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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.18  Ponta Grossa  2023  Epub 18-Set-2023

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.18.21699.076 

Artigos

Educação Domiciliar: análise de entrevistas em programas televisivos*

Homeschooling: analysis of interviews in television programs

Educación Domiciliaria: análisis de entrevistas en programas televisivos

Natália Caroline da Costa** 
http://orcid.org/0009-0005-9445-5632

Isabella Natal*** 
http://orcid.org/0009-0000-1032-0444

Heloisa Chalmers Sisla**** 
http://orcid.org/0000-0002-6589-4493

**Pedagoga pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professora da Educação Básica. E-mail: <nataliacosta9999@hotmail.com>.

***Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professora da Educação Básica (Secretaria da Educação do Estado de São Paulo). E-mail: <isanatal81@gmail.com>.

****Doutora em Educação. Docente do Departamento de Teorias e Práticas Pedagógicas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: <heloisasisla@gmail.com>.


Resumo

Este trabalho tem como objetivo analisar os temas e os argumentos que se fizeram presentes nos debates sobre a Educação Domiciliar (ED) em programas televisivos. Para tal, recorreu-se a uma pesquisa documental de quatro vídeos de debates televisivos, com análise de conteúdo. A base para a análise foi a produção acadêmica brasileira crítica à ED e defensora da educação escolar. Os argumentos foram agrupados nos seguintes blocos: legislação e direitos; educação escolar versus educação domiciliar; violências; socialização na escola e na família; valores; ensino dos conteúdos; perfil das famílias; fiscalização e custos da ED; e aprendizagem e avaliação. A análise realizada identificou a predominância e os tipos de argumentos nos discursos críticos e em defesa da ED, assim como alguns silenciamentos, podendo contribuir para o avanço dos debates na academia e fora dela.

Palavras-chave: Educação Domiciliar; Homeschooling; Debate televisivo

Abstract

This paper aims to analyze the themes and arguments that emerged from the debate about homeschooling in television programs. For this purpose, a documentary investigation of four videos of television debates was carried out, with content analysis. The basis for the analysis was the academic Brazilian literature critical of homeschooling and in favor of school education. The arguments were grouped in the following blocks: legislation and rights; school education versus homeschooling; violences; socialization in school and family; values; teaching of contents; profile of the families; supervision and costs of homeschooling; and learning and evaluation. The analysis identified the predominance and types of arguments either in critical and favorable discourses on homeschooling, as well as some silencing, contributing for the advancement of the debates in and out of the academy.

Keywords: Education at home; Homeschooling; Televised debate

Resumen

Este trabajo tiene como objetivo analizar los temas y los argumentos que estuvieron presentes en los debates sobre Educación Domiciliaria (ED) en programas televisivos. Para ello, se recurrió a una investigación documental de cuatro videos de debate televisivo, con análisis de contenido. La base para el análisis fue la producción académica brasileña crítica a la DE y defensora de la educación escolar. Los argumentos fueron agrupados en los siguientes bloques: legislación y derechos; educación escolar versus educación domiciliaria; violencias; socialización en la escuela y en la familia; valores; enseñanza de los contenidos; perfil de las familias; supervisión y costos de ED; y aprendizaje y evaluación. El análisis realizado identificó el predominio y los tipos de argumentos en los discursos críticos y en defensa de la ED, así como algunos silencios, pudiendo contribuir al avance de los debates en la academia y fuera de ella.

Palabras clave: Educación Domiciliaria; Homeschooling; Debate televisado

Introdução

O debate sobre a Educação Domiciliar (ED) não é novo nos diferentes âmbitos da vida social brasileira. A questão vem ganhando espaço em diferentes esferas nos últimos anos, impulsionada por disputas levadas ao Conselho Nacional de Educação (CNE) e aos tribunais superiores, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF), assim como por tentativas de sua regulamentação pelo Poder Legislativo brasileiro. O mais recente ato foi a aprovação, em maio de 2022, pela Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei (PL) 3179-B (Brasil, 2012), cuja tramitação passou ao Senado.

Dentre as esferas da comunicação social nas quais o debate vem sendo travado, a opção deste estudo foi por investigar a dos programas televisivos de entrevistas disponíveis online, no intuito de estabelecer um diálogo com os estudos do campo educacional. As discussões travadas nesse tipo de debate representam alguns dos elementos discutidos na literatura educacional sobre o tema, propiciando o exame e a comparação de temas e argumentos nessas duas esferas comunicativas, em busca de contribuir para que tais temas sejam conhecidos e para que sejam indicados os seus fundamentos e limites, colaborando, desse modo, para a sua explicitação no debate sobre a ED no campo educacional e social. Assim, o objetivo deste artigo é analisar os temas e os argumentos que se fizeram presentes nos debates sobre a ED em programas de debates televisivos.

O estudo foi guiado pela seguinte questão de pesquisa: Quais são os temas e argumentos que se evidenciam no debate público de programas televisivos sobre a ED? Para tal, este trabalho procurou mapear os debates no Judiciário e no Legislativo, seguido por uma síntese dos temas sobre os quais versam os estudos sobre a ED no campo educacional, para então analisar os temas abordados em quatro programas de entrevistas de debates televisivos disponíveis online.

O debate sobre a ED no Judiciário, no Conselho Nacional de Educação e no Legislativo brasileiro

A ED ganhou o debate público a partir de uma disputa judicial cuja decisão, pelo STF, deu-se em 2018. A origem desse processo foi a demanda de uma menina de Canela, Rio Grande do Sul, em 2012, que, aos 12 anos, pleiteou à Secretaria Municipal de Educação de Canela, por meio de seus pais, estudar em casa. O pedido foi negado e indicada a matrícula escolar. A família judicializou o pedido, que foi negado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por inexistir previsão legal. A família recorreu e, em 2015, o STF indicou que o caso era de repercussão geral (Brasil, 2015). No ano seguinte, o STF determinou a suspensão de todos os processos sobre a matéria em território nacional, até a decisão final, do Plenário do Supremo, em 2018, que negou provimento ao Recurso Extraordinário (RE) 888.815; ou seja, decidiu por negar o pedido feito pela família. As principais justificativas para os votos dos ministros versaram principalmente sobre a inconstitucionalidade e a falta de previsão da ED na legislação brasileira (Brasil, 2018).

O CNE, cujas atribuições são de caráter normativo e deliberativo, também já se manifestou sobre o tema em 2000, ao analisar a solicitação de um casal de Anápolis, Goiás, que pleiteava educar os filhos em casa. Esse órgão emitiu o Parecer 34 (Brasil, 2000), contrário à ED e determinando a matrícula dos filhos na escola, com base na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) - Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996.

Quanto às tentativas de regulamentação no Congresso Nacional, um levantamento nas páginas da Câmara dos Deputados indicou, em junho de 2022, um total de 18 PLs envolvendo a ED, desde 1994, dos quais 16 não mais tramitam (foram arquivados, retirados, apensados ou devolvidos); um segue tramitando (para que a ED não configure abandono intelectual); e outro, o PL 3179/2012, que dispõe sobre a possibilidade de oferta da ED na Educação Básica, como já indicado, está em apreciação pelo Senado, onde há três PLs sobre a matéria, desde 2017, todos tramitando, sendo um deles o que foi aprovado na Câmara, que, no Senado, foi numerado PL nº 1338/2022.

Os defensores da ED vêm demonstrando organizarem-se de forma a atingirem seus objetivos, como se pode perceber pelos dados que seguem. No Congresso, formaram a “Frente parlamentar em defesa do homeschooling” (Casanova; Ferreira, 2020), composta por 240 deputados federais. Criaram, ainda, em 2010, a Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED)1, que apresenta, dentre seus objetivos, influir em políticas sobre o tema: “Promover a defesa do direito da família à Educação Domiciliar no Brasil, por meio da representação coletiva dos seus associados junto às autoridades, órgãos e entidades pertinentes” (Casanova; Ferreira, 2020, p. 4). O lobby da ANED dá-se nos três poderes e na mídia, como se depreende do que indica em sua página quanto às ações empreendidas, que incluem a realização “[...] de audiências públicas e privadas, com autoridades dos três poderes” e a divulgação da ED por meio “[...] de matérias, reportagens, debates e entrevistas em diversas emissoras de rádio, televisão, jornais, revistas, agências de notícias, e portais de internet” (ANED, 2021).

