimento nas atividades da sala de aula e no AEE
Sobre a participação em sala de aula, todos os estudantes afirmaram participar das aulas, com interação entre os colegas e os professores. Nesse sentido, a mediação pelo outro, como um caminho para a aprendizagem, foi destacada pelos participantes:
[...] nas prova a professora me ajuda, lê, explica [...] e, às vezes, a gente faiz prova e tarefa em grupo, e eu gosto, porque a gente aprende muito com os amigo da sala. (A2).
Eu faço quase tudo sozinho [...], tem veiz que pergunto para a professora ou para os colega, mais, na matemática eu sempre preciso de ajuda, e a minha amiga [...] me ajuda. Eu sento junto com ela pra fazê as contas. (A3).
Contudo, destacou-se a observação de que nem todos do grupo colaboram para a interação, ou ao menos de uma forma que o estudante com deficiência intelectual possa melhor compreender o que é construído nas aulas:
As aula são boa, tem professor que dá mais atenção pra gente [...], outros nem tanto. (A3).
As aula são tudo boa [...], mais, eu sempre preciso de um empurrão pra fazê as coisas, minha mãe sempre fala isso. Quando eu entendo, eu faço bem-feito. (A1).
De acordo com Vigotski (1997, 2021), pessoas com deficiência intelectual têm mais sucesso, em seu aprendizado, por processos de mediação e de inter-relacionamento, seja por meio de um recurso, ou pelo outro, alguém mais avançado culturalmente. Vigotski (2021, p. 218), ao analisar as combinações sociais entre pessoas com deficiência intelectual, afirma que: “Na relação social acontece uma ajuda mútua. Aquele que é intelectualmente mais dotado adquire a possibilidade de manifestar sua atividade social para o que é menos dotado e ativo”. Os grupos heterogêneos são os ideais para o desenvolvimento da aprendizagem da pessoa com deficiência intelectual (VIGOTSKI, 1997, 2021), em consonância com a perspectiva de educação inclusiva atual. No entanto, cabe saber qual é o “empurrão”, presente na fala de A1, que o estudante precisa e, assim, buscar caminhos, organizar mediações e formas de compensação, caminhos indiretos, recursos criados culturalmente (VIGOTSKI, 1997), para que jovens e adultos com deficiência intelectual possam interagir melhor, entender o que está sendo ensinado e avançar em seu processo de aprendizagem.
Sobre a participação no AEE, os estudantes apontaram dificuldades, para participar desse atendimento no contraturno, por causa do deslocamento e do trabalho durante o dia, ou para frequência, no mesmo turno, que os obriga a cursar menos componentes curriculares que os disponibilizados aos demais estudantes. Entretanto, todos afirmaram que procuram participar, pois esse atendimento contribui para a aprendizagem:
[...] tem dia que venho de noite pra Sala de Recurso. [...] eu gosto, me ajuda com as tarefa [...], mais é ruim pra vim de noite [...] porque é muito apurado pra mim, porque já venho de tarde [...], eu venho de a pé ou de bicicleta [...], de noite não passa ônibus lá no [nome do bairro]. (A1).
[...] eu venho de noite só, porque de dia tenho serviço [...] eu vou com a professora [nome da professora da Sala de Recursos], porque ela ajuda a gente com as matéria, a fazê as coisa [...]. (A2).
Na sala de recurso, a professora me ensina e me anima prá continuá estudando [...], porque tem hora que dá vontade de largá [...], só que tô bem atrasado, já era pra tê terminado a escola. (A3).
Quanto à oferta de AEE, ainda que a SRM seja priorizada, a Pneepei (BRASIL, 2008) não a define como a única possibilidade de oferta. Todavia, por ser priorizada pela disponibilidade de financiamento, esse tipo de atendimento ainda é o que predomina nos contextos da EJA, quando eles contam com essa oferta (BUENO, 2019; CARDOZO, 2015; LEITE, 2020; NASCIMENTO, 2017; NOGUEIRA, 2020; TRENTIN, 2018).
De acordo com Nogueira (2020), resultados mais promissores ao acesso e à aprendizagem escolar de jovens adultos com deficiência intelectual são evidenciados quando se disponibilizam estruturas que favorecem esses processos, como a disponibilidade do AEE. Nesse sentido, é necessário avançar na reflexão sobre o AEE na EJA, para o estudante com deficiência intelectual, pensando em tempos e recursos pedagógicos para além da SRM.