O debate acadêmico brasileiro reagiu às ações e aos movimentos que buscaram legalizar a ED no Brasil em diferentes áreas do conhecimento. No campo educacional, vem abrangendo as áreas de políticas e legislação educacionais, gestão da educação, história da educação, e em vários estudos com a intersecção dessas áreas do conhecimento. Como veremos, a produção teve início na primeira década deste século (Cury, 2006; Vasconcelos, 2005), aumentando significativamente com teses e dissertações na década seguinte (Andrade, 2014; Barbosa, 2013; Kloh, 2014), assim como artigos, com destaque para dois dossiês, um de 2017, intitulado Homeschooling e o Direito à Educação, da revista Pro-Posições, e um de 2020, denominado Homeschooling: controvérsias e perspectivas, da Práxis Educativa2 A intensificação da produção acadêmica educacional acompanhou, portanto, o debate jurídico e legislativo sobre a ED.

Temas das pesquisas sobre ED no campo da Educação

Quais são os temas objeto de investigação e discussão nas pesquisas sobre a ED? Para discutir os temas emergentes nas entrevistas, foi feita uma revisão dos artigos publicados sobre a ED, cujos temas mais recorrentes são destacados nesta sucinta revisão da literatura. A busca dos trabalhos foi feita na Scientific Electronic Library Online (SciELO) e no Google Acadêmico, com o termo entre aspas “educação domiciliar”. Ao identificarmos dois dossiês sobre o tema, nos detivemos principalmente nos artigos desses dossiês. Outras referências foram empregadas, ora quando sentimos necessidade de compreender melhor a questão da privatização da educação, ora quando havia citação de outros trabalhos sobre a ED, como no caso de Cury (2006, 2019) e Barbosa (2016).

Um dos temas mais discutidos se refere à legislação e a direitos. Com base na LDB (Brasil, 1996) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Brasil, 1990) -, Cury (2006) destaca que a educação é direito da criança e do adolescente. O autor indica, ainda, que a matrícula escolar tem previsão constitucional. O tema da judicialização da ED é tratado por Ranieri (2017), que discute como o direito à educação vem sendo debatido no STF. Além da discussão sobre as proposições e ações no âmbito federal, há inúmeras também nas instâncias estaduais. Segundo Barbosa (2016), no Paraná, um juiz autorizou a ED; em Vitória e São Paulo, as Câmaras de Vereadores aprovaram, em 2019, PLs autorizando o homeschooling (Casanova; Ferreira, 2020).

Cury (2006, 2017, 2019) discute, ainda, a tensão entre direito e dever, ou obrigatoriedade de ensino versus liberdade de escolha das famílias. Ele indica, com base em Norberto Bobbio, que há reformas igualitárias não liberadoras se considerarmos as liberdades individuais, como é o caso da obrigatoriedade escolar, que é igualitária por colocar no mesmo plano ricos e pobres, mas que, vista de uma perspectiva das liberdades individuais, limita a escolha de famílias que não querem matricular seus filhos em escolas.

Para Cury (2019), a educação escolar é fundamental na busca pela igualdade de oportunidades, ideia que está em concordância com outros autores e autoras, que defendem que as desigualdades educacionais e sociais se aguçarão se a ED for regulamentada no país (Casanova; Ferreira, 2020; Ventura, 2020).

Quanto à fundamentação da proposta de ED, Oliveira e Barbosa (2017) identificam o neoliberalismo como uma das correntes teóricas que embasam a ED, apontando que há também outras vertentes antiestatistas, como anarquistas, liberais individualistas e o fundamentalismo religioso. Como ponto central da análise, colocam a rejeição à compulsoriedade da educação, defendida pelos homeschoolers, em consonância com um dos princípios mais caros do neoliberalismo, que é a defesa das liberdades individuais.

Oliveira e Barbosa (2017), ao examinarem as concepções educacionais de Mises, Friedman e Hayek, autores que sustentam o neoliberalismo, apontam a convergência na suspeição da confiabilidade do Estado, proposta por Mises, exceção feita quando ele busca preservar direitos e liberdades individuais dos cidadãos. Segundo Oliveira e Barbosa (2017), Mises era contrário à educação obrigatória, argumentando que a educação não deveria ser objeto de preocupação do governo e das leis. Ainda de acordo com Oliveira e Barbosa (2017), Mises e Friedman defendiam que fosse oferecido apenas um grau mínimo de alfabetização e conhecimento para os cidadãos, e, que, para Friedman, a oferta de educação para a população poderia ser feita por meio de vouchers para estudantes de baixa renda, subsidiados pelo Estado, que se desincumbiria da oferta de educação estatal, podendo as famílias comprarem os serviços educacionais de sua escolha. Consoante Oliveira e Barbosa (2017), Mises e Friedman compartilham ainda a preocupação com a doutrinação nas escolas. Os autores indicam também que Hayek, como Mises, era contra a compulsoriedade da educação escolar pública, entendendo-a como uma ameaça à liberdade individual. Um outro posicionamento de Hayek ilustra o seu ideário. De acordo com Rosa e Camargo (2020), os autores neoliberais negam a proteção social e o papel do Estado como provedor de políticas públicas sociais, e Hayek indica expressamente que o conceito de justiça social não possui significado, sendo um engano a ser evitado.

Cecchetti e Tedesco (2020) identificam a ED como estando enraizada no fundamentalismo religioso conservador. Entendemos, aqui, o fundamentalismo com a definição dicionarizada: “[...] qualquer corrente, movimento ou atitude, de cunho conservador e integrista, que enfatiza a obediência rigorosa e literal a um conjunto de princípios básicos” (Instituto Antônio Houaiss, 2009, p. 938). Cecchetti e Tedesco (2020) alertam que a propagação desse movimento neoconservador em escala internacional coloca em risco a escola pública, de caráter laico, gratuito, obrigatório e inclusivo. Apontam os Estados Unidos como nação matriz dos movimentos fundamentalistas, marcados pelo começo da formação de uma sociedade extremamente religiosa, com escolas nas quais a interpretação da Bíblia ocupava atenção igual a aprender a ler e escrever. Com outros autores, eles indicam e criticam a apropriação exógena da homeschooling estadunidense por seus defensores brasileiros (Araújo; Leite, 2020; Oliveira; Barbosa, 2017; Rosa; Camargo, 2020).

A crítica à educação escolar por parte de defensores da ED recorre também a autores da desescolarização. De acordo com Vasconcelos (2017), os discursos de famílias homeschoolers apresentam fundamentação nos teóricos da desescolarização, como Ivan Illich e John Holt, que defendiam a oposição às leis e, por sua vez, estão relacionados a um projeto neoliberal de sociedade. Illich propôs a desescolarização, que Holt buscou implementar, opondo-se às leis e à escolarização obrigatória. Na proposta de Holt, as crianças estariam livres para decidir o que gostariam de estudar a cada dia. Ambos concordavam ainda quanto ao fim do financiamento público da educação, refletindo, portanto, uma concepção antiestatista, em acordo com o neoliberalismo (Vasconcelos, 2017). A autora localiza também a influência norte-americana nas propostas, desde o termo difundido em inglês, até as justificativas das famílias pela prática da educação em casa e os materiais adotados para realizar a ED.

O financiamento da educação pública pode, entretanto, ser comprometido com a instauração de políticas como as já assinaladas por Adrião (2018) e que estão em curso no país, na medida em que a Emenda Constitucional no 95, de 15 de dezembro de 2016 (Brasil, 2016), estabelece o congelamento dos gastos públicos (Rosa; Camargo, 2020).

Barbosa (2016) lembra que, se a educação em casa for regulamentada, recursos públicos terão de ser destinados para atender à educação privada dessas famílias, o que significaria atender determinadas classes, já privilegiadas, em detrimento de outras, historicamente marginalizadas, aprofundando as desigualdades educacionais e sociais. A autora informa que, em alguns países, as famílias homeschoolers já solicitaram verbas do Estado. Opondo-se a tal caminho, Barbosa (2016) propõe que os esforços e os recursos sejam concentrados em uma urgente reforma do sistema educacional público, buscando atender aos preceitos constitucionais.

Adrião (2018) aponta a ED como uma das formas de privatização da Educação Básica no Brasil a partir dos anos de 1990, que categoriza em três dimensões: oferta educacional, gestão da educação pública e currículo, fenômeno que envolve, além da ED, por exemplo, o financiamento público a organizações privadas, subsídios a diferentes tipos de organizações, e compra ou adoção pelo poder público de desenhos curriculares, tecnologias educacionais e sistemas de ensino. Araújo e Leite (2020) indicam que, nessa perspectiva privatista, o direito à educação se transforma em direito de escolha, como um serviço que se compra, em uma tendência de desobrigar o Estado da oferta.

As concepções dos formuladores das teorias neoliberais deram lugar, no campo educacional, à cultura da escolha, manifesta, no cenário americano, no “[...] crescimento das charters schools, dos experimentos com vouchers, das novas escolas privadas e do homeschooling” (Oliveira; Barbosa, 2017, p. 205), resultando, segundo os autores, em um forte movimento de homeschoolers contrários à regulamentação da ED (pois a ED ainda não é regulamentada nos Estados Unidos) e na transformação do ensino domiciliar em um grande negócio, que inclui editoras, empresas que organizam congressos, vendas pela internet e financiamento público de escolas virtuais.

O mercado da ED é detalhado por Araújo e Leite (2020), na análise que empreendem sobre a “Campanha EducAÇÃO Domiciliar - Direito já!”, liderada pela ANED, na qual indicam a existência de uma rede empresarial de serviços e produtos para famílias que exercem a ED, que incluem ímãs de propaganda, cursos online (como os de idiomas - latim, inglês, francês, grego e italiano -, leitura dinâmica, cultura clássica, autodidatismo, caligrafia, “Como vencer a depressão”, Filosofia da Educação, “A Igreja no lar”, formação cristã e kit de Natal), livros, materiais de orientação, projeto de leitura, materiais didáticos com assessoria online 24 horas, simpósio online, material dourado, jogos, vídeos e encontros presenciais em várias regiões brasileiras.

O risco da privatização da educação que implica o uso de recursos públicos para a ED se faria em detrimento da ampliação da qualidade da educação escolar. Nesse sentido, Vasconcelos e Boto (2020) indagam: Se a escola pública deveria ser o foco das preocupações, por que não há Projetos de Lei para melhorá-la? Por que a ED domina o debate? Perguntam, também, por que a ANED desqualifica a educação pública, atacando-a e propondo como alternativa o abandono da escola?

A defesa da educação escolar é realizada também por Ventura (2020, p. 11), ao afirmar ser ela “[...] ainda o local privilegiado para se ver o outro, para constituição e trocas de experiências, para contação de si mesmo e exercício de empatia, de se colocar no lugar do outro”. A escola tem, para o autor, o papel de surpreender, chocar, colocar em xeque certezas e a concepção, com a qual concordam Becker, Grando e Hattge (2020), ao defenderem uma Pedagogia da interrupção, na qual estudantes são desafiados por pares e professores a deixar sua zona de conforto, colaborando, assim, para mudanças de paradigma.

Ainda em defesa da educação escolar, Becker, Grando e Hattge (2020) observam que, na escola, há uma rede de profissionais voltados ao aprimoramento das ações, ao passo que, no lar, tal rede inexiste, impossibilitando que a criança conte com uma diversidade de olhares e perspectivas. Na direção da constatação da ausência de profissionalidade na educação no lar, Rosa e Camargo (2020) defendem que a proposta de ED avilta e precariza o trabalho docente, na medida em que proponentes e executores da ED não colocam na discussão as condições necessárias para a realização de um trabalho docente de qualidade, tais como espaço físico, materiais e equipamentos, assim como as relativas à formação, remuneração e outros aspectos da carreira, fazendo supor que nada disso é necessário para conduzir os processos de ensino e aprendizagem. Tal falta de profissionalização, segundo Rosa e Camargo (2020), pode reverberar em desamparo de crianças e jovens, pelo impedimento de participação no âmbito escolar. A participação das atividades escolares é defendida também por Cury (2006), para quem a ED restringe o social ao familiar, com declínio do espaço público. A formação para a cidadania é exercida na praça, na pólis, no espaço público, e a família não consegue sozinha arcar com tal formação, que é um direito da criança (Barbosa, 2016; Cecchetti; Tedesco, 2020; Ranieri, 2017; Ribeiro, 2020), direito reconhecido pelo STJ ao afirmar que os filhos não são dos pais, mas, sim, pessoas com direitos (Cury, 2006).

Ainda quanto aos dois ambientes, lar e escola, defensores da ED alegam que a socialização na escola é ruim, pois as crianças estão sujeitas ao bullying e ao assédio moral (Brito et al., 2020). Entretanto, como já apontado, enquanto as escolas contam com profissionais aptos a identificar e lidar com violências, o mesmo não ocorre no domicílio. De acordo com Wendler e Flach (2020), é a escola que costuma identificar os abusos, como, por exemplo, a violência doméstica, que, com maior frequência, ocorre por parte de parentes próximos, e a ED torna bem mais difícil a identificação de violências e a busca de alternativas para sua superação. Já a equipe escolar é obrigada, por força de lei (ECA), a comunicar casos de maus tratos de estudantes.

Diferenciando a socialização familiar da escolar, Cury (2006) indica que a socialização secundária introduz o indivíduo já socializado, principalmente na família, em outros setores do mundo social, sendo a escola uma importante agência desse processo, o qual, com a ED, corre o risco de isolamento e fechamento para o outro, com a redução do convívio social (Cury, 2019). Becker, Grando e Hattge (2020) consideram aspectos quantitativos das interações, que seriam reduzidas, posto que, na ED, haveria um número menor de pessoas com as quais a criança poderia interagir. Ademais, sustentam que é necessária a interação entre iguais, que, na família, é reduzida, aspecto apontado no já mencionado Parecer do CNE (Brasil, 2000), quando afirma que a personalidade é forjada em meio a iguais.

Segundo Ribeiro (2020), o próprio presidente da ANED, Rick Dias, admite que a fiscalização não vai ocorrer, pois se o governo já não consegue fiscalizar as escolas e as universidades, não conseguirá fiscalizar as famílias. Rick Dias buscava tranquilizar as famílias que desejavam alterações em um dos PLs (PL 2401/2019), que previa, assim como o PL aprovado, a supervisão da ED. Ele declarou publicamente que tal acompanhamento será insuficiente ou não ocorrerá, pois se o efetivo para fiscalizar escolas e universidades já é insuficiente, “[...] imagine para fiscalizar famílias [...], ninguém precisa ficar em desespero em relação a isso” (Ribeiro, 2020, p. 7).

Percurso metodológico

A pesquisa realizada foi do tipo documental, sendo os vídeos de entrevistas com debates televisivos os documentos analisados. A inclusão de vídeos na categoria de documentos, inclusive os eletrônicos, é assim entendida segundo a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), ao definir na Norma Técnica 6023 “documentos” como suportes que incluam alguma informação registrada, que formem uma unidade e sirvam para “[...] consulta, estudo ou prova, incluindo impressos, manuscritos e registros audiovisuais, sonoros, magnéticos e eletrônicos, entre outros” (ABNT, 2018, p. 2). Segundo Gil (2019), os documentos de comunicação de massa, inclusive os programas de televisão, possibilitam o conhecimento de variados aspectos da sociedade atual e, no caso deste tipo de estudo, a captação de processos de mudança, a saber: como a sociedade brasileira discute e decide sobre a possível implantação da ED.

A ideia inicial para o caminho metodológico foi o recebimento de um vídeo no WhatsApp, de um programa de debates sobre ED, que nos fez indagar se haveria outros semelhantes e o que estava sendo debatido na sociedade sobre ED. Tratava-se de uma entrevista disponível no YouTube. Optamos por analisar vídeos com programas de debates televisivos semelhantes que estivessem disponíveis online, em maio de 2019. Selecionamos dentre aqueles com duração aproximada entre 20 e 30 minutos e os que continham um/a debatedor/a favorável, um/a contrário/a à ED e um/a entrevistador/a. Foram escolhidos os quatro primeiros programas da busca com esses critérios.

A entrevista está presente em várias esferas da comunicação humana, e aquelas selecionadas nesta pesquisa foram as da esfera da comunicação social, ou seja, a entrevista jornalística, que pode estar presente na televisão aberta ou fechada, e/ou na internet, podendo ser acessada por diferentes portadores e aplicativos, alcançando um público vasto e diversificado (Cerqueira Neto; Santos, 2017). No caso das quatro entrevistas deste estudo, foram produzidas para canais televisivos, abertos ou fechados, e disponibilizadas online. Segundo Cerqueira Neto e Santos (2017), a entrevista jornalista telecomunicante é uma ferramenta de comunicação em massa, realizada em gêneros textuais que são próprios da comunicação humana, e que têm por uma de suas características centrais o diálogo. No caso das entrevistas selecionadas, apresentam sempre dois entrevistados e uma jornalista, que estabelecem um diálogo sobre a ED, a partir das perguntas da entrevistadora. O Quadro 1 apresenta os principais dados sobre as quatro entrevistas analisadas.