Entendimento dos conteúdos essenciais
Em relação ao entendimento dos conteúdos essenciais, os estudantes afirmaram que há conteúdos mais difíceis para aprender, principalmente os que envolvem as funções superiores complexas, da memória, raciocínio e abstração (VIGOTSKI, 1997), para fazer atividades e avaliações e sustentam a necessidade de apoio para poderem desenvolver o que lhes é proposto:
[... ] tem matéria que é difícil, tem que fazê conta [...] mais, tem veiz que a profe deixa a gente usá calculadora, então dá, eu sei fazê conta na calculadora do celular. (A1).
[...] a professora me ajuda a fazê as prova, que é muito difícil [...], sempre me ajudam, a professora, ou os amigo, que também me incentiva e me ajuda bastante. (A2).
[...] na matéria de matemática eu sô mais devagar [...], sofro mais pra fazê as coisa, a [nome de uma colega da sala] me ensina [...]. (A3).
Ponderando sobre a questão da aprendizagem de conteúdos abstratos ou mais difíceis, para o estudante com deficiência intelectual, como “fazê conta”, conforme colocou o estudante A1, o uso da calculadora, “eu sei fazê conta na calculadora do celular”, um instrumento criado culturalmente, pode ser entendido como uma forma de compensação às funções psicológicas comprometidas pela deficiência, da memória e raciocínio (VIGOTSKI, 1997). Assim sendo, a escola manifesta condições de estimular o aprendizado de conteúdos mais complexos, porém essenciais à vivência da vida adulta, como fazer cálculos básicos, utilizando-se de uma forma de compensação, a partir de recurso auxiliar, criado pelo homem.
Leite (2020) afirma que organizar os processos de ensino e de aprendizagem, para jovens e adultos com deficiência intelectual na EJA, é desafiante, pois os professores desconhecem como o desenvolvimento da aprendizagem, em estudantes com deficiência intelectual, ocorre, “seja pela lacuna na formação ou ainda pela crença na incapacidade desses estudantes” (LEITE, 2020, p. 38). Nascimento (2017, p. 124-125) acredita que: “A escola pública carece de uma reestruturação para atender os jovens e adultos com deficiência intelectual”.
Por isso, é essencial que os professores, os mediadores da ação pedagógica, compreendam a deficiência intelectual como uma condição que leva a situações particulares de aprendizagem, a partir de intervenções educacionais que estimulem o potencial desses estudantes (BUENO, 2019; DANTAS, 2012; NOGUEIRA, 2020; TASSINARI, 2019). As atividades pedagógicas, sob essa perspectiva, não devem ser reduzidas, mas adequadas às necessidades dos estudantes jovens e adultos, considerando as suas potencialidades e as oportunidades de desenvolvimento da vida adulta.
Perspectivas sobre a aprendizagem escolar e relação com a vida social
Sobre as perspectivas em relação à aprendizagem escolar e as relações que conseguem estabelecer desse aprendizado com a vivência da vida social adulta, os estudantes relataram a intenção de adentrar o mundo do trabalho, permanecer nele ou ascendê-lo e até de prosseguir os estudos, em um curso técnico:
[...] depois que terminá a escola, vô arrumá um serviço, tem que tê segundo grau pra arrumá serviço né [...]. (A1).
[...] vim pra cá, porque quero terminá os estudo, para depois, fazê um curso lá no Colégio Agrícola [nome do colégio], pra lavôra, ou pra cuidá de bicho, cavalo, vaca, porco [..] eu já morei na fazenda. Eu já trabaiei na colheita de morango lá [nome da fazenda], eu gosto de lidá com isso. (A2).
[...]sei que meu pagamento vai subi [...] quando terminá a escola e levá o papel lá na [nome da empresa]. (A3).