Quadro 1 Programas de entrevistas analisados no estudo, por ordem cronológica de sua realização 

E1 EDUCAÇÃO DOMICILIAR PARTE 1/2, Jacareí, São Paulo: 4 abr. 2018. 1 vídeo (28 min). Publicado pela TV Câmara, TV Câmara Entrevista. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=13fMR82WWDg. Acesso em: 12 dez. 2019.
E2 EDUCAÇÃO DOMICILIAR é uma prática de ensino que precisa de lei para ser aceita no Brasil. Brasília: 13 set. 2018. 1 vídeo (26 min). Publicado pela TV Senado, Cidadania. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=o2nizwgilDA. Acesso em: 12 dez. 2019.
E3 A REGULAMENTAÇÃO da Educação Domiciliar. Rio de Janeiro: 5 mar. 2019. 1 vídeo (23 min). Publicado pela Globo News, Entre aspas. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xCiLX3kv1SE. Acesso em: 12 dez. 2019.
E4 DEBATE DO DIA sobre ensino domiciliar. São Paulo: 12 abr. 2019. 1 vídeo (19 min). Publicado pela TV Gazeta, Jornal da Gazeta. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FrRXEsplJLA. Acesso em: 12 dez. 2019.

Fonte: Elaboração própria.

Como se pode verificar no Quadro 1, as entrevistas têm entre 19 e 28 minutos e foram conduzidas entre abril de 2018 e maio de 2019, sendo duas delas em 2018, durante a campanha eleitoral presidencial, quando o tema alcançou um público mais amplo; e as duas outras no ano seguinte, na época em que o Governo Federal manifestava intenção de regulamentar a ED. As quatro entrevistas são no formato de perguntas feitas pela entrevistadora, que se dirigem ora a um interlocutor, ora a outro, embora os entrevistados também interrompam as falas uns dos outros, colocando perspectivas diferentes. Em duas das entrevistas, o defensor da ED foi o mesmo (Édison Andrade), gestor da ANED, diretor de outra entidade criada para a defesa e promoção da ED (Associação Brasileira de Defesa e Promoção da Educação Familiar) e doutor em Educação. Um segundo defensor da ED é também vinculado à ANED (Ricardo Dias, já mencionado anteriormente como Rick Dias). E a terceira entrevistada a favor da proposta é uma mãe homeschooler com Ensino Superior (Milene Goés). Quanto aos críticos da ED, os quatro são professores universitários, três são doutores (Eduardo Giannazi, Fernando Cássio e Ivan Siqueira) e uma é mestre (Angélica Maia), e nenhum deles tem estudos sobre ED. Um deles é também deputado federal (Giannazi), outro (Siqueira) compõe o CNE, e Cássio é membro da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

Dois dos programas foram produzidos por emissoras privadas de televisão (TV Gazeta e Globo News), sendo o primeiro de transmissão aberta, e o outro, depois de um tempo, só ficou disponível para assinantes. Os outros dois programas são produções televisivas de órgãos legislativos, um federal (Senado) e outro municipal (Câmara Municipal de Jacareí). Quanto à questão de ética na disponibilização das entrevistas e identificação das pessoas entrevistadas, à época da coleta de dados as quatro entrevistas estavam disponibilizadas de modo público, e as pessoas entrevistadas foram todas identificadas com nome completo e suas instituições.

A análise dos dados foi feita com base em Bardin (2016). Foi inicialmente realizada uma descrição de cada uma das quatro entrevistas (Costa, 2019), focando principalmente nos argumentos dos/as entrevistados/as e indicando as questões feitas pelas entrevistadoras e os diálogos que se estabeleciam entre os/as debatedores/as. Para cada entrevista, foi então redigida uma breve análise (Costa, 2019), na qual indicávamos interrupções, estabelecíamos diálogo com questões que havíamos percebido nas entrevistas, fossem referentes aos argumentos ou às estratégias dos debatedores. Na etapa seguinte, os argumentos foram listados, buscando reuni-los em categorias iniciais, que foram então organizados em um quadro, apresentando os argumentos contrários e em favor da ED presentes em cada uma das entrevistas analisadas (Costa, 2019). Após reclassificações nesse quadro e ajustes nas categorias, redigimos a definição de cada uma delas, depois discutidas, guiadas pelo objetivo de analisar os temas nas entrevistas, pela questão de pesquisa, focada nos argumentos e temas evidenciados nas entrevistas, e dialogando com as pesquisas lidas no levantamento bibliográfico, assim como de outras leituras que ajudaram a compreender os temas.

Temas abordados nos programas de entrevistas

A análise dos debates nas quatro entrevistas permitiu a sua organização em nove temas que emergiram: legislação e direitos; educação escolar versus ED; violências; socialização na escola e na família; valores; ensino dos conteúdos; perfil das famílias; fiscalização e custos da ED; e aprendizagem e avaliação. Esses temas foram organizados em um quadro e indicados, para cada um, os argumentos apontados pelos/as entrevistados/as (Costa, 2019). Os cinco primeiros temas listados foram mais prevalentes, tendo emergido nas quatro entrevistas, e os últimos quatro apresentaram menor incidência, pois foram levantados em três, duas ou uma entrevista. A definição de cada um desses temas é apresentada a seguir, assim como os argumentos apontados pelos entrevistados e entrevistadas, favoráveis e contrários à ED.

No tema Legislação e direitos, foram reunidos os argumentos dos/as entrevistados/as que versaram sobre a legislação vigente a respeito da ED, assim como argumentos relativos à prevalência dos direitos das famílias ou do Estado sobre a educação de crianças e jovens, seja na escola ou no lar. Como já destacado (ver Quadro 1), o período das entrevistas analisadas foi marcado pela proposição de PLs e a decisão do STF sobre a questão, que foi também objeto de debates durante e após a campanha presidencial de 2018. Argumentos relativos a leis e direitos fizeram-se presentes em todas as entrevistas. Dois argumentos foram levantados nas quatro entrevistas: o da ilegalidade da ED e o do direito das famílias a ela.

A indicação da ilegalidade da ED foi feita pelos/as entrevistadores/as ou pelos/as entrevistados/as que criticavam a ED. Para fundamentar esse argumento, recorreram à Constituição Federal de 1988 e à LDB de 1996, como na afirmativa de Ivan Siqueira, na E2: “[...] tanto na Constituição e na LDB diz que o pai é obrigado a fazer matrícula na escola, se caso o pai não fizer, incorre nas responsabilidades que estão previstas na lei”.

Se, como já indicado, o CNE e o STF consideram ilegal a ED, por outro lado os defensores desse tipo de educação argumentam pelo direito das famílias de educarem seus filhos, e, para tal, recorreram ao ECA e, também, à Constituição. Édison (E4) e Milene (E1) mencionaram o ECA para defender o direito à ED. Édison citou o art. 15 desse Estatuto como um argumento legal para adesão à ED, o qual prevê o direito à liberdade, respeito e dignidade da criança e do adolescente (Brasil, 1990). Milene mencionou outro artigo do ECA, o 22, que, em seu parágrafo único, assegura o dever dos pais de prover uma educação de acordo com suas crenças e culturas (Brasil, 1990).

Um dos pontos mais polêmicos foi a discussão sobre o dever do Estado ou da família em relação à educação das crianças e dos jovens, referente ao art. 205 da Constituição Federal, que afirma ser a “[...] educação, direito de todos e dever do Estado e da família [...]”, a ser “[...] promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (Brasil, 1988, p. 137). Para o representante da ANED (E4), os termos “Estado” e “família” são colocados como coadjuvantes nesse artigo. Já o deputado Carlos Giannazi (E4) possui uma interpretação diversa, colocando que “[...] o que vale é a Constituição, e na Constituição, no artigo 205, diz que é dever do Estado em primeiro lugar, depois da família”.

Ainda sobre o papel da escola e da família, Milene Góes, na E1, ressalta que sua intencionalidade é apenas a soberania na educação de seus filhos, que a soberania não é do Estado ou da escola, mas, sim, dos pais, pois a escola possui sua importância, porém não tanto quanto a família, que teria a “soberania na escolha da educação”, para que a educação seja “conforme sua crença e consciência” (Milene Goés, E1).

No segundo tema, Educação escolar versus ED, foram agrupados argumentos que versavam sobre a educação escolar e a ED, com comparações explícitas ou implícitas entre elas. Observou-se que os principais argumentos contra a ED estão relacionados à falta de investimentos na escola, sejam de recursos ou de formação de professores; e dois dos críticos da ED (na E3 e E4) colocam uma perspectiva de defesa e transformação da educação escolar, tendo um desses críticos (Carlos Giannazi, na E4) defendido que a crise da escola corresponde a uma crise da sociedade, sustentando ainda que há necessidade de investir na educação escolar pública. Quanto aos argumentos a favor da ED, identificamos uma extrema confiança na qualidade da ED. De acordo com Édison Andrade (E3 e E4), a ED apresenta melhores resultados, afirmativa para a qual não apresenta evidências.

Outros argumentos expressos pelos defensores da ED vêm sendo objeto de preocupação de pesquisas e educadores e, de fato, representam desafios para a educação pública, como a questão da flexibilização do currículo (E1 e E4); a escola não querer a participação dos pais (E1), assim como as violências, discutidas a seguir. Nas entrevistas 1 e 3, Milene e Édison recorrem à ideia de que escola e ED podem coexistir como forma de convencer a audiência, remetendo àquela liberdade individual cara aos preceitos neoliberais, e ignorando a discussão sobre qual sociedade se quer construir. Em três entrevistas (1, 2 e 3), há a afirmativa de que a qualidade da escola pública é precária, oferecendo como solução a saída individualista da ED. Angélica (E1), de forma sútil, indica a desigualdade criada pela ED, ao usar o termo apartheid, que seria consequência da ED, contrapondo a segregação a “uma sociedade de direito” e a uma democratização da escola pública, indicando que a educação pública de qualidade para todos é um direito que não pode ser retirado.

A perspectiva defendida por Giannazi (E4), de defesa da educação escolar, inclusive de mais investimentos, se encontra em consonância com as questões cruciais levantadas por Vasconcelos e Boto (2020) sobre a qualidade da educação e a necessidade de priorizar a educação escolar pública, já apresentadas na seção inicial deste artigo, dos temas de pesquisas sobre ED. Em consonância com tal defesa, Barbosa (2016) coloca ainda que, na instrução pública, há a oportunidade de iluminar os problemas escolares, enquanto a educação em casa retira as questões da arena pública - ideia que Ventura (2020) reitera, como a entrevistada Angélica, empregando a palavra apartheid para alertar que a ED pode exterminar uma das últimas resistências da vida em comum, a escola, aprofundando o fosso entre uma elite que teria acesso a tal modalidade educacional e os dependentes de um sistema educacional historicamente sucateado.

O terceiro tema com predominância numérica de argumentos e que também se fez presente nas quatro entrevistas foi denominado “Violências”, no qual foram reunidos argumentos relativos às violências na escola e no ambiente doméstico. Nas quatro entrevistas, os defensores da ED recorreram à ideia de que a escola é um ambiente que expõe a criança a riscos de violência e não as protege, como justificativa para a adoção da ED. Os entrevistados que defendem a ED mencionam o bullying (E1) e violências físicas (E4), verbais (E4) e simbólicas (E4), deixando de indicar as violências de gênero, sexual, étnico-raciais, a intolerância religiosa, e tantas outras formas de violências. Não indicam e um deles, Édison Andrade, na E4, não percebe como preconceituosa e passível de gerar violências a afirmação de que “o conceito de homofobia é relativo”3. Assim, a argumentação de que a escola é violenta se fragiliza, pela não percepção mais abrangente das violências presentes na sociedade, inclusive no domicílio, o que é evidenciado pelos entrevistados críticos da ED nas entrevistas 2, 3 e 4.

Angélica Maia (E1) e Giannazi (E4) colocam que as escolas têm projetos de prevenção à violência, e este último afirma ainda que: “Muitas crianças só conseguiram fazer denúncias contra pais pedófilos porque estavam na escola, conversando com os professores”, e que a escola está apta para elaborar projetos que previnem a violência, pois há profissionais preparados para enfrentá-la. Siqueira, na E2, reitera esse ponto, colocando que os pais podem não ter interesses legítimos pelos filhos, mencionando os casos de “estupros, de violência contra os filhos, perpetrados pelas próprias famílias”. Esses posicionamentos dos críticos da ED estão em sintonia com as colocações de Wendler e Flach (2020), de que a ED restringe a proteção a crianças e adolescentes em ambientes familiares abusivos e é geralmente o professor que identifica abusos, como já indicado na seção na qual foram apresentados os temas das pesquisas sobre ED.

Socialização na escola e na família é a quarta temática identificada, reunindo argumentos relativos à socialização nesses dois ambientes, geralmente estabelecendo comparações entre eles, tendo sido abordada nas quatro entrevistas. Os argumentos relacionados à socialização mencionados pelos defensores da ED se referem à preferência de uma permanência e qualidade da socialização primária, aquela que ocorre na família, que, segundo Édison, nas entrevistas 3 e 4, tem sido insuficiente, pois as crianças têm passado muito tempo na escola e pouco com a família, o que é reiterado por Ricardo na entrevista 2, segundo o qual não há mais socialização primária pela família. Esse mesmo entrevistado diz ainda que 25% dos pais tiram os filhos da escola “por conta da péssima socialização escolar”, e que as crianças homeschoolers são mais tolerantes e socializadas. Contrapondo-se a essas afirmações, os quatro entrevistados críticos da ED se posicionam afirmando a importância da socialização na escola, pois esta propicia o convívio com o diferente (sendo a família o ambiente dos iguais), pois na escola todos os dias as crianças se confrontam com as diferenças, proporcionando, assim, uma socialização intensiva. Ivan aponta também que a socialização não é favorecida pela ED em um âmbito mais geral. Além disso, Angélica, na E1, observa a necessidade de a socialização primária coexistir com a secundária, ressaltando a importância da participação da família na gestão escolar, elemento importante no sucesso educacional de países como a Finlândia, a Inglaterra, a França e a Austrália.

Os argumentos dos quatro críticos à ED reverberam colocações de trabalhos que discutem a questão da socialização (Wendler; Flach, 2020), como já indicado na seção inicial deste trabalho. Quanto à diferenciação da socialização na escola e sem a escola, Becker, Grando e Hattge (2020) apontam os aspectos intensidade, frequência e qualidade, ao compararem a socialização na escola a outros espaços, como clube ou escola de idiomas. Na primeira, são cinco dias por semana, por ao menos quatro horas, ao longo de 200 dias letivos, tempo muito superior aos demais espaços, nos quais o contato é mais superficial, de conversas corriqueiras, que não propiciam um tipo de convivência que propicie relações com a diferença. Amparadas em Vygotsky, defendem que tal acesso se dá ao confrontar, debater e aprender a desenvolver estratégias para as relações, o que é limitado nos espaços em que o número de pessoas é mais restrito. Apontam ainda a importância, além da aprendizagem com pares, inexistente na ED, como já indicado antes, da mediação mais qualificada de profissionais da educação. Além de Cury (2006), já mencionado antes, outros autores afirmam a limitação na socialização de crianças e adolescentes de famílias que educam em casa, como Cecchetti e Tedesco (2020) e Ribeiro (2020).

A questão do convívio com a diferença e da socialização guarda proximidade com o quinto tema, Valores, no qual agrupamos os argumentos relativos aos valores indicados como importantes ou desejáveis para guiar a vida das pessoas e as relações entre elas; ou os indesejáveis, assim como os conflitos envolvendo diferenças de valores entre família e escola. Nas entrevistas 2 e 3, Édison e Ricardo evidenciaram a defesa de valores religiosos como um dos aspectos envolvendo a escolha pela ED, tendo Édison (E3) afirmado que ela atende preceitos religiosos da família, enquanto Ricardo (E2) fez menção a educar conforme a crença e a consciência da família. Respondendo a uma pergunta da entrevistadora, Ivan (E2) aponta que ensinar apenas o criacionismo é um problema para toda a sociedade, e não só para jovens que não tiveram acesso à teoria da evolução.

Outro aspecto que emergiu quanto a valores se refere ao já citado comentário de Édison (E4), ao questionar o conceito de homofobia. Ainda no âmbito dos valores, o entrevistado Carlos indicou, na mesma entrevista, que a proposta de ED é conservadora e aparece com força neste momento junto a outros movimentos conservadores, como o Escola sem Partido e a chamada “ideologia de gênero”, termo considerado falacioso no meio acadêmico (Silva, 2018). Quanto ao receio de conflitos entre os valores da família e os outros presentes na escola, foi explicitado de forma mais genérica na E1, por Milene, que indicou particularmente ser perigoso o conflito de ideias, crenças e valores dos professores, mas está implícito nas afirmativas sobre preceitos religiosos (E2 e E3) e relativização do conceito de homofobia (E4). Assim, o temor sobre o conflito de valores entre escola e família (e na sociedade em geral) parece ser comum aos defensores da ED.