Essas proposições reafirmam a escola de EJA como instância mediadora, que carrega a responsabilidade de promover aprendizagens que despertem perspectivas, oportunidades para o mundo do trabalho e desenvolvimento social (LEITE, 2020; NASCIMENTO, 2017; TRENTIN, 2018). Dessa forma, a EJA, nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, configura-se como um importante espaço do processo inclusivo, carregando a responsabilidade de fazer com que jovens e adultos com deficiência intelectual, que chegam a essas etapas da escolarização, sintam-se acolhidos e compreendidos, em que a apropriação de conhecimentos proporcionados pela escola os estimule a prosseguir em uma vida produtiva e com significados sobre si e sobre o mundo.
Dificuldades vivenciadas na escola e nos processos de aprendizagem
Sobre as dificuldades que enfrentam, que reverberam na aprendizagem, os estudantes destacaram: a participação no AEE, com a questão da frequência no contraturno; em como conciliar trabalho e estudo, para manter atenção nas aulas e chegar no horário:
[...] de noite, pra sala de recursos, eu venho de bicicleta, porque não tem ônibus que passa no lá na [nome do bairro] de noite, e não é todas as aula que eu tenho de noite [...], eu volto antes do ônibus voltá [...]. (A1).
[...] eu quase todo dia chego atrasado, lá pelas sete [19 h], porque eu venho do serviço umas seis e meia [18h30] por aí [...], tem dia que não dá nem tempo de jantá, só tomo banho e saio correndo. (A3).
[...] tem dia que tô tão cansado, não dá pra prestá atenção na aula direito [...], levanto cedo, fico o dia no serviço. [...] eu moro longe, lá no [nome do bairro], lá o ônibus passa cedo [...] e tem dia que não dá tempo de vim [...]. (A2).
Essas questões elencadas pelos estudantes estão relacionadas a diferentes aspectos que emergem das especificidades do contexto da EJA (CARDOZO, 2015; NASCIMENTO, 2017), como a frequência do aluno trabalhador, a oferta de AEE, os horários de funcionamento da EJA e a disponibilidade de recursos, como o transporte escolar, tudo que precisa da mobilização conjunta de esforços para adequações e atendimento a essas demandas. Somam-se a essas questões, os apontamentos, em relação ao alongamento do tempo de permanência na escola, que gera vontade de abandonar os estudos e a aprendizagem de conteúdos abstratos, como da área da Matemática:
[...] tô aprendendo bastante [...], só que tem coisa que é muito ruim de aprendê, tipo fazê as conta, e daí, eu falo[...] e assim, tem professor que ajuda. (A1).
[...] tá demorano prá terminá a escola, já faiz tempo que tô aqui [...] tô bem devagar, não faço todas as matéria, por causa da Sala de Recurso. [...] tem dia que dá vontade de largá mão do estudo, mais, lá na [nome da empresa] ficam falando pra mim terminá, [...], então, eu venho. (A3).
Em relação ao alongamento do tempo de permanência na escola, pela frequência no AEE no mesmo turno, essa disponibilidade é problematizada (BUENO, 2019; LEITE, 2020; TRENTIN, 2018) como um dos aspectos que influencia no desenvolvimento da aprendizagem do estudante com deficiência intelectual, que precisa ser repensado e reestruturado. Sobre os estudantes reconhecerem ser mais difícil a aprendizagem de conteúdos abstratos, Freitas (2014), Nascimento (2017), Tassinari (2019) defendem a formação docente para o entendimento da deficiência intelectual e aplicação de metodologias adequadas às condições de aprendizagem desses estudantes. Por isso, considerar a mediação pelo outro, a intervenção constante do professor, o uso de recursos na sala de aula, para compensar funções atingidas (TRENTIN, 2018; VIGOTSKI, 1997, 2021), em articulação às questões cotidianas e da vivência do aluno, podem contribuir para a manutenção, os avanços das apropriações e a formação de conceitos pelo estudante com deficiência intelectual.
A aprendizagem escolar de jovens e adultos com deficiência intelectual: o que dizem os professores
Os resultados dos questionários aplicados aos professores são apresentados a partir da análise das três categorias finais (Quadro 2): 1. Educação inclusiva do jovem e adulto com deficiência intelectual e a aprendizagem escolar; 2. Atendimento Educacional Especializado e organização das aulas nos componentes curriculares; 3. Participação nas aulas e aprendizagem dos estudantes jovens e adultos com deficiência intelectual. Os professores foram identificados por P1 até P10, considerando-se o total de participantes.