A valorização do convívio com a diferença na escola, já indicada quanto à socialização, foi a resposta dos opositores à ED para as ideias sobre religiosidade e gênero já indicadas. Segundo Angélica, o professor trabalha a diversidade, tem formação com aportes teóricos para tal e coloca, quanto à questão de gênero na escola, que “vai ter sim, porque na vida você vai ter isso” (E2). Ela recorre ao conceito de resiliência para indicar que as crianças que na escola vivenciam a diversidade se fortalecem para, quando forem adultas, lidarem melhor com a diversidade e as relações pessoais. Nota-se, nos argumentos de defensores da ED, que não veem problema em alegações como a de que desejam educar segundo suas crenças religiosas, sendo a educação laica, de acordo com a Constituição Federal, como lembram Cecchetti e Tedesco (2020). Tampouco notam problema ao alegarem o “perigo” dos conflitos de ideias das crianças com as de professores, quando vários autores, como Becker, Grando e Hattge (2020) defendem que justamente é na discussão de pontos de vista divergentes que ocorre a aprendizagem da convivência com diferentes e que propicia a constituição da vida em comum, de um senso de coletividade (Ventura, 2020) e a construção da identidade em contextos relacionais plurais (Ribeiro, 2020). Como resultados da ausência dos conflitos, esses autores apontam a sobreposição de interesses particulares dos grupos que defendem a ED sobre interesses públicos (Cury, 2006), com caráter antidemocrático (Araújo; Leite, 2020; Ribeiro, 2020), associando este ideário ao individualismo (Araújo; Leite, 2020), que opta pelo individual da casa e da família em oposição ao coletivo, da escola, privatizando a vida social (Araújo, Leite, 2020; Barbosa, 2016); ou, mais especificamente, como mais um braço da privatização da educação, como já indicado anteriormente (Adrião, 2018).

Ensino dos conteúdos escolares, a sexta temática discutida, abrangeu afirmativas e argumentos sobre os conteúdos ensinados pelos familiares e pela escola, assim como o domínio, ou falta dele, para ensiná-los. Foi um tema presente em três das entrevistas, portanto tendo também mobilizado bem o debate. Os argumentos apontados pelos defensores da ED se referem à crítica da escola ao ensinar os temas transversais, e houve a menção explícita à “educação sexual”, por Édison, na E3, preocupação que se aproxima da questão de gênero, já apresentada na temática dos valores, inclusive por ele. Além desse argumento, especificamente na E1, Milene Góes diz que os pais podem suprir a falta de domínio de alguns conteúdos terceirizando a aula por meio de uma metodologia específica fora do âmbito familiar, ou com uma pessoa responsável por ensinar aquele conteúdo específico, exemplificando o seu caso, que, por orientação de Carlos Nadalim4, “um professor que respeito e confio”, colocou seu filho no Kumon, pois não possuía domínio do conteúdo da matemática. Por outro lado, os argumentos dos críticos da ED, estão relacionados à responsabilidade da escola para o ensino de conteúdos, e ao preparo do professor para essa tarefa, e a consequente falta de preparo de familiares para a função.

Ivan Siqueira (E2), além de problematizar a falta do ensino da Teoria da Evolução, já apontada, indica que há outros conteúdos obrigatórios negligenciados na ED, como os relativos a matrizes africanas e indígenas. A problematização do ensino do criacionismo em detrimento do ensino da teoria da evolução foi levantada no Acórdão do RE 888.815 (Brasil, 2018), da família de Canela. Como uma das razões para recorrer ao Judiciário para educar os filhos em casa, essa família indicou, segundo o RE, que a Teoria da Evolução era uma imposição pedagógica e que a impetrante, sendo criacionista, não considerava “[...] crível que os homens tenham evoluído a partir dos macacos” (Brasil, 2018, p. 9). Tal argumento foi contestado por dois ministros do STF, com um deles tendo afirmado que os pais não poderiam “[...] privar seus filhos do acesso a esse conhecimento” (Brasil, 2018, p. 9) e outro ministro ter expressado que não ensinar evolução é que seria doutrinação, propalada como própria da escola (Brasil, 2018). Na narrativa de Westover (2018), educada em casa, podemos perceber outros possíveis conteúdos negados ou distorcidos pelas famílias que não enviam seus filhos para a escola. Embora pouco se saiba sobre o que não se estuda na ED, pois esse acesso é difícil para pesquisadores, relatos (desviantes?) de quem não foi à escola podem nos dar uma ideia do que não se ensina. Dentre os conteúdos negados, Westover (2018) citou a dança para meninas, diferenciação entre fato histórico e ficção, o holocausto, lavar as mãos após usar o banheiro, “fatos da concepção” (Westover, 2018, p. 211), movimentos pelos direitos civis e o feminismo. E, dentre os conteúdos distorcidos, ela relatou as seguintes ideias: de que os escravos eram livres e felizes, o holocausto foi planejado pelos judeus, o francês é uma língua socialista e as vacinas são uma conspiração do sistema médico.

Fiscalização e custos da ED é a sétima temática, tendo emergido em dois dos programas de entrevistas. Ao discutir formas de implementação da ED, Édison (E4) defendeu o pagamento de bolsas para mulheres homeschoolers, custo que seria provavelmente assumido pelo Estado. Afirmou ainda que há investimentos demais na escola pública. Fernando (E3) demonstrou preocupação com uma necessária supervisão da ED, caso aprovada, e de seus custos orçamentários, pressupondo que se houvesse investimento do Estado para manter a ED, isso significaria que esse recurso estaria sendo destinado a quem menos necessita, e não para a educação pública de qualidade, dirigida às classes populares, que ficariam sem uma parte dos já escassos recursos para a educação. Ele apontou também uma indefinição na forma de supervisão nas famílias. Pudemos perceber o que pensa um dirigente da ANED, que provavelmente é um pensamento representativo dos defensores da ED, sobre fiscalização, na revisão da literatura feita anteriormente neste artigo: embora prevista no PL 3179-B/2012, aprovado na Câmara, a fiscalização dificilmente acontecerá. O projeto de lei prevê o acompanhamento em três instâncias: escola (por meio de matrícula, cadastro anual, acompanhamento por docente tutor e realização presencial de exames nacionais ou estaduais); família (por relatórios trimestrais) e Conselho Tutelar, ao qual caberia a fiscalização. A perda do direito à ED ocorreria se houvesse insuficiência de progresso acadêmico (Ensino Fundamental e Ensino Médio) por dois anos consecutivos ou três anos não consecutivos. Se a fiscalização dificilmente funcionará, como supomos, dois tipos de riscos se anunciam.

Para crianças e adolescentes de famílias que realizam a ED, o risco de violências, a socialização limitada, a exposição inquestionada a preconceitos e a aprendizagem de conteúdos negados ou distorcidos. Um outro risco é o de abandono, como relatado pela filha de Olavo de Carvalho, ao afirmar que: “Olavo simplesmente esqueceu de me mandar novamente para a escola e ficou por isto mesmo” (Carvalho; Bugalho, 2020, p. 34). Outros riscos se colocam para a sociedade e especialmente para a educação pública, além dos já indicados, como o acirramento de uma sociedade mais individualista, meritocrática, preconceituosa, privatista e elitista e, portanto, menos democrática. Muito provavelmente a fiscalização e seus custos recairão sobre a escola pública, pois provavelmente seria nelas que as famílias matriculariam seus filhos, sabendo que a probabilidade de a escola pública assumir mais essa função é remota. Além do que, para que pagar escola privada, se a matrícula pode ser na pública? Assim teríamos os recursos públicos financiando um projeto elitista, quando poderiam estar sendo usados para a melhoria da educação pública.

Na oitava temática, Perfil das famílias, presente em dois dos programas, agrupamos afirmativas relativas aos argumentos levantados sobre o perfil social de famílias que aderem à ED. Édison, na entrevista 3, coloca que as famílias homeschoolers são religiosas e conservadoras em valores, ao passo que Fernando, no mesmo programa, adjetiva de forma explícita o elitismo das famílias de classe média que aderem à ED. Nas outras entrevistas, as evidências desse perfil foram as referências ao Kumon (Milene, E1), ao pagamento de supletivo (Ricardo, E2) e à indicação de que são famílias em que um dos pais, geralmente a mulher, não trabalha fora (Édison, E4). Todas são práticas só acessíveis para famílias das camadas médias e altas. Reiterando o elitismo apontado por Fernando, Fuhr e Alejarra (2020) indicam ter entrevistado “famílias” praticantes da ED (na verdade três mães, das quais duas abandonaram seus empregos e a terceira não possui ocupação profissional). Essas revelações confirmam a marca elitista da proposta, pois quais famílias podem prescindir da renda do trabalho da mãe? Poucas. Ademais, tem-se uma educação que, ao que parece por este estudo, é conduzida principalmente por mulheres que abdicam de suas vidas profissionais, do mundo do trabalho e da socialização mais intensa que ele oferece, o que provavelmente se reflete na educação dos filhos.

Na última temática, Aprendizagem e avaliação, agrupamos afirmativas relativas ao desempenho de estudantes no processo de aprendizagem e à sua avaliação. Esse tema só emergiu em uma das entrevistas. Indagado pela entrevistadora sobre como acontece a supervisão e a avaliação da ED, Ricardo Dias (E2) respondeu que os estudantes podem fazer o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja)5 para a obtenção de diploma. Ele afirmou também que homeschoolers apresentam melhores resultados, exemplificando com o caso de um menino homeschooler que entrou em 1º lugar no curso de Medicina da Universidade Federal de Roraima. Esse argumento da vantagem dos bons resultados de homeschoolers na aprendizagem é frequente nos discursos de seus defensores e de pesquisadores que defendem a ED, como Ray (2017), segundo quem homeschoolers aprenderiam mais, o que é demonstrado em testes padronizados. Araújo e Leite (2020) respondem a tal alegação colocando que se aprendem mais, é devido a privilégios, à meritocracia que os produz, no seio de uma proposta elitista, que privilegia quem já é privilegiado, e pode ter acesso aos produtos e serviços da rede empresarial que sustenta tal educação, a um alto custo para a sociedade, em detrimento da educação pública.

Os temas das entrevistas e das pesquisas: prevalências e silenciamentos

A análise realizada nos deu evidências para identificar a predominância e os tipos de argumentos nos discursos críticos e em defesa da Educação Domiciliar, assim como alguns silenciamentos. Ao compararmos os temas dos dois tipos de debates, o acadêmico e o realizado nas entrevistas, pudemos perceber alguns aspectos. Antes, duas ressalvas e a indicação do recorte aqui assumido. Muitos aspectos relevantes poderiam ser considerados para as análises, relativos às relações de poder: comparar os tempos de fala dos entrevistados, as perguntas feitas pelas entrevistadoras, o título de cada programa, a fluidez dos discursos, o uso de números e gráficos por certos entrevistados, a raça dos/as entrevistados/as e das entrevistadoras, seus gêneros, as finalidades, os interesses e o financiamento dos programas e das emissoras; a escolha dos entrevistados, se estavam ou não representando instituições, dentre outros. As pesquisas têm apoiado o debate público? Em quais temas? E há temas abordados nas pesquisas, mas silenciados, pois não perguntados ou introduzidos pelos/as entrevistados/as? Que tipos de respostas foram ou não oferecidas pelos/as debatedores/as?

Além desses elementos das relações de poder, há de considerarmos que se trata de dois gêneros discursivos diferentes, o artigo e a entrevista, e, consequentemente, produzidos e desenvolvidos em contextos distintos, com finalidades, interlocutores e recursos linguísticos próprios, com seus limites e suas possibilidades. Se, por exemplo, um artigo acadêmico permite um aprofundamento de ideias, o debate público em programas de entrevistas nos formatos analisados dificilmente permite o aprofundamento das discussões, mas tem a potencialidade de atingir interlocutores de grupos variados e ao longo do tempo (aqueles que permanecem online), enquanto o público atingido pelas publicações científicas é mais restrito.

Ao confrontarmos os temas da revisão feita com as discussões nas entrevistas, percebemos que a maior parte deles foi contemplada nos programas de entrevistas, por vezes de forma mais frequente e intensa, com mais debate e argumentação, enquanto outros temas foram apenas brevemente abordados, ou mesmo tangenciados. Observamos prevalências e silenciamentos, que reunimos em três grupos, sintetizados no Quadro 2 e apresentados em seguida.

Quadro 2 Temas prevalentes, pouco discutidos e silenciados nas entrevistas e pesquisas, por grupos 

1o grupo - Temas mais prevalentes nas quatro entrevistas e discutidos nas pesquisas. Legislação e direitos; educação escolar versus ED; violências; socialização na escola e na família; e valores.
2o grupo - Temas pouco discutidos ou silenciados nas entrevistas e presentes nas pesquisas. ED e privatização da educação; ideário neoliberal fundamenta ED; elitismo da ED; ED é antidemocrática; aporte recursos públicos na ED, em detrimento da escola pública; a ED é negócio; o perfil das famílias homeschoolers; aprendizagem e avaliação na ED; a improvável fiscalização da ED.
3o grupo - Tema pouco discutido nas entrevistas e nas pesquisas. Conteúdos distorcidos ou negados em famílias homeschoolers.

Fonte: Elaboração própria.

Um primeiro grupo de temas das entrevistas foi o dos mais prevalentes, como já apontado anteriormente, no sentido de que foram discutidos nas quatro entrevistas: legislação e direitos; educação escolar versus ED; violências; socialização na escola e na família; e valores. São temas também presentes no debate acadêmico, como já indicado. Embora haja, em geral, uma distância entre as pesquisas em educação e os seus impactos na sociedade, notamos que, no caso em tela, essa distância, para esse grupo de temas, não se observou. Muito provavelmente isso se deu pela formação na pós-graduação de uma parte dos debatedores, que são doutores (Andrade, Cássio, Giannazi e Siqueira) e uma delas era mestre (Maia), que conseguiram levar argumentos das pesquisas para a discussão.

As questões relativas à legislação e à obrigatoriedade da escolarização repercutiram as discussões no Judiciário e no Legislativo daquele período sobre a regulamentação da ED, que também vinham sendo objeto de discussão na academia desde a década passada e anteriormente à repercussão midiática (Barbosa, 2016; Casanova; Ferreira, 2020; Cury, 2006, 2017, 2019; Ranieri, 2017).

Quanto à qualidade da escola, verificamos dois posicionamentos diante da, assim indicada pelos debatedores e debatedoras entrevistados, má qualidade da educação escolar. De um lado, os críticos da ED que reconhecem os desafios que a escola enfrenta e indicam caminhos para transformá-la, e, de outro, os defensores da ED, que indicaram a desescolarização como solução. Esses são temas também presentes no campo acadêmico, como já apresentado, por Vasconcelos (2017), na discussão sobre desescolarização; por Becker, Grando e Hattge (2020), ao defenderem a escola pública; por Vasconcelos e Boto (2020), ao levantarem questões sobre os rumos para a melhoria da escola pública, assim como por vários autores, como indicado na seção sobre os temas das pesquisas, quanto ao individualismo atinente à ED (Araújo; Leite, 2020; Oliveira; Barbosa, 2017).

Quanto ao tema das violências, os defensores da ED a percebem como um problema na educação escolar, ao que os críticos dessa proposta contra-argumentaram, apontando que, quando o lar é violento, a criança fica destituída do espaço da escola para buscar proteção, além das possibilidades que a escola tem de enfrentar as violências de forma profissional (Wendler; Flach, 2020).

As limitações da socialização na ED contrastam com a que se realiza na escola, mais intensa, diária e que demanda o convívio com o diferente. Ventura (2020) destaca a troca de experiências e a empatia; Becker, Grando e Hattge (2020) discorrem sobre as interações entre a rede de profissionais que pensam, discutem, reorganizam e fiscalizam o direito de aprender dos discentes. Assim, defende-se a ideia de que, no ambiente escolar, o/a estudante se relaciona com os pares, confronta suas opiniões/ideias; encontra desafios de convivência e situações diversas, construindo uma autonomia e vivência em sociedade. A diferença é entendida pelos defensores da ED como problema e não como parte de uma sociedade que sempre será diversa e precisa reconhecer tais diferenças para que seja mais igualitária. Por que essa forma de lidar com a diferença, negando-a, tem se colocado como alternativa?

A questão dos valores envolveu diferentes argumentos, tanto dos defensores, quanto dos críticos da ED. Foram colocados em xeque valores que fundamentam o convívio democrático, o senso de coletividade, a laicidade da escola e a pluralidade de ideias (Cecchetti; Tedesco, 2020; Ribeiro, 2020; Ventura, 2020). Os entrevistados defensores da ED propõem substituir esses valores pela defesa de interesses privados, o individualismo e a privatização da educação e da vida social (Adrião, 2018; Araújo; Leite, 2020; Barbosa, 2016; Cury, 2006).