Agrupamento das respostas (elementos em comum) | Categorias iniciais | Categorias finais |
---|---|---|
Direito, oportunidade para terminar os estudos na EJA; desenvolvimento na vida social e cidadã; voz às pessoas já excluídas de outros espaços escolares. | Inclusão | 1. Educação inclusiva do jovem e adulto com deficiência intelectual e a aprendizagem escolar |
Boa interação; dificuldade em entender os conteúdos, principalmente na área das Ciências Exatas; conseguem aprender um pouco. | Deficiência intelectual | |
Necessidade de maior apoio do professor especializado na sala de aula; alunos não frequentam AEE com regularidade. | AEE | 2. Atendimento Educacional Especializado e organização das aulas nos componentes curriculares |
Adequação de atividades e avaliações; consideram as vivências da vida adulta. | Organização das aulas | |
Não participou e não se considera preparado; participou, mas não se considera preparado. | Formação docente | |
Adequações em metodologia, objetivos, atividades, avaliações e disponibilidade de mais tempo para realizarem as atividades; participação no AEE. | Fatores que contribuem para a aprendizagem | 3. Participação nas aulas e aprendizagem dos estudantes jovens e adultos com deficiência intelectual |
Apoio docente individualizado; apoio de colegas. | Apoios | |
Dificuldade para aprender conteúdos abstratos; conhecimentos insuficientes para adequar/adaptar atividades e materiais, sobre a deficiência intelectual e da forma como esses estudantes aprendem. | Dificuldades nos processos de ensino e de aprendizagem | |
Formação docente sobre deficiência intelectual; disponibilidade de AEE. | Aspectos a avançar |
Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos resultados da pesquisa (2022).
Educação Inclusiva do jovem e adulto com deficiência intelectual e a aprendizagem escolar
Sobre a educação inclusiva de estudantes com deficiência intelectual, nas etapas finais da escolarização na EJA, para os professores, a inclusão é um direito, que representa uma oportunidade para a aprendizagem escolar e a conclusão dos estudos, além de oportunidade para possibilidades de desenvolvimento social e para a vivência da vida adulta:
É um direito, uma oportunidade de desenvolvimento para a vida social e cidadã. (P1).
[...] a escola é um direito, aprender é um direito de todos. (P2).
[...] a inclusão traz eles para a escola, é um direito. (P3.)
[...] os que estão aqui, é porque têm condição de trabalhar, levar uma vida mais independente [...] é isso que a inclusão proporciona. (P6).
[...] extremamente importante para pessoas que não têm voz nem vez, pois possibilita oportunidades para inserção no mercado de trabalho e respeito enquanto cidadãos. (P8).
[...] a frequência na escola melhora a vida deles, eles ficam mais ativos, mais independentes. (P9).
Esses apontamentos coadunam com o entendimento de que a EJA, como espaço de escolarização para jovens e adultos com deficiência intelectual, é muito benéfica para o desenvolvimento da vida adulta (BINS, 2013; FREITAS, 2014; LEITE; CAMPOS, 2018; NOGUEIRA, 2020; TRENTIN, 2018) e para proporcionar uma vida mais produtiva e com sentido (VYGOTSKY; LURIA, 1996).
Em relação às implicações da deficiência intelectual para a aprendizagem, os professores afirmaram haver boa interação entre os estudantes com deficiência e os demais. No entanto, há o reconhecimento que esses estudantes encontram dificuldades para aprender alguns conteúdos escolares:
Encontro dificuldades para ensinar, porque eles têm dificuldade para aprender atividades abstratas (cálculos, situação-problema, conteúdos mais avançados da matemática). (P8).
[...] a deficiência intelectual é mais difícil, para entenderem fórmulas, equações, por exemplo [...], temos que adequar, e não é simples. (P10).