Em um segundo grupo, reunimos os temas silenciados nas entrevistas, isto é, contemplados no debate acadêmico, mas que não foram abordados ou foram pouco recorrentes nas entrevistas, tendo emergido em poucas delas: a ED como parte do processo de privatização da educação; o ideário neoliberal que permeia proposta de ED, ao defender um projeto antiestatal, privatista, em defesa das liberdades individuais e de negação do papel do Estado nas políticas públicas; a ED como proposta elitista e antidemocrática; a demanda de recursos públicos para atender poucas famílias vinculadas à ED, em detrimento da escola pública; a ED como um negócio de mercado; o perfil das famílias homeschoolers, aprendizagem e avaliação e a improvável fiscalização da ED nas casas, tendo por consequência que crianças e adolescentes poderão estar expostas ao abandono e a violências. São temas interligados que compõem a tentativa de implementação de uma concepção de funcionamento educacional. Assim, fazem parte de propostas neoliberais a cultura da escolha (Oliveira; Barbosa, 2017) e a privatização (Adrião, 2018), inclusive com a ampliação do mercado de materiais e cursos da ED (Araújo; Leite, 2020). São temas que requerem aprofundamento e que constituem em si um grande tema no campo educacional.

As entrevistas evidenciaram que as famílias que querem a ED no Brasil, em sua grande maioria, são de classe média ou média alta, revelando a característica elitista da proposta. Elas buscam mudanças nas leis em favor de suas convicções, representando a alegada defesa de direitos de um grupo já privilegiado e que parece buscar ainda mais privilégios, cujos custos seriam assumidos por todos, pois a ED precisaria ser supervisionada, tanto quanto a educação escolar. Quanto a esse aspecto dos custos, um dos entrevistados chegou a sugerir que há investimentos demais na escola pública, ideia que coaduna com o caráter elitista e antidemocrático da ED, que pressupõe a destinação de recursos para quem menos precisa.

Consideramos também um outro tipo de silenciamento, de um tema pouco explorado nas entrevistas e também no debate acadêmico, compondo um terceiro grupo, no qual se encontra a discussão sobre os conteúdos distorcidos ou negados em famílias homeschoolers. Tal negação é ilegal, por deixar de ensinar conteúdos previstos em leis.

Interessante apontarmos, ainda, quanto a alguns desses silenciamentos, a dificuldade de conduzir pesquisas com famílias homeschoolers de uma perspectiva crítica à ED, pois supomos que elas devem se colocar pouco dispostas a falar, posto que, neste momento, não se encontra regulamentada, e, se estivesse, talvez pesquisas com perspectiva crítica não fossem bem recebidas, se considerarmos narrativas como as de Westover (2018) e de Carvalho e Bugalho (2020). O isolamento das famílias era tal que as filhas viveram anos em situação de violência ou abandono. Que outros conteúdos, além dos já mencionados, podem estar sendo negados ou distorcidos em famílias homeschoolers? E como investigar isso, já que o tema não foi abordado nas pesquisas selecionadas? Haveria outras narrativas, como as mencionadas, que poderiam ser investigadas?

Conclusão

Este trabalho teve como objetivo geral analisar os temas e os argumentos discutidos nos debates sobre a ED em programas televisivos. A análise deu-nos evidências para identificar a predominância e os tipos de argumentos nos discursos críticos e em defesa da Educação Domiciliar, assim como temas menos discutidos ou silenciados.

Foram analisados artigos e textos relacionados ao tema da ED e da educação escolar, e, a partir da análise dos quatro vídeos de entrevistas, foram elencadas nove categorias sobre os argumentos, que foram organizadas em um quadro para comparação e análise das argumentações. Dentre as categorias com maior número de argumentos favoráveis e contrários à ED, quatro se destacaram: Leis e direitos, Qualidade da escola, Violências e Perfil das famílias.

Na categoria Leis e direitos, os defensores da ED recorreram a argumentos que invocavam os direitos das famílias de educarem seus filhos, incluindo a escolarização, e segundo suas crenças e seus valores, e, de outro lado, os críticos da ED e defensores da educação escolar, que apontaram argumentos referentes à legalidade e ao papel das famílias e de toda a sociedade na construção de uma escola de melhor qualidade, objeto da segunda categoria. Quanto à qualidade da escola, verificamos dois posicionamentos diante da, assim indicada pelos debatedores e debatedoras entrevistados, má qualidade da educação escolar. De um lado, os críticos da ED que reconhecem os desafios que a escola enfrenta e indicam caminhos para transformá-la, e, de outro, os defensores da ED, que indicaram a desescolarização como solução. Um dos desafios mencionados diz respeito às violências, indicadas pelos defensores da ED como um problema na educação escolar, ao que os críticos dessa proposta contra-argumentaram apontando que, quando o lar homeschooler é violento, a criança fica destituída do espaço da escola para buscar proteção, além das possibilidades que a escola tem de enfrentar as violências de forma profissional.

Também se evidenciou, nas entrevistas, que as famílias que querem a ED no Brasil, em sua grande maioria, são de classe média ou média alta, revelando a característica elitista da proposta. Elas buscam mudanças nas leis em favor de suas convicções, representando a alegada defesa de direitos de um grupo já privilegiado e que parece buscar ainda mais privilégios, cujos custos seriam assumidos por todos, pois tanto a ED precisaria ser supervisionada quanto a educação escolar. Quanto a esse aspecto dos custos, houve ausência de argumentos dos defensores da ED, pois, de fato, parece mesmo difícil a defesa de dirigir recursos para quem menos precisa. Os familiares que adotam a ED têm disponibilidade financeira e afetiva para a vivenciarem. Portanto, compreende-se que a ED não atinge todos os perfis de famílias, não é uma educação de qualidade para todos, e não contempla os requisitos necessários para a socialização, aquela de forma intensa, diária, de convívio com o diferente. A concepção negativa sobre a diferença pela ED pode ser percebida de forma mais ampla, como um retrato do cenário contemporâneo do Brasil e seus conflitos, nos quais, muitas vezes, prevalece a negação do diálogo.

Notamos, nas entrevistas, uma lacuna na argumentação dos críticos da ED quanto à questão dos valores. À que se contrapõe a defesa dos valores religiosos, das crenças e das consciências das famílias que buscam a desescolarização? Há valores universais a serem defendidos por e para toda a sociedade?

A pesquisa encerra cumprindo com os objetivos gerais, trazendo um olhar mais claro e específico para as argumentações, sob diferentes aspectos, como o legal, os desafios da educação de qualidade para a sociedade, a qual público-alvo a ED tem se voltado, como a sociedade está buscando lidar com suas diferenças, como enfrentar as violências na sociedade (seja na escola, nos domicílios, seja em outros espaços) e para qual tipo de educação se deve priorizar a destinação de recursos.

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*Agradecemos à Prof.a Dra. Luana Costa Almeida e à Prof.a Dra. Renata Maria Moschen Nascente as sugestões para a continuidade desta pesquisa, referentes à versão inicial da monografia da primeira autora.

1Sobre a atuação da Associação no período recente da história, pode-se encontrar algo em, por exemplo, Barbosa e Evangelista (2017).

2Dossiês disponíveis respectivamente em: https://www.fe.unicamp.br/lancamentos/pro-posicoes-v-28-n-2-83-2017 e https://revistas.uepg.br/index.php/praxiseducativa/issue/view/694. Acesso em: 26 jul. 2023.

3Dois meses após a entrevista 4, o STF definiu homofobia e transfobia, enquadrando condutas homo e transfóbicas como crimes de racismo, conforme a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26: “[...] as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe [...]” (Brasil, 2019, p. 1).

4Carlos Nadalim foi secretário de alfabetização sob o governo de Jair Bolsonaro. Antes disso, foi coordenador pedagógico em uma escola de sua mãe e coautor de um blog no qual buscava guiar famílias que desejassem alfabetizar em casa seus filhos com o método fônico (Annunciato; Trigueiros, 2019).

5Segundo a página do Ministério da Educação (MEC), o Encceja tem por objetivo “[...] aferir competências, habilidades e saberes de jovens e adultos que não concluíram o Ensino Fundamental ou Ensino Médio na idade adequada” (Brasil, 2022).

Recebido: 14 de Março de 2023; Revisado: 18 de Julho de 2023; Aceito: 19 de Julho de 2023; Publicado: 09 de Agosto de 2023

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