Sobre esse aspecto, Vigotski (1997) afirma que, antes de tudo, faz-se necessário conhecer as particularidades da deficiência e entender quais são as causas primárias e quais são as secundárias, lembrando que o “defeito” não acomete todas as áreas das funções psicológicas (memória, atenção, fala, percepção, pensamento), na mesma proporção, para todos os casos de deficiência intelectual (VIGOTSKI, 1997, 2021; VYGOTSKY, LURIA, 1996). De acordo com Vygotsky e Luria (1996, p. 228), em um estudo sobre a memória com crianças normais e as que apresentavam deficiência, observou-se que
[...] a diferença está apenas no fato de que uma criança normal utiliza racionalmente suas funções naturais e, quanto mais progride, mais é capaz de imaginar dispositivos culturais apropriados para ajudar sua memória. Não é o que se dá com a criança retardada. Uma criança retardada pode ser dotada dos mesmos elementos naturais de uma criança normal, mas não sabe como utilizá-los racionalmente. Assim, eles permanecem adormecidos, inúteis, como peso morto. Ela os possui, mas não sabe como utilizar esses talentos naturais e isso constitui o defeito básico da mente da criança retardada. Em consequência, o retardo é um defeito não só dos próprios processos naturais, mas também do seu uso cultural. (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 228).
Nesse sentido, reforça-se que, para estimular o desenvolvimento da mente em pessoas com deficiência intelectual, se exigem medidas culturais auxiliares. No entanto os professores, ao reconhecerem que os estudantes jovens e adultos com deficiência intelectual têm dificuldades para aprender, percebem que eles, os professores, têm dificuldades para ensinar:
[...] a deficiência intelectual tem particularidades que, às vezes, nós professores não sabemos como fazer para ensinar. (P5).
[...] sei que eles podem aprender, mas parecem que não aprendem muitos dos conteúdos que ensinamos na escola [...]. (P7).
[...] não sabemos como ensinar conteúdos das ciências exatas (física, química, matemática), [...] que demandam conhecimentos prévios de matemática, bem abstratos. (P10).
As falas desses professores evidenciam que a não compreensão da deficiência implica não saber como esses estudantes aprendem e quais estratégias de ensino utilizar. Essas questões estão relacionadas aos cursos de formação docente, que ainda não preparam para a atuação sob a perspectiva inclusiva com segurança (LEITE, 2020; NASCIMENTO, 2017; TASSINARI, 2019; TRENTIN, 2018). Dessa forma, por não compreenderem a deficiência, não identificam quais medidas culturais auxiliares empregar para compensar as funções afetadas e favorecer a aprendizagem escolar.
Atendimento Educacional Especializado e organização das aulas nos componentes curriculares
Sobre o AEE, os professores alegaram sentir maior necessidade de apoio para a sala de aula, na prática dos componentes curriculares, sendo:
[...] a articulação do professor da sala de recursos com os professores das disciplinas, precisa ser mais constante, mais efetiva, porque realmente só nos momentos de hora-atividade é pouco. (P2).
Sinto falta de maior apoio do professor especializado para me ajudar em sala de aula com as atividades que demandam orientações individualizadas. (P7).
Cabe destacar, ainda, a observância de que os estudantes não frequentam esse atendimento com regularidade, por questões que decorrem da vida adulta e não coadunam com o AEE que é disponibilizado à EJA, às demandas de estudantes e professores (LEITE, 2020; LEITE; CAMPOS, 2018; NASCIMENTO, 2017; TRENTIN, 2018).
Em relação à organização das aulas, a maioria dos professores manifestou a percepção de que realiza adequações, nas atividades e nas avaliações, sendo reduzido o número daqueles que afirmam não realizar. Entretanto, não conseguem ter segurança, em relação ao que estão fazendo e às contribuições dessas práticas para a aprendizagem escolar do estudante com deficiência intelectual:
Eu tento realizar mudanças na metodologia, nas atividades e avaliações, mas afirmo que é muito difícil para o professor que não tem formação para isso. (P4).
Precisam de metodologias diferenciadas, mas não sei se faço certo [...], não me sinto segura. (P7).
Esses apontamentos remetem aos estudos de Freitas (2014), Nascimento (2017) e Tassinari (2019) sobre as fragilidades do trabalho docente, especificamente do professor da EJA que, por se enquadrar como modalidade, os incentivos e os investimentos não são priorizados. A fragilidade da formação docente é evidenciada nos dados deste estudo, em que, dos dez participantes, apenas duas respostas afirmaram já ter participado de cursos sobre inclusão de estudantes com deficiência intelectual. Os professores ainda não se sentem preparados para enfrentar a diversidade e as diferentes necessidades de aprendizagem que a inclusão traz para a sala de aula (LEITE, 2020; MORAIS, 2019; TASSINARI, 2019). Essa evidência decorre da insuficiência de preparo teórico metodológico na formação inicial, o que interfere na aprendizagem escolar e no êxito dos estudantes para concluir a escolarização.
Participação nas aulas e aprendizagem dos estudantes jovens e adultos com deficiência intelectual
Como fatores que contribuem para a participação nas aulas e aprendizagem dos jovens e adultos com deficiência intelectual, os professores apontaram as adequações curriculares e a disponibilidade de mais tempo para que esses estudantes possam realizar o que lhes é proposto. Percebem que, quando há a disponibilidade de atividades adequadas, ou ainda que, com apoio individualizado, seja de um colega ou do professor, a apropriação do que está sendo ensinado se processa com mais facilidade:
[...] eles aprendem melhor quando têm alguém junto [...], faço as atividades em grupo, para ajudar [...] e, também, sento junto para explicar. (P6).
[...] a ajuda, a explicação individual do professor é fundamental para que eles entendam, porque, geralmente, não conseguem fazer sozinhos como os outros[...]. (P4).
Apesar de afirmarem que os alunos aprendem melhor quando lhes é disponibilizado apoio, como a mediação pelo outro, seja com a explicação individualizada do professor, ou pela participação em trabalhos em grupo, os professores não apontaram recursos, instrumentos criados culturalmente, que utilizam em suas aulas, como a calculadora, citada pelo aluno A1, um recurso auxiliar no desenvolvimento da aprendizagem escolar, o que caracterizaria uma forma de compensação.
Vigotski (2021, p. 67) afirma que pautar o processo educativo pela perspectiva da compensação e de elementos mediacionais significa não “[...] aliviar as dificuldades que surgem do defeito, mas mobilizar todas as forças para a sua compensação, apresentar apenas determinadas tarefas e na ordem em que respondam à gradação de formação de toda a personalidade sob o novo ângulo”. Nesse entendimento, segundo Vigotski (2021), práticas pedagógicas que articulem a mediação e o uso de recursos que busquem compensar as funções afetadas pela deficiência são estimuladoras da aprendizagem e permitem que a pessoa com deficiência intelectual se eleve a um nível superior, no processo de atividade coletiva e de elaboração das funções psicológicas.
Os professores também disseram que os estudantes com deficiência intelectual têm dificuldades para aprender da forma como eles ensinam, que lhes faltam conhecimentos para entender a deficiência intelectual e como esses estudantes aprendem, manifestando preocupação com a aprendizagem escolar:
[...] precisamos olhar de uma maneira diferente, sabemos da importância da inclusão para o desenvolvimento deles, mas é que às vezes não sabemos como fazer para que eles realmente aprendam [...], e eu sinto falta de apoio na sala de aula. (P7).
[...] os alunos com deficiência intelectual têm potencial de aprendizagem, só precisamos disponibilizar os meios, os recursos, as adaptações para eles aprenderem. (P4).
[...] seria importante que pensassem que primeiro o professor tem que saber o que fazer, para depois ensinar. [...] nos falta formação, é difícil participar de curso para entender os estudantes adultos, principalmente para nós, professores temporários. (P2).
Essas afirmações revelam as fragilidades dos processos de formação e, também, da forma de contratação precarizada dos professores. Sobre a formação, Tassinari (2019) infere que a formação acadêmica inicial vulnerável se traduz em dificuldades no trabalho sob a perspectiva da Educação Inclusiva. Para Vigotski (2021, p. 67), entender a deficiência, conhecer suas implicações e as possibilidades compensatórias, para a superação do defeito, implica uma “verdade libertadora para o pedagogo”. Nessa acepção, Leite (2020), Tassinari (2019) e Trentin (2018) defendem a formação continuada, para a aplicação de experiências pedagógicas colaborativas de elaboração conceitual, como possibilidade de ressignificação da escolarização de estudantes jovens e adultos com deficiência intelectual.
A questão de organização e de disponibilidade de um AEE mais adequado às características e às necessidades dos estudantes jovens e adultos é percebida como um dos aspectos que precisa avançar, ao mesmo tempo em que entendem que esse atendimento contribui para a aprendizagem:
[...] ainda que o atendimento não seja o ideal, é importante, porque é o que temos para ajudar o professor e estimular o aluno. (P5).
[...] o apoio do AEE é fundamental para ajudar os professores a desenvolverem aulas mais inclusivas e planos de atendimento adaptados. (P6).
A oferta de AEE para a EJA, de acordo com Leite (2020), Nascimento (2017) e Nogueira (2020), apesar de se materializar de forma pouco articulada às necessidades de alunos e professores desse contexto, ainda assim mantém posição reconfortante, como indispensável ao processo de aprendizagem escolar dos jovens e adultos com deficiência intelectual. Dessa forma, o desenvolvimento da aprendizagem escolar perpassa esse serviço do contexto inclusivo, entendido como necessário ao estudante com deficiência intelectual e à prática do professor.
Considerações finais
Este artigo visou discutir a aprendizagem escolar de jovens e adultos com deficiência intelectual, nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, em um Centro Estadual de Educação Básica para Jovens e Adultos, no Estado do Paraná, a partir da perspectiva dos estudantes com deficiência intelectual e dos professores.
Da discussão sobre os dados, pode-se concluir que, para os estudantes com deficiência intelectual, os motivos para buscar a aprendizagem escolar, nas etapas finais da escolarização na EJA, relacionam-se ao mundo do trabalho, à vivência e ao desenvolvimento social da vida adulta. Os estudantes consideram alguns conteúdos mais difíceis, aqueles que exigem, para entendimento, funções psicológicas superiores, da memória, raciocínio e abstração, como os cálculos. No entanto, um estudante afirmou que, quando permitido o uso de um recurso auxiliar, a calculadora de um telefone móvel, deu para fazer as “contas”, porque esse instrumento ele sabe como usar. Então é possível inferir o uso desse recurso, como uma forma de compensação da função afetada pela deficiência, não só na aprendizagem escolar, mas que pode conferir autonomia em situações da vida cotidiana adulta. Apontam que mantêm boa interação na escola e participam das aulas e do AEE. Identificam que o apoio do AEE é contributivo à aprendizagem escolar; entretanto, reconhecem dificuldades na participação dessa forma de atendimento.
Os desafios mais significativos relacionados à aprendizagem escolar apontados pelos estudantes com deficiência intelectual na EJA referem-se, portanto, ao aprendizado de conteúdos escolares que exigem as funções psicológicas superiores, da memória, raciocínio e abstração, e à participação no AEE, por se tratar de um atendimento extraclasse.
A mediação pelo outro, por alguém mais avançado culturalmente, o professor ou um colega, é evidenciada tanto pelos estudantes como pelos professores, como contributiva ao desenvolvimento da aprendizagem escolar do estudante com deficiência intelectual, sendo observada nos trabalhos em grupo, na interação com um colegas para fazer uma atividade, ou no apoio individualizado disponibilizado pelos professores, caracterizando a Intervenção Mediada por Pares (IMP), uma proposta que vem ganhando espaço na educação de pessoas com deficiência no Brasil.
Para os professores, a aprendizagem escolar é um direito proporcionado pela inclusão. Na perspectiva docente, predomina a preocupação com a aprendizagem em adequar atividades e avaliações para que os estudantes com deficiência intelectual possam aprender os conteúdos. No entanto, percebem que não entendem como fazer esses procedimentos com segurança, por não compreenderem como esses estudantes aprendem e quais recursos podem ser utilizados para compensar as funções afetadas pela deficiência. Afirmam, ainda, sentir necessidade de maior apoio/parceria do AEE para o acompanhamento da prática na sala de aula.
Esses resultados mostram que as implicações da percepção de alunos com deficiência intelectual e professores, acerca da aprendizagem escolar na EJA, deslindam questões que precisam avançar, como a formação de professores para atuar na Educação Inclusiva, considerando-se as diferentes deficiências, e a estruturação do AEE na EJA, como apoio não só ao estudante, mas também ao professor. Assim, novos estudos que discutam os desafios do contexto da EJA para a aprendizagem escolar de estudantes com deficiência intelectual, que aprofundem as investigações sobre a proposta de IMP e a praticabilidade de formas de compensação, podem contribuir para a educação e o engendramento de oportunidades para a vida das pessoas jovens e adultas com deficiência intelectual